ACIDENTE DE TRABALHO
REVISÃO DA INCAPACIDADE
CADUCIDADE
CONSTITUCIONALIDADE
ESTABILIZAÇÃO DA LESÃO
Sumário


A interpretação do artigo 25º, 2, da LAT (Lei 100/97, de 13-09) no sentido de o prazo preclusivo de 10 anos se dirigir também a situações em que a situação clínica do sinistrado não se pode presumir de estabilizada, já que foi judicialmente determinada a prestação de ulteriores cuidados médicos, mostra-se desconforme com o direito à justa reparação dos trabalhadores vítimas de acidentes de trabalho, previsto no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da CRP.

Texto Integral


I. RELATÓRIO

O recurso respeita a processo especial de acidente de trabalho, em que é sinistrado B. C. e seguradora X - Companhia de Seguros, SA.
O acidente ocorreu em 8-08-2007.
Por decisão proferida em 18-02-2010, foi fixado ao autor o direito a pensão anual e vitalícia, obrigatoriamente remível, tendo em contra uma IPP de 32,8%. A seguradora foi, ainda, condenada “a prestar ao Autor, de forma regular, consultas de urologia”. A decisão não foi objecto de recurso.
O sinistrado apresentou requerimento de revisão em 30-03-2022.
A seguradora invocou a caducidade do direito de o sinistrado requerer a revisão da incapacidade ou pensão.
O tribunal a quo declarou caducado o direito do sinistrado a requerer a revisão da incapacidade ou pensão. É desta decisão que o sinistrado recorre.

Dos autos observa-se, ainda, que, após a fixação inicial da pensão, o sinistrado apresentou os seguintes requerimentos:
Em 23-03-2011, requereu ao tribunal que a seguradora, atenta a demora, agendasse com a máxima brevidade consulta médica, na especialidade de urologia. O que lhe foi deferido por despacho de 1-3-2011, ordenando-se que a seguradora comprovasse a marcação de consulta de urologia.
Em 17-04-2014, alegando que tem vindo a sentir dores e choques nas pernas e demora na marcação por parte da seguradora, requereu ao tribunal a notificação da seguradora para que lhe agendasse consulta médica o mais rápido possível. O que lhe foi deferido por despacho de 29-04-2014, ordenando-se, entre o mais, a notificação da seguradora para informar a data do agendamento da consulta.
Em 17-03-2016, alegando demora na autorização da seguradora junto do Centro Médico … (prestador da seguradora) onde pretendia agendar consulta médica, requereu ao tribunal que a seguradora fosse notificada para lhe fornecer uma credencial com autorização para a marcação de consultas, sempre que delas necessitasse, junto dos prestadores clínicos da Ré, nomeadamente no referido Centro Médico, evitando, assim, a demora excessiva resultante dos pedidos de autorização. O que lhe foi deferido por despacho de 4-04-2016.

Não se conformando com o supra referido despacho que declarou a caducidade do direito de requerer a revisão da pensão/incapacidade, o sinistrado apresentou as seguintes CONCLUSÕES:

“I. O PRESENTE INCIDENTE TEVE INICIO A 30 DE MARÇO DE 2022
….VII. O ACIDENTE DE TRABALHO QUE BASEIA A PRESENTE AÇÃO OCORREU A 08 DE AGOSTO DE 2007…. SENDO-LHE POR ISSO APLICÁVEL A LEI 100797 DE 13 DE SETEMBRO…
IX. ASSIM, E CONFORME O ART. 25º N.º 2 A REVISÃO DA INCAPACIDADE APENAS PODE SER REQUERIDA DENTRO DOS DEZ ANOS POSTERIORES À DATA DE FIXAÇÃO DA PENSÃO
X. TENDO ESTA QUESTÃO SIDO POR DIVERSAS VEZES APRECIADA PELO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
XI. QUE, EMBORA TENDO PROFERIDO DECISÕES EM AMBOS OS SENTIDOS, ENCONTROU UM PENSAMENTO UNIFORME QUE LHES ESTÁ SUBJACENTE
XII. CONSIDERANDO QUE O ESTABELECIMENTO DE UM PRAZO PARA A REVISÃO DA INCAPACIDADE NÃO ERA INCONSTITUCIONAL QUANDO ENTRE A DATA EM QUE FOI FIXADA A PENSÃO E A DARÁ EM QUE OI REQUERIDA A REVISÃO, NÃO TENHA OCORRIDO QUALQUER FACTO QUE ILIDISSE A PRESUNÇÃO DA ESTABILIZAÇÃO DA SITUAÇÃO CLÍNICA DO SINISTRADO.
XIII. NO CASO DOS AUTOS, A PENSÃO FOI FIXADA A 11/02/2010, COM UMA IPP DE 32,8%
XIV. AO LONGO DOS ANOS O SINISTRADO TEM PIORADO A SUA SITUAÇÃO CLíNICA,
XV. O SINISTRADO TEM TIDO FREQUENTES RECAÍDAS E RECIDIVAS
XVI. O SINISTRADO TEM DIVERSAS INCAPACIDADES TEMPORÁRIAS PARA O TRABALHO
XVII. TUDO SITUAÇÕES QUE A RECORRIDA NÃO PODE DESCONHECER POR LHE FACULTAR CONSULTAS E ACOMPANHAMENTO MÉDICO, RECEBER BOLETINS INFORMATIVOS DA SITUAÇÃO CLINICA, RECEBER OS CERTIFICADOS DAS INCAPACIDADES TEMPORÁRIAS PARA O TRABALHO
XVIII. E EM 2016 TER SIDO ORDENADA PELO TRIBUNAL A QUO A PASSAGEM DE CREDENCIAL PARA ACESSO AO TRATAMENTO NA INSTITUIÇÃO INDICADA PELA RECORRIDA
XIX. NÃO SE ENCONTRANDO, POR ISSO, ESTABILIZADA A SITUAÇÃO CLINICA DO SINISTRADO, ORA RECORRENTE, COMO MELHOR SABE A RECORRIDA
XX. SENDO ESTE O ELEMENTO DIFERENCIADOR QUE AFASTA A PRESUNÇÃO E A APLICAÇÃO DO PRAZO PRECLUSIVO DE 10ANOS, ALEGADO PELA RECORRIDA
XXI. TENDO QUE SE AFIRMAR QUE OCORREU UMA EVOLUÇÃO DESFAVORÁVEL DAS SEQUELAS DA LESÃO SOFRIDA PELO SINISTRADO
XXII. E ASSIM SE CONCLUÍDO PELA DESCONFORMIDADE CONSTITUCIONAL DA NORMAL CONTIDA NO N.º 2 DO ART. 25º DA LEI 100/97 DE 13 DE SETEMBRO, QUANDO INTERPRETADA NO SENTIDO DE ESTABELECER UM PRAZO PRECLUSIVO DE DEZ ANOS, CONTADOS DA FIXAÇÃO ORIGINAL DA PENSÃO, PARA A REVISÃO DA PENSÃO DEVIDA A SINISTRADO DE ACIDENTE DE TRABALHO, COM FUNDAMENTO SUPERVENIENTE DE LESÕES SOFRIDAS, NOS CASOS EM QUE, DESDE A FIXAÇÃO DA PENSÃO E O TERMO DESSE PRAZO DE DEZ ANOS, APESAR DE MANTIDA A INCAPACIDADE, A ENTIDADE RESPONSÁVEL FIQUE JUDICIALMENTE OBRIGADA A PRESTAR TRATAMENTOS MÉDICOS AO SINISTRADO, POR VIOLAÇÃO DO DIREITOS DOS TRABALHADORES À JUSTA REPARAÇÃO QUANDO VITIMAS DE ACIDENTE DE TRABALHO, CONSAGRADO NO ARTIGO 59, N.º 1 ALÍNEA F) DA CRP
XXIII. MAIS AINDA SE REQUER A CONDENAÇÃO DA RECORRIDA ENQUANTO LITIGANTE DE MÁ FÉ, POR ESTA NÃO TER COMO NÃO SABER QUE A ESTABILIDADE DA SITUAÇÃO CLINICA DO SINISTRADO NÃO OCORREU,
XXIV. AFIRMANDO, ALÉM DO MAIS, QUE ESTE NUNCA SE QUEIXOU,
XXV. SENDO QUE TAIS COMPORTAMENTOS, COM IMPUTAÇÕES QUE SABE NÃO SEREM VERDADE, TEM DE TER A TUTELA DO DIREITO E SER DEVIDAMENTE PUNIDAS
XXVI. NESTES TERMOS, POR TUDO O QUE SE EXPÔS, DEVERÁ ALTERAR-SE A DECISÃO PROFERIDA, SUBSTITUINDO-A POR OUTRA QUE CONSIDERE A DESCONFORMIDADE CONSTITUCIONAL DA NORMAL CONTIDA NO N.º 2 DO ART. 25º DA LEI 100/97 DE 13 DE SETEMBRO, POR VIOLAÇÃO DO DIREITOS DOS TRABALHADORES À JUSTA REPARAÇÃO QUANDO VITIMAS DE ACIDENTE DE TRABALHO, CONSAGRADO NO ARTIGO 59, N.º 1ALÍNEA F) DA CRP”

Sem contra-alegações
O Ministério Público emitiu parecer no sentido da manutenção da decisão recorrida.
O recurso foi apreciado em conferência – art. 659º, do CPC.

QUESTÕES A DECIDIR (1):

inconstitucionalidade da norma que estabelece o prazo de 10 anos para requerer a revisão das prestações/pensão, a saber artigo 25º, 2, da Lei 100/97, de 13-09; litigância de má fé.

I.I FUNDAMENTAÇÃO

A) Factualidade- a exarada no relatório, mormente quanto à data do acidente e da fixação da pensão, data de pedido de revisão e requerimentos do sinistrado alusivos a necessidade de agendamento de tratamentos.

B) A caducidade do direito a pedir a revisão da pensão/prestação e a eventual inconstitucionalidade da norma que estabelece o prazo limite de 10 anos para requerer a revisão- art. 25º, 2, da Lei 100/97, de 13-09

A data do acidente de trabalho em causa indica que é aplicável ao sinistro a Lei 100/97, de 13-09 (2).
O artigo 25º da referida Lei estipulava um prazo de 10 anos para rever as prestações anteriormente fixadas por acidente de trabalho, quando ocorresse um agravamento ou uma melhoria da lesão ou doença que deu origem à reparação.

Referia o dito Artigo 25º: “Revisão das prestações
“1 - Quando se verifique modificação da capacidade de ganho do sinistrado proveniente de agravamento, recidiva, recaída ou melhoria da lesão ou doença que deu origem à reparação, ou de intervenção clínica ou aplicação de prótese ou ortótese, ou ainda de formação ou reconversão profissional, as prestações poderão ser revistas e aumentadas, reduzidas ou extintas, de harmonia com a alteração verificada. 2 - A revisão só poderá ser requerida dentro dos 10 anos posteriores à data da fixação da pensão, uma vez em cada semestre, nos dois primeiros anos, e uma vez por ano, nos anos imediatos).”

A norma foi alvo de múltiplas análises jurisprudenciais, incluindo do Tribunal Constitucional, centradas na questão de saber se a imposição de um prazo limite para requerer a revisão das prestações por incapacidade para o trabalho feria ou não o princípio constitucional de assistência e justa reparação, a que têm direito todos os trabalhadores vítimas de acidente de trabalho.

Está em causa o artigo 59º, 1, f) da CRP:
”… 1. Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito:….
f) f) A assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional.

O tribunal a quo concluiu pela não inconstitucionalidade da norma aplicada ao caso concreto e pela caducidade do direito de rever as prestações decorrente do acidente de trabalho.
A decisão, contudo, não deixa de sublinhar que, não obstante a aparente diversidade, a jurisprudência constitucional converge em aspectos essenciais quando analisa a norma ordinária, classificando de razoável o prazo de caducidade à luz da ciência médica, mas desde que a norma não seja interpretada no sentido de estabelecer um prazo absolutamente preclusivo que não franqueie a porta a exceções. Que, no entender do tribunal a quo, não se verificariam no caso dos autos.

Analisando:
O instituto da revisão de pensões/prestações resulta da verificação prática de que, em muitas situações, o estado de saúde do sinistrado evolui, agravando-se ou melhorando, em todo o caso modificando a sua capacidade de ganho. Surge, assim, a necessidade de adaptar as prestações à evolução do estado de saúde do titular da pensão. A revisão das prestações permite, portanto, quer ressarcir danos futuros não considerados no momento da fixação da pensão, quer, ao contrário, reduzir as prestações que se anteciparam em relação a danos que, afinal, não se chegaram a produzir. Finalmente, não obstante a presunção de estabilização das lesões subjacente ao estabelecimento do prazo de caducidade de 10 anos, na prática podem ocorrer casos de progressão da lesão ou da doença uma vez decorrido tal período.
Historicamente a possibilidade de revisão das prestações, em espécie e/ou em dinheiro, foi legislativamente enquadrada de modo diferente, desde a inexistência de prazo (em 1918 (3)), passando depois pela subordinação a prazos mais curtos de 5 anos (4) (em 1936), depois mais longos de 10 anos (5) (a partir de 1971 em diante), até finalmente, no sistema vigente, o prazo ser abolido e a revisão das prestações poder ser requerida a todo o tempo (6).
Tem sido referido que o estabelecimento do prazo para requer a revisão das prestações se relaciona com a experiência e constatação médica que os agravamentos e melhorias na saúde dos sinistrados têm maior incidência nos primeiros tempos, decaindo progressivamente até ao limite de tempo que se convencionou ser o tecto de 10 anos, momento a partir do qual o legislador presumiu que já não irá haver evolução - Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Almedina, 2º ed., p. 128.
Ou seja, o que sustenta a norma é uma presunção sobre uma determinada normalidade das coisas.
Em consonância, diversos arestos do Tribunal Constitucional concluem pela inconstitucionalidade da norma, caso existam circunstâncias que indiciam a não estabilização da lesão no decurso do prazo legal de 10 anos. São disso exemplo a ocorrência de revisões intercalares da pensão fixada ou de outro circunstancialismo que possa indiciar uma evolução desfavorável pelo agravamento, ou favorável pela melhoria da lesão. Se a impossibilidade de pedir a revisão após aquele prazo tem a sua razão de ser na presunção de que, findo aquele período, se dá a consolidação da lesão, consequentemente, nos referidos contextos, a presunção está ilidida - Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs: 147/2006, de 26-02; 59/07, de 30-01;161/09, de 25-03; 583/2014, de 17-09.
Mas também os acórdãos que concluem pela conformidade da norma que estabelece um prazo de 10 anos para requer a revisão das prestações por acidente de trabalho, não deixam de salientar que o juízo de constitucionalidade pressupõe que não “… se tenha registado qualquer evolução justificadora de pedido de revisão”. Estes acórdãos abordam casos em que nunca foram requeridas revisões de pensões dentro do prazo legal, ou foram requeridas, mas indeferidas e aí tudo se passa como se não houvesse evolução desfavorável, ou em que a revisão é pedida passados que estão mais de 10 anos sobre a última deferida - Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs: 155/2003, de 19-03; 612/2018, de 10-12; 219/2012, de 26-04.
Da leitura dos acórdãos do Tribunal Constitucional, mormente dos acima citados, flui que sempre que esta presunção de estabilização da situação clínica do sinistrado, no período temporal estabelecido pelo legislador, for abalada, a revisão deve ser permitida para além dos 10 anos, sob pena de inconstitucionalidade por violação do direito a assistência e justa reparação a que o trabalhador vitima de acidente de trabalho tem direito - 59º, 1, f), CRP. Mormente, a presunção foi considerada afastada nos casos em que, durante o decurso dos 10 anos, ocorreram revisões de pensões em que se provou o agravamento de lesões, o que permitiria a dedução de nova revisão fora do prazo inicial.
No caso dos autos o senhor juiz a quo considerou que no caso não foi ilidida a presunção de estabilização das lesões.
No despacho consta “….A pensão que foi atribuída ao sinistrado foi fixada no dia 17 de Fevereiro de 2010. O sinistrado apresentou o requerimento de revisão no dia 30 de Março de 2022, quando já haviam decorrido mais de dez anos desde a data da fixação da pensão. Entre a data em foi fixada a pensão e a data em que foi requerida a revisão não ocorreu qualquer facto que permita ilidir a presunção de estabilização da situação clínica do sinistrado, designadamente não existiu qualquer revisão anterior e a seguradora não foi condenada a prestar tratamentos médicos ao sinistrado. O caso dos autos insere-se precisamente naqueles em que o Tribunal Constitucional considerou que o estabelecimento de um prazo para a revisão da incapacidade não era inconstitucional.”
O sinistrado insurge-se, porque a seguradora foi condenada a prestar assistência clínica e o autor ao longo do tempo foi atendido em consultas médicas, formulando diversos pedidos ao tribunal, que foram deferidos.
A razão está do seu lado. Na decisão recorrida ignorou-se por completo que o próprio tribunal, anteriormente, aquando da fixação da pensão, condenou a seguradora a prestar ao autor, de forma regular, consultas de urologia e que este, por três vezes, a última delas datada de 17-03-2016, veio a tribunal solicitar o agendamento de consultas medicas e agilização do respectivo processo através de atribuição pela seguradora de uma credencial, o que lhe foi sempre deferido, a última vez por despacho de 4-04-2016 (remete-se para o relatório, onde consta pormenorizadamente a cronologia destes pedidos).
Ora, o facto de, por decisão judicial, se ter condenado a seguradora em prestações em espécie (7) e de o sinistrado, por diversas vezes (3), ter vindo aos autos reclamar o agendamento de consultas médicas afasta a presunção de estabilização das lesões. Ainda que não tivesse havido revisão da pensão, não se pode considerar, perante esta factualidade, que as lesões estavam estabilizadas. Se assim fosse, o sinistrado não teria vindo a tribunal pedir o agendamento de consultas/tratamentos médicos que logo foram inicialmente determinadas, a seguradora a tal se teria oposto (o que não aconteceu) e o tribunal não teria deferido os pedidos.
Cite-se a este propósito um caso algo similar do Tribunal Constitucional, processo nº 433/2016, de 13-07, onde a seguradora foi condenada a prestar tratamentos médicos e ao longo dos anos foi determinado judicialmente a obrigação de prestação desses tratamentos médicos, incluindo próteses.

Ali se referiu, citando-se os segmentos mais significativos:
“….Isto, desde logo, porque, no caso vertente, mesmo não tendo havido, nos primeiros dez anos após a fixação da pensão, atualizações intercalares da pensão, certo é que também dificilmente se pode ter por estabilizada a situação de incapacidade resultante do acidente de trabalho em causa.
A circunstância de a seguradora responsável ter sido judicialmente condenada a acompanhar a situação clínica do sinistrado e a prestar os tratamentos médicos necessários, designadamente a reparação das próteses dentárias cuja deterioração motivou os pedidos de revisão da pensão pelo sinistrado, formulados antes e após o decurso do prazo de dez anos sobre a data da fixação da incapacidade permanente parcial, conduz à conclusão – assumida na decisão judicial ora recorrida – de não se ter por verificada, ou mesmo presumida, a estabilização da situação clínica do sinistrado no período temporal estabelecido pelo legislador.
…. Com efeito, sendo as prestações em espécie determinadas se necessárias e adequadas à reparação dos danos causados pelo acidente de trabalho sofrido pelo trabalhador, a sua decretação (por decisão judicial) é, desde logo, reveladora da evolução não favorável (e nessa medida não estabilizada) da situação clínica que as reclama, acrescendo a sua (também necessária) revisibilidade em função da evolução da situação patológica que visam reparar e do progresso dos meios médicos e técnicos disponíveis e, bem assim, as possíveis consequências da sua utilização, seja no sucesso da reparação das lesões causadas pelo acidente, seja no insucesso dessa reparação, traduzido, no limite, no possível agravamento ou recidiva das lesões ou sequelas causadas pelo acidente ou mesmo no surgimento de novas lesões ou doenças provocadas pelo próprio tratamento, também incluídas no direito à reparação.”
No acima referido acórdão, o TC conclui pela inconstitucionalidade da norma paralela a que ora está em causa (Base XXII, n. 2, da Lei n.º 2127, de 3-08-1965) por consubstanciar uma ofensa constitucional ao direito fundamental dos trabalhadores à assistência e justa reparação quando vítimas de um acidente de trabalho, consagrado no artigo 59º, 1, alínea f), da CRP.
Similarmente, no presente caso se conclui que a instabilidade da situação clínica do sinistrado aferida pelas ordens judiciais para a seguradora prestar o acompanhamento médico necessário, infirma a presunção de estabilidade das lesões. É desajustado invocar, em contrário, razões de segurança jurídica, porquanto a seguradora tinha conhecimento desse acompanhamento, além deste princípio não ter carácter absoluto e, no caso, dever ceder perante outro com igual importância na hierarquia constitucional.
Pelo que se entende que, no caso, a efetivação do direito constitucional à justa reparação dos danos advinda de acidente de trabalho (59º,1, alínea f), da CRP), não se mostra adequadamente assegurada somente pela primeira fixação de pensão por incapacidade, se entendida em termos irrevogáveis ou imodificáveis e decorrido que esteja o prazo legal de dez anos (25º, 2, da LAT) para o pedido da respetiva revisão. Razão pela qual se considera ferida de inconstitucionalidade a norma em causa, quando interpretada no sentido de estabelecer um prazo preclusivo não obstante as particularidades referidas, pelo que se desaplica a mesma.

C) Da condenação em litigância de má fé:

Refere o artigo 542º do CPC:

“Responsabilidade no caso de má-fé - Noção de má-fé
1 - Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão….”

O autor sustenta que a ré não podia desconhecer que estava a ser acompanhado em consultas médicas e que a sua situação clínica não estava estabilizada.
Pese embora não o diga expressamente, a suposta má fé encaixar-se-á na dedução de oposição cuja falta de fundamento a parte não deveria ignorar (al. a).
Mas, a falta de fundamento da oposição da seguradora, no caso, desde logo, não se revela de manifesta. É uma simples falta de razão. Basta atentar que estão em causa questões delicadas e complexas que versam sobre constitucionalidade e/ou inconstitucionalidade de normas que dão azo a diferentes interpretações, para se concluir que a oposição não é infundada de um modo óbvio e flagrante. Está também excluída a má fé na vertente de alegação de factos falsos, porquanto a ré sustenta a sua oposição num facto verdadeiro que é o decurso do prazo de 10 anos sem que tenha sido requerido incidente de revisão de pensão.

III. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso revogando-se a decisão recorrida e determinando-se o prosseguimento do incidente de revisão da pensão/prestação- 87º do CPT e 663º do CPC.
Custas a cargo de quem vier a ser condenado a final.
Notifique.

3-11-2022

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Francisco Sousa Pereira
Antero Dinis Ramos Veiga


1. Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC, o âmbito do recurso é balizado pelas conclusões do recorrente, salvo as questões de natureza oficiosa.
2. A Lei entrou em vigor em 1-10-1999, sendo aplicável aos acidentes que ocorreram posteriormente à sua vigência - 41º, 1, da referida Lei 100/97, de 13-09 e 71º do Dec-Lei 143/99, de 30-04. A actual lei de acidentes de trabalho só entrou em vigor em 1-01-2010 e é aplicável apenas aos acidentes que ocorreram já na sua vigência - 187º e 188º da Lei 98/2009, de 4-09.
3. Art. 33º do Decreto nº 4 288, de 22-05-1918.
4. art. 24º da Lei nº 1.942 de 27-07-1936.
5. BASE XXII, n. 2, da Lei 2127/65, de 3-08-1965, que só entrou em vigor em 21-11-1971, e art 25º, 2, da Lei 100/07, de 13-09.
6. Art. 70º, da Lei 98/2009, de 4-09.
a) Art. 10º da LAT(Reparação): O direito à reparação compreende… as seguintes prestações: Em espécie: prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida activa;
b) Em dinheiro: indemnização por incapacidade temporária absoluta ou parcial para o trabalho; indemnização em capital ou pensão vitalícia correspondente à redução na capacidade de trabalho ou de ganho, em caso de incapacidade permanente; pensões aos familiares do sinistrado; subsídio por situações de elevada incapacidade permanente; subsídio para readaptação de habitação, e subsídio por morte e despesas de funeral.