ELEMENTO VOLITIVO
ACUSAÇÃO
OMISSÃO
Sumário

Constando da acusação que o arguido agiu de forma livre ou seja sem coação, voluntária, no sentido de provir de um acto controlado pela vontade, assim, se excluindo as actuações involuntárias, como espasmos ou tiques, e consciente, porque ciente da punibilidade da conduta, a fórmula empregue na acusação indica com clareza o que efetivamente foi querido pelo agente.
Mostram-se aí descritos os elementos materiais constitutivos do tipo objetivo de ilícito e, a par destes, dos respetivos elementos subjetivos, com suficiente caracterização de um dolo direto e duma actuação culposa do arguido, traduzidos estes na vontade de realização do facto típico e numa atitude de indiferença face à norma que impõe a obtenção e detenção de carta de condução válida para conduzir veículo automóvel na via pública.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
 
I. Relatório
1. Foi deduzida acusação contra VM_____ pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro.
2. Por considerar que a acusação era omissa quanto ao elemento volitivo do dolo, por despacho de 3 de Março de 2022, a Senhora Juíza julgou a mesma manifestamente infundada, rejeitando-a, nos termos do n.º 2 do artigo 311.º do Código de Processo Penal. 
3. Discordando do despacho proferido, o Ministério Público interpôs recurso com as seguintes conclusões da motivação:
“1.  (…) 
2. Ao invés do alegado pelo Tribunal a quo, o despacho de acusação proferido cumpre, na íntegra, o disposto no art.º 283.º n.º 3 do Código Processo Penal, uma vez que narra, ainda que sinteticamente, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.
3. O crime de condução de veículo sem habilitação legal consuma-se a título doloso, sendo que, ao invés do defendido pelo Tribunal a quo, analisado o despacho de acusação recusado resulta, de forma clarividente, que se encontram descritas, de forma sistemática, todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo, uma vez que ali é descrito, de forma peremptória, que o arguido conduziu uma viatura, num determinado dia, hora e local, bem sabendo que não era titular de carta de condução ou outro título que lhe permitisse a respectiva condução e que o fez de forma voluntária e/ou deliberada, razão pela qual se conclui, forçosamente, que ao actuar da forma descrita, ponderou reflectidamente na conduta suprarreferida, actuando, de acordo com essa pretensão, desejando atingir esse fim, o qual concretizou. 4. De salientar que, ao enunciar, no despacho de acusação, por um lado, que o arguido “...conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-.., quando foi sujeito a fiscalização rodoviária...” sendo que, “...efectuava a condução de tal veículo sem ser titular de carta de condução ou qualquer outro documento que legalmente lhe permitisse conduzir o mesmo na via pública.”, por outro, que ao fazê-lo "...agiu consciente e voluntariamente...” e por fim, que “…Sabia ser a sua conduta proibida e punida por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação ...”, conclui-se, necessariamente, que o Ministério Público pretendeu, de forma cristalina, concretizar que aquele assumiu a factualidade que lhe é imputada, ou seja, conduzir a viatura na via pública, com o intuito concretizado de o efectuar, de forma ponderada e reflectida, ou seja, com todos os elementos subjectivos do tipo legal.
5. Concomitantemente, no despacho de acusação é, de igual forma, referido que o arguido actuou de forma livre, na medida em podendo actuar de outra forma optou por assumir os factos ora em análise, e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida, isto é, com consciência da ilicitude.
6. Em nosso entendimento, analisado o teor do despacho de acusação, não se consegue perspectivar ou sequer conjectuar que a actuação do arguido, aquando da prática dos factos, não fosse com a intenção concretizada de praticar o ilícito pelo qual veio acusado, sendo incompreensível e inexplicável entendimento ou interpretação diversa, na medida em que, quando alguém expressa que outrem, sabendo que vai incorrer na prática de um ilícito ao actuar de determinada forma, encontrando-se livre e consciente, assume tais comportamentos de forma voluntária/deliberada, de forma transparente pretende expor ou relatar que esse arguido actuou com dolo directo ao assumir determinado comportamento. (…).”
 
4. Não foi apresentada resposta ao recurso, nem ao parecer do Ministério Público nesta instância e no qual, concordando com os fundamentos já apresentados junto do tribunal recorrido, o Senhor Procurador-Geral Adjunto se pronunciou pela procedência do mesmo recurso. 
5. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência cumpre decidir.
 
II. Âmbito do recurso e identificação das questões a decidir
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões apresentadas, nas quais, de forma sintética e por referência à motivação do recorrente, são expostas as razões da discordância face à decisão recorrida (artigos 402º, 403º e 412º, n.º 1 do CPP). Tendo isso presente, no caso em apreço importa apenas decidir se a acusação deduzida pelo Ministério Público era omissa quanto ao elemento volitivo do dolo e se deveria ter sido rejeitada, como foi. 

III. Da decisão recorrida
Vejamos o teor do despacho recorrido.
“Nos presentes autos, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido imputando-lhe a prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do DL 2/98, de 3 de Janeiro.
Nos termos do disposto no artigo 311.º, do CPP, considerando a remissão do artigo 386.º do CPP, recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
Acrescenta o n.º 2 do citado normativo que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente rejeita a acusação se a considerar manifestamente infundada (al. a)), considerando-se como tal aquela que, além do mais, não contenha a narração dos factos (artigo 311.º, n.º 3, al. b), do CPP).
Relativamente ao estatuído na última alínea do n.º 3 do preceito acabado de citar, tem entendido a doutrina e a jurisprudência actuais que a rejeição da acusação somente pode ocorrer quando manifestamente inexistam factos que correspondam à prática de um ilícito criminal, i. e., quando diante do texto da acusação faltem elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante (neste sentido vide Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica, 2008, p. 791, n. 8, sublinhado nosso).
Do ponto de vista subjectivo, o crime de condução sem habilitação legal é um crime doloso.
Para que o dolo do tipo se afirme é necessário que o agente conheça, saiba, represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto.
Ou seja, para que se possa afirmar a actuação dolosa necessário se monstra que o “agente conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito”- Figueiredo Dias, Doutrina Geral do Crime, Lições do 3.º ano da Faculdade de Direito, Coimbra, 2001, pág. 90.- Elemento intelectual do dolo.
Mas o dolo não se basta com o conhecimento das circunstâncias do facto e da sua configuração jurídica, antes sendo igualmente necessário a “verificação no facto de uma vontade dirigida à sua realização” - o elemento volitivo do dolo do tipo, o qual pode assumir a forma de dolo directo, dolo necessário ou dolo eventual- artigo 14.º do CP.
O dolo directo “consiste na vontade intencional dirigida à realização do facto”, o dolo necessário consiste “na vontade dirigida à prática do facto, com todas as consequências necessárias” e o dolo eventual consiste “na conformação do agente com a prática do facto, com as suas consequências possíveis” - Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica, em anotação ao artigo 14.º.
Temos assim que embora o dolo exprima uma vontade, não se basta com esta. A conduta dolosa não dispensa a consideração da intensidade da relação dessa vontade com o resultado típico, no sentido da intenção correspondente (a qual, todavia, não se confunde com a motivação do agente). Dito de outro modo, o dolo afirma-se com a vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor.
Por outro lado, um facto ilícito só é punível se culposo, ou seja, se for reprovável porque o agente não “motivou na norma, sendo-lhe exigível, nas circunstâncias em que agiu, que nela se motivasse. Ao não se ter motivado na norma, quando poderia e lhe era exigível que o fizesse, o autor mostra uma disposição interna contrária ao direito
(...)
A culpabilidade representa, pois, um juízo de censura do agente por não ter agido em conformidade com o dever ser jurídico, embora tivesse podido conhecê-lo, motivar-se por ele e realizá-lo, mas significa também o conjunto de pressupostos desse juízo de reprovação jurídica. (...) - Germano Marques da Silva, Direito Penal Português Parte Geral, III, Verbo, páginas 149 a 150.
Da acusação e no que ao elemento subjectivo diz respeito, nele se incluindo quer o dolo do tipo quer a culpa, consta o seguinte:
“O arguido agiu consciente e voluntariamente. Sabia ser a sua conduta proibida por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
Assim, na acusação enuncia-se a culpa: o arguido agiu de forma livre (ou seja sem coacção), voluntária (no sentido de provir de um acto controlado pela vontade, assim, se excluindo as actuações involuntárias, como espasmos ou tiques) e consciente (porque ciente da punibilidade da conduta).
A acusação enuncia igualmente o elemento intelectual do dolo (o conhecimento de que a conduta é punida por lei.).
Mas, no que ao concerne ao dolo do tipo, a acusação é omissa na descrição de factos que configuram o elemento volitivo.
Ou seja, nada se diz se a realização do tipo é o fim último ou uma consequência necessária ou meramente eventual da conduta do arguido.
Em nosso entendimento não basta afirmar que a actuação foi voluntária, porque esta não esgota o sentido da ilicitude nem o sentido de desvalor, nos termos supra expostos.
Do mesmo modo, uma actuação dolosa, em qualquer uma das suas modalidades, seja por dolo directo, eventual ou necessário, pode não ser uma actuação culposa, por não ser possível afirmar que tenha havido um “uso indevido de uma vontade livre” pelo agente (artigo 20.º do CP) - cfr. Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Parte Geral, vol. II, Verbo, pág. 160.
O STJ no acórdão de fixação de jurisprudência 1/2015, publicado no DR, série I, de 27/01/2015, refere, exactamente a este propósito, que “A acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando- se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual).”- negrito nosso.
É que o dolo é um conceito jurídico que tem de ser preenchido por factos. Embora, a nível probatório, o dolo, enquanto facto interno, se possa deduzir dos factos externos, objectivos, tal não dispensa que tenha de constar da acusação.”- cfr. ac. da RC de 13.09.17, disponível em www.dgsi.pt.
Ora, conforme entendeu o STJ a “falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal”. (negrito nosso)
Pelo exposto, por ser omissa na descrição de factos essenciais, que não podem ser completados pelo Tribunal considerando a doutrina do AUJ 1/2015 atrás citado, não se recebe a acusação e ordena-se a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes.” 

Apreciação.
Como referido supra, o recurso interposto respeita apenas ao preenchimento do elemento subjectivo do tipo de crime imputado e que, apoiando-se na jurisprudência fixada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/15[1], a Senhora Juíza considerou imperfeitamente descrito na acusação. Em suma, defendeu o tribunal a quo que na acusação não constam factos que descrevam a modalidade do dolo que presidiu à conduta do arguido ou seja, que não resulta da mesma acusação se este actuou com dolo directo, dolo necessário ou dolo eventual.
Nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal, a acusação deve conter «A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a
aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada». Esta necessidade de descrição factual, tanto quanto possível completa, decorre da estrutura acusatória do processo penal, sendo a acusação (ou a pronúncia) que fixa o objecto do processo e delimita os poderes de cognição do tribunal. Tal exigência cumpre ainda uma função de garantia de defesa do arguido[2] - e de efectividade do exercício do contraditório. 
Nos n.ºs 2 e 3 do artigo 311.º do Código de Processo Penal, prevê-se a rejeição da acusação que o juiz tenha por manifestamente infundada, nomeadamente e no que releva para o caso, por não conter a narração dos factos imputados ao arguido.
Pronunciando-se sobre o poder do tribunal de julgamento para completar (ou não) a acusação a que faltem os elementos constitutivos do tipo subjectivo de ilícito, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015, fixou a seguinte jurisprudência:  
«A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art.º 358.º do Código de Processo Penal».
Em sede de fundamentação, consta também do mesmo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência que “(…) a acusação deve conter com a máxima precisão a descrição dos factos da vida real, os que configuram o acontecimento histórico que teve lugar e que correspondam aos elementos constitutivos do tipo legal de crime, tanto os do tipo objectivo de ilícito, como os do tipo subjectivo”. E, no que a estes respeita e, em concreto, quanto ao dolo e quanto aos elementos intelectual, volitivo e emocional que o integram, que “Tudo isso, que tradicionalmente se engloba nos elementos subjectivos do crime, costuma ser expresso por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter actuado de forma livre (isto é, podendo agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).” Ou seja, no mesmo acórdão admite-se que a descrição factual dos elementos subjectivos do tipo seja efectuada nos moldes em que o foi nos presentes autos.  
Como referido supra, a acusação deduzida pelo Ministério Público imputou ao arguido a autoria de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, com referência ao artigo 121.º, n.º 1, do Código da Estrada, constando da mesma a seguinte descrição factual:
“No dia 07/03/2021, pelas 00h50, na Rua Pio XII, na Amadora, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-.., quando foi sujeito a fiscalização rodoviária. 
Verificou-se, então, que o arguido efectuava a condução de tal veículo sem ser titular de carta de condução ou qualquer outro documento que legalmente lhe permitisse conduzir o mesmo na via pública. 
O arguido agiu consciente e voluntariamente. 
Sabia ser a sua conduta proibida por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.”.
Como consta do despacho recorrido, na acusação deduzida identificam-se, com clareza, os elementos objectivos do tipo - a condução de veículo automóvel na via pública, sem habilitação legal. 
No que ao elemento subjectivo diz respeito, reconheceu ainda a Senhora Juíza que a acusação contem factos relativos à actuação culposa do arguido que “(…) agiu de forma livre (ou seja sem coacção), voluntária (no sentido de provir de um acto controlado pela vontade, assim, se excluindo as actuações involuntárias, como espasmos ou tiques[3]) e consciente (porque ciente da punibilidade da conduta)”, mais enunciando o elemento intelectual dolo
Porém, referindo-se à incontestável natureza dolosa do crime de condução sem habilitação legal e dissertando sobre as modalidades do dolo, considerou a Senhora Juíza que a acusação era omissão quando ao elemento volitivo, uma vez que na mesma “nada se diz se a realização do tipo é o fim último ou uma consequência necessária ou meramente eventual da conduta do arguido”. Ora, se de forma livre e voluntária, o arguido conduziu veículo automóvel na via pública, sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei, nenhuma dúvida se nos oferece quanto à modalidade do dolo directo com que actuou. A problematização em torno do elemento volitivo do dolo efectuada no despacho recorrido apenas faria sentido se, no crime em causa e nas circunstâncias descritas, fosse possível, em termos de normalidade, configurar outras modalidades de dolo, o que não acontece[4].  
Assim, a fórmula empregue na acusação indica com clareza o que efectivamente foi querido pelo agente. Mostram-se aí descritos os elementos materiais constitutivos do tipo objectivo de ilícito e, a par destes, dos respectivos elementos subjectivos, com suficiente caracterização de um dolo directo e duma actuação culposa do arguido, traduzidos estes na vontade de realização do facto típico e numa atitude de indiferença face à norma que impõe a obtenção e detenção de carta de condução válida para conduzir veículo automóvel na via pública.
Acresce que nenhum outro facto se mostra necessário à compreensão da conduta imputada e à sua subsunção jurídica e ao exercício direito de defesa, inexistindo razões para julgar manifestamente infundada a acusação deduzida contra o arguido.
IV. Dispositivo
Por tudo o exposto, acordam os Juízes que compõem a 3ª Secção deste Tribunal da Relação de Lisboa em considerar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público ordenando seja proferido despacho que receba a acusação e designe julgamento. 
Sem custas. 
 (Acórdão elaborado pela relatora em suporte informático e revisto pelos signatários – artigo 94º, n.º 2 do Código de Processo Penal). 

Lisboa, 26 de Outubro de 2022.
Rosa Vasconcelos
Francisco Henriques
Maria da Conceição Miranda
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[1] Publicado no Diário da República a 27 de Janeiro de 2015.
[2] Na medida em que fora do âmbito do artigo 358º do Código de Processo Penal não pode ser surpreendido com novos factos ou com novas incriminações.
[3] Circunstâncias hipotéticas sem qualquer adesão à realidade, na medida em que a condução de veículo nunca poderia ocorrer em resultado das actuações involuntárias descritas no despacho recorrido, as quais sempre se teriam por excluídas.
[4] Por via de regra, a condução de veículo automóvel não é um fim em si, constituindo antes meio de deslocação de um lugar para outro, o que naturalmente não releva para a aferição da modalidade do dolo.