ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
RECHEIO DA CASA
DETERIORAÇÕES CAUSADAS PELO INQUILINO
OBRIGAÇÕES PROPTER REM
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
Sumário

I - A indemnização por deteriorações causadas pelo inquilino ─ no âmbito de um contrato de arrendamento de um imóvel para habitação incluindo o respetivo recheio ─, não constituem obrigações reais ou propter rem e, muito menos, detêm a caraterística de ambulatoriedade.
II - Assim, no caso de venda do imóvel no decurso da ação, o crédito indemnizatório permanece na esfera jurídica dos senhorios alienantes, os quais mantêm legitimidade substantiva para a ação.
III - Os arrendatários só não são responsáveis quanto às deteriorações resultantes do desgaste do tempo e as inerentes a uma prudente utilização. Todas as demais, mesmo aquelas que foram efetuadas para assegurar o conforto ou comodidade, importam responsabilidade para o locatário, seja pelo dever de as reparar antes da restituição do prédio, seja pela obrigação de indemnizar, no caso dessa reparação não ser feita.
IV - As regras da experiência são um conceito aberto, que faz apelo a padrões da normalidade, àquilo que acontece na grande maioria dos casos, no sentido de que em circunstâncias idênticas o ser humano tende a ter um comportamento idêntico.

Texto Integral

Apelação nº 2254/20.7T8STS.P1

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I – Resenha histórica do processo
6. AA, e mulher, BB, instauraram ação contra CC, e mulher, DD, pedindo a sua condenação a pagar-lhes a quantia de 29.279,86 €, a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescida de juros de mora.
Estribaram o seu pedido alegando que arrendaram aos Réus um imóvel, integralmente mobilado com móveis e eletrodomésticos; em 2020, os Réus denunciaram o contrato e procederam à entrega do imóvel. Nesse ato, verificou-se que o imóvel e o respetivo recheio foi entregue aos Autores com graves e extensos danos, cuja reparação vai importar na quantia peticionada.
Em contestação, os Réus impugnaram a factualidade alegada, pelo que se realizou audiência de discussão e julgamento.
Em sentença, a ação foi julgada improcedente e os Réus foram absolvidos do pedido.

2. Inconformados com tal decisão, dela apelaram os Autores, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«1ª – Nos presentes autos, os Autores e ora Recorrentes peticionaram a condenação dos Réus e ora Recorridos no pagamento da quantia de 29.279,86 € (vinte e nove mil, duzentos e setenta e nove euros e oitenta e seis cêntimos) a título de indemnização pelos danos patrimoniais causados pelos Réus num imóvel que lhes tinha sido arrendado pelos Autores, incluindo o respetivo recheio, em consequência da utilização imprudente do imóvel e do recheio deste, em violação do compromisso contratual que assumiram com os senhorios, ora Autores e Recorrentes, no início do arrendamento.
2ª – Todos os factos alegados na petição inicial foram julgados provados pelo tribunal a quo (Factos provados 1 a 15 da Fundamentação da douta sentença proferida), pelo que os pressupostos do direito à indemnização que os Autores peticionaram na ação a título de responsabilidade civil contratual (facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano) ficaram integralmente provados na douta sentença proferida.
3ª – Porém, o Meritíssimo Juiz do tribunal a quo julgou a ação totalmente improcedente pelo facto dos Autores e ora Recorrentes terem vendido o imóvel no decurso da ação, o que comunicaram ao tribunal em requerimento de 23/02/2022, e, portanto, na data em que foi proferida a sentença (12/04/2022), já não serem proprietários do imóvel locado aos Réus, com o seguinte fundamento: “hodiernamente o direito de propriedade das preditas frações autónomas e mobiliário, conclui-se que não possuem legitimidade substantiva para impetrar o ressarcimento da respetiva reparação, que a matéria aflorada pelo Autor na audiência da repercussão no preço da venda sobre-excede os poderes de cognição e pronúncia do Tribunal, porquanto não foi alegada nem na petição inicial, nem em articulado superveniente”.
4ª – O presente recurso é, pois, circunscrito a matéria de direito e incide apenas sobre a seguinte questão:
Se no decurso de um contrato de arrendamento de um imóvel para habitação incluindo o respetivo recheio, os arrendatários causarem danos indemnizáveis no locado e no seu recheio e o senhorio peticionar esses danos posteriormente à cessação do contrato, o facto do senhorio vender o imóvel no decurso da ação em que peticiona o ressarcimento de tais danos faz precludir o seu direito à indemnização?
5ª – Salvo o devido respeito pela tese defendida na douta sentença proferida, entendemos que a resposta à questão acima enunciada só pode ser negativa.
6ª – Em primeiro lugar, foi na data da cessação do contrato de arrendamento e de entrega do locado aos Autores senhorios, por parte dos Réus arrendatários, 31 de julho de 2020, que os danos se produziram na esfera jurídica dos Autores e consoante ficou provado na sentença proferida, nessa data os Autores eram efetivamente donos e legítimos possuidores do imóvel arrendado.
7ª – A legitimidade substantiva dos Autores para peticionarem a indemnização pelo incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato por parte dos Réus resulta, portanto, do facto dos Autores terem sido os senhorios naquele contrato, o que aconteceria também caso o incumprimento contratual dos arrendatários fosse a falta de pagamento de rendas devidas pelos arrendatários durante a vigência do contrato, hipótese em que os Autores conservariam a legitimidade substantiva para exigir as rendas em atraso mesmo que, posteriormente à cessação do contrato, deixassem de ser proprietários do imóvel locado.
8ª – O direito à indemnização que os Autores vieram peticionar na presente ação a título de responsabilidade civil contratual não tem como causa de pedir a propriedade do imóvel, isto é, não assenta num direito real, mas sim no contrato de arrendamento celebrado entre os Autores e os Réus e na sua execução inadimplente e culposa por parte dos Réus, ou seja, tem como causa de pedir aquele contrato de arrendamento e as relações obrigacionais que o mesmo estabeleceu entre as partes que o celebraram.
9ª – Os Autores e ora Recorrentes não formularam na ação qualquer pretensão de reconhecimento do seu direito de propriedade, sendo certo que a qualidade de proprietário não é típica ou exclusiva do senhorio, pois num contrato de arrendamento o senhorio pode não coincidir com o proprietário (pode ser usufrutuário, arrendatário com direito de sublocação, etc.).
10ª – Assim sendo, se no decurso de um contrato de arrendamento de um imóvel para habitação incluindo o respetivo recheio, os arrendatários causarem danos indemnizáveis no locado e no seu recheio e o senhorio peticionar esses danos posteriormente à cessação do contrato, o facto do senhorio vender o imóvel no decurso da ação em que peticiona o ressarcimento de tais danos não afeta o seu direito à indemnização.
11ª – A douta sentença de que ora se recorre não fez, portanto, uma correta interpretação do direito no que se refere à legitimidade substantiva dos Autores, desse modo violando os artigos 798º, 1043º e 1044º do Código Civil.
12ª – Não tanto pelo alegado como pelo doutamente suprido, deverão V.Exas., Venerandos Senhores Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto, dar integral provimento ao presente recurso e revogar a douta sentença proferida na sua fórmula decisória, julgando procedente a ação e condenando os Réus e ora Recorridos a pagar aos Autores e ora Recorrentes a quantia de 29.279,86 € (vinte e nove mil, duzentos e setenta e nove euros e oitenta e seis cêntimos), a título de indemnização por danos patrimoniais causados pelos Réus e ora Recorridos em consequência da utilização imprudente do imóvel que lhes foi arrendado pelos Autores e em violação do compromisso contratual celebrado entre as partes.
Assim se fazendo a mais perfeita e sã Justiça.»

3. Os Réus contra-alegaram, sustentando a improcedência do recurso.
Suscitaram ainda a ampliação do objeto do recurso e CONCLUIRAM:
«1ª – Os autores fundam a presente acção na alegada violação do disposto na al- d) do artº 1038º do C.Civil, que consagra uma obrigação de “non facere”.
2ª- A apreciação dos factos alegadamente violadores da obrigação de “non facere” implica determinações através de prova pertinente, que assim, formam um campo epistemológico, com os seguintes momentos.
a) O 1.º momento consiste na determinação do estado em que se encontravam os elementos (ou componentes) do arrendado, no momento em que foi entregue aos Recorridos.
b) O 2.º momento consiste na determinação do estado em que se encontravam todos os elementos (ou componentes) do arrendado, no momento em que foi entregue aos senhorios (Recorrentes).
c) O 3.º momento consiste na determinação das alterações eventuais de cada um desses elementos (ou componentes) entre o momento em que o arrendado foi entregue aos inquilinos e o momento em que estes o restituíram aos senhorios.
3ª- Da determinação percebida no 3.º momento epistémico resultaria a matéria de facto a qualificar pelo disposto nos art.ºs 1038.º, al. D) e 1074.º, n.º 1 do C.C. Ou seja, se os Recorridos praticaram, durante a vigência do contrato, actos impróprios do uso normal de uma habitação, e que esses actos tenham sido a causa directa e necessária de danos (avarias, estragos) graves, ou se nada de impróprio de um uso normal do arrendado teria ocorrido.
4ª- Na determinação das alterações de estado dos elementos (ou componentes) do arrendado teríamos ainda, como pressupostos, agora gnoseológicos, os seguintes:
a) – A prova do estado do arrendado, no momento da sua entrega aos inquilinos teria de estar provada, de modo irrefutável, no momento da distribuição da acção, tendo-se até em conta que não estava em estado de novo, mas habitado antes dessa entrega. A prova desse estado não é passível de ser feita, anos após, através de declarações feitas de memória (salvo se se tratasse de coisas ostensivas, p. ex., o soalho ter sido destruído).
b) – A prova do estado do arrendado, no momento, AGORA, de entrega aos senhorios devia ter sido feita, de imediato, de forma insofismável, nesse momento, ou seja por via da prova pericial ou por inspecção, requerida por antecipação, nos termos dos art.ºs 419.º e 420.º do C.P.C, e não por mera prova por declarações feitas de memória.
5ª- Os factos julgados provados sob os pontos 10 e suas alíneas, 11 e 13 e suas alíneas, da fundamentação de facto assentam em testemunhos de conteúdo esparso, impreciso lacunoso … Foi assim um julgamento que, desde logo, postergou os princípios epistemológicos que, sem a sua observância, não é possível determinar a verdade de quaisquer factos, ou seja não foi feita a demonstração como decorreram os actos preceptivos.
6ª- Por essa razão esses factos deverão ser julgados não provados, por força do disposto no art.º 662.º, 1 do C.P.C.
7ª- Os depoimentos transcritos nos pontos 19 e 20 destas alegações, por si, são insusceptíveis de permitir que se julguem provados os factos referidos nos pontos 10 e suas alíneas, 11 e 13 e suas alíneas, dos factos provados.
8ª- Nem, sequer, aquilo que desses depoimentos o Sr. Juíz retirou e expressamente referiu, como motivadores da sua decisão, permitem a prova dos factos que foram considerados provados.
9ª- As fotografias juntas aos autos, não têm relevância probatória, na dimensão considerada na sentença, nomeadamente pela sua ininteligibilidade.
10ª- O documento de entrega dos bens junto aos autos não tem, igualmente, relevância probatória, quer pela inconsequência do que refere, sem qualquer forma de comparação com outro documento anterior e descritivo do estado de conservação dos mesmos bens.
11ª- No caso dos autos, a prova das deteriorações alegadamente verificadas, só com prova pericial ou inspecção judicial poderia ter sido verificada.
12ª- Além de que devia ter sido provado, e não foi, que qualquer eventual deterioração, ocorreu do uso imprudente do arrendado e seus móveis, por parte dos réus.
13ª- Impõe-se, por isso, a reapreciação da matéria de facto, sendo que esses factos (os dos pontos 10 e suas alíneas, 11 e 13 e suas alíneas, dos factos provados), deverão ser julgados não provados, por força do disposto no artº 662º , nº 1 do CPCivil, não se verificando, por isso, a violação do imposto na al. D) do artº 1038º do C.Civil.
14ª- Consequentemente, deverá ser, igualmente, a acção julgada improcedente, caso se não entenda que o é pelos fundamentos invocados pelo Sr. Juiz na douta sentença, como é de Direito e Justiça.»

Os Autores responderam à ampliação do objeto do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO
4. OS FACTOS
Foram os seguintes os factos considerados na douta sentença:

«A) Factos provados
1. Pela ap. … de 2007/03/22, afigura-se registada a aquisição a favor de AA e mulher BB das frações autónomas designadas pelas letras “DA” destinada a habitação e “N” destinada a garagem integrantes do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na União de Freguesias …, … (… e …) e …, descritas na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso pelos nºs … e … e inscritas na matriz predial urbana sob os artigos …... e …....
2. Em 30 de dezembro de 2016, os Autores, na qualidade de primeiros outorgantes/senhorios, e os Réus, na qualidade de segundos outorgantes/arrendatários, subscreveram um escrito com a epígrafe “Contrato de Arrendamento para Habitação com Prazo Certo”, no qual os Autores declararam dar de arrendamento aos Réus, pelo prazo de 5 anos, com início em 1 de janeiro de 2017, as frações autónomas descritas em 1).
3. No parágrafo terceiro da cláusula primeira do escrito mencionado em 2), estipulou-se que, decorrido um terço do prazo da duração inicial do contrato ou da sua renovação, os segundos outorgantes “podem denunciar o contrato a todo o tempo, mediante comunicação aos primeiros outorgantes com a antecedência de 120 dias do termo pretendido do contrato.”
4. Na clausula sétima do escrito referenciado em 2), enunciou-se que “Os segundos outorgantes obrigam-se a restituir o arrendado, findo o contrato, em perfeitas condições de utilização e no mesmo estado em que se encontra, reconhecendo, desde já, que o mesmo se encontra em bom estado de conservação.”
5. No âmbito do escrito mencionado em 2), consignou-se fazer parte do arrendamento móveis, eletrodomésticos e artigos de decoração existentes na fração “DA”, designadamente:
a) sala de jantar composta de um aparador, uma consola, uma mesa, oito cadeiras forradas a tecido, um candeeiro de teto, uma carpete, um cadeeiro de mesa em louça verde;
b) sala de estar composta de dois sofás de tecido de três lugares mais cinco almofadas, um sofá de pele elétrico de três lugares mais quatro almofadas, dois cadeirões prateados forrados a tecido preto, uma mesa de centro em madeira, uma mesa de jogo pé galo, um carrinho de chá estilo inglês, duas mesinhas individuais estilo inglês com suporte, um móvel aparador TV, três quadros e duas carpetes, um porta revistas em pele, um candeeiro de mesa preto com pássaro, um conjunto de peças de lareira, um LCD Samsung, um leitor de DVD LG com sistema de som;
c) hall de cozinha composto de um móvel oval e um quadro;
d) hall de entrada composto de um móvel pernas altas, um banco corrido e dois quadros;
e) casa de banho hall composta de uma saboneteira de metal e um tapete vermelho;
f) hall dos quartos composto de um quadro, um móvel chinês e um aplique preto;
g) suite com quarto de vestir composta de uma cama de casal forrada a tecido, um móvel comoda anos vinte, um chaise loung, duas mesas de cabeceira mais dois candeeiros de mesa em metal, um baú de canfora mais um candeeiro/vaso em loiça às cores, quatro quadros, dois pufes em pele, um leitor DVD Samsung e um ITV Philips;
h) casa de banho composta de dois conjuntos de acessórios, duas saboneteiras em loiça e dois tapetes;
i) quarto composto de duas camas inglesas de solteiro, uma comoda estilo inglês, um candeeiro grande com pé em madeira, uma mesa de cabeceira linha inglesa, um candeeiro com pé em madeira pequeno, um cabide de pé em madeira e um quadro;
j) casa de banho composta de um tapete, um conjunto de acessórios e saboneteira em loiça;
k) suite júnior composta de duas camas com cabeceiras forradas a peles, uma consola preta alta, uma mesa de cabeceira, um candeeiro com pé em madeira pequeno, três quadros e uma casa de banho com um conjunto de acessórios e saboneteira em loiça;
l) escritório composto por uma estante em castanho, duas secretárias em castanho com tapo forrado a pele, uma cadeira, um candeeiro preto pé metal, quatro quadros e um aparelho de som LG;
m) cozinha composta de um carrinho de apoio em metal, um frigorífico Bosch de duas portas, um micro-ondas Candy, uma máquina de café Nespresso Krups, uma máquina de lavar loiça Siemens, forno Siemens de 90 cm, uma placa vidrocerâmica Siemens com quatro bocas de indução, domino 2 vidrocerâmico Siemens, triturador Fraza, chaminé/exaustor inox Best, um conjunto de quatro tachos, duas panelas Artame de indução, cinco sertãs e um wook;
n) lavandaria composta de uma máquina de secar roupa Siemens, um esquentador Junker de 14 litros, dois baldes de plástico, dois cestos da roupa plásticos, dois estendais, um carrinho;
o) um fogão de sala dupla face;
p) quatro ar condicionados Samsung Prestige 9000;
q) um ar condicionado Samsung Prestige cassete 9000;
r) um ar condicionado Samsung Prestige 18000.
6. No circunstancialismo enunciado em 2), as preditas frações e os bens descritos em 5) foram entregues aos Réus em bom estado de conservação, sendo que os mesmos entregaram aos Autores a quantia de 850,00€ a título de “caução”, consignando-se que a mesma “será restituída aos segundos outorgantes logo após a cessação do contrato e no caso do imóvel e móveis, eletrodomésticos e artigos de decoração que fazem parte do arrendamento se encontraram em bom estado de conservação e funcionamento.”.
7. Em dezembro de 2019, os Réus remeteram uma missiva para os Autores, na qual enunciaram que o contrato de arrendamento cessaria em 30/04/2020.
8. Após, os Réus declararam solicitar aos Autores um adiamento da entrega das frações até 31 de julho de 2020, o que os Autores declararam aceitar.
9. Em 31 de julho de 2020, os Réus entregaram aos Autores as sobreditas frações e bens.
10. No circunstancialismo indicado em 9), verificou-se que:
a) na Sala de Estar/Jantar: o pavimento apresentava riscos e manchas e queimaduras em frente do fogão de sala; as paredes tinham manchas de lixivia, furos e pregos; o fogão de sala tinha os tijolos refratários partidos, as carpetes estavam sujas; o armário/aparador apresentava riscos e o folheado em mau estado; a mesa de jantar estava arranhada e com manchas de calor; os sofás em tecido estavam com manchas e nódoas; o sofá elétrico em pele estava manchado e esfolado; a mesa de centro em madeira estava danificada, precisando de ser envernizada; o carrinho de chá inglês apresentava marcas que exigiam o seu envernizamento; o móvel aparador para TV tinha marcas na frente e no tampo superior; um dos estores mostrava sinais de ter sido reparado pelos arrendatários, mas de uma forma inadequada uma vez que as cintas foram mal aplicadas e ficaram à vista;
b) Na casa de banho do hall de entrada: a carpete estava suja, o que acontecia igualmente com as carpetes da casa de banho da suite principal e da casa de banho da suite júnior;
c) No hall de entrada: o móvel de pernas altas estava com o folheado arranhado; o banco corrido estava com a napa danificada; o chão estava danificado com riscos; as paredes estavam sujas e manchadas;
d) No hall dos quartos: o móvel Chinês estava manchado e marcado com riscos; o chão estava também danificado com riscos; e as paredes estavam sujas, manchadas e furadas;
e) Na suite com quarto de vestir: a cabeceira da cama de casal estava suja com manchas de gordura; as mesas de cabeceira apresentavam queimaduras; os bancos em pele tinham riscos de caneta; o chão estava danificado com riscos; as paredes sujas e manchadas; o armário/closet estava com as divisórias de madeira a descolar e a porta do quarto tinha a fechadura avariada;
f) Na casa de banho da suite, o tampo da sanita estava partido, o chão estava manchado e o móvel tinha as ripas danificadas;
g) No quarto de hóspedes: o chão estava danificado com riscos; as paredes estavam sujas, manchadas de lixivia e com furos; as camas de estilo inglês tinham os pinos partidos; a porta do roupeiro estava empenada e amassada; e o apainelado da janela apresentava marcas de calor e de água;
h) Na suite júnior: as cabeceiras das camas em pele estavam totalmente rasgadas, o chão estava danificado com riscos; as paredes estavam sujas, manchadas e com furos; o apainelado da janela apresentava marcas de calor e de água;
i) Na casa de banho da suite júnior: a porta do quarto tinha a fechadura danificada e amolgada e o teto estava manchado;
j) No quarto mobilado como escritório: o chão estava danificado com riscos; as paredes estavam sujas, manchadas de lixívia e com furos; o roupeiro estava empenado; e o apainelado da janela apresentava marcas de calor e de água;
k) Na cozinha: o frigorifico tinha as prateleiras interiores partidas; o fogão tinha a porta do forno empenada; os tabuleiros interiores do forno estavam empenados;
l) as carpetes apresentavam-se sujas.
11. O enunciado em 10) foi provocado pelos Réus entre 01 de janeiro de 2017 e 31 de julho de 2020.
12. Os Autores declararam comunicar aos Réus o enunciado em 10) no antedito circunstancialismo.
13. O custo de reparação do referenciado em 10) estima-se em:
a) Pintura das paredes: 3.444,00€;
b) Reparação do pavimento: 14.000,48€;
c) Limpeza Geral do apartamento: 713,40€;
d) Lavagem de Carpetes: 436,50€;
e) Estufagem de sofás: 3.550,00€;
f) Reparação de móveis danificados: 400,00 €;
g) Limpeza e polimento da superfície dos móveis: 700,00€;
h) Substituição de móveis sem reparação possível: 3.720,00€;
i) Reparação do fogão de sala: 555,47€;
j) Substituição de tampo de sanita: 102,09€;
k) Reparações diversas de carpintaria: 239,85€;
l) Substituição de peças estragadas no frigorífico: 148,07€;
m) Substituição do forno por não ser possível reparar ou substituir as peças danificadas: 1.270,00€.
14.Em 10 de agosto de 2020, os Autores remeteram um email para os Réus, declarando comunicar aos mesmos os valores referidos em 13).
15. Em 22/12/2020, por escrito particular autenticado, AA e mulher BB declararam vender a EE e mulher FF, que declararam comprar, as frações autónomas indicadas em 1), incluindo o mobiliário, pelo preço global de 290.000,00€ (duzentos e noventa mil euros).
B) Factos não provados
16. Os Réus despenderam as seguintes quantias com referência às preditas frações autónomas:
a) Reparações constantes dos autoclismos, 200,00 €;
b) Reparação dos armários das casas de banho, 70,00 €;
c) Reparação do sistema e substituição das lâmpadas da sala, cozinha e escritório, 300,00 €;
d) Reparação do frigorífico, 30,00 €;
e) Reparação do ar condicionado, 80 €;
f) Colocação de fechaduras e puxadores nas portas do escritório e de 2 quartos, 250,00€;
g) Aplicação de lâmpadas “LED” em todo o apartamento, 100,00€;
h) Arranjo das prateleiras de suporte do roupeiro de um quarto, 50,00€;
i) Reparações dos estores, 250,00€.
j) Substituição do forro das cadeiras da sala de juntar, 200,00€.»

5. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. D) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
A ampliação do âmbito do recurso foi suscitada nos termos do nº 2 do art.º 636º do CPC, significando isso que foi deduzido a título subsidiário. Assim, incumbe apreciar primeiro o recurso principal e, só na sua procedência, se passará a conhecer da pretendida ampliação.
No caso, são então as seguintes as QUESTÕES A DECIDIR:
· Quanto ao recurso principal:
> Se os Autores carecem de legitimidade substantiva para a indemnização aqui pretendida;
> Em função do que se decidir nessa questão, qual as repercussões em termos da decisão
· Quanto à ampliação do âmbito do recurso:
> Se os factos provados sob os pontos 10 e suas alíneas, 11 e 13 e suas alíneas, devem passar a não provados;
> Concluindo-se pela afirmativa, qual a repercussão em sede de direito, dessa alteração à matéria de facto.

5.1. Recurso principal: da (i)legitimidade substantiva para a indemnização aqui pretendida
Como bem dizem os Autores Recorrentes, todos os factos por si alegados foram considerados provados, bem como os pressupostos da responsabilidade civil; a ação foi julgada improcedente com fundamento na sua ilegitimidade substantiva.
Para melhor se perceber essa improcedência, é oportuno transcrever parcialmente a fundamentação jurídica da sentença:
«In casu, conclui-se que a factualidade descrita em 10) a 13) atesta que os Réus danificaram o apartamento, o mobiliário e eletrodomésticos objeto de arrendamento, inobservando, assim, a obrigação de restituição do arrendado em bom estado de conservação.
Ademais, certifica-se que a reparação dos sobreditos danos é estimada no valor global de 29.279,86€, decaindo o direito de compensação alardeado pelos Réus.
Porém, constata-se que, em 22/12/2020, por escrito particular autenticado, AA e mulher BB declararam vender a EE e mulher FF, que declararam comprar, as frações autónomas indicadas em 1), pelo preço global de 290.000,00€.
Infere-se, assim, que, no decurso da lide, os Autores venderam as sobreditas frações autónomas, incluindo o mobiliário, pelo que não titulam o direito de propriedade atinente aos mesmos.
(…)
Em concatenação como sobredito, um dos segmentos constitutivos do exercício jurídico reconduz-se à legitimidade substantiva, a qual é a qualidade de um sujeito que o habilite a agir no âmbito de uma situação jurídica considerada (vd. A. Menezes Cordeiro, ob. Cit, p. 27 e ss.), a suscetibilidade de uma pessoa exercer um direito ou cumprir uma vinculação resultante de uma relação existente entre essa pessoa ou a vinculação em causa (vd. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, I, 2.ª edição, p. 137-138, Universidade Católica Editora).
(…)
Subsumindo os enunciados supra à situação concreta, aferindo-se que os Autores não titulam hodiernamente o direito de propriedade das preditas frações autónomas e mobiliário, conclui-se que não possuem legitimidade substantiva para impetrar o ressarcimento da respetiva reparação, sendo que a matéria aflorada pelo Autor na audiência da repercussão no preço da venda sobre-excede os poderes de cognição e pronúncia do Tribunal, porquanto não foi alegada nem na petição inicial, nem em articulado superveniente.
Destarte, postula-se a improcedência integral da ação.»
A legitimidade substantiva é apreciada à luz das regras substantivas, de direito material. Quando ela não se verifica, a consequência é a improcedência do pedido (decisão de mérito).
Isto porque a legitimidade substantiva está relacionada com a titularidade do direito. O Tribunal só pode reconhecer um direito àquele a quem a lei o atribui. É em face da relação jurídica trazida aos autos, e das normas jurídico-substantivas que regem o respetivo instituto, que o Tribunal vai apurar se é o Autor o titular dessa relação jurídica de direito material.
Como tal, a legitimidade substantiva contende com o mérito da ação, ou seja, com a decisão que há que proferir a final reconhecendo ou não o direito que o Autor se arroga, concedendo ou denegando a providência requerida. [1]
No caso, a ação foi instaurada em 31/08/2020 e deu-se como provado que os Autores venderam o imóvel e os móveis em 22/12/2020.
Uma relação humana assume relevância jurídica na medida em que for disciplinada pelo Direito. É certo que a indemnização por danos causados em bens móveis e imóveis, por regra apenas pode ser atribuída aos respetivos proprietários, por serem eles quem detém a qualidade de lesados.
Os danos invocados na ação foram provocados na vigência do contrato de arrendamento, altura em que os Autores ainda eram os proprietários; o imóvel e os móveis eram bens próprios, a eles pertencentes. Sendo assim, o mesmo se deve entender quanto ao direito ao ressarcimento.
A causa de pedir reside num contrato de arrendamento, pelo que nos situamos no domínio do direito das obrigações/direito de crédito. [2]
Os Autores apenas transmitiram a coisa (imóvel e móveis); não transmitiram o seu direito de crédito (uma eventual indemnização pelos danos causados).
Assim, temos de concluir pela sua legitimidade ad causam, pois se trata de direito próprio, porque produzido diretamente na sua pessoa ou esfera jurídica, direito esse que não se transmite juntamente com a venda da coisa.
Salvo o devido respeito, cremos que na sentença se confundiu a questão com as denominadas obrigações reais ou propter rem, as quais se consideram integradas no direito real de propriedade, bem como do problema da sua ambulatoriedade, ou seja, se são transmissíveis automaticamente em conjunto com a transmissão do direito real.
Sobre esta temática, partilhamos da opinião de Manuel Henrique Mesquita [3] de que são ambulatórias as prestações de facere, isto é, as que imponham atos materiais sobre a coisa, devendo considerar-se as outras, inclusive as prestações pecuniárias como não ambulatórias.
Com pertinência, refere esse autor, a pág. 337: «Analisando as várias situações em que o problema pode suscitar-se e agrupando-as em função de certas afinidades ou elementos comuns, verifica-se que a dívida propter rem representa, em muitos casos, o correspetivo de um uso ou fruição que couberam ao alienante, devendo ser este, por conseguinte, a suportar o custo do gozo que a coisa lhe proporcionou (uiús commoda, eius incommoda); noutros casos, a prestação debitória destina-se a custear actos que foram já praticados no objecto do direito real e que lhe aumentaram o valor ─ aumento este que, normalmente, se repercute no preço da alienação, pelo que seria de todo injustificável libertar o alienante do dever de pagar uma quantia de que, bem vistas as coisas, se encontra já ressarcido; noutros casos, finalmente, trata-se de obrigações periódicas (em regra, pecuniárias), ou de obrigações de indemnização que a lei impõe, independentemente de culpa, ao titular de um direito real, e não dispondo o subadquirente de elementos para saber se o alienante cumpriu todas as obrigações relativas ao tempo em que foi titular do direito, nem se justificando, por outro lado, que se lhe imponha o ónus de proceder a averiguações sobre tal ponto, essas obrigações devem continuar a ter o alienante como devedor exclusivo.»
Na mesma linha, outros exemplos idênticos podem ser dados: um incumprimento contratual dos arrendatários por falta de pagamento de rendas, em que o respetivo crédito pelas rendas em dívida residiria sempre na esfera jurídica do senhorio, mesmo no caso de venda do imóvel (exemplo dado pelos Recorrentes); ou o caso de dívidas de condomínio, contraídas antes da alienação, que são sempre da responsabilidade do alienante, não se transmitindo para o adquirente.
Ora, feitas as decidas adaptações (considerando que o exemplo é aí dado como sendo o anterior proprietário o devedor, quando aqui os Autores comparecem como credores), é exatamente o caso idêntico ao dos autos. [4]
Independentemente do destino posterior do imóvel e dos móveis, os Autores continuam a ser os titulares da relação material controvertida, fundada num contrato de arrendamento em que foram outorgantes; essa relação contratual permanece res inter alios quanto aos subadquirentes.
Para finalizar, mas não menos importante, acresce que a ilegitimidade ad causam não é de conhecimento oficioso [5] pelo que, não tendo sido suscitada pelas partes, não podia o Tribunal tomar dela conhecimento.
Face ao que acaba de se concluir, a decisão da 1ª instância não pode manter-se e haveria que proceder à respetiva reponderação.
Contudo, há um recurso de ampliação do âmbito do recurso, a implicar reapreciação da matéria de facto. E tal, mais uma vez, pode ter repercussão na matéria de direito, pelo que incumbe conhecer, agora, primeiro desse recurso.

5.2. Quanto à ampliação do âmbito do recurso
5.2.1. Reapreciação da matéria de facto: se os factos provados sob os pontos 10 e suas alíneas, 11 e 13 e suas alíneas, devem passar a não provados
Como resulta da motivação/análise crítica plasmada na sentença aqui questionada, a prova de tais factos resultou das “declarações do Autor AA e das testemunhas GG, HH, II, JJ, KK e LL, em concatenação com a ata de entrega de imóvel, móveis e eletrodomésticos e a relação de bens anexa, as fotografias, os orçamentos e os emails, inexistindo contraprovas sustentáveis”.
Abandonado o sistema da prova legal, o princípio da livre apreciação da prova mostra-se consagrado entre nós no art.º 607º nº 5 do CPC em termos de: “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
Significa isto que, à partida e como regra, todos os meios de prova têm idêntico valor, cometendo-se ao julgador a liberdade da sua valoração.
Só assim não será __ e daí a ressalva da 2ª parte do nº 5 do art.º 607º __, nos casos da denominada prova vinculada, em que a lei vincula o julgador a determinados aspetos ou resultados dos meios de prova. [6]
Iniciamos a nossa análise pelos documentos juntos aos autos.
Consta da cláusula 7ª do contrato de arrendamento que os Réus reconheciam que o imóvel “se encontra em bom estado de conservação”, comprometendo-se a restituí-lo “em perfeitas condições de utilização e no mesmo estado em que se encontra”.
No que toca à ata de entrega do imóvel, verifica-se que a mesma foi assinada pelos Autores, pelos Réus e por um agente de uma imobiliária. Aí se fez consignar que “foi verificado o estado do imóvel bem como os móveis, eletrodomésticos e artigos de decoração entregues em perfeitas condições (…), após a inspeção identificou-se na listagem anexa composta por 8 folhas o resultado da mesma bem como nesta data se realizou também um registo fotográfico”. Segue-se uma listagem com os mais vários items (móveis e aspetos do imóvel, como chão, paredes, portas, etc.) ao lado de cada um deles um campo para “conforme” e “desconforme” e um outro para “observações”.
Estes documentos foram juntos com a petição inicial. Na sua contestação, os Réus não impugnaram, nem a letra, nem a assinatura destes documentos. Na verdade, limitaram-se a referir que “na sua boa fé assinaram o documento em causa sem prestar atenção ao que dele mais constava” e que “No texto da dita acta não é feita qualquer alusão a estragos que os DEMANDADOS tenham causado no arrendado ou nos móveis que lhes foram dados em arrendamento”.
Decorre do art.º 374º nº 1 do Código Civil (CC) que a letra e a assinatura de um documento particular se consideram verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado.
E, nesse caso de reconhecimento ou falta de impugnação, o documento particular faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor: art.º 376º nº 1 do CC.
Nesta medida, e por força das regras enunciadas, o Tribunal ficou vinculado a considerar que o imóvel “se encontra em bom estado de conservação”, e que os Réus se comprometeram a restituí-lo “em perfeitas condições de utilização e no mesmo estado em que se encontra”, bem como quanto ao que se mostra consignado na ata de entrega do imóvel, e respetiva listagem dos bens.
Quanto ao alegado pelos Réus na contestação, se “assinaram o documento em causa sem prestar atenção ao que dele mais constava”, em nada releva pois, como costuma dizer-se, sibi imputet, si, quod saepius cogitare poterat et evitare, non fecit. [7]
Acima de tudo, não é verdade quando dizem que “No texto da dita acta não é feita qualquer alusão a estragos que os DEMANDADOS tenham causado no arrendado ou nos móveis que lhes foram dados em arrendamento”.
Fácil é verificar que no campo “observações”, ao lado de cada item, e sempre que se assinala “desconforme”, se refere a razão, como por exemplo: “arranhado”, “limpeza”, “manchado” “riscado danificado”, “manchas e pregos”, “forrar de novo”, “colado e partido”, etc.
Não foi arguida a falsidade do documento (art.º 376º nº 1, in fine, do CC).
Concluindo, face à prova plena resultante destes documentos, nem seria possível/necessário o recurso à prova testemunhal. O facto 10, e suas alíneas, tem de considerar-se provado. [8]
Quanto ao facto 13 (estimativa do custo da reparação).
Na petição, os Autores juntaram o documento nº 11, um orçamento com o descritivo de tudo o que era necessário reparar/substituir. Mais uma vez, tal documento não foi impugnado. [9]
Não se tratando agora de força probatória plena, já que o documento não foi subscrito/assinado pelos Réus, o certo é que o mesmo constitui um meio de prova bastante, porque oriundo de quem tem as legis artis para tal orçamentação.
E nenhuma contraprova foi produzida para contrariar o seu valor (art.º 346º do CC).
Quanto ao facto 11, trata-se de saber se os danos referidos no facto 10 foram provocados pelos Réus durante o tempo que vigorou o arrendamento.
Descontando os casos da dita prova vinculada, em que a lei impõe ao julgador determinados aspetos ou resultados dos meios de prova na formação da sua convicção (art.º 607º nº 4 e 5 CPC), o juiz deve julgar segundo as regras da experiência.
As regras da experiência são um conceito aberto, que faz apelo a padrões da normalidade, àquilo que acontece na grande maioria dos casos, no sentido de que em circunstâncias idênticas o ser humano tende a ter um comportamento idêntico.
A verdade processual pode não coincidir com a verdade material, mas deve aspirar-se e procurar-se um alto grau de probabilidade ou, pelo menos, que nesse juízo de probabilidade o facto tido por provado se afigure mais consentâneo com a realidade do que a realidade inversa.
Nessa operação racional, crítica e dialética, não pode deixar de se formular juízos de relação entre factos, as ditas presunções judiciais, no sentido de que uns consubstanciam a possibilidade de afirmação da existência de outros.
«Na transição de um facto conhecido para a aquisição ou para a prova de um facto desconhecido, têm de intervir as presunções naturais, como juízos de avaliação, através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam, fundadamente, afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não, anteriormente, conhecido, nem, diretamente, provado, é a natural consequência ou resulta, com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido». [10]
Essas mesmas regras da experiência também nos ensinam que o ser humano não é “padronizado”, pelo que o “inverosímil” pode muitas vezes acontecer. Porém, nesses casos, exatamente porque estamos fora das regras da “normalidade”, será necessária a demonstração/explicação dessa “diferença”, que a pessoa tem essa faceta de personalidade/temperamento ou que, para determinado acontecimento ocorreram circunstâncias anómalas.
Ora, nesse juízo de probabilidade, tendo-se por provado que os Réus receberam o imóvel/móveis em bom estado de conservação, que foram eles que os utilizaram durante os cerca de 3 anos e meio da vigência do arrendamento, lógica e racionalmente que só a eles pode ser imputado o estado dos bens. A acrescer, os Réus não alegaram sequer que os estragos tivessem sido causados por outrem, o que também seria indiferente, dado que estando os bens a seu cargo por força do contrato de arrendamento, a eles competia a respetiva guarda e conservação.
Concluindo, nada há a alterar quanto à matéria de facto considerada na 1ª instância.

5.3. Recurso principal e ampliação do âmbito do recurso: subsunção dos factos ao direito
No domínio da responsabilidade contratual, e desde que não desrespeitem leis imperativas, é permitida às partes a livre fixação do conteúdo dos contratos (designadamente, pela junção de regras de um ou mais negócios previstos na lei), os quais, uma vez firmados, devem ser pontualmente cumpridos: art.º 405º e 406º nº 1 do CC.
Os litígios decorrentes dessas relações jurídicas podem derivar do dever de prestar (quando se pretende o cumprimento de uma obrigação assumida) ou do dever de indemnizar (situação em que, perante um incumprimento da obrigação, se almeja a indemnização correspondente ao inadimplemento).
Nessa medida, conforme se esteja perante uma ação de cumprimento ou perante uma ação de indemnização, serão diversas a causa de pedir e o pedido: naquela, há apenas que demonstrar a estipulação da obrigação/prestação [11] e o seu incumprimento, pedindo-se a condenação no seu cumprimento; nesta, há que demonstrar os diversos pressupostos da obrigação de indemnizar: (i) ação ou omissão; (ii) existência de um dano ou prejuízo; (iii) nexo de causalidade entre o comportamento ilícito e o dano e (iv) culpa do agente: art.º 798º ss e 562º ss do CC. [12]
No caso estamos perante uma ação de indemnização. Os factos são bem claros sobre o preenchimento desses pressupostos, que nos dispensamos de aqui escalpelizar, até porque tal já resulta da sentença recorrida.
Os danos estão provados. Mas tal não é bastante, tornando-se necessário apurar se eles resultam de uma utilização imprudente, ou, ao invés, de um desgaste normal de utilização.
Na verdade, tem-se entendido que «O locatário pode efectuar pequenas deteriorações necessárias para assegurar o seu conforto e comodidade e as inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com o fim do contrato.» [13]
Neste âmbito, para além do estipulado pelas partes no contrato, há que chamar à colação os preceitos legais que regem sobre a matéria.
É que, atendendo às especificidades dum arrendamento e do uso da coisa, tendencialmente por largos períodos, a lei fez consignar o seguinte:
· por um lado, a obrigação do locatário de não fazer da coisa uma utilização imprudente [art.º 1038º al. D) do CC];
· por outro lado, a obrigação de manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato (art.º 1043º nº 1 do CC).
Estamos no domínio dos conceitos indeterminados, a convocar apreciação caso a caso, numa ponderação da justa medida das coisas e em função duma conduta equivalente à diligência de um bom pai de família. [14]
Em anotação ao art.º 1043º, comentam Pires de Lima e Antunes Varela que o mesmo deve ser relacionado com o art.º 1092º (hoje, art.º 1073º): «O artigo 1043º refere-se às deteriorações resultantes duma prudente utilização da coisa locada; são estas que não são da responsabilidade do arrendatário. O artigo 1092º refere-se às deteriorações realizadas voluntariamente pelo inquilino; estas são da sua responsabilidade, devendo fazer as reparações necessárias antes da entrega do prédio. (…)
O artigo 1043º tem manifestamente em vista as deteriorações provenientes do uso (bom ou mau, prudente ou imprudente) da coisa. Quanto às deteriorações provenientes de uma utilização normal da coisa, conforme aos fins do contrato, isenta-se o locatário de as reparar na altura em que restitui a coisa locada.» [15]
Quanto às deteriorações lícitas (hoje reguladas no art.º 1073º) ─ que, não obstante, obrigam à respetiva reparação ─ Pires de Lima e Antunes Varela exemplificam: «as pequenas deteriorações voluntariamente feitas para assegurar o conforto ou a comodidade do arrendatário, sendo reparáveis, não contrariam a regra da utilização prudente do prédio (…). Tais são, por exemplo, a introdução, nas paredes, de canos para o aquecimento, a colocação de antenas ou de postes para rádio ou televisão, a introdução de suportes nas paredes para a colocação de espelhos, retratos, armários, etc., a abertura de uma janela ou de um postigo, lícitas o rasgamento, de uma porta, etc.» [16]
No mesmo sentido, Francisco Pereira Coelho: «Conforme vimos atrás (…), o inquilino é obrigado, nomeadamente, a restituir o prédio ao senhorio com a mesma estrutura externa e a mesma disposição interna das divisões (art.º 1093.º, al. D)), e a reparar, antes da restituição, as deteriorações que tenha causado, quer as resultantes de uma utilização imprudente do prédio (art.º 1043.º, a contr.), quer as pequenas deteriorações necessárias para assegurar o seu conforto e comodidade (art.º 1092.º). Não é obrigado, porém, a reparar as deteriorações inerentes a uma prudente utilização nem as resultantes do desgaste do tempo.» [17]
Em termos jurisprudenciais: «I – Ocorrendo na vigência de um contrato de locação deteriorações inerentes a uma utilização prudente da coisa locada, o locatário não tem de promover a sua recuperação, cabendo ao locador suportar as consequências desse desgaste.
II – Ocorrendo perda ou deteriorações que não possam ser consideradas como resultado de uma utilização prudente, responde por elas o locatário, salvo se resultarem de causa que lhe não seja imputável, nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização da coisa.
III – Esta responsabilidade do locatário pressupõe a sua culpa, que, em todo o caso, se presume.
IV – Cabe, por isso, ao locatário o ónus da prova dos factos impeditivos da sua culpa.» [18]
Do que vimos de referir, resulta poder concluir-se com segurança que os arrendatários só não são responsáveis quanto às deteriorações resultantes do desgaste do tempo e as inerentes a uma prudente utilização.
Todas as demais, mesmo aquelas que foram efetuadas para assegurar o conforto ou comodidade, importam responsabilidade para o locatário, seja pelo dever de as reparar antes da restituição do prédio, seja pela obrigação de indemnizar, no caso dessa reparação não ser feita.
Incumbe então analisar os diversos danos, referidos no facto provado nº 10, para averiguar se algum deles pode ser considerado resultante do desgaste do tempo e/ou de prudente utilização, única situação em que não é de imputar responsabilidade aos Réus.
E, olhados esses danos, consideramos que nenhum deles se pode considerar resultante do desgaste do tempo. Ao contrário, todos são caraterísticos duma utilização imprudente e descuidada. E, mesmo nos casos em que tivessem sido efetuados para assegurar o conforto ou comodidade (exemplo dos furos e pregos nas paredes, que se podem perspetivar como para pendurar quadros, por exemplo), o certo é que não foram reparados, como se impunha, pelo que devem agora os Réus responder por eles.
Consequentemente, deve a ação proceder, responsabilizando-se os Réus pelos prejuízos causados.

6. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO
7. Pelo que fica exposto, no provimento da apelação, e improcedência do âmbito do recurso, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em revogar a sentença recorrida, condenando-se agora os Réus a pagar aos Autores, solidariamente, a quantia de 29.279,86 € (vinte e nove mil, duzentos e setenta e nove euros e oitenta e seis cêntimos), a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, contados desde a data da citação até integral e efetivo pagamento.
Custas a cargo dos Réus, face ao decaimento na ação e nos recursos.

Porto, 10 de novembro de 2022
Isabel Silva
João Venade
Paulo Duarte Teixeira
______________
[1] Acórdão da Relação do Porto (TRP), 2021-10-04, Processo nº 1910/20.4T8PNF.P1, Relatora Eugénia Cunha, disponível em disponível em www.dgsi.pt//, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem:
«II - A legitimidade substancial ou substantiva respeita à efetividade da relação material. Prende-se com o concreto pedido e a causa de pedir que o fundamenta e, por isso, com o mérito da causa, sendo requisito da procedência do pedido. A verificação da ilegitimidade substantiva leva à absolvição do pedido.
III - Apesar de a Autora ser dotada de legitimidade ativa, pressuposto processual já considerado, pacificamente, verificado, em termos tabelares, no despacho saneador, bem decidida se mostra a questão diversa, da falta de legitimidade substantiva, dada a manifesta falta do direito que pretende fazer valer e a manifesta inviabilidade das pretensões, por resultar dos autos se não ter gerado o dano na sua esfera jurídica, mas na de terceiro, proprietário do imóvel objeto do incêndio, nada podendo obter para si relativamente a reparação/indemnização relativa a imóvel alheio.»
E, ainda, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 2021-03-18, Processo nº 572/19.6T8OLH.E1.S1, Relator Tibério Nunes da Silva:
«III - Há que distinguir a legitimidade enquanto pressuposto processual (art.º 30.º do CPC), que se afere pelo modo como a relação controvertida é configurada pelo autor, da legitimidade substantiva ou material, que se prende com a titularidade de um direito, respeitando, assim, ao mérito da causa.
IV - Sendo um dos requisitos da responsabilidade civil a violação do direito de outrem (uma das modalidades da ilicitude), é necessário que quem pede que lhe seja paga uma indemnização demonstre ser titular do direito violado, sob pena de se concluir que carece de legitimidade (substantiva) para o efeito.»
[2] Os quais carecem da característica do caráter absoluto, típico dos direitos reais. O direito de crédito aqui acionado não contende com a violação do estatuto de um direito real.
[3] In “Obrigações Reais e Ónus Reais”, Almedina, 1990, pág. 330 a 350. »
[4] Aliás, como consta da motivação da matéria de facto, terá sido esse o caso; aí se refere que a testemunha GG, consultor imobiliário que interveio na venda, referiu que o preço inicial do apartamento era de 315 mil euros, mas tendo sido aceite a proposta de 290 mil euros, considerando um decréscimo de 25/30 mil euros por causa dos danos.
[5] Acórdão do STJ, de 29/10/2015, processo nº 915/09.0TVPRT.P1.S1, Relator Orlando Afonso.
[6] São os casos, por exemplo, do valor probatório dos documentos autênticos (art.º 371º do CC) ou o da confissão (art.º 358º CC).
[7] Tradução livre: só se deve culpar a si próprio por não ter feito algo que poderia ter previsto e evitado.
[8] Art.º 347º do CC: A prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objeto, sem prejuízo de outras restrições especialmente determinadas na lei.
[9] Os Réus impugnaram os factos alegados, mas não o documento.
[10] Acórdão do STJ, de 21.06.2016, processo 2683/12.0TJLSB.L1.S1, Relator: Hélder Roque.
[11] A obrigação só se tem por cumprida se, e quando, a prestação a que se vinculou se mostrar integralmente realizada, no tempo e lugar próprios: art.º 762º nº 1 e 763º nº 1 CC.
[12] Como refere Calvão da Silva, “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, 4ª edição, Almedina, pág. 137/138, a ação de cumprimento integra uma ação declarativa de condenação (direitos subjectivos, portanto), mediante a qual «(...) o credor pretende provar a existência e a falta de cumprimento da obrigação e obter sentença condenatória do devedor que lhe ordene o exacto cumprimento da prestação por si devida.».
No mesmo sentido, Nuno Manuel Pinto de Oliveira, “Princípios de Direito dos Contratos”, Coimbra Editora, 2011, pág. 594: «A acção de cumprimento e a acção de indemnização dos danos causados pelo não cumprimento do contrato devem representar-se como acções autónomas — a acção de cumprimento não depende da ilicitude do facto, ou da culpa do autor do facto, ou do dano ou do nexo de causalidade entre o facto e o dano ou prejuízo; a acção de indemnização, sim — depende da ilicitude, da culpa e do dano ou prejuízo.».
[13] Acórdão do STJ, de 26/11/1996, processo nº 96A491, Relator Aragão Seia.
[14] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. II, Coimbra Editora, 3ª edição revista e atualizada, 1986, pág. 393/394.
[15] Obra citada, pág. 403/404.
[16] Obra citada, pág. 542.
[17] “Arrendamento, Direito Substantivo e Processual”, 2016, in Revista Eletrónica de Direito, pág. 121, disponível em https://cije.up.pt/client/files/0000000001/pereira-coelho-arrendamento_545.pdf
[18] Acórdão do STJ, de 21/11/2019, processo nº 4672/16.6T8LRS.L1.S2, Relatora Rosa Ribeiro Coelho.