RECURSO PENAL
RAPTO
VIOLAÇÃO
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
INCONSTITUCIONALIDADE
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
NULIDADE
DUPLA CONFORME PARCIAL
CONFIRMAÇÃO IN MELLIUS
IRRECORRIBILIDADE
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ÚNICA
Sumário


I. Nos termos do disposto nos artigos 432.º, n.º 1, al. b), e 400.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, na parte em que aprecia e decide os recursos das decisões interlocutórias que subiram com o recurso do acórdão da 1.ª instância, o acórdão da Relação é irrecorrível para o STJ por não conhecer, a final, do objeto do processo, ou seja, por não conhecer «do mérito ou fundo da causa, enfim da viabilidade da acusação, com o inevitável desfecho de condenação ou absolvição do arguido» 
II. Se as penas parcelares tiverem sido fixadas pela Relação, em recurso, em medida não superior a oito anos de prisão, nessa parte é também irrecorrível o acórdão da Relação. Esta irrecorribilidade é extensiva a todas as questões relativas à atividade decisória que subjaz a tal fixação de penas parcelares, incluindo escolha das penas e determinação da respetiva medida, inconstitucionalidades e nulidades, vícios lógicos da decisão, regimes penais substantivos aplicáveis, aplicação do in dubio pro reo.
III. Tendo o arguido praticado dois crimes de rapto agravado, seis crimes de violação, e dois crimes de ofensa à integridade física agravada, estamos perante fenomenologia criminal grave, de “criminalidade especialmente violenta” se classificam os crimes de rapto e de violação,  em que os bens jurídicos tutelados são qualitativamente nobres, os mais nobres logo a seguir ao bem jurídico vida,  e em que se revela personalidade gravemente desconforme com o direito,  e, por isso, na efetivação do cúmulo jurídico, a fração de cada pena parcelar deverá ser exasperada, em enfâse agravante.
IV. Sempre sem perder de vista o princípio da proporcionalidade, nas suas três vertentes, decisivo para que se alcance a justa pena.
V. Não é excessiva uma pena conjunta de treze anos de prisão face à prática no espaço temporal de dois meses daqueles dois crimes de rapto agravado, seis crimes de violação, e dois crimes de ofensa à integridade física agravada, tendo o arguido pregresso caminho integrante da prática de um crime de homicídio, de um crime de evasão, de dois crimes de condução em estado de embriaguez e de dois crimes de detenção de arma proibida.

Texto Integral


Acordam na 3ª Secção Criminal do STJ:



I - RELATÓRIO

1. Realizado o julgamento de AA, foi decidido, na 1ª instância, Juízo Central Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, além do mais:

“Condenar o arguido pela prática de um crime de rapto agravado, referente a BB, p. e p. pelos art.º 161.º, n.º 1 al.ª b) e 2 al.ª b) e 158.º, n.º 2 al.ª a) e b), do Código Penal, na pena de 5 anos e 3 meses de prisão;

Absolver o arguido da prática de um crime de rapto agravado, p. e p. pelos art.º 161.º, n.º 1 al.ª b) e 2 al.ª b) e 158.º, n.º 2 al.ª a) e b), do Código Penal, mas condená-lo pela prática de um crime de rapto agravado, referente a CC, p. e p. pelos art.º 161.º, n.º 1 al.ª b) e 2 al.ª b) e 158.º, n.º 2 al.ª a), do Código Penal, na pena de 5 anos prisão;

Condenar o arguido pela prática de dois crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos art.º 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1 al.ª a), do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão por cada um deles;

Condenar o arguido pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.º 143.º, n.º1, 145.º, n.º 1 al.ª a) e 132.º, n.º 1 e 2 al.ª e), do Código Penal, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão por cada um deles; e

Condenar o arguido pela prática de seis crimes de violação, p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 2 al.ª a), do Código Penal, na pena de 5 anos por cada um deles.


Em cúmulo jurídico, pena única de 14 anos de prisão.

Mais foi o arguido condenado a pagar a BB e a CC, a título de reparação oficiosa, a quantia de 10.000 € a cada uma.”

2. A Relação ..., depois de recurso interposto pelo arguido, decidiu:

“1.º

Julgar improcedentes os recursos interlocutórios.

2.º

Ao abrigo do art.º 380.º, n.º 1 al.ª b) e 2, do Código de Processo Penal, procede-se à seguinte correcção:

Aonde na parte dispositiva do acórdão recorrido, a fls. 56-57 e sob as al.ª A) e B), se menciona:

161º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. b)

Passa a ler-se:

161º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a)


3.º

Absolve-se o arguido da prática dos dois crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos art.º 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1 al.ª a), do Código Penal, por cada um dos quais fora condenado na pena de 1 ano de prisão, por se entender estarem os mesmos consumidos pelos crimes de rapto pelo qual o arguido foi condenado.

4.º

Reformula-se, em consequência, a pena única aplicada pela 1.ª Instância e que fora a de catorze anos de prisão e agora se fixa em treze anos de prisão.

5.º

Mantém-se, no mais, a decisão recorrida.”

3. O arguido interpõe agora recurso para o STJ, com as seguintes 176 conclusões:

“1. Em sede de primeira Instância, foi o Arguido absolvido da prática de 1 (um) crime de rapto agravado, previsto e punido pelos artigos 161.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea b) e artigo 158.º, n.º 2, alíneas a) e b), ambos do C.P.,sendo, porém, condenado pela prática de: 1 (um) crime de rapto agravado, previsto e punido pelos artigos161.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea b) e artigo 158.º, n.º 2, alíneas a) e b) do C.P., na pena de 5 anos e 3 meses de prisão; 1 (um) crime de rapto agravado, previsto e punido pelos artigos 161.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea b) e artigo 158.º, n.º 2, alínea a) do C.P., na pena de 5 anos prisão; 2 (dois) crimes de ameaça agravada, previstos e punidos pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a) do C.P., na pena de 1 ano de prisão porcada um deles; 2 (dois) crimes de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º,n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea e) do C.P., na pena de 2 anos e 3 meses de prisão por cadaum deles; e 6 (seis) crimes de violação, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) do C.P., na pena de 5 anos por cada um deles. Em cúmulo jurídico, foi-lhe aplicada a pena única de 14 (catorze) anos de prisão.

2. Inconformado, veio o Arguido recorrer de tal decisão para o Tribunal da Relação ..., tendo recorrido também, nomeadamente, dos despachos proferidos nas sessões de audiência de julgamento realizadas nos dias31-05-2021 e 07-07-2021.

3. O Acórdão aqui sob escrutínio veio a julgar totalmente improcedentes os recursos interlocutórios e apenas parcialmente procedente o recurso interposto da decisão final condenatória (tendo absolvido o Arguido apenas dos dois crimes de ameaça agravada pelo qual foi o mesmo condenado).

4. Considera, porém, o Arguido que este acórdão merece, também ele, reparo. Em primeiro lugar, porque não decide definitivamente questões de inconstitucionalidade suscitadas, tanto nos recursos interlocutórios, como no próprio recurso da decisão final condenatória; em segundo lugar, porque enferma dos vícios de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e de manifesta falta de fundamentação; e, finalmente porque estabelece uma pena única manifestamente excessiva e, por isso, desajustada e desproporcional.

5. No decorrer da sessão de audiência de discussão e julgamento que tomou lugar a 31-05-2021, requereu o Arguido, ao abrigo do disposto no artigo 146.º do C.P.P., a acareação entre as testemunhas DD e EE.

6. Contudo, naquele mesmo dia 31-05-2021, pela Mm.ª Juíza Presidente do Tribunal de 1.ª instância foi proferido despacho de indeferimento da realização do meio de prova requerido, no qual foi referido que, apesar de ser “inegável que existem discrepâncias nas declarações das duas testemunhas”, “não é minimamente expectável que alguma das testemunhas venha alterar o já por elas declarado”.

7. Ora, o Arguido discordou desta decisão, argumentando que, por um lado, face à descrição dos factos feita pelas testemunhas em audiência de julgamento, não é possível retirar, com o mínimo de certeza, importantes dados daquele hiato temporal balizado entre a chegada da P.S.P. e a saída de CC do espaço comercial e, por outro lado, resulta evidente que as declarações das testemunhas se encontram em contradição.

8. Ora, uma vez que se encontram preenchidos os pressupostos conformadores da acareação, previstos no n.º 1 do artigo 146.º do C.P.P., o Tribunal de 1.ª instância, ao indeferir a realização do meio de prova requerido, preteriu os direitos de defesa do Arguido, consagrados no artigo 32.º da C.R.P., bem como violou o disposto no artigo 146.º do C.P.P.

9. Quanto a esta questão em concreto, veio o Tribunal aqui recorrido a determinar a improcedência do recurso, por entender que, tendo sido o Tribunal de 1.ª instância a beneficiar da imediação e da oralidade, “esta Relação não tem argumentos para contrariar, salvo se se tratasse de caso de mau julgamento evidente detectado por recurso à experiência da vida ou atropelo a regras elementares ou tabelares de produção de prova – o que, manifestamente, não é o caso”.

10. Repare-se que foram invocadas outras questões que são ESSENCIAIS para a descoberta da verdade material e para a boa decisão da causa, tal como o facto de a testemunha EE ter ido conversar com a Ofendida CC, que lhe referiu que só queria dinheiro e que se lhe dessem dinheiro ia embora e terminava com aquela situação.

11. Ora, o Acórdão recorrido ao ter-se limitado a justificar a improcedência do recurso apresentado pelo Recorrente no facto de não ter “argumentos para contrariar” a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, que, por sua vez, se limitou a referir que “dada a perentoriedade com que ambas as testemunhas assumiram os seus depoimentos, nos pontos relevantes e referidos, não é minimamente expectável que alguma das testemunhas venha alterar o já por elas declarado” - sendo que, salvo o devido respeito, o objetivo da acareação é esclarecer, ou superar divergências, uma vez que permite o confronto e esclarecimento da pluralidade de visões sobre as circunstâncias dos factos e possibilita a compreensão da causa das próprias divergências, facilitando, por isso, a sua melhor valoração -, preteriu os direitos de defesa do Arguido, consagrados no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, bem como violou o disposto no artigo 146.º do C.P.P.

12. Enfermando também o Acórdão recorrido de irregularidade, por falta de fundamentação, nos termos e para os efeitos conjugados das disposições contidas no n.º 5 do artigo 97.º e 123.º, ambos do C.P.P. – irregularidade esta que ora se argui para os devidos efeitos legais.

13. Sendo a interpretação que o Tribunal de 1.ª Instância e agora o Tribunal recorrido fazem da norma ínsita no artigo 146.º, n.º 1 do C.P.P., no sentido de não permitir a realização da acareação entre as duas testemunhas, por se entender que não se crê que alguma delas venha a alterar as suas declarações, é inconstitucional, por violação do direito constitucionalmente consagrado de defesa efetiva num processo equitativo, bem como do princípio do contraditório, consagrados no artigo 32.º da C.R.P. - inconstitucionalidade esta que aqui novamente se argui para os devidos efeitos legais.

14. Devendo o Acórdão recorrido ser substituído por outro que autorize a acareação requerida.

15. Na audiência de discussão e julgamento realizada em 05-07-2021, cuja data se encontrava agendada para se proceder à leitura do acórdão no âmbito dos presentes autos, foi o Arguido surpreendido com o despacho pelo qual o Tribunal de 1.ª instância veio a proceder a uma alteração não substancial dos factos nos termos do artigo 358.º, n.º 1 do C.P.P. - em concreto, 16 (dezasseis) factos, alguns deles completamente novos na medida em que são diferentes da narrativa acusatória/pronúncia.

16. Após ter sido dada a palavra ao Mandatário constituído, que requereu prazo não inferior a 10 dias para preparação da defesa, pela Mma. Juíza Presidente foi proferido novo despacho na qual determinou que o prazo fosse de 1 (um) dia útil.

17. Por requerimento datado de 07-07-2021, o Arguido apresentou a sua defesa, na qual requereu a que ambas as Ofendidas fossem ouvidas presencialmente em julgamento e, em qualquer caso, que se procedesse à audição, em audiências, das declarações para memória futura. Ademais, requereu-se ainda a visualização e análise de prova documental para por si, mas também conjugada com as requeridas declarações, se poder concluir que as alterações dos factos comunicadas são destituídas de sentido, bem como a audição de testemunhas para cujos factos alterados o Recorrente teve o cuidado de indicar em concreto sobre que matéria recairia o depoimento das mesmas.

18. Sucede que, por despacho exarado em ata de 07-07-2021, o Tribunal de 1.ª instância indeferiu in totum as diligências suplementares de prova requeridas -, tendo sido deste despacho que o Arguido interpôs recurso para o Tribunal aqui recorrido.

19. Sobre o recurso apresentado, concluiu o Tribunal recorrido nos seguintes termos: “sendo embora inegável que em face do disposto no art.º 358.º, n.º 1, o arguido tinha o direito de aditar nova prova sobre os novos factos não substanciais aditados pelo tribunal "a quo" e que no momento em que o fez a sua não aceitabilidade podia até ser discutível, o que se segue é que – agora, a posteriori, que se pode ler e já se leu a matéria de facto assente como provada e não provada, bem como a respectiva fundamentação da convicção, bem como, no decurso da impugnação da matéria de facto efectuada pelo arguido no recurso da decisão final, se tiveram de ouvir extensos excertos da prova gravada – a prova que na altura o arguido propôs revelou-se ser ou irrelevante ou inadequada ou com finalidade meramente dilatória, pelo que bem andou a 1.ª Instância ao rejeitar a sua produção, o que agora se confirma nos termos do art.º 340.º, n.º 4 al.ª b), c) e d).”

20. Salvo o devido respeito, não se pode concordar com o entendimento do Tribunal a quo!

21. A verdade é que o Tribunal recorrido não chega a pronunciar-se efetivamente sobre a admissibilidade e/ou direito do Arguido em serem reproduzidas as referidas declarações para memória futura em julgamento.

22. Face ao exposto, o Acórdão recorrido enferma de irregularidade, por falta de fundamentação, nos termos e para os efeitos conjugados das disposições contidas no n.º 5 do artigo 97.º e 123.º, ambos do C.P.P. - irregularidade esta que ora se argui para os devidos efeitos legais - e, ainda, de nulidade, por omissão de pronúncia, porquanto o mesmo deixou de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, nos termos e para efeitos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 379.° do C.P.P.

23. Quanto à rejeição da reinquirição de 6 testemunhas e ainda a inquirição de FF (Testemunha que nunca tinha sido ouvida em momento anterior), cumpre esclarecer que as mesmas iriam permitir esclarecer o Tribunal de 1.ª instância acerca de se foi na noite de 15 ou 14 de Maio que a Ofendida BB se deslocou para a casa sita em ... (facto novo decorrente da alteração não substancial dos factos). Logo, se se entendesse que a deslocação da Ofendida teria ocorrido no dia 14 de Maio, ao invés de dia 15 de Maio, é evidente que tal facto poderia vir a acarretar uma pena mais “pesada” para o Arguido e, até, um maior número de crimes alegadamente por si praticados.

24. Quanto à pretensão do Arguido no sentido de as Ofendidas serem ouvidas presencialmente em sede de julgamento, entendeu o Tribunal recorrido que se trata de uma diligência com finalidade meramente dilatória.

25. Contudo, resulta das alegações do Arguido que o mesmo já havia requerido, logo com a apresentação da contestação, a audição presencial das Ofendidas em julgamento - requerimento este que o Tribunal de 1.ª instância ignorou, não tendo chegado sequer a pronunciar-se sobre o mesmo.

26. Mais: NO MOMENTO EM QUE FORAM PRESTADAS AS DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA O ARGUIDO, PESE EMBORA JÁ FOSSE CONHECIDO O SEU PARADEIRO, CONSTAVA DO PROCESSO APENAS COMO MERO SUSPEITO, NÃO TENDO TIDO OPORTUNIDADE DE ASSISTIR ÀS MESMAS, NEM O PRÓPRIO NEM O SEU MANDATÁRIO - nunca tendo tido o Arguido possibilidade de as contraditar.

27. No entanto, o Tribunal recorrido confundiu duas situações distintas: uma situação é requerer a audição das Ofendidas relativamente a todos os factos constantes da Acusação e da Pronúncia; outra situação é ouvi-las presencialmente em relação ao teor de um acervo de factos que o Tribunal de 1.ª instância pretendeu aditar aos constantes da Pronúncia - factos estes que resultaram exclusivamente das declarações para memória futura prestadas pelas Ofendidas.

28. E a verdade é que o Tribunal de 1.ª instância tinha todos os meios necessários para contactar com as Ofendidas, tal como os seus contactos pessoais - nunca tendo tentado sequer que fossem ouvidas.

29. Face ao exposto, não se pode concordar com o Tribunal recorrido no sentido de a prova que na altura o Arguido propôs fosse irrelevante, inadequada ou com finalidade meramente dilatória, até porque estávamos perante prova NOVA.

30. Ademais, se o Tribunal recorrido entende que, naquele momento, a aceitabilidade da prova requerida pelo Arguido podia ser discutível, por que motivo é que agora, a posteriori, já não o é?

31. O Arguido viu uma vez mais os seus direitos a serem-lhe negados! E foram negados com o propósito único de não ser ultrapassado o prazo máximo da prisão preventiva.

32. E sobre a preterição dos direitos constitucionais legalmente consagrados o Tribunal recorrido nem uma palavra escreveu, enfermando também neste ponto o acórdão recorrido de nulidade, por omissão de pronúncia, porquanto o mesmo deixou de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, nos termos e para efeitos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 379.° do C.P.P..

33. Sendo a interpretação que o Tribunal de primeira Instância e agora o Tribunal recorrido fazem da norma ínsita no artigo 358.º, n.º 1 do C.P.P., no sentido de rejeitar a prova requerida pelo Arguido face à alteração não substancial dos factos, é inconstitucional, por violação do direito constitucionalmente consagrado de defesa efetiva num processo equitativo, bem como do princípio do contraditório, consagrados no artigo 32.º da C.R.P. - inconstitucionalidade esta que aqui novamente se argui.

34. Outra inconstitucionalidade que foi suscitada pelo Arguido, agora no âmbito do recurso da decisão final condenatória, apresentado em 10-08-2021, foi a que se reconduz à interpretação que o Tribunal recorrido faz da norma ínsita no artigo 271.º, n.º 1 do C.P.P.

35. O Tribunal a quo, aparentemente rejeitou a inconstitucionalidade em causa. E diz-se, aparentemente, porque se limita a remeter esta questão para um trecho retirado de um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, sem, para tanto, dar qualquer justificação que permitisse a aplicação do caso previsto no Acórdão em questão ao caso dos presentes autos - sendo, também neste ponto, o acórdão recorrido irregular, por falta de fundamentação, nos termos e para os efeitos conjugados no n.º 5 do artigo 97.º e no artigo 123.º, ambos do C.P.P. - irregularidade esta que ora se argui.

36. Entender-se que se admite a tomada de declarações para memória futura antes da constituição como arguido, de suspeito identificado e cujo paradeiro é conhecido, não sendo assim o Arguido e o seu mandatário convocados para a tomada de declarações para memória futura, é violador de direitos constitucionais.

37. Sucede que, a tomada de declarações para memória futura corresponde a uma aquisição antecipada da prova que supõe o respeito pelo princípio do contraditório, pelo que só pode o Ministério Público a esta recorrer quando já existe um arguido constituído. Caso contrário, está-se a inviabilizar o direito de defesa de um suspeito, quando este já está identificado e quando é possível localizá-lo em tempo útil.

38. Concluindo-se assim que, a interpretação do n.º 1 do artigo 271.º do C.P.P., no sentido de que é admissível a tomada de declarações para memória futura antes da constituição como arguido de suspeito identificado e cujo paradeiro é conhecido, sem o convocar para o ato, bem como ao seu mandatário, é inconstitucional por violação do princípio da defesa efetiva num processo equitativo e do princípio do contraditório, consagrado no artigo 32.º n.º 5 da C.R.P. e, ainda, no artigo 6.º, n.º 3, alínea c) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e nos artigos 47.º e 48,º, n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia - inconstitucionalidade que aqui novamente se argui.

39. Ademais, entende o Recorrente que, ao abster-se de ter chamado as ofendidas a depor presencialmente em julgamento ou a no mesmo proceder à leitura das suas declarações para memória futura, incorreu o Tribunal de 1.ª Instância e agora o Tribunal "a quo" na inconstitucionalidade derivada da violação do artigo 32.º, n.º 5 da C.R.P.

40. No caso dos presentes autos, o Recorrente não chegou a exercer o seu direito ao contraditório face às declarações para memória futura prestadas por ambas as Ofendidas.

41. Em primeiro lugar, porque o Recorrente ainda não tinha sido constituído como Arguido, ocupando tão somente a qualidade de suspeito e, portanto, não só não foi notificado para estar presente, como nem sequer esteve devidamente representado por Mandatário constituído.

42. E, em segundo lugar, porque foi negada a prestação de depoimento em juízo pelas ofendidas e a audição das declarações para memória futura das mesmas em audiência, não tendo, nesse sentido, sido cabalmente assegurado o direito ao contraditório do Recorrente.

43. O Arguido procurou sempre que lhe fosse permitido confrontar ou contraditar as ofendidas e/ou as declarações das mesmas - tentativas que viu serem-lhe sempre negadas pelo Tribunal de 1.ª instância!

44. Ora, não havendo razões ponderosas para limitar o contraditório no exame de prova testemunhal, e resultando, de forma unânime da doutrina e jurisprudência que a leitura dos autos que contenham provas não pode ser dispensada, não podiam ter sido tomadas em conta em julgamento e para a fixação da matéria de facto as declarações para memória futura prestadas pelas ofendidas.

45. Isto quando é o próprio Tribunal de 1ª Instância que reconhece que teria sido importante ouvir as ofendidas em julgamento para esclarecer factos por estas narrados em memória futura.

46. Sendo que, como se disse, não foi feita qualquer diligência para contactar/convocar/notificar as Ofendidas, pese embora constem do processo os seus números de telemóvel, moradas e e-mails.

47. Pelo exposto, conclui-se assim que, a interpretação do n.º 1 do artigo 271.º do C.P.P., no sentido das declarações para memória futura poderem ser tomadas em conta em julgamento e para a fixação da matéria de facto quando, por ter sido recusada a prestação de depoimento em juízo pelas respetivas autoras e a audição de tais declarações em audiência, não foi cabalmente assegurado o direito ao contraditório, é inconstitucional por violação do princípio do contraditório e do direito a uma defesa efetiva num processo equitativo, consagrados no artigo 32.º, n.º 5 da C.R.P., no artigo 6.º, n.º 3, alínea c) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e dos artigos 47.º e 48.º, n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia - inconstitucionalidade que aqui novamente se argui.

48. Nestes termos, considerando V. Exas. que, por razões de ordem legal, não podiam ter sido valoradas as declarações para memória futura prestadas pelas ofendidas, então, impõe-se a passagem dos factos dados como provados em 5 a 22, 24, 27 a 35 e 40 a 46 para a factualidade dada como não provada.

49. Ainda em sede de recurso da decisão final condenatória, insurgiu-se o Arguida contra o facto de, para além de ter sido condenado por 2 (dois) crimes de rapto agravado e por 2 (dois) crimes de violação, tenha também sido condenado por dois crimes de ameaça agravada e por 2 (dois) crimes de ofensa à integridade física qualificada.

50. No que concerne aos crimes de ameaça agravada e de ofensa à integridade física qualificada, o Tribunal de 1.ª instância referiu que “Dos factos provados resulta também que o arguido, durante o período em que manteve as ofendidas privadas da liberdade, foi, sucessiva e em múltiplas ocasiões, dizendo que as matava, ameaçando, incluindo por gestos como provado em 20, bem como as agredia fisicamente (vide factos 17 e 33), resultando que estas condutas foram por si queridas e decididas como forma de diminuir a sua capacidade psicológica e de determinação. O arguido mantendo-as assustadas, receosas, em pânico, lograva a sua subjugação, dissuadindo-as de procurar a fuga e de se oporem à prática de actos sexuais.”

51. Ora, resulta do supra exposto que as agressões e ameaças perpetradas pelo Arguido contra as Ofendidas logravam a subjugação das mesmas, de forma a dissuadi-las de procurar a fuga e de se oporem à prática de atos sexuais.

52. Assim, tendo, na perspetiva do Tribunal de 1.ª instância, os crimes de ameaça e de ofensa à integridade física sido utilizados como um meio para o Arguido atingir um fim, o de privar as Ofendidas da liberdade (crime de rapto) e o de forçá-las à prática de atos sexuais (crime de violação), não se pode concordar que aquele seja condenado por todos esses crimes, enquanto crimes autónomos.

53. O Tribunal recorrido entendeu que assiste razão ao Arguido no que concerne aos dois crimes de ameaça agravada (tendo sido determinada a sua absolvição).

54. Contudo, o Tribunal a quo não concordou com o Arguido no sentido de se verificar uma violação do princípio ne bis in idem, ou do artigo 29.º, n.º 5 da C.R.P. no que concerne à condenação pelos dois crimes de ofensa à integridade física qualificada. Tendo referido que o concurso entre as ofensas à integridade física e o crime de rapto é também um concurso aparente, “mas só quando as ofensas corporais são apenas as necessárias para a execução do rapto, isto é quando se trata de ofensa à integridade física simples. Se ultrapassarem essa medida, há concurso real, como acontece no caso das ofensas à integridade física qualificada ou da ofensa à integridade física grave.”

55. O Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão datado de 10-01-2010, proferido no âmbito do processo n.º 12/08.6JAPRT.P2, diz-nos que “a condenação simultânea do arguido pelo referido crime de sequestro agravado e por um crime de ofensa à integridade física grave, constituiria violação do princípio ne bis in idem.”

56. Resulta da fundamentação do acórdão proferido em 1.ª instância que o Arguido ameaçava e agredia fisicamente as Ofendidas, tendo-o feito com o objetivo de as manter assustadas, receosas, em pânico, de modo a lograr a sua subjugação e a dissuadi-las de procurar a fuga e de se oporem à prática de atos sexuais.

Resultando também dos factos dados como provados em 9., 29. e 43., que essas agressões e ameaças serviram como um meio para alcançar a privação da liberdade das Ofendidas e para as forçar à prática de atos sexuais.

57. Assim, entendemos que as ofensas corporais alegadamente perpetradas pelo Arguido foram necessárias para a execução do rapto, sendo irrelevante, até porque tal facto não resulta da lei nem da jurisprudência, se o crime de ofensa à integridade física é simples, grave ou qualificado.

58. Sendo certo que as ameaças e agressões são elementos do tipo objetivo dos crimes de rapto/sequestro e de violação (cfr. artigos 161.º, n.º 1 e 164.º, n.º 2, alínea a), ambos do C.P.).

59. Ora, se o Arguido é condenado pelos crimes acima mencionados, que já integram a violência e a ameaça como elementos do tipo objetivo (ou seja, já integram os crimes de ofensa à integridade física qualificada e de ameaça agravada), e se o Tribunal de 1.ª instância considera que aquele exerceu essa violência e ameaça sobre as Ofendidas para lograr praticar sobre as mesmas os crimes de rapto agravado e de violação, então considera-se que o mesmo não pode vir a ser condenado, autonomamente, pelos crimes de ofensa à integridade física qualificada e de ameaça agravada.

60. Pelo que não se pode concordar com o entendimento do Tribunal recorrido de que, quanto aos dois crimes de ofensa à integridade física qualificada e aos crimes de rapto e de violação, e contrariamente ao que resulta dos factos dados como provados e da própria fundamentação do acórdão proferido em 1.ª instância, existe um efetivo concurso real.

61. Note-se que, quanto ao crime de violação, o Tribunal recorrido (e tal como já o tinha feito o Tribunal de 1.ª instância) nem sequer escreve uma palavra relativamente ao concurso de crimes, pecando o acórdão ora recorrido, quanto a este ponto, por notória e evidente falta de fundamentação, sendo, neste sentido, irregular, nos termos e para os efeitos conjugados das disposições contidas no n.º 5 do artigo 97.º e 123.º, ambos do C.P.P. - irregularidade esta que ora se argui para os devidos efeitos legais.

62. Determina o artigo 29.º, n.º 5 da C.R.P. que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.

63. Ora, se os crimes de rapto (ou sequestro) e de violação já comportam os crimes de ofensa à integridade física, não podia o Arguido ter sido condenado por todos, como se de crimes autónomos se tratassem – sendo que, ao tê-lo feito, o Tribunal recorrido violou o princípio constitucional ne bis in idem, sendo o acórdão recorrido inconstitucional - inconstitucionalidade esta que desde já se suscita para os devidos efeitos legais - e, nesses termos, nulo.

64. Nos termos do supra exposto, deve o aqui Recorrente ser absolvido dos crimes de ofensa à integridade física qualificada, por violação do preceito constitucional supramencionado.

65. Além da interpretação inconstitucional de normas levada a cabo pelo Tribunal a quo a que acima fizemos referência, não deixamos de apontar que o acórdão recorrido enferma de nulidades previstas nas diferentes alíneas do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P. - sendo que tais nulidades já se observavam no acórdão de 1.ª Instância, mas ao ser este mantido na íntegra (pelo menos no que concerne à matéria de facto provada), não deixa de se entender que também se verificam no acórdão recorrido.

66. Sendo que, dúvidas não há de que este Supremo Tribunal tem poderes e competência para conhecer, firmar e reparar quaisquer das nulidades ínsitas no referido artigo 410.º, n.º 2 do C.P.P.

67. Em primeiro lugar, entende o Recorrente que não se encontravam reunidas as condições previstas no artigo 271.º, n.º 1, para que a Ofendida BB tivesse prestado declarações para memória futura.

68. Pois que, nada nos autos indicava, à data, que não pudesse vir a prestar o seu depoimento na fase de julgamento!

69. Desde logo, porque ainda antes das declarações para memória futura, a testemunha em causa foi ouvida duas vezes, no espaço de sensivelmente 3 semanas, pelas autoridades policiais.

70. Sendo certo que, resulta de fls. 40 dos autos (linhas 109 a 114), a testemunha em causa, apesar de referir que viajará no dia seguinte para GG e que ainda não havia decidido se regressaria a Portugal para obter o seu passaporte ou se trataria de tudo a partir daquele país, declara que “caso seja necessário vir a Portugal para efeitos do processo, estará disponível para tal”.

71. E não se podendo perder de vista que a testemunha em apreço, aquando da participação criminal, indicou todos os seus números de contacto, bem como o seu domicílio no ....

72. Aliás, quando notificada para o efeito, compareceu no dia e hora agendados para as declarações para memória futura - diligência que se realizou mais de 4 meses depois da sua inquirição por OPC!

73. Ademais, os factos de que esta testemunha dizia ter sido vítima (entenda-se, os factos que descreveu ao OPC, nas suas duas inquirições, que contra si haviam sido praticados) não eram subsumíveis nem a crimes de tráfico de órgãos humanos, nem de tráfico de pessoas nem contra a liberdade e autodeterminação sexual (quer aquando da denúncia, quer aquando do seu interrogatório por O.P.C., a testemunha referiu que não teve sexo com o denunciado porque o recusou.

74. Pelo que, NÃO ESTAVAM PREENCHIDOS OS PRESSUPOSTOS LEGAIS PARA A TOMADA DE DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA por esta testemunha e, desse modo, as declarações em questão consubstanciam prova proibida e, por isso, inadmissível e nula, em clara violação do disposto nos artigos 125.º e 271.º, n.º 1 do C.P.P.

75. Vício que decorre também do acórdão recorrido, uma vez que o Tribunal a quo, abstendo-se de se pronunciar relativamente às questões suscitadas pelo Arguido, limitou-se a referir que “não só BB e CC eram testemunhas que se aprestavam a regressarem aos seus países de origem, como eram vítimas de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual.” - sendo também o acórdão recorrido irregular, por falta de fundamentação, nos termos e para os efeitos conjugados das disposições contidas no n.º 5 do artigo 97.º e 123.º, ambos do C.P.P. - irregularidade esta que ora se argui.

76. Face ao exposto, o Tribunal de 1.ª instância não podia ter lançado mão das declarações para memória futura prestadas por BB para formar a sua convicção - como fez.

77. Ademais, o Tribunal recorrido vem dizer que “a pré-constituição do agente como arguido não faz parte dos requisitos para a tomada de declarações para memória futura”, sendo obrigatória “a comparência do Ministério Público e do defensor”, “e ambos estiveram na diligência”.

78. Não é, porém, essa a perspetiva do Recorrente, visto que considera que, em especial quando a constituição como arguido já é possível (e legalmente exigida) - como sucedeu no caso dos autos -, o pleno exercício do direito ao contraditório só pode ser assegurado com essa prévia constituição como arguido, com a notificação do arguido do dia e hora para a tomada das declarações para memória futura, com a presença do arguido nessa diligência (se tal não estiver, no caso concreto, vedado) e dando-lhe a possibilidade de constituir mandatário da sua confiança para aí o representar.

79. Aquando da prestação das declarações para memória futura o Arguido já se encontrava devidamente identificado nos autos, pelo nome completo e por fotografia.

80. Acrescente-se que aqueles que defendem a possibilidade de realização de declarações para memória futura antes da constituição de arguido, regra geral, sustentam que tal só pode verificar-se ou nas situações em que o inquérito corre contra pessoa não determinada ou em que se conheça a identidade do suspeito mas não tenha sido possível constitui-lo arguido, por desconhecimento ou dificuldade de localização para notificação em tempo útil ou, ainda, em que se verifique necessidade urgente de preservar prova, necessidade urgente de proteger o declarante ou outras pessoas, partida eminente ou possibilidade séria de morte deste - sendo que no caso dos autos não se verificava qualquer destas situações.

81. Pelo que, não se mostrando possível a prestação das referidas declarações para memória futura ANTES da constituição do Arguido como tal, forçosamente, terá que se concluir que se trata de meio de prova proibido e que, por isso, é inadmissível e nulo, não podendo ser valorado.

82. Aliás, não podemos sustentar que o direito ao contraditório tenha sido cabalmente salvaguardado, porquanto a defensora que foi nomeada não teve qualquer contacto com o Arguido, nem antes, nem depois das diligências de declarações para memória futura e, apesar das manifestas contradições e incoerências intrínsecas nas declarações para memória futura e das evidentes contradições entre o que aí declararam as ofendidas e o que haviam declarado perante OPC, não só nada requereu, como nem sequer colocou qualquer questão às testemunhas (sendo a representação meramente formal).

83. Ademais, na sua contestação, o Arguido requereu a prestação de declarações em audiência pelas Ofendidas - expondo que pretendia que estas explicassem as contradições manifestas entre o que haviam declarado perante OPC e o que haviam declaração em sede de memória futura -, sendo que o Tribunal de 1.ª instância, por despacho datado de 12-10-2019 e embora dizendo entender os motivos subjacentes ao pedido de inquirição em julgamento destas testemunhas invocados pela defesa, remete para o decurso da audiência a eventual tomada de posição sobre essa inquirição, mas o que é facto é que nunca vem a ordená-la.

84. Tendo ainda o Arguido, por requerimento datado de 07-07-2021 e na sequência da comunicação da alteração não substancial de factos, requerido (novamente) a tomada de declarações às Ofendidas - o que veio (mais uma vez) a ser rejeitado pelo Tribunal de primeira instância. No mesmo requerimento, o Arguido requereu, sem prejuízo da audição das duas ofendidas, a leitura das declarações que estas haviam prestado para memória futura, o que também foi recusado por aquele Tribunal.

85. O que serve por dizer que NÃO foi efetivamente assegurada e garantida ao Arguido a possibilidade de exercer o contraditório quanto às declarações para memória futura - o que consubstancia uma inconstitucionalidade, já devidamente (e novamente) arguida pelo ora Recorrente no ponto II. do presente recurso!

86. Aliás, a impossibilidade do Tribunal de 1.ª instância ter questionado as Ofendidas sobre pormenores ou pontos dos seus depoimentos não se deveu à sua ausência do território nacional e/ou ao desconhecimento das suas moradas, mas sim ao facto de o Tribunal ter RECUSADO os pedidos do Recorrente para que aquelas fossem convocadas para depor em audiência, bem como a uma total falta de quaisquer diligências para aquilatar do seu paradeiro ou da sua disponibilidade para depor!

87. Note-se que é o próprio Tribunal de 1.ª Instância que afirma que teria sido relevante confrontar as Ofendidas com alguns pormenores e esclarecer alguns pontos dos seus depoimentos e sendo que no caso da Ofendida BB até acrescenta que “existem alguns pormenores no depoimento de BB que se mostram pouco compreensíveis” e que “Teria o tribunal todo o interesse em saber como BB conseguiu aceder ao seu telefone”, não pode o aqui Recorrente deixar de entender que, ao não convocar as ofendidas para serem inquiridas durante o julgamento, nem sequer tendo ordenado quaisquer diligências para o efeito, o Tribunal omitiu diligências que se reputavam de essenciais para a descoberta da verdade material.

88. Sendo que tal omissão consubstancia a nulidade prevista na parte final da alínea d) do n.º 2 do artigo 120.º do C.P.P. - nulidade que, para os devidos efeitos e com as necessárias consequências, aqui novamente se suscita.

89. E sobre a presente questão o Tribunal aqui recorrido nem uma palavra escreveu relativamente à postura “inerte” que o Tribunal de 1.ª instância assumiu para que as Ofendidas pudessem ser ouvidas em sede de julgamento, limitando-se aquele primeiro a referir que a nulidade em causa devia ter sido “arguida antes que o julgamento terminasse, o que não sucedeu”.

90. Contudo, a verdade é que o Tribunal recorrido esquece um pormenor fundamental: é que, de facto, quanto ao primeiro requerimento apresentado pelo Arguido, junto com a sua contestação, para efeitos de se proceder à audição das ofendidas em julgamento, o Tribunal de 1.ª instância nunca se chegou a pronunciar sobre o mesmo. ora, não havendo um qualquer despacho nesse sentido, não pode o Arguido arguir a nulidade de algo que inexiste.

91. Considerando V. Exas. que, por razões de ordem legal, não podiam ter sido valoradas, pelo Tribunal de 1.ª instância, as declarações para memória futura prestadas pelas Ofendidas, então, impõe-se a passagem dos factos dados como provados em 5 a 22, 24, 27 a 35 e 40 a 46 para a factualidade dada como não provada.

92. Considerou ainda o Arguido que da errada valoração das declarações para memória futura prestadas pelas Ofendidas, vem a resultar erro crasso no julgamento dos factos dados como assentes em 5 a 22, 24, 27 a 35 e 40 a 46 - factualidade que foi especificamente impugnada pelo aqui Recorrente. Isto porque, no entendimento do Recorrente, os referidos factos que foram dados como provados contrariam gritantemente a mais elementar lógica e as regras da experiência comum.

93. Dispensamo-nos de discriminar novamente todos os excertos das declarações prestadas pelas Ofendidas em sede de memória futura - remetendo-se integralmente para as páginas 19 a 59 do recurso apresentado pelo Arguido no dia 10-08-2022 -, sendo que, nesta sede, iremos apenas reforçar aquelas que foram, a nosso ver, as que mais contrariam as regras da experiência comum.

94. Quanto à Ofendida BB, parece-nos, de acordo com as regras da experiência comum, que não faz qualquer sentido que a Ofendida, num quadro em que, como a própria refere, viu que o Arguido “era um louco”, que a quis forçar a permanecer na sua casa, depois de ter conseguido fugir, decidisse voltar. O homem médio, vendo-se na situação em que a Ofendida diz que se encontrava, seguramente que não decidiria regressar para a casa do Arguido, onde sabia que corria o sério risco de ficar “aprisionada”!

95. Ademais, a Ofendida afirma que, tendo-se cruzado com um vizinho durante a “fuga”, ao invés de lhe pedir ajuda, até lhe pede é que não chame a polícia?!

96. Seja como for, o que é facto indiscutível é que estes segmentos das declarações para memória futura da Ofendida BB, a par dos restantes que já foram invocados em sede de recurso, por serem manifestamente contrários às regras da experiência comum, não podem ter-se por credíveis ou verosímeis - estando desacompanhados de qualquer outro elemento de prova que os possa confirmar.

97. Outro pormenor ainda associado ao relato dessa 1ª noite na casa de ... que também não faz grande sentido de acordo com as regras da experiência comum, é ter a ofendida afirmado que, após o seu regresso à casa e de ter sido trancada num quarto, logo adormeceu “porque estava muito cansada”.

98. Ademais, sendo inegável que a ofendida estava na posse do seu telemóvel, de acordo com as regras da experiência comum, não faz sentido que não tenha contactado com ninguém a pedir ajuda…

99. É que, se a Ofendida teve sempre consigo o telemóvel (como tem que ficar claro que teve, uma vez que resulta inequívoco do depoimento da testemunha HH), então, de acordo com as regras da experiência comum e se, como relatou, era sujeita à brutalidade que diz que o Arguido sobre si exercia e se estava cativa, não se compreende porque não usa o telemóvel para pedir socorro…

100. Em último lugar, não é crível, de acordo com as regras da experiência comum, que tão bárbaras agressões não deixassem qualquer marca no corpo da ofendida, como se constata das fotografias constantes de páginas 6 a 10 e 15 do doc. 2 junto com a contestação do Recorrente que nenhuma marca existia?!

101. Já quanto à fotografia de página 15 do dito doc. 2 (datada de 17-05-2019 - portanto, tirada já na casa do “matagal”), também aqui a ofendida aparece com um ar contente e sem quaisquer marcas.

102. Ora, todos os pontos que abordámos das declarações para memória futura da Ofendida BB são gritantemente desconformes com as regras da experiência comum, sendo que os mesmos não fazem qualquer sentido à luz da normalidade de atuação e de comportamento e enfraquecem brutalmente a credibilidade e verosimilhança das declarações em apreço.

103. Pelo que se impõe, nesta sede, que seja alterada a matéria de facto no que concerne à ofendida BB, passando os factos atrás impugnados a constar da matéria de facto dada como não provada.

104. Quanto à Ofendida CC, a mesma refere que, antes da saída da II da casa, o Arguido havia tentado ter relações sexuais com a mesma, mas, perante a recusa de II, acaba por vir a abusar sexualmente da Ofendida (levando-a a consigo praticar coito oral e vaginal) e só depois disto é que o Recorrente corta II e esta foge…

105. Se efetivamente a ofendida tivesse sido sexualmente molestada naquela primeira noite, porque é que não o referiu logo quando faz o relato inicial da noite em questão, aquando da denúncia?

106. Ademais, a Ofendida refere que, após a saída de II e do Arguido da casa, permaneceu sozinha na casa durante cerca de 3h a 4h - sendo certo que não ficou trancada em nenhum quarto ou em nenhuma outra divisão da casa, antes tendo total liberdade de movimentos.

107. Mais: a Ofendida descreve que, após a saída do Arguido da casa, ela própria sai/foge, dirigindo-se à casa de uma vizinha, com quem chega à fala e a quem alegadamente terá pedido para contactar a polícia, mas que, apesar disso, acaba por decidir voltar para a casa do Arguido, para aí aguardar pela chegada das autoridades - este alegado comportamento da ofendida é gritantemente contrário às regras da experiência comum e da normalidade das coisas!

108. O normal comportamento de uma pessoa na mesma situação seria manter-se com a vizinha, preferencialmente no interior da casa desta e, aí sim, ficar à espera dos agentes de autoridade - sendo que decorre das declarações da Ofendida que a mesma já terá saído da casa do Arguido de dia.

109. Ademais, ainda que se compreendesse o regresso a casa (o que, já vimos, não é compreensível…), seguramente que uma pessoa que aguarda impacientemente pela chegada da polícia para a “resgatar” não vai tranquilamente passear pela casa, tal como não vai deitar-se, tal como não vai dormir, o que sucedeu – a atuação que a Ofendida narrou é, mais uma vez, frontalmente contrária com as regras da normalidade e da experiência!

110. Também incompreensível é o facto de, pese embora tenha logrado que o Arguido lhe devolvesse o seu telemóvel no 3º ou 4º dia dos 9 que diz que com o mesmo passou, a única utilização que faz para pedir ajuda é o envio - dois dias depois de receber o telemóvel - de uma mensagem para o seu patrão - mensagem na qual referiu apenas “Help please”…

111. Sendo certo que se, como a ofendida relata, pelo menos durante a noite o Arguido não estaria na casa, é compreensível que não utilizasse o telemóvel, por exemplo, para contactar diretamente a polícia ou para telefonar a alguém que a ajudasse?!

112. A omissão de uma ativa procura por ajuda (sobretudo quando resulta das próprias declarações da ofendida que teve amplas oportunidades para tal) é, dissonante das regras da experiência comum!

113. Com efeito, a Ofendida não só não utiliza o telemóvel para garantir a sua saída da suposta situação de privação de liberdade em que se encontrava, como desaproveita inúmeras situações que se proporcionaram para lograr tal regresso à liberdade.

114. Ademais, apesar da aparente facilidade em sair da casa e da propriedade do Arguido (o que resulta não só das declarações desta ofendida como também das prestadas por BB) e do facto de, pelo menos no período noturno (ou em grande parte deste), o Arguido estar ausente da casa e de a Ofendida, mesmo nessa altura, não ficar fechada ou trancada em nenhuma divisão, CC NÃO procurou evadir-se da casa do Arguido uma única vez (além da que acima identificámos, na qual acabou por decidir regressar à casa do Arguido, voluntariamente)!

115. Pese embora a Ofendida relate que tinha vontade de fugir da casa do Arguido e que tal era possível, a verdade é que não foge - O QUE NÃO É COMPATÍVEL COM AS REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM.

116. Ora, face a todas as inconsistências que acabámos de descrever, sempre teria de se concluir que também as declarações para memória futura desta Ofendida não são credíveis, verificando-se, ao invés, que se desmoronam totalmente no confronto com as regras da experiência comum.

117. Finalmente, resulta mensagens (de Whatsapp) trocadas entre esta Ofendida e II, em momento posterior a ter deixado de estar na casa do Arguido (fls. 1154 a 1158 dos autos), que a Ofendida diz a II para não se preocupar, porque não vai realmente apresentar queixa, apenas está a tentar colocar pressão sobre o Arguido para este lhe devolver o seu dinheiro (porque precisa muito dele ou ficará numa má situação) - mensagem que envia às 11:09:25 do dia 12/06/2019.

118. Estes elementos de prova, em particular se analisados à luz das regras da experiência comum, tornam completamente inverosímil a ideia de que a Ofendida tenha sido, fosse de que forma fosse, violentada pelo Recorrente, ou que com este tivesse permanecido contra a sua vontade.

119. E, por essa razão, é evidente que o Tribunal de primeira instância não podia ter dado como provados os factos que vem a dar como provados alegadamente praticados pelo Recorrente contra esta ofendida - exigindo- se que esses factos passem a figurar na matéria de facto tida como não provada.

120. Note-se que o Tribunal recorrido nem uma palavra escreveu quanto às inconsistências suscitadas pelo Recorrente no que concerne às declarações prestadas pelas Ofendidas em sede de memória futura, referindo mesmo que “é evidente que não é possível estar agora aqui a rebater um a um os incontáveis pormenores e minudências encontradas pelo arguido em cada frase das ofendidas.”

121. De acordo com a mais avisada jurisprudência, existe erro notório na apreciação da prova quando no texto da decisão recorrida (e atendendo somente a este e, por isso, prescindindo da análise da prova produzida) se dê por provado determinado facto que cabalmente contraria a mais elementar lógica e as regras da experiência comum, do ponto de vista de um homem de formação média.

122. Ora, no caso dos presentes autos, resulta evidente que nas suas declarações para memória futura as Ofendidas alegam factos que são gritantemente desconformes com as regras da experiência comum, sendo que os mesmos não fazem qualquer sentido à luz da normalidade de atuação e de comportamento e enfraquecem brutalmente a credibilidade e verosimilhança das declarações em apreço.

123. Face ao exposto, entendemos que a decisão de V. Exas., reconhecendo a insuficiência probatória daquelas declarações, não pode ser outra que não a de dar como não provados todos os factos criminosos imputados ao Arguido, absolvendo-o na íntegra.

124. Do exposto, cremos que fica evidente e deve ser reconhecida nesta sede a existência do vício de erro notório na apreciação da prova que convocámos, nos termos e para efeitos da alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P., pelo que deverão V. Exas. proceder à alteração da factualidade em apreço em conformidade.

125. Resulta do facto 43. dado como provado no âmbito do Acórdão proferido em sede de 1.ª instância que o Recorrente “agiu com a intenção de cometer atos sexuais de cópula e de coito oral sobre BB e CC, depois de, para esse fim e mediante ameaça e agressões físicas, as ter colocado na impossibilidade de resistir.”

126. Ora, se, das declarações para memória futura prestadas pelas Ofendidas resulta que o Arguido as terá ameaçado e agredido fisicamente, já não resulta que o fez para as colocar na impossibilidade de resistirem à prática de atos sexuais.

127. Contudo, entendeu o Tribunal recorrido que “resulta da experiência da vida que aquelas agressões e ameaças visavam também tornar impossível que as ofendidas se recusassem a praticar os atos de natureza sexual com o arguido”, acrescentando, “não nos vamos fingir de ingénuos a ponto de ter de explicar muito bem explicadinho porque é que toda aquela panóplia de sevícias não a deixariam à vontade para recusar sexo ao arguido. E o mesmo em relação a CC, consoante resulta dos pontos 27 a 33.”

128. Na verdade, esta relação causa-efeito que o Tribunal de primeira instância e agora o Tribunal recorrido vêm a dar como provada não se retira de qualquer dos elementos de prova que se produziram, sendo certo que também não se retira ainda que por recurso às chamadas presunções judiciais.

129. Pois que, em bom rigor, as ameaças e agressões podem ter visado, apenas, obstar a que as ofendidas fugissem ou até mesmo não terem relação com quaisquer outros atos/factos.

130. E não é só porque o Arguido tivesse ameaçado e agredido as ofendidas e, paralelamente, com elas tivesse mantido relações sexuais que se pode ter como certo que aqueles primeiros comportamentos apenas (ou também) foram praticados para impossibilitar a resistência quanto às relações sexuais.

131. Aliás, em sede de fundamentação, nem o Tribunal de primeira instância nem o Tribunal recorrido esclarecem porque vieram a considerar que existia essa relação direta entre as agressões e ameaças e os atos de natureza sexual.

132. Pelo que, entende o Recorrente estarmos perante a nulidade do acórdão por insuficiência de fundamentação, que resulta da conjugação dos artigos 379.º, n.º 1, alínea a) e 374.º, n.º 2, ambos do C.P.P. - nulidade que, à cautela e para os devidos efeitos, aqui novamente se convoca.

133. Ademais, o Tribunal de 1.ª instância não dá como provado que essas ameaças ou agressões tivessem sido imediatamente anteriores ou contemporâneas das referidas relações sexuais, podendo (ou não) terem consubstanciado meros atos isolados, sem qualquer conexão com tais relações sexuais.

134. Nestes termos, por manifesta falta de prova nesse sentido, deve o facto 43 passar a figurar na matéria de facto dada como não provada.

135. Para além do manifesto erro de julgamento consubstanciado na desacertada valoração das declarações para memória futura, considera o Recorrente que o Acórdão proferido em sede de primeira instância, e agora também o Acórdão recorrido, padecem ambos do vício previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P., no que concerne à factualidade provada relativamente aos alegados crimes de violação.

136. O Tribunal de primeira instância e o Tribunal recorrido entenderam que o Arguido praticou, sobre cada uma das ofendidas, três crimes de violação.

137. Ora, da leitura dos factos dados como provados em 18., 19., 32. e 42., consideramos existir manifesta contradição entre ter sido dado simultaneamente como assente que as ofendidas não recusaram ter relações sexuais (orais e/ou vaginais) com o Arguido e que o Arguido sabia que esses atos sexuais eram contrários à vontade das ofendidas ou que naqueles aquelas não consentiam!

138. Independentemente de também se ter provado que, fora do âmbito das relações sexuais, o Arguido havia ofendido física e verbalmente as ofendidas e que as havia ameaçado, o que é facto é que, se, como se deu como provado, aquelas não se recusaram a manter com o Arguido contactos sexuais, não se pode concluir que para o este era certo que esses atos eram praticados contra a vontade das mesmas.

139. Note-se também que, do texto do Acórdão de 1.ª instância, apesar de o Tribunal escrever genericamente que o Arguido “obrigou” as ofendidas à prática de atos de cópula vaginal e/ou oral, o que é certo é que nada escreve ou dá como provado quanto à forma como as forçou a esses atos.

140. O que sucede também com o Tribunal recorrido, que se limita a referir que “se cada uma das ofendidas não se recusou foi porque, tal como consta da matéria de facto assente como provada citada pelo recorrente, recear que ele a agredisse novamente – logo, contra a vontade e sem o consentimento das mesmas”.

141. Ora, salvo o devido respeito, não se pode dar como provado que as Ofendidas não se recusaram a praticar determinados atos sexuais, independentemente do motivo da recusa, para depois se concluir, de uma forma completamente contrária, que os referidos atos sucederam contra a vontade e sem o consentimento das mesmas. Sendo evidente que também o acórdão recorrido enferma do vício previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P.

142. Ademais, também não se pode concluir que esteja preenchido o elemento subjetivo do crime de violação, porquanto, se as ofendidas não manifestam oposição ou recusa (como se deu como provado que não manifestaram) quanto a manterem atos sexuais com o Arguido, de acordo com as regras da experiência comum, de onde poderia este retirar ou saber que, na verdade (e apesar de acederem fazê-lo), as ofendidas não consentiam nesses atos?!

143. Face ao exposto, sempre deverá ser reconhecido o vício que vem de se invocar, com as suas inerentes consequências legais.

144. Considera ainda o Recorrente que também o acórdão recorrido, ao ter determinado, sem mais, que em relação a ambas as Ofendidas o número de crimes de violação está “perfeitamente definido” e, portanto, deve ser de manter a condenação do Arguido por três crimes de violação contra cada uma das Ofendidas, violou o disposto no artigo 30.º do C.P.

145. Pois que, tendo em consideração que nenhuma das duas Ofendidas concretizou o número de vezes a que foi obrigada/forçada a praticar tais atos sexuais, nunca deveria o Recorrente ter sido condenado por mais do que um crime de violação contra cada uma delas - como foi.

146. Por fim, entende o Recorrente que o Tribunal de 1.ª instância nem uma palavra proferiu no sentido de justificar a qualificação prevista no artigo 132.º, n.º 2, alínea e) do C.P., no que concerne aos crimes de ofensa à integridade física qualificada.

147. Considerando que nos encontramos perante a nulidade do acórdão por insuficiência de fundamentação que resulta da conjugação dos artigos 379.º, n.º 1, alínea a) e 374.º, n.º 2, ambos do C.P.P. - nulidade esta que foi devida e tempestivamente suscitada.

148. Quanto à questão suscitada pelo Recorrente, o Tribunal a quo entende não se verificar a nulidade supramencionada, uma vez que a fundamentação apresentada pelo Tribunal de 1.ª instância, embora não seja uma “fundamentação primorosa”, é, contudo, “suficiente para dar a perceber porque é que o arguido assim foi condenado no tocante aos dois crimes de ofensa à integridade física”.

149. Ora, salvo o devido respeito, ao pronunciar-se nos termos acima referidos, sem, para tanto, apresentar uma justificação séria e esclarecedora relativamente à questão em apreço, também o Tribunal aqui recorrido incorre no vício de insuficiência de fundamentação (cfr. resulta da conjugação dos artigos 379.º, n.º 1, alínea a) e 374.º, n.º 2, ambos do C.P.P.), devendo, nesse sentido, ser determinada a nulidade do acórdão recorrido - nulidade que ora se argui para os devidos efeitos legais.

150. Nestes termos, não tendo o Tribunal de primeira instância e agora o Tribunal recorrido efetuado qualquer tipo de fundamentação que permitisse afirmar que o Recorrente tenha atuado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil, não resultando tais circunstâncias de nenhum dos factos dados como provados, exceto do facto 45., em que se refere que o Recorrente “previu e quis molestar o corpo e a saúde das ofendidas, causando-lhes sofrimento desnecessário, agindo gratuita e futilmente” -, cremos que não há outra solução que não a d determinar a não aplicação da qualificativa prevista no artigo 132.º, n.º 2, alínea e) do C.P. a ambos os crimes de ofensa à integridade física pelos quais o Recorrente se acha condenado.

151. O que terá que implicar, necessariamente, a alteração das penas parcelares aplicadas a tais crimes, considerando-se que as novas penas que vierem a ser fixadas não podem ultrapassar os 3 (três) anos de prisão por cada crime.

152. Se se entender que a impugnação de facto levada a cabo pelo Recorrente merece total provimento, considerando-se que a factualidade delitual que lhe foi assacada deve passar para a matéria de facto não provada, não se pode retirar outra consequência que não a pura e simples absolvição do Recorrente.

153. Caso V. Exas. considerem que se verificam os vícios que acima convocámos e, para a respetiva sanação, procederem à alteração da matéria de facto tida por provada, então sempre isso poderá redundar na necessidade de alteração da subsunção jurídica dos factos praticados pelo Recorrente - o que terá reflexo nas penas parcelares e, naturalmente, na própria pena única a firmar.

154. Não obstante, no caso de se entender que tais vícios não se verificam, não pode deixar o Recorrente de se rebelar contra a pena única de 13 (treze) anos de prisão que lhe foi aplicada pelo Tribunal ora recorrido.

155. Desde logo, pese embora o Tribunal recorrido refira que na medida da pena única a aplicar são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, a verdade é que o mesmo nem uma palavra escreve relativamente a qualquer dessas circunstâncias - tendo-se limitado a diminuir a pena única em 1 (um) ano, em virtude de ter absolvido o Arguido pelos dois crimes de ameaça agravada, pelos quais havia este sido condenado na pena de 1 (um) ano de prisão por cada um deles.

156. Face ao exposto, entende o Recorrente estarmos perante a nulidade do acórdão por insuficiência de fundamentação, que resulta da conjugação dos artigos 379.º, n.º 1, alínea a) e 374.º, n.º 2, ambos do C.P.P. - nulidade que, à cautela e para os devidos efeitos, aqui se convoca.

157. Importa referir que o Recorrente não confessou a prática dos factos em causa, uma vez que, evidentemente não os praticou.

158. A verdade é que o Recorrente nunca se viu envolvido em nenhuma situação sequer parecida, resultando dos autos que o mesmo é muito respeitador das mulheres e sempre cresceu numa família de mulheres, juntamente com as suas irmãs mais velhas e com a sua mãe.

159. O Recorrente estava, à data dos factos, noivo da testemunha JJ, que foi inquirida nestes autos e que evidenciou o respeito, carinho e atenção que aquele sempre lhe demonstrou.

160. Ademais, e pese embora não possamos invocar perante V. Exas. as questões relativas à medida das penas parcelares de cada um dos crimes, não podemos perder de vista que estamos perante duas Ofendidas (pessoas distintas), que alegam factos distintos e que alegadamente ocorreram em momento e em circunstâncias diferentes.

161. Pelo que muito se estranha que o Tribunal de 1.ª instância e agora o Tribunal recorrido - que nem sequer se pronunciou relativamente ao alegado pelo Recorrente quanto a esta matéria - tenham entendido que o Arguido praticou precisamente o mesmo número de crimes e o mesmo tipo de crimes relativamente a ambas as Ofendidas - tal situação só revela que, efetivamente, não foi feita sequer uma análise pormenorizada dos factos, assim como não foi feita essa análise e ponderação quanto à pena única que se veio a fixar.

162. Assim e tendo em conta as circunstâncias supramencionadas, as discrepâncias que se verificaram nas declarações prestadas pelas próprias Ofendidas, os tipos de crimes praticados, a própria conexão temporal entre ilícitos, bem como o lapso temporal que, entretanto, decorreu desde a sua prática, não podemos deixar de sustentar que a ilicitude deste “facto global” se situa bem abaixo do nível médio da moldura.

163. Dessa ponderação da globalidade dos factos com a personalidade do Recorrente (à ausência de antecedentes criminais relativamente a crimes da mesma natureza dos presentes autos e à sua integração pessoal, social e familiar, fácil é de concluir que o mesmo não se apresenta como particularmente desconforme com o Direito, nem daqui se desvela uma incapacidade de conformação com as regras de vida em sociedade.

164. Tendo-se dado como provado que a Recorrente se apresenta como uma pessoa diferenciada do ponto de vista socioprofissional, com competências pessoais, cognitivas e sociais diferenciadas positivamente, considerando que gere vários negócios que lhe permitem ter, economicamente, uma boa qualidade de vida.

165. Conforme se deu como provado, o Arguido está plenamente integrado pessoal e socialmente, contando com forte apoio da sua família mais próxima e da sua companheira e noiva.

166. Dando-se também como provado que beneficia de uma imagem social favorável e se relaciona adequadamente com os seus pares, manifestando compreender a juridicidade ou anti-juridicidade das condutas.

167. Assim, tudo visto e ponderado, consideramos que a pena única nunca poderia ter ultrapassado os 7 (sete) anos de prisão, pois que pena mais elevada é manifestamente excessiva e desadequada em face da ilicitude global dos factos praticados e extravasa a medida da culpa do “facto único”.

168. Cabendo referir-se que, ao aplicar pena em medida superior, o Tribunal recorrido (como, já antes, o Tribunal de primeira instância) violou o artigo 77.º, n.º 1 do C.P.

169. Mas, no caso concreto do aqui Recorrente, consideramos que a pena unitária deve merecer uma compressão ainda maior, até porque o Recorrente já se encontra em liberdade desde o dia 09-01-2022 – prazo em que se esgotou o limite máximo da prisão preventiva -, tendo-se apresentado diariamente no posto da GNR da sua residência, em cumprimento das medidas que lhe foram impostas pelo Tribunal de 1.ª instância. Sendo que, tal situação demonstra de forma inequívoca que o Arguido pretende assumir uma posição conforme ao Direito, cumprindo os deveres que lhe são impostos e abstendo-se de incorrer na prática de factos ilícitos.

170. Ou seja, defendemos que a pena única a aplicar deve quedar-se pelos 5 (cinco) anos de prisão.

171. Caso V. Exas. considerem que a pena única a aplicar ao Recorrente não deverá ultrapassar os 5 (cinco) anos de prisão, então terá que se ponderar a possibilidade da suspensão da respetiva execução.

172. Como acima mencionámos, o Arguido não demonstra uma personalidade desviante, nem incapaz de se conformar com o Direito - estando, por isso, afastada, a convicção de que poderá/irá reincidir.

173. O Arguido já cumpriu 2 (dois) anos de prisão preventiva, situação que, com toda a segurança, demoverá o Arguido sequer da cogitação sobre a prática de novos crimes.

174. Quanto às necessidades de prevenção geral, até pelo tempo de prisão preventiva já sofrido pelo Recorrente, cremos que são ainda suficientemente salvaguardadas com a aplicação de uma pena suspensa na respetiva execução.

175. Porque, precisamente atendendo a essa prisão preventiva, resulta para a comunidade que há efetivas e sérias consequências para quem atua como se deu como provado que o Recorrente atuou.

176. Tudo visto e ponderado, somos da opinião que é possível fazer-se o referido juízo de prognose favorável, pelo que se impõe a determinação da suspensão da execução da pena de prisão em que a Recorrente acabar condenada (e se não superior a 5 anos de prisão).

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve ser o presente recurso julgado procedente, com as necessárias e inerentes consequências legais.”

4.Invocando o disposto no artigo 411.º, n.º 5 do C.P.P., pediu a realização de audiência “para discutir oralmente os pontos enunciados nas conclusões que apresenta, com particular acuidade para os seguintes:

1. Das inconstitucionalidades por violação do princípio do contraditório (cfr. pontos 15. a 48. Das conclusões);

2. Da inconstitucionalidade por violação do princípio constitucional ne bis in idem (cfr. pontos 49. a 64. Das conclusões);

3. Das provas proibidas (cfr. pontos 67. a 81. das conclusões);

4. Do vício de erro notório na apreciação da prova (cfr. pontos 92. a 124. das conclusões);

5. Da medida da pena única (cfr. pontos 152. a 176. das conclusões).”


5. O MºPº junto do Tribunal da Relação respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões:


Nos Autos de Processo Comum nº 156/19.9JAFAR do Tribunal Judicial da Comarca de FARO, JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE FARO - JUIZ ... foi submetido a julgamento AA.


Na sessão de julgamento de 31 de Maio de 2021, o Arguido, requereu, atento o consignado no artigo 146º do C.P.P.; a acareação entre as testemunhas DD e KK


Por despacho publicitado no mesmo dia, o requerimento foi indeferido


Na sessão de julgamento de 05 de Julho de 2021, agendada para leitura do acórdão, é publicitado despacho procedendo a uma alteração não substancial dos factos nos termos do artigo 358º nº 1do C.P.P,


O Arguido requereu, no mínimo, 10 (dez) dias para apresentação de defesa


O Tribunal indefere os 10 (dez) dias requeridos, designando o dia 07 de Julho de 2021, pelas 15h:00, para leitura do acórdão


O Arguido em sede de defesa suplementar, requereu:

- Audição presencial das ofendidas BB e CC;

- A leitura, audição ou reprodução em audiência das declarações prestadas em sede de memória futura pelas ofendidas;

- A audição de 7 (sete) testemunhas, sendo seis reinquirições, discriminando os factos a que cada testemunha responderia.


Por despacho publicitado no mesmo dia, o requerimento foi indeferido, considerando não se mostrarem essenciais ou relevantes para a decisão as diligências, considerando-os mesmo dilatórias


Por Acórdão publicitado dia 7 de Julho de 2021, foi o ora Recorrente condenado pela prática de:

f) - um crime de rapto agravado, previsto e punido pelos artigos 161º nº 1 al b) e nº 2 al. b) e artº 158º nº 2 als a) e b) do Código Penal na pena de 5 anos e 3 meses de prisão;

g) - um crime de rapto agravado, previsto e punido pelos artigos 161º n.º 1 al. b) e nº 2 al. b) e artº 158º nº 2 als a) do Código Penal na pena de 5 anos prisão;

h) - dois crimes de ameaça agravada, previstos e punidos pelos artigos 153º nº 1 e 155º nº 1 al. a) do Código Penal na pena de 1 ano de prisão por cada um deles.

i) - dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143º nº 1, 145º nº 1 al a) e 132º nº 1 e 2, al e) do Código Penal na pena de 2 anos e 3 meses de prisão por cada um deles;

j) - seis crimes de violação, previstos e punidos pelos artigos 164º nº 2, al a) do Código Penal na pena de 5 anos por cada um deles;

Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 14 anos de prisão

Mais foi condenado no pagamento, a título de reparação oficiosa, a BB e a CC, da quantia de €10.000, a cada uma, a suportar pelo arguido.

10º

Das Três (3) decisões o Arguido AA interpõe recursos para o Tribunal da Relação ..., sendo certo que as dos recursos interlocutórios foram reeditadas no recurso da decisão final

11º

Acórdão de 05 de Abril de 2022, para além do mais;

- Julgou improcedentes os recursos interlocutórios;

- Condenou o ora. Recorrente pela prática de:

 - um crime de rapto agravado, previsto e punido pelos artigos 161º nº 1 al b) e nº 2 al. b) e artº 158º nº 2 als a) e b) do Código Penal na pena de 5 anos e 3 meses de prisão;

- um crime de rapto agravado, previsto e punido pelos artigos 161º n.º 1 al. b) e nº 2 al. b) e artº 158º nº 2 als a) do Código Penal na pena de 5 anos prisão;

- dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143º nº 1, 145º nº 1 al a) e 132º nº 1 e 2, al e) do Código Penal na pena de 2 anos e 3 meses de prisão por cada um deles;

- seis crimes de violação, previstos e punidos pelos artigos 164º nº 2, al a) do Código Penal na pena de 5 anos por cada um deles.

- Reformulou a pena única em 13 (treze) anos de prisão

12º

Impugnou o Arguido o Acórdão de 05 de Abril de 2022, para esse Mais Alto Tribunal

13º

No recurso, o Recorrente apresenta um extenso texto com 176 Conclusões, que não podendo, pois, entender-se o mesmo como um “resumo do pedido”, pelo que deveria ser convidado a apresentar novas Conclusões sintéticas, sob pena de rejeição.

CONTUDO, nada se requer, porquanto coloca, perante esse Alto Tribunal, as razões, fácticas e jurídicas, que o levam a discordar da decisão recorrida, e a apontada extensão das conclusões, não lhes tolhendo a perceptibilidade, também não impede essa instância de apreciar, com o devido rigor, as questões, ali avocadas, que fazem objecto do recurso

14º

Não padece o Acórdão de nulidade por OMISSÃO de PRONÚNCIA, (artº 379° n 1 al c) do C P Penal), pois

a). - Pronuncia-se «sobre a admissibilidade e/ou direito do Arguido em serem reproduzidas as declarações para memória futura em julgamento», entendendo ser de manter o indeferimento

b). – Bem fundamentou o indeferimento das diligências de defesa suplementar: reinquirição e inquirição de testemunhas, audição presencial das ofendidas que haviam prestado declarações para memória futura

15º

Não padece o Acórdão de nulidade por falta de fundamentação (artº 379° n 1 al a) e 374º nºs 2 do C P Penal)

a). - Quando dá como provado o ponto 43:

b). - Quando justifica a qualificação prevista no artigo 132º nº 2, alínea e) do C.P., no que concerne aos crimes de ofensa à integridade física qualificada:

c). - Quando o Tribunal da Relação entende a fundamentação apresentada pelo Tribunal de 1ª instância, «suficiente para dar a perceber porque é que o arguido assim foi condenado no tocante aos dois crimes de ofensa à integridade física”»

d). - Quando o Tribunal da Relação fixa a pena única:

16º

Quanto à invocada nulidade do art.º 120º n ° 2 al. d) – então o n.º 3 al 2 a) c) CPP, por não ter «chamado as ofendidas a depor presencialmente em julgamento ou a no mesmo proceder à leitura das suas declarações para memória futura», devia ser sido arguida antes que o julgamento terminasse, o que não sucedeu

Como bem se refere na decisão impugnada por se tratar «de nulidade de acto a que o interessado assista, a mesma deve ser arguida antes que o acto esteja terminado, impunha que tal nulidade, para ser agora conhecida, tivesse que ter sido arguida antes que o julgamento terminasse, o que não sucedeu

De qualquer forma e sobre a invocada violação do preceito contido no n° 5 do art.° 32. ° da Constituição (o processo criminal tem estrutura acusatória. …) acompanhamos o já acima citado ac. STJ de 7-11-2007, proc. G7P3630, … que se aplica perfeitamente ao caso dos autos»

17º

não padece o recurso de qualquer irregularidade, por falta de fundamentação (nº 5 do artº 97º e artº 123º do C. P. P)

18º

Quanto às suscitadas inconstitucionalidades das interpretações, feita pelas instâncias

«da norma ínsita no artigo 358º nº 1 do C.P.P (Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia) no sentido de rejeitar a prova requerida pelo Arguido face à alteração não substancial dos factos» foi julgada conforme com o texto do artº 32º da CRP no Ac TC 442/99

- o artigo 271º nº 1 do C.P.P (Declarações para memória futura). «no sentido de que é admissível a tomada de declarações para memória futura antes da constituição como arguido» não viola o artº 32º nº 5 doa CRP, porquanto foram «asseguradas todas as garantias de defesa», porquanto na diligência foram presentes os Magistrados e a Defensora do Arguido, estando cumprido o preceituado no nº 3 do artigo 271º do C.P.P, pois na diligência só é «obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor»

- o nº 1 do artigo 271º do CP.P., no sentido das declarações para memória futura poderem ser tomadas em conta em julgamento e para a fixação da matéria de facto quando, por ter sido recusada a prestação de depoimento em juízo, foi julgada conforme com o texto do artº 32º da CRP no Ac TC 367/2014

19º

Bem andaram as instâncias em indeferir a acareação entre as testemunhas DD e KK, porquanto, inexistindo «razões que impusessem a realização das pretendias acareações, não decorrendo dos despachos recorridos, como consequência, qualquer preterição dos direitos de defesa do recorrente.»

Tratando-se de meio de prova «subsidiário dos meios de prova declaratórios» e o seu «valor probatório de apreciação livre pelo tribunal» passível de recurso, não ocorre violação dos artºs 32ºda da Constituição da República Portuguesa, nem do artigo 146.º do C.P P

20º

O despacho que indeferiu o requerimento de defesa suplementar NÃO DESRESPEITOU qualquer preceito legal no despacho que indeferiu as diligências.

21º

Analisado o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, temos de concluir pela inexistência dos vícios elencados no nº 2 do artº 410º do Cód. Proc. Penal.

É, pois, salvo o devido respeito, de improceder, nesta parte, o Recurso, sendo mesmo manifestamente improcedente a impor rejeição – artº 420º do Cód. Proc. Penal.

22º

Deve considerar-se definitivamente assente a matéria de facto dada como provada, só a ela podendo este tribunal atender para a apreciação das questões jurídicas suscitadas.

23º

Não se verifica qualquer violação do princípio “ne bis in idem” ou do art.° 29° n.º 5, da Constituição quando se decidiu não se verificar qualquer violação do princípio “ne bis in idem” ou do art° 29° nº 5 da Constituição, quando o tribunal condenou o Recorrente pela prática dos crimes de ofensa à integridade física e os crimes de rapto e de violação, em concurso real

Assim, o Acórdão recorrido não padece de nulidade.

24º

Na decisão impugnada justifica-se a qualificação prevista no artigo 132º nº 2, alínea e) do C.P., no que concerne aos crimes de ofensa à integridade física qualificada, como «9º das questões postas no recurso»

25º

Entre os crimes de ofensa à integridade física qualificada e os crimes de rapto e de violação ocorre SEMPRE concurso real

26º

É de manter a pena única imposta

Julgando improcedente o Recurso.”

6. Requerida que foi a audiência, para discussão dos cinco pontos assinalados a final das conclusões foi dada vista ao MºPº para conhecimento, ut 416, nº 2, do CPP, que, tendo emitido parecer, obrigou à sua notificação ao arguido recorrente e realizou-se a audiência. Após exposição sumária do relator sobre o objeto do recurso, recorrente e MºPº nas alegações, e o primeiro na resposta às alegações do segundo, mantiveram as suas posições. O recorrente reiterou as inconstitucionalidades invocadas e insistiu na excessividade da pena de treze anos de prisão, peticionando pena nunca superior a 7 anos e, se possível, mais baixa, até 5 anos. E o MºPº manteve a posição de não conhecimento das penas parcelares, dos despachos interlocutórios, da matéria de facto e a defesa da pena única aplicada.


Admissibilidade e objeto do recurso

7. O recurso tem por objeto um acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, em recurso, que aplicou, em cúmulo jurídico, uma pena única de treze anos de prisão.

As penas parcelares aplicadas, mantidas, foram de cinco anos e três meses de prisão para um rapto agravado, cinco anos de prisão para um rapto agravado, dois anos e três meses para cada um dos crimes de ofensa à integridade física qualificada, e cinco anos de prisão para cada um dos seis crimes de violação.

Como o próprio recorrente o assinala, vem interpor recurso “nos termos do disposto nos artigos 11, 432, nº 2, alínea b), e 434, todos do CPP, para reexame da matéria de direito.” (sublinhado nosso)

Nos termos do artigo 432, nº 1, al. b), sob a epígrafe “Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”,

“Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) (…)

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;

c) (…)”

 O art. 400.º, do Código de Processo Penal, prescreve, em termos de “Decisões que não admitem recurso,”:

 

“1. Não é admissível recurso:

a) (…)

c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo, (…)

d) (…)

e) (…)

f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;

g) (…)”

Por fim, quanto aos “poderes de cognição”, o art. 434.º do Código de Processo Penal estabelece que o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º.

Dispõe o artigo 432, nº 1, nas alíneas a) e c),:

1. Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º;

b) (…);

c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º”

“Estabelece o artigo 410, nos seus nºs 2 e 3, como “Fundamentos do recurso”,:

“2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.”

Consideramos aqui a redação dos normativos que alterados foram pela L. 94/2021, uma vez que, tem sido entendimento jurisprudencial que o recurso se rege pela lei em vigor à data da decisão recorrida, ou, pelo menos, da sua interposição, pois o direito ao recurso só surge com a prolação da respetiva decisão. Tal significa, em conjugação com o princípio jurídico-constitucional da legalidade, sem embargo da validade dos atos praticados, que, em matéria de recursos, a lei nova é de aplicar imediatamente, isto é, a todos os atos processuais futuros, a não ser que o disposto nas alíneas a) e b), do artigo 5º a tal obstem. Aqui não obstam. (cfr acórdãos de 04/02/2009, 08P4137, e de 05/03/2008, 100/08).

Com o que, no sumariado pelo acórdão do STJ de 22/03/2022, proc. 4/17,

“I - Nos termos do art. 434.º, do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21-12, o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas als. a) e c) do n.º 1 do art. 432.º, que dizem respeito aos recursos de decisões das relações proferidas em 1.ª instância e aos recursos de acórdãos proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo, os quais, por força desta alteração legislativa, passam a admitir recurso para o STJ com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do art. 410.º do CPP.

II - Não sendo o caso, pois que se trata de recurso de acórdão da Relação proferido em recurso, nos termos do art. 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, não é admissível recurso para o STJ com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do art. 410.º, sem prejuízo do conhecimento oficioso destes vícios em vista da boa decisão de direito, que possa ser prejudicada ou afetada pela sua subsistência, conforme jurisprudência firme deste tribunal.”

Ou seja, apesar de não poder ser fundamento do recurso, pode este Supremo conhecer oficiosamente dos vícios previstos no artigo 410, nºs 2 e 3, do CPP - (i) de vícios da decisão recorrida, n.º 2; (ii) de nulidades não sanadas, n.º 3 do mesmo preceito; e (iii) de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro).

Tanto os despachos interlocutórios como as penas parcelares vêm atacados na motivação em “II-DA INCONSTITUCIONAL INTERPRETAÇÃO NORMATIVA PELO TRIBUNAL A QUO” sob  “A) RECURSOS INTERLOCUTÓRIOS”; e “B) RECURSO DA DECISÃO FINAL CONDENATÓRIA”  e também 1 a 14 nas conclusões (acareação indeferida) e 15 a 48 (violação do princípio do contraditório) 49 a 64 (ne bis in idem) 67 a 81 (provas proibidas). O “I” é INTRÓITO”

 

8. Concretizando, neste caso, o recurso o STJ não pode conhecer

(i) por irrecorribilidade quanto às questões concernentes aos crimes sancionados com a aplicação de pena inferior a 8 anos de prisão, por se verificar dupla conforme consagrada no artigo 400, nº 1, al. f), do CPP, irrecorribilidade que abrange todas as questões a elas atinentes, quer processuais, quer substantivas, quer de inconstitucionalidade, quer interlocutórias, quer finais. Tal irrecorribilidade “é extensiva a toda a decisão, aí se incluindo as questões relativas a toda a atividade decisória que lhe subjaz e que conduziu à condenação, nela incluída a da fixação da matéria de facto” – Ac. STJ de 4/12/2019, Proc. 354/13, de 10/11/2021, 258/18).

“Sendo um acórdão irrecorrível, no âmbito das penas parcelares, óbvio é que as questões que lhe subjazem, sejam elas de inconstitucionalidade, processuais ou substantivas, sejam interlocutórias, incidentais ou finais, quer referentes às ilicitudes, responsabilidade criminal ou medida das penas, enfim das questões referentes às razões de facto e direito da condenação em termos penais, não poderão também ser conhecidas pelo STJ” – Ac. STJ de 15/4/2015, Proc. 3/12.2PAMGR.C1S1, 3ª sec.; no mesmo sentido, o recente Ac. STJ de 21/10/2020, Proc. n.º 1551/19.9T9PRT.P1.S1 - 3.ª sec.

Também o ac. do STJ de 03/11/2021, proc. nº 1538/19, caminha na mesma senda: “I- (…)

II - O acórdão da Relação que, apreciou e decidiu aquelas questões, garantiu e esgotou o direito ao recurso consagrado na CRP e no direito convencional universal e europeu.” (cfr enunciação das 11 questões colocadas ao desembargo na Relação ... in “III” do acórdão recorrido).


In casu, a irrecorribilidade das penas parcelares assenta alínea f) do artigo 400, nº 1, uma vez que o Tribunal da Relação ..., em recurso, em dupla conforme, confirmou in mellius as penas parcelares aplicadas na 1ª instância. O que quer dizer que também a resolução da questão do concurso entre os crimes de violação e de ofensa à integridade física se fixou definitivamente no acórdão da Relação.


Entendimento que o Tribunal Constitucional sufragou como constitucional, nomeadamente no seu Ac. TC 186/2013, de 4/4/2013, publicado no DR II série, de 9/5/2013, onde se decidiu: “Não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f) do nº 1 do artº 400º do Código de Processo Penal, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objecto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão”. (cfr também ac. TC 20/2017)

Resta, pois, concluir pela rejeição do recurso, no que respeita aos crimes a que foi aplicada pena inferior a 8 anos de prisão, envolvendo tal rejeição todas as questões a elas atinentes, processuais ou substantivas - artºs 420º, nº 1, al. b), 414º, nº 2 e 400º, nº 1, al.s e) e f), do CPP -, inconstitucionalidades invocadas por violação do contraditório ou do ne bis in idem, acareação indeferida e provas proibidas.


(ii) As decisões proferidas sobre os recursos das decisões interlocutórias de 31.05.2021 (indeferimento de realização de acareação em sede de audiência de julgamento em 1ª instância) e de 07.07.2021 (indeferimento de produção de prova suplementar) que subiram com o recurso do acórdão da 1.ª instância, uma vez que o acórdão da Relação, julgando-os improcedentes, são irrecorríveis para o STJ por não conhecer, a final, do objeto do processo, id est, por não conhecer «do mérito ou fundo da causa, enfim da viabilidade da acusação, com o inevitável desfecho de condenação ou absolvição do arguido» (“Código de Processo Penal”, Henriques Gaspar, et alii).

Como se disse no ac. do STJ de 30/09/2020, proc. nº 195/18,

“VII. As decisões interlocutórias caem sobre a alçada do art. 400, n.º 1, al. c), do CPP, e, como tal, não podem sustentar um recurso para o STJ (cfr. art. 432, n.º 1, al. b), do CPP). E sem qualquer situação em que possa considerar-se haver inconstitucionalidade, já que foi assegurada a reapreciação da questão pelo Tribunal da Relação (art. 32, n.º 1 CRP), não garantindo a CRP um duplo grau de recurso ou terceiro grau de jurisdição (conferindo um certo grau de discricionariedade ao legislador na determinação dessas matérias).

De decisão de índole interlocutória, não é admissível o recurso em 2º grau.

É, pois, irrecorrível o recurso das questões colocadas quanto à questão da nulidade da busca (e, consequentemente, quanto à nulidade da apreensão e da perícia informática que se “fundam” na precedente nulidade da busca), bem como as relativas à perícia informática e vicissitudes apontadas nos recursos, a este propósito.

VIII. Também, pelos mesmos fundamentos (decisão interlocutória prévia a decisão final, mas autónoma dela, que não decisão a final do objeto do processo), não é de admitir o recurso do segmento do acórdão da Relação que confirmou a admissibilidade da junção de relatório pericial após as alegações. Quanto a este, também já os arguidos tinham suscitado idêntica questão perante o Tribunal da Relação, exercendo o seu direito de recurso (art. 32, n.º 1 do CPP), que lhes permitiu uma reanálise da temática por um Tribunal Superior.

IX. Este Supremo Tribunal de Justiça possui competência para apreciar da existência/inexistência de proibições de prova (art. 410, n.º 3, do CPP). Mas tal não afasta as regras de admissibilidade de recurso. Uma coisa é a competência do STJ para decidir; já uma outra está na questão prévia, liminar, dos requisitos de admissibilidade de recurso. Pelo que é inadmissível o recurso na parte relativa à apreciação da alegada valoração de prova proibida, sendo de rejeitar, nos termos dos arts. 432, n.º 1, al. b), 400, n.º 1, als. e) e f) e 420, n.º 1, al. b), ex vi art. 414, n.ºs 2 e 3, todos do CPP.

X. A irrecorribilidade acarreta a impossibilidade do STJ conhecer de qualquer questão suscitada a propósito do segmento do recurso inadmissível, designadamente as inconstitucionalidades suscitadas, por afronta ao art. 32 CRP.”


(iii) Também não se conhecerá de matéria de facto. O acórdão recorrido é o da Relação, não o da 1ª instância e o STJ não tem, em recurso, poderes de cognição em matéria de facto.

“XII - A Relação fecha, em definitivo, como regra, o ciclo do conhecimento da matéria de facto, seja por aquele conhecimento limitado, seja ainda pelos poderes de modificabilidade que lhe são outorgados no artigo 432.º, alíneas a), e c), seja pelo conhecimento oficioso dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP.

XIII - Na medida em que a reapreciação da matéria de facto, seja em termos amplos (erro-julgamento) seja no âmbito dos vícios do artigo 410.º do CPP (erro-vício), não pode servir de fundamento ao recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, sempre se imporia a rejeição nesta parte do recurso interposto, por inadmissibilidade, nos termos conjugados dos artigos 420.º, n.º 2, alínea b), 414.º, n.º 2 e 434.º, todos do CPP.”, in ac, do STJ de 14/10/2020, proc. 74/17.”

Dirigindo-se o presente recurso, na sua grande parte, diretamente à matéria de facto, por pretendida “expurgação” de factos que o recorrente considera erradamente dados como provados ou não provados, e sendo da competência do tribunal da Relação o conhecimento das questões de facto (art. 428.º do CPP), e da competência do STJ o reexame do direito (art. 434 do CPP), o recurso deverá ser rejeitado nesta parte.

Não se conhece, pois, das 11 questões enunciadas pela Relação e que acabou a decidir em matéria de facto, já em segundo grau de jurisdição.

A conhecer

9. Apenas se conhece, portanto,

(i) da medida da pena única, porque fixada em quantum superior a 8 anos;


II - FUNDAMENTAÇÃO


10. As instâncias fixaram os seguintes

“II-1-1-- Factos provados:

1. BB, nascida em .../.../1999, tem nacionalidade ... e veio para Portugal em .../.../2019.

2. Cerca de uma semana depois de ter chegado a Portugal, BB conheceu AA, num ... em ....

3. Após se terem conhecido, o arguido disponibilizou-se para ajudar a mesma a regularizar a sua situação de permanência em território português, tendo para tanto solicitado a colaboração de um advogado seu amigo, com quem BB também se encontrou.

4. No dia 15 de Maio de 2019, BB e AA deslocaram-se a ..., onde fizeram compras, regressando nesse dia ao ....

5. Nessa noite deslocaram-se para uma casa do arguido, sita em Travessa ..., ..., ..., ....

6. Ainda nessa noite, cerca das 22:00 horas, BB manifestou a vontade de ir embora para casa, mas o arguido opôs-se a tal, dizendo-lhe que ela agora passaria a ser sua mulher e que ele é que mandava nela.

7. Assustada, BB colocou-se em fuga para a rua, descalça, mas apercebeu-se que não tinha os seus pertences consigo (colocados na sua bolsa, nomeadamente o passaporte, um telemóvel e cerca de 120,00 euros em numerário) e voltou à residência para ir buscá-los.

8. Assim que entrou na dita casa, o arguido chamou-a de “louca” e munido com um taco de golfe, desferiu-lhe diversas pancadas nas pernas, e disse-lhe que tinha várias armas em casa e que a matava, logrando assustar e amedrontá-la.

9. O arguido exibiu a BB fotografias de mulheres magoadas e cortadas, dizendo-lhe para não duvidar de si e não fugir.

10. De seguida, o arguido empurrou-a para um dos quartos da casa, desferiu-lhe bofetadas e disse-lhe que ficasse ali calada, após o que trancou a porta do quarto, contra a vontade daquela.

11. No dia seguinte, o arguido acordou-a, e acusou-a o ter roubado, tendo então desferido um murro, estaladas na sua face e pontapés nas pernas, tendo a mesma permanecido retida no interior do dito quarto, contra a sua vontade.

12. Entretanto, AA ficou na posse dos bens de BB, incluindo dinheiro, passaporte e telemóvel.

13. No dia 16 de Maio de 2019, AA transportou BB para outra casa sua, uma moradia vedada sita na Rua ..., ..., em ..., local onde aquela conheceu a companheira do arguido, que AA tratava como “LL”, sendo esta JJ.

14. Foi dito a BB que teria de fazer tudo o que a “LL” lhe dissesse, tendo AA a trancado no quarto existente no rés-do-chão da residência.

15. AA ordenou a “LL” que fotografasse BB nua, o que esta fez, sem autorização e contra a vontade de BB.

16. Depois das fotografias terem sido tiradas, AA esfregou-lhe gasolina na cara.

17. Nos dias que esteve na casa referida, AA apelidava-a diariamente de “puta” e “cachorro”, foi por ele obrigada a comer um sabonete e a colocar a cabeça no interior de uma sanita, bem como a agredia fisicamente, incluindo com pisadelas na cabeça.

18. Por três vezes, AA forçou BB à prática de sexo oral, contra a vontade dela – para o efeito, ele dizia-lhe: “Olha para baixo e vamos! Não olhes para mim!”, obrigando-a a fazer sexo oral, dizendo-lhe que se ela o mordesse a matava.

19. Tal sucedeu durante a noite, em três dias distintos, não tendo BB recusado por recear pela sua vida e integridade física.

20. Numa ocasião, depois de a mandar colocar-se de gatas, passou-lhe uma faca pelo corpo, dizendo que lhe cortava as partes do corpo por onde ia passando a faca.

21. BB permaneceu na casa, durante cinco dias, contra a sua vontade, só saindo um dia com AA e com “LL”, ocasião em que foram a um centro comercial onde se encontraram com MM.

22. No dia 20 de Maio de 2019, BB aproveitou a ausência de AA e a distracção de “LL” e conseguiu fugir da dita residência.

23. CC chegou a Portugal no dia .../.../2019 e trabalhava num ... em ..., local onde conheceu o arguido AA.

24. Na madrugada de dia 28 de Maio de 2019, este convidou-a para beber um copo, o que ela aceitou.

25. Depois, CC, que residia em ..., aproveitou a boleia do arguido com vista a regressar a sua casa.

26. Todavia, antes de levar CC a casa, AA ainda se deslocou a ... a fim de ir buscar JJ, que ali se encontrava.

27. Depois, o arguido disse-lhe que não a ia levar para casa e que ela iria viver consigo, levando-a para a sua própria casa, sita na Rua ..., ..., em ..., sem o consentimento e contra a vontade daquela.

28. Durante o percurso para a residência referida em 27, o arguido referiu a CC que a ia matar, alugar, enterrar.

29. CC ficou na casa de AA desde essa data até ao dia 5 de Junho de 2019, contra a sua vontade, tendo sido agredida com murros e chapadas, por diversas vezes, por AA, o qual lhe disse que se tentasse fugir a mataria, e que, a partir de então, aquela seria a nova casa dela.

30. Em face das acções e do comportamento de AA, CC ficou receosa e amedrontada, temendo pela sua vida e integridade física.

31. Na noite de 28 de Maio de 2019, AA ficou na posse do telemóvel de CC, bem como de documentos e €450 da sua pertença.

32. Em três ocasiões, nos dias em que permaneceu na dita casa, AA obrigou-a a ter relações sexuais, de cópula completa ou oral, não tendo a mesma recusado por recear que ele a agredisse novamente.

33. Durante o período de tempo em que CC permaneceu na residência do arguido, por diversas vezes o arguido a apelidava de puta e cabra, dizia que a matava, agredia-a com pontapés nas pernas e murros, incluindo nas costas, tendo, numa ocasião, usado uma faca para a picar e cortar no pescoço.

34. Alguns dias depois de CC permanecer na residência, o arguido devolveu-lhe o seu telefone, porquanto esta o convenceu que o iria ajudar na actividade empresarial a que o casal se dedicava.

35. No dia 5 de Junho de 2019, CC pediu ajuda a um empregado de um ... do centro comercial ..., em ..., deixando um guardanapo de papel escrito onde dizia para chamarem a polícia, que era “uma pessoa desparecida”.

36. Quando a P.S.P. ... chegou ao local, encontrou CC acompanhada do arguido bem como de JJ, tendo aquela sido transportada para o ....

37. No dia 7 de Janeiro de 2019, no interior da sua habitação na Rua ..., ..., em ..., o arguido tinha:

a) uma pistola de “airsoft” com respectivo carregador municiado com bolas plásticas; e

b) um segundo carregador da pistola “airsoft” e um saco de bolas plásticas “airsoft”.

38. Na lateral da dita residência, no meio da vegetação, foi encontrada uma reprodução de arma de fogo, aparentando ser uma pistola, de marca “Gap Kal”, de 9mm., sem carregador, a qual havia sido arremessada pelo arguido aquando do início das buscas

39. No interior do veículo de matrícula ..-UM-.., um “Mercedes C..0”, estacionado junto à dita residência, o arguido detinha um taco de basebol, com 70 cm. de comprimento, em madeira, bem como um vestido preto pertença de BB.

40. O arguido previu e quis agir conforme descrito.

41. Demonstrou não possuir qualquer respeito por BB e CC, deixando-lhes marcas físicas e psicológicas, tratando-as de forma desumana e degradante, com absoluto desprezo pela sua respectiva integridade física e psíquica, provocando-lhes um absoluto estado de pânico e de desânimo emocional.

42. Agiu com o propósito de as privar da liberdade e de contra elas praticar actos de natureza sexual, contra a vontade e sem o consentimento das mesmas.

43. Agiu com a intenção de cometer actos sexuais de cópula e de coito oral sobre BB e CC, depois de, para esse fim e mediante ameaça e agressões físicas, as ter colocado na impossibilidade de resistir.

44. Sabia que, nas circunstâncias em que foram proferidas, as palavras que dirigiu às ofendidas eram susceptíveis de as assustar e amedrontar, o que quis e conseguiu.

45. Previu e quis molestar o corpo e a saúde das ofendidas, causando-lhes sofrimento desnecessário, agindo gratuita e futilmente.

46. Fê-lo de forma livre, deliberada e consciente, sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.

47. O arguido, por sentença de 25 de Junho de 2004, pelo Tribunal ..., ..., foi condenado pelo crime de homicídio, na pena de 7 anos de prisão.

48. Em 19 de Outubro de 2006 foi condenado, igualmente no ..., por crime de evasão.

49. Em 19 de Março de 2009 foi-lhe concedida a liberdade condicional.

50. Por sentença transitada em julgado em 14 de Abril de 2015, do extinto ... Juízo de ..., no âmbito do processo n.º 401/14...., foi condenado por crime de condução de veículo em estado de embriaguez, praticado em 17 de Março de 2014, na pena de 45 dias de multa e pena acessória de proibição de conduzir, pena que já se encontra extinta.

51. Por sentença transitada em julgado em 16 de Janeiro de 2015, do extinto ... Juízo de ..., no âmbito do processo n.º 267/14...., foi condenado por crime de condução de veículo em estado de embriaguez, praticado em 22 de Fevereiro de 2014, na pena de 60 dias de multa e pena acessória de proibição de conduzir, pena que já se encontra extinta.

52. No âmbito do processo n.º 1315/14...., por acórdão transitado em julgado em 13 de Novembro de 2019, do Juízo Central Criminal ..., foi condenado por dois crimes de detenção de arma proibida, praticados em 15 de Julho de 2014 e em 19 de Agosto de 2014, na pena de 3 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo.

53. O arguido é filho de pais portugueses, emigrados no ..., sendo o 5º de uma fratria de 6.

54. O agregado familiar era equilibrado, estruturado e vivia com algum desafogo económico.

55. Frequentou a escola durante 12 anos, sem qualquer reprovação, e aos 18 anos criou a sua empresa de ..., altura em se autonomizou da família.

56. Atingiu sucesso profissional na sua empresa, tendo em 2011 iniciado a expansão dos seus negócios em Portugal.

57. Em 2017 fixou-se com mais estabilidade em Portugal, onde se dedicou ao negócio de ..., ... e de ..., tendo no Verão de 2019 iniciado a exploração de um ....

58. Mantém relação próxima com a família que permanece no ..., sendo reputado por quem lhe é próximo como pessoa pacífica e carinhosa.

59. Mantém a relação afectiva com a companheira, JJ, que o tem apoiado durante o período de reclusão.


11. Como supra se enunciou a questão a conhecer é a seguinte é tão só a medida da pena única, aplicada em quantum superior a 8 anos. Sem embargo de, oficiosamente, nos pronunciarmos sobre a verificação, ou não, dos vícios intrínsecos do acórdão.   


Quanto aos vícios de que oficiosamente se pode conhecer - arts 434, 432, nº 1, als a) e c), e 410, nºs 2 e 3 do CPP

12.O recorrente aponta para “contradição insanável entre a fundamentação e a decisão” e “manifesta falta de fundamentação”.

Os vícios de sentença a que se refere o nº 2 do artigo 410, terão de resultar da própria decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Para da sua verificação se aquilatar não se pode recorrer a elementos externos à decisão.  Analisada a decisão não se verifica que a mesma padeça de tais vícios.

Só há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou entre a fundamentação probatória da matéria de facto. A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, por sua vez, ocorre quando, também através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova indicados na fundamentação como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo da decisão. (STJ 24/02/2016, proc. 502/08).  Especificamente quanto ao vício da contradição insanável, a que alude a alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, refere-se no acórdão deste Supremo Tribunal de 12/03/2015, proc. n.º 418/11, que «[o] vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão verifica-se quando no texto da decisão constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respetivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito».

Assim, pode afirmar-se que há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto.

Esta contradição insanável gera um erro vício da decisão que é de conhecimento oficioso pelo STJ. E que ou é superável pelo tribunal de recurso, com nova decisão, ou não é superável e a contradição será resolvida através do reenvio.

No caso, estamos perante fundamentação completa, clara, coerente, lógica e racional. E, assim, afastados ficam os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de contradição insanável da fundamentação ou de contradição entre a fundamentação e decisão.

13. A falta de fundamentação traduz-se em falta de um dos requisitos obrigatórios da sentença, fixado no artigo 374, nº 2, do CPP.

Da fundamentação da sentença há de constar a enumeração dos factos provados, a enumeração dos factos não provados, a motivação de facto e de direito que fundamentam a decisão com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. O tribunal recorrido enunciou metodicamente as questões colocadas e resolveu-as uma a uma com fundamentação exaustiva.

“Relativamente à sentença, atento o disposto nos artigos 379º, n.ºs 1 alínea a) e 2 e 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a falta de fundamentação constitui nulidade de conhecimento oficioso, sendo que à falta de fundamentação, isto é, à total e absoluta ausência de fundamentação, se deve equiparar a fundamentação insuficiente, posto que uma decisão parcialmente fundamentada tem de ser entendida como não fundamentada, consabido que inexiste meia fundamentação, tal como inexiste meia comunicação ( - Cf. Paulo Saragoça da Mata, “ A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais (coordenação científica de Fernanda Palma – 2004), 265, bem como os acórdãos deste Supremo Tribunal de 05.11.06, proferido no Recurso n.º 2155/04 e do Tribunal Constitucional de 97.04.17, Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 36.).” (in ac. do STJ de 04/01/2006, proc. nº 05P3801).

In casu, o acórdão recorrido enunciou de forma clara, lógica, racional e plena as questões a decidir e mostrou os motivos pelos quais entendeu dar como confirmada aquela factualidade e o regime penal aplicável. Exaustivamente, aliás. Com o que o acórdão impugnado não enferma de nulidade, por aí. Não padece de falta de fundamentação que o torne nulo. A fundamentação é completa, clara, coerente, lógica e racional.

Como se disse no ac do STJ 14/05/2020, 498/18 “A falta de fundamentação não se confunde, ou não pode ter a mesma dimensão compreensiva, da falta de convencimento que essa fundamentação opera no destinatário. Para este, a fundamentação pode não ser suficiente para os fins que prossegue e que anseia da decisão do órgão jurisdicional, mas esta perspetiva não pode obumbrar o fim constitucional do dever de fundamentação. Por outro lado, a fundamentação de uma decisão tem que ser analisada globalmente, com todo o seu contexto e coerência. Não se pode, pois, descontextualizar a decisão e retirar parágrafos desgarrados dos demais, retirando-lhes o sentido e mascarando a sua perceção, quiçá, por forma a transformá-los em narrativas “incoerentes” e “infundadas”, facilmente “criticáveis”, para assim, lograr o seu vencimento.”

No caso a fundamentação existe, preenchendo todos aqueles patamares sucessivos que o normativo lhe impõe. Só que a fundamentação não passa pela correspondência da mesma à pretensão de qualquer das partes.

No caso fundamentou-se exaustivamente a matéria de facto, com indicação do provado e do porquê do provado, enunciando-se aquilo que se retirou de cada meio de prova e do porquê de isso ter sido retirado. E porque é que, na contrariedade total das versões de cada uma das ofendidas e do arguido, se deu total credibilidade aos depoimentos das duas ofendidas. E porque é que a Relação manteve tal factualidade como provada.

Sendo a fundamentação completa, clara, coerente, lógica e racional, forçoso é concluir que afastado fica o vício de falta de fundamentação.

E não se mostram violados os artigos 379, nº 1, al. a), e 374, nº 2, pois fundamentação exaustiva exibe o acórdão.

Com o que soçobra a tese do recorrente de falta de fundamentação da sentença.

14. O recorrente refere erro notório na apreciação da prova (III da motivação e a que se referem na indicação do Recorrente as conclusões 92 a 124)

Tal vício tem de detetar-se na própria decisão. por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. É um vício a ela intrínseco.

Não é, porém, vício que se extraia do acórdão recorrido.

O recorrente insiste neste recurso para o STJ em modificar a matéria de facto dada como provada na 1ª instância e confirmada pela Relação.  Discorda de que tivessem sido dados como provados os factos assentes, porque nega a prática dos factos. O que o recorrente faz é manifestar a sua discordância com o decidido ao nível do assentamento da facticidade dada como apurada, pretendendo impugnar a convicção adquirida pelos julgadores sobre os factos pertinentes à configuração dos crimes, adiantando o que em seu entender estaria provado, olvidando por completo a regra da livre apreciação da prova ínsita no aludido artigo 127º do CPP. E como a jurisprudência deste STJ o vem assinalando, nomeadamente no ac. do STJ de 12/06/2008, proc. nº 07P4375, que seguimos, é irrelevante a manifestação de discordância do recorrente face ao que foi decidido - pois mais não faz do que exprimir a sua divergência quanto ao critério de valoração dos depoimentos e dos aludidos autos, em mais uma tentativa de sobrepor a sua versão aos resultados a que chegaram os julgadores.

Dir-se-á que na análise a efetuar há que ter em conta que a fixação da matéria de facto teve na sua base uma apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127º do CPP.

Como esclareceu o acórdão de 21-05-1992, BMJ 417, 404, “O STJ, como tribunal de revista, não dispõe de poderes de crítica ou censura sobre o concreto desempenho do princípio da livre apreciação da prova exercitada pelo tribunal a quo” e o acórdão de 25-03-1998, BMJ 475, 502, assinala que “O STJ não pode sindicar a valorização das provas feita pelo Colectivo em termos de o criticar por não ter sido dada prevalência a uma em detrimento de outra” (cfr. acórdão de 11-02-1998, BMJ 474, 309, e mais recentemente, o acórdão de 08-02-2006, processo 98/06-3ª, no sentido de que “a deficiente apreciação da prova produzida é matéria que escapa aos poderes do STJ”).

Constitui entendimento pacífico há muito estabelecido que não há erro na apreciação da prova quando o que o recorrente invoca não é mais do que uma discordância sua quanto ao enquadramento da matéria de facto provada.

A divergência do recorrente quanto à avaliação e valoração das provas feitas pelo tribunal é irrelevante, de acordo com jurisprudência há muito firmada

Como se disse no acórdão de 07-10-1998, processo 1103/98: “não se pode confundir o erro notório na apreciação da prova com a opinião que o recorrente formulou sobre a prova produzida, divergente da que veio a vingar.”

De forma mais abrangente é encarada essa irrelevância no acórdão de 12-11-1998, BMJ 481, 325: “se existe mera discordância do recorrente entre aquilo que o Colectivo teve como provado e aquilo que o recorrente entende não ter resultado da prova produzida não se verifica qualquer dos vícios do artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c)”.

No acórdão de 20-12-2006, no processo 3379/06-3ª, pode ler-se: “Os vícios do artigo 410º-2 do CPP não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no artigo 127º do CPP. Neste aspeto, o que releva, necessariamente, é a convicção que o tribunal forme perante as provas produzidas em audiência, sendo irrelevante a convicção pessoal formada pelo recorrente e que ele próprio alcançou sobre os factos”- cfr. do mesmo relator, o acórdão de 27-06-2007 no processo 2057/07.

Daqui resulta que se revelam processualmente inoportunas, impertinentes e irrelevantes as considerações contidas nas conclusões supra referidas, em termos de expurgação de matéria de facto.

A impossibilidade deste Tribunal sindicar a prova produzida conduz a ser rejeitado, nos termos do artigo 420º, nº 1, alínea a) do CPP, preceito que nesta perspectiva não padece de inconstitucionalidade - cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional nº 352/98, de 12-05-1998, in BMJ 477, 18 e nº 165/99, de 10-03-1999, in DR-II Série, de 28-02-2000 e BMJ 485, 93.

No caso, o recorrente insiste na sua posição de não cometimento dos crimes e na não aceitação da valoração e livre apreciação da prova, posição legítima e que é a sua, mas que as instâncias não corroboraram.

nulidades

15. Não se vislumbra qualquer nulidade da sentença ou de procedimento de que, por insanável, cumpra conhecer.

Mostram-se satisfeitos os requisitos impostos pelos artigos 374.º do CPP.


Da medida da pena única - a que se referem, na indicação do recorrente, em “IV DA MEDIDA DA PENA ÚNICA”, da motivação e nas conclusões 152 a 176

16. Começando por repetir a jurisprudência do STJ, no que ao critério especial diz respeito, nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, estabelece-se, em critério especial, as “regras da punição do concurso” de crimes, concurso definido segundo o artigo 30, nº 1, do CP, “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena”, formada a partir de uma moldura definida, no seu mínimo, pela mais elevada das penas aplicadas aos crimes em concurso e, no seu máximo, pela soma das penas aplicadas a esses crimes, sem ultrapassar 25 anos de prisão (n.º 2 do artigo 77.º), para cuja determinação, seguindo-se os critérios da culpa e da prevenção (artigo 71.º), são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (n.º 1 do artigo 77.º, in fine), com respeito pelos princípios da proporcionalidade e da proibição da dupla valoração. Aqui se incluem, designadamente, as condições económicas e sociais, reveladoras das necessidades de socialização, a sensibilidade à pena, a suscetibilidade de por ela ser influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto, nomeadamente a falta de preparação para manter uma conduta lícita. (Cfr Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, e acs de 16/02/2022, proc. 160/20 e de 08/06/2022, proc. 430/21).

Com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também, e especialmente, pelo seu conjunto, enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento do agente. Como manda o artigo 77, nº 1, 2ª parte do CP, “na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.” Há, pois, que atender ao conjunto de todos os factos cometidos pelo arguido, à conexão entre os factos e ao fio condutor presente na repetição criminosa, procurando estabelecer uma relação desses factos com a personalidade do agente, tendo-se em conta a caracterização desta, com sua projeção nos crimes praticados, levando-se em consideração a natureza destes e a verificação ou não de identidade dos bens jurídicos violados, tudo isto «tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto de factos praticados é a expressão de uma tendência criminosa, isto é, se significará já a expressão de algum pendor ou propensão para o crime, se estamos perante uma “carreira” criminosa, ou se, diversamente, a repetição comportamental dos valores estabelecidos emergirá antes e apenas de fatores meramente de pluriocasionalidade.  (citado acórdão de 16/02/2022, e acs de 02/12/2012, proc. 923/09, de 21/11/2018, proc. 114/14, de 06/02/2008, proc. 4454/07), de 18/012012, proc. 34/05, de 14/07/2016, proc. 4403/00 e de 17.06.2015, proc. 488/11)

Como a jurisprudência do STJ o realça, tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade unitária do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta». «A personalidade do agente – se bem que não a personalidade no seu todo, mas só a personalidade manifestada no facto», – «é um factor da mais elevada importância para a medida da pena e que para ela releva, tanto pela via da culpa como pela via da prevenção» (Figueiredo Dias, ibidem).

Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, que se refere às finalidades das penas, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (nº 1) e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (nº 2)

Encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». A privação do direito à liberdade, por aplicação de uma pena, (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos, – adequação –, que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva (cfr. Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, notas aos artigos 18.º e 27.º). Para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o artigo 71.º, considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente, nos termos do n.º 2, os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – fatores indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) – e os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – fatores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto).

Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral positiva – traduzida na proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na validade da norma violada – e de prevenção especial positiva , as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto [alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves], o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e), com destaque para os antecedentes criminais] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente [circunstâncias das alíneas e) e f)] adquire particular relevo para determinação da medida concreta da pena em vista da satisfação das exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização do agente.

É, pois, na determinação da presença e na consideração destes fatores que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do facto global.

A visão global que se impõe na efetivação do cúmulo é realçada pelo ac. de 14/09/2016, 71/13, deste Supremo Tribunal, ao sublinhar que “na indicação dos factos relevantes para a determinação da pena conjunta não releva os que concretamente fundamentaram as penas parcelares, mas sim os que resultam de uma visão panóptica sobre aquele "pedaço" de vida do arguido, sinalizando as circunstâncias que consubstanciam os denominadores comuns da sua atividade criminosa o que, ao fim e ao cabo, não é mais do que traçar um quadro de interconexão entre os diversos ilícitos e esboçar a sua compreensão à face da respetiva personalidade, destarte se o mesmo tem propensão para o crime, ou se na realidade, estamos perante um conjunto de eventos criminosos episódicos, sem relação com a sua concreta personalidade.

É esta avaliação global resultante desta interconexão geral, que permite apurar legitimamente o ilícito e culpa global, e perante tais conclusões, aferir in concreto a necessidade de prevenção especial e geral, à luz da amplitude que a apreciação total da atividade criminosa do agente permite”.

Mas a pena conjunta não deve ser uma mera soma aritmética, descartado que está ex lege o método da acumulação material. E nesse processo têm defendido alguns a adição à pena mais elevada das que estão em concurso de uma fração entre 1/3 e 1/5 das demais penas parcelares. Operar-se-ia, pois, com um fator percentual de compressão que eliminaria eventual discricionariedade, se é que de discricionariedade se pode falar neste domínio, uma vez que, na expressão de Figueiredo dias a determinação da pena é uma operação judicialmente vinculada, e que levaria a desejável tendencial uniformidade das decisões. Mas tal fração operatória só valeria como ponto de partida pois estando-se no domínio de avaliação de variegados factos e de uma personalidade, certamente multifacetada e individualizada, diferente de todas e de qualquer outra, os critérios matemáticos redundariam necessariamente redutores e certamente excludentes de aspetos pessoais não desprezáveis. No domínio da avaliação de uma personalidade com ligação à prática de atos criminosos não há certezas matemáticas.

Por isso, se acaba a concluir que, a tal fator processual de compressão mais não se pode atribuir do que um papel de ponto de partida ou elemento coadjuvante de aferir ou orientar. Porque, logo a seguir papel determinante e decisivo se terá de recolher do princípio da proporcionalidade. Como se sustenta, no ac. do STJ de 27/01/2016.

A decisiva relevância do princípio da proporcionalidade é salientada pelo ac. do STJ de 03/11/2021, proc. 1538/19. Este aresto sublinha que “na operação de cálculo do factor de compressão importa considerar a necessidade de um tratamento diferente para a criminalidade em função da sua definição legal, designadamente de acordo com a sua consideração como bagatelar como média ou como criminalidade violenta especialmente violenta ou altamente organizada, arts 1º, als j) a m) do CPP”. Depois, continua, importará conhecer da personalidade do arguido em termos de apurar da tendência ou propensão criminosa, de uma eventual assumida “carreira” ou de uma mera pluriocasionalidade. E, a seguir, imprescindível é a aplicação do princípio da proporcionalidade, sabendo que “até ao máximo consentido pela culpa, é a medida exigida pela tutela dos bens jurídicos  que vai determinar a medida da pena.” (F Dias, “As Consequências Jurídicas do Crime”). E, como ensina o acórdão,: “Sempre que tiver de convocar-se o princípio da «justa medida», impõe-se fundamentar o procedimento que conduziu à obtenção do juízo da desproporcionalidade da pena conjunta e da dimensão do correspondente excesso, enunciando o procedimento comparativo efetuado, demonstrar as razões convincentes e o suporte normativo que podem justificar a intervenção corretiva e respetiva amplitude – art. 205º n.º 1 da Constituição da República.

Intervenção corretiva necessariamente limitada pela inexistência, no Código Penal, de penas fixas, penas por degraus, ou penas com medida exata. Limitada também pela evidência de que, em muitas situações, as variáveis a ponderar se repetem ou apresentam grande similitude. Justificando-se somente perante uma análise da jurisprudência tirada em situações idênticas ou próximas daquela que estiver em julgamento no caso concreto, habilitante da formulação de um juízo onde a justa medida da pena se afirme com mais objetividade e nitidez e se possam medir e descartar diferenciações de tratamento com casos similares.”

Neste acórdão o STJ aceitando a utilização do fator processual de compressão completa-o com o primacial princípio da proporcionalidade. Alia à certeza dos fatores matemáticos a mão e arte do “juiz” na sua experiência e sagesse de forma a, em trabalho de análise de dados e em exercício de aproximações, na sua modelação da “justa medida", conseguir a máxima objetividade possível e a uniformidade desejável.

Também neste caso, os crimes cometidos posicionam-se, como se disse, numa relação de concurso, pelo que, conforme jurisprudência deste Tribunal, há que apreciar do respeito por este critério de adequação e proporcionalidade da pena única.

A pena única apresenta-se aqui com uma moldura penal abstrata de um mínimo de 5 anos e três meses de prisão e de um máximo de 25 anos de prisão, por via da redução legal operada pelo artigo 77, nº 2, já que a soma aritmética de todas as penas alcançava quarenta e quatro (44) anos e nove (9) meses de prisão.

Na fixação da pena única proibida está a dupla valoração das circunstâncias que façam parte dos tipos integrantes do concurso, e que valoradas foram para determinação das penas parcelares. Se bem que “o princípio da proibição da dupla valoração não obsta à consideração na determinação da pena conjunta do concurso de crimes de uma circunstância já considerada na determinação da pena de um dos crimes em concurso, desde que essa circunstância se reporte ao conjunto dos factos, pois neste o objeto de valoração é distinto.” (Pinto de Albuquerque, “Comentário ao CP”, em nota ao artigo 77). Seja, as circunstâncias são aqui valoradas desde que tenham um alcance diferente enquanto referidas à totalidade dos crimes.

Consideradas terão de ser também as exigências de prevenção que no caso se façam sentir, incluindo-se tanto exigências de prevenção geral como de prevenção especial.

A primeira dirige-se ao restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelos crimes do concurso, que corresponde ao indispensável para a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada.

A segunda visa a reintegração do arguido na sociedade (prevenção especial positiva) e evitar a prática de novos crimes (prevenção especial negativa) e por isso impõe-se a consideração da conduta e da personalidade do agente.

Conforme salienta o Prof. Figueiredo Dias, in “Consequências Jurídicas do Crime”, , a propósito do critério da prevenção geral positiva, «A necessidade de tutela dos bens jurídicos – cuja medida ótima, relembre-se, não tem de coincidir sempre com a medida culpa – não é dada como um ponto exato da pena, mas como uma espécie de «moldura de prevenção»; a moldura cujo máximo é constituído pelo ponto mais alto consentido pela culpa do caso e cujo mínimo resulta do «quantum» da pena imprescindível, também no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias. É esta medida mínima da moldura de prevenção que merece o nome de defesa do ordenamento jurídico. Uma tal medida em nada pode ser influenciada por considerações, seja de culpa, seja de prevenção especial. Decisivo só pode ser o quantum da pena indispensável para se não ponham irremediavelmente em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais».

E, relativamente ao critério da prevenção especial, escreve o ilustre mestre, «Dentro da «moldura de prevenção acabada de referir atuam irrestritamente as finalidades de prevenção especial. Isto significa que devem aqui ser valorados todos os fatores de medida da pena relevantes para qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza, seja a função primordial de socialização, seja qualquer uma das funções subordinadas de advertência individual ou de segurança ou inocuização. (...).

A medida das necessidades de socialização do agente é pois em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial para efeito de medida da pena».

Face ao que supra acabou de se expor, fica por analisar e decidir a questão da medida concreta da pena única. Tem este Supremo de responder à pergunta: na consideração da globalidade do facto e da personalidade unitária refletida na factualidade global, tendo em conta o critério especial de fixação da pena conjunta, a finalidade de proteção dos bens jurídicos, as exigências de prevenção, geral e especial, e a medida da culpa, cabe ao caso pena de prisão inferior a treze anos, como visa o recorrente?

Vejamos:

O acórdão recorrido depois de resolver todas as questões que lhe foram colocadas, descrevendo exaustivamente a objetividade dos factos e a subjetividade das ações, para a dosimetria da pena única tem em conta “múltiplos fatores, entre os quais, a amplitude temporal da atividade criminosa, a diversidade dos tipos legais praticados, a gravidade dos ilícitos cometidos, o número de vítimas, o grau de adesão ao crime como modo de vida, as motivações do agente, as expectativas quanto ao futuro comportamento do mesmo.”

Quanto à “diversidade dos tipos legais praticados”, seja, tipo de crimes praticados e natureza dos bens jurídicos tutelados, o acórdão sopesou tratar-se de crimes em que os bens jurídicos tutelados se encontram na parte superior da pirâmide constitucional e legislativa, se apresentam como daqueles em que a sociedade maior proteção exige, a liberdade de determinação sexual, a liberdade ambulatória, e a integridade física; e que para os cidadãos maior alarme, temor e repulsa suscitam. Donde, na linha do acórdão de 03/11/2021 citado, o fator de compressão das penas parcelares se há de ter em fração menor.

Diferente é violar bens jurídicos pessoais, pessoalíssimos até, como a liberdade e a autodeterminação sexual, de violar bens patrimoniais. A gradação das penas em abstrato é desde logo diferente a refletir a qualidade ou nobreza desses bens.

Consequências diversas terá a prática de crimes bagatelares da de crimes de média gravidade e da de crimes que integrem a criminalidade violenta ou especialmente violenta. Distinta fenomenologia dos crimes em concurso que demandará frações diferenciadas a compor o denominado fator de compressão, como realça o ac. de 03/11/2021.  

Em sede da sublinhada “gravidade dos ilícitos cometidos”, estamos perante dois crimes de rapto agravado punidos em abstrato com pena de prisão de três a quinze anos. Um por cada vítima, a que correspondeu, em concreto, a um a pena de 5 anos e três meses e a outro a pena de cinco anos. Penas em concreto muito próximas do limiar mínimo.

E seis crimes de violação, três por cada vítima, cada um deles punido, em abstrato, com pena de prisão de três a dez anos. Sendo que cada um deles foi punido em concreto com a pena de cinco anos de prisão, ano e meio abaixo do limite médio.

Dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, um por cada vítima a que corresponde, em abstrato, pena de prisão até quatro anos, em concreto aplicada pena de dois anos e três meses de prisão por cada um deles.

No todo, um total de dez crimes, com duas ofendidas. Em sequência que se mostrava imparável. O primeiro dos raptos durou cinco dias. O segundo oito dias.

Crimes de rapto agravados e de violação, que são classificados como de criminalidade especialmente violenta, nos termos do artigo nº 1, al. l), do CPP, com a semântica qualitativa que a expressão carrega. E que não pode ser menosprezado em termos de proteção de bens jurídicos (art. 40, nº 1, do CP).  

A que, para punição do concurso em cúmulo, corresponde a moldura entre 5 anos e três meses e 25 anos de prisão, com redução do máximo abstratamente aplicável por força do artigo 77, nº 2, do CP. Não fora a aplicação deste limite o máximo abstrato para cúmulo atingiria os 44 anos e 9 meses de prisão.

Donde, são instantes as exigências de prevenção geral. Impõe-se, por isso, em termos de prevenção geral positiva reafirmar a validade das normas jurídicas e a revalidar a confiança da sociedade no direito que tutela tais bens jurídicos. E foi atendendo às exigências de prevenção geral positiva que o acórdão da Relação manteve a resposta jurídico penal sem tibieza já emanada da 1ª instância.

A diversidade dos tipos legais praticados e a gravidade dos ilícitos cometidos não permitem a pretendida redução concreta da pena única de prisão.

Mas não o permite igualmente o comportamento pregresso do arguido assinalado no acórdão recorrido (47 a 52 dos factos provados) de onde ressalta a prática, de um crime de homicídio na ..., em 2004, por que condenado em 7 anos de prisão, a prática em 2006 de um crime de evasão; a prática, em Portugal de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, um em fevereiro e outro em março de 2014, e dois crimes de detenção de arma proibida em um em julho e outro em gosto de 2014. 

Por isso se olhou no acórdão recorrido para “a amplitude temporal da atividade criminosa.”

E se olhou outrossim para “o grau de adesão ao crime como modo de vida”, evidenciando a repetição dos comportamentos criminosos, lesando bens jurídicos de elevado valor, tendo em conta a sua concentração temporal, considerando a sua conduta anterior e que o arguido tem propensão fácil para a prática de crimes, não olhando a meios para atingir os fins. E, a não ser atalhada tal propensão, facilmente entrará numa carreira de criminalidade, evidenciando-se aqui as necessidades de prevenção especial.

“Modo de vida” que, sem afrontar o princípio da proibição de dupla valoração, se há de valorar negativamente no apuro da justa medida da pena única concreta.

No que toca à referida pelo acórdão recorrido da “intensidade da atuação criminosa”, os crimes foram levados a cabo com dolo direto e intenso. Sendo muito alto o grau de culpa, o acórdão recorrido relevou a “intensidade da atuação criminosa” e lembrou antes a danosidade social dos crimes de natureza sexual perpetrados. 

Assim como refletiu negativamente “as expectativas quanto ao futuro comportamento do mesmo”, por fácil propensão para a criminalidade violenta e baixa capacidade revelada para manter uma conduta lícita, particularmente relevante para responder às exigências de prevenção especial, que, por estas circunstâncias, se mostram particularmente elevadas, a requerer intervenção, em meio prisional.

Efectivamente, considerando os factos dados como provados e o que de objetivo deles se extrai, e a esse círculo este Supremo está limitado, as ações do arguido mostram enorme desprezo por pautas mínimas de convivência societária, enorme insensibilidade para com os outros, desprezo pelo próximo; prevalecendo-se da sua força, capacidade física e de género, utiliza a mulher como mero instrumento de satisfação dos seus caprichos pessoais e dos seus instintos sexuais; não interiorizando limites para atingir os seus fins mais perversos; incapaz de reconhecer a gravidade dos seus erros criminais; Prevalecendo-se da circunstância de as vítimas estarem em país estrangeiro e a necessitarem de apoio para integração; Traindo a confiança e a solidariedade entre estrangeiros que elas nele depositaram

As “motivações do agente”, caprichosas, egoístas, fúteis e interesseiras, de ostensivo desprezo pelo outro, que só serve para satisfação dos seus interesses, foram consideradas, não podia deixar de o ser, e em nada o abonaram.  Concretizadas em ofensa corporal desumana, degradante, fútil e com mera intenção de humilhar. Em violência de grande intensidade e em autêntico bullying de intimidação sistemática e vexatória. Amedrontando e aterrorizando de forma a banir-lhes as vontades e as capacidades de resistência. Em tratamento desumano e degradante, de enorme insensibilidade. Fazendo uso pensado e premeditado do desequilíbrio da relação de poder a seu favor, em dominação sobre pessoas mais fracas, na relação social entre ele e cada uma delas.

Indiferente às regras de direito e com manifesta tendência para o tipo de crimes cometidos. Indiferente às marcas físicas ou psicológicas que causava. Sem a mais leve manifestação de arrependimento

Agindo premeditadamente de forma a colocá-las em pânico, em estado de medo, aterrorizadas e num tal estado de desânimo emocional que lhes obnubilava totalmente a vontade e a capacidade de resistir. Com as ofensas corporais a revelarem-se desnecessárias para a consecução do rapto, levado a cado com astúcia, por mero capricho e finalidade de assustar e amedrontar causar-lhes pânico. E, em modo de execução, com uso de facas.

Sustentando-se no ac. do STJ de 20/12/2006, proc. nº 06P3379, o acórdão recorrido convocou as exigências de prevenção geral positiva que são elevadas face aos bens jurídicos afrontados, à danosidade social, às consequências pessoais causadas, com intuitos egoístas e de mero capricho, à duração temporal das privações de liberdade, sem que em todo esse tempo tivesse havido um remoque de consciência que o levasse à cessação das acções criminais.

E as necessidades de prevenção especial são instantes, já que o arguido se vem mostrando totalmente indiferente às sucessivas admonições penais de que foi alvo. O que não tem sido eficaz e suficiente para o afastar da criminalidade.

 É enorme por isso a ilicitude e o desvalor das sua condutas. Quer pelo tipo de criminalidade praticada, quer pelo número de crimes levados a cabo, quer pelo número de vítimas e consequências causadas, quer pelos bens jurídicos atingidos, quer pela forma de execução dos mesmos, com astúcia e violência e prevalecendo-se da superioridade física, quer pela proximidade temporal em que foram executados, quer pela conexão existente entre todos, quer por comportamentos desajustadamente caprichosos e egoístas gratuitos e fúteis.  Com dolo direto e intenso. Quer pela prolongada persistência temporal em que os comportamentos perduraram. Sem revelação de qualquer sentido crítico no respeito das normas de convivência social e na obediência aos limites dos normativos penais. E mais grave ainda quando alega que tem relação familiar e profissional estável, o objetivamente lhe proporcionaria facilidade de respeito pelas regras de vivência social e das normas jurídicas vigentes.  O que torna a conduta ainda mais dolosa e censurável. E revela personalidade avessa ao direito e com manifesta tendência para o tipo de crimes cometidos. Indiferente às marcas físicas ou psicológicas que causava. Sem a mais leve manifestação de arrependimento

Assim, tendo em conta o critério especial definido no artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, que convoca a avaliação da personalidade do agente projetada no conjunto dos factos praticados, tudo ponderando numa apreciação global, não se encontra fundamento que possa constituir motivo de discordância quanto à medida da pena aplicada, por violação dos critérios de adequação e proporcionalidade, na consideração da concreta gravidade dos factos praticados e das necessidades de proteção dos bens jurídicos e de reintegração que a sua aplicação visa realizar.

Neste caso concreto, a pena abstratamente aplicável, a moldura abstrata do concurso de penas, tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos crimes em concurso, com o limite de 25 anos fixado no art. 77.º, n.º 2 do CP, concretamente o máximo de 25 anos, uma vez que a soma das penas parcelares ultrapassa esse quantum máximo pelo que legalmente se terá de reduzir ao mesmo. [(5 anos e três meses + 5 anos + (6 x 5 anos ) + (2 x 2 anos e três meses) = 44 anos e 9 meses] e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos mesmos crimes em concurso, no caso, 5 anos e três meses, o que significa que a pena única terá de ser encontrada na moldura abstrata entre um mínimo de 5 anos e três meses e 25 anos de prisão.

No que toca aos elementos pessoais, familiares, profissionais e sociais, refletindo estabilidade profissional, segurança financeira, boa integração familiar, bem se poderia afirmar que todos eles apontam para que o recorrente se mantivesse afastado do crime. Mas os factos provados revelam que há uma adequação da sua personalidade aos factos cometidos, manifestada na indiferença que revelou pelos outros, na instrumentalização que deles faz, e no desprezo ostensivo dos bens jurídicos, em personalidade altamente egoísta e reveladora de uma certa tendência para a prática dos tipos de ilícitos criminais cometidos.

E, no juízo de prognose a fazer pelo tribunal não se vê que haja razões para reduzir a pena única que lhe foi imposta, considerando as suas carências de socialização e tendo presente o efeito previsível da mesma (pena única aplicada) sobre o seu comportamento futuro, a qual não é impeditiva da sua ressocialização, quando chegar o momento próprio, sendo conveniente e útil que no estabelecimento prisional vá interiorizando o desvalor da sua conduta, adote uma postura socialmente aceite e cumpra as regras da instituição (o que, por certo, se tal se justificar, poderá a seu tempo contribuir para beneficiar de medidas flexibilização que o vão preparar para a liberdade, medidas essas a determinar pelo tribunal competente para o efeito).

Da consideração global de todos os factos apurados e da personalidade do arguido/recorrente não se extrai que se possa formular um juízo mais favorável ou que se justifique efetuar qualquer correção e, por isso, se conclui que não é caso de reduzir a pena única que lhe foi aplicada.

E sabendo-se que a prevenção geral positiva ou de integração se apresenta como a finalidade primordial a prosseguir com as penas, sabendo-se que a prevenção especial positiva não pode por em causa o mínimo de pena imprescindível à estabilização das expetativas comunitárias na validade da norma violada, julga-se na medida justa, sendo adequado, ajustado e proporcionado manter a pena única de treze anos de prisão (que não ultrapassa a medida da sua culpa, que é elevada). 

A pretendida redução da pena comprometia irremediavelmente a crença da comunidade na validade das normas incriminadoras violadas, não sendo comunitariamente suportável aplicar pena única inferior à que lhe foi imposta.

Entre a prevenção geral positiva e a culpa a pena de treze anos não se mostra excessiva.

Não se violaram as normas constitucionais e juspenais que determinam o modo de fixação da pena única, em cúmulo.

Em conclusão: improcede o recurso do arguido AA na parte em que pretendia a redução da pena única.


III - DECISÃO

Em face do exposto decide-se:

- Rejeitar o recurso, por inadmissível em razão da dupla conforme, no que toca à impugnação das penas parcelares e questões conexas;

- Rejeitar o recurso, por inadmissível, no que toca à impugnação dos despachos interlocutórios

- Rejeitar o recurso, por inadmissível, no que toca à impugnação da matéria de facto;

- No demais, negar provimento ao recurso, assim se confirmando o acórdão recorrido.

- Custas pelo arguido recorrente fixando-se a taxa de justiça em 6 UC’s.


Supremo Tribunal de Justiça, 02 de novembro 2022.


Ernesto Vaz Pereira (Relator)

Lopes da Mota (1º Adjunto)

Conceição Gomes (2ª Adjunta)

Nuno A. Gonçalves (Presidente da Secção)