PEDIDO CÍVEL
PROCESSO CRIMINAL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
Sumário

Não se verificando o pressuposto da adesão do pedido cível ao processo criminal, carece o tribunal a quo de competência em razão da matéria para conhecer do pedido formulado pela demandante contra a arguida, por violação das regras de competência material do tribunal, o que constitui nulidade insanável, nos termos do art.º 119.º, alínea e), do CPP, suscetível de ser oficiosamente conhecida até ao trânsito em julgado da decisão final. (art.º 32.º, n.º 1 do CPP)
Nestes termos, deve julgar-se procedente a exceção dilatória de incompetência material do tribunal para conhecer o pedido civil deduzido, absolvendo-se a demandada da instância.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

No Juízo de Competência Genérica de … (J…) do Tribunal Judicial da Comarca de … corre termos o processo comum singular n.º 41/18.1T9ODM, tendo aí sido, após realização do julgamento, sido proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto supra, o Tribunal decide:

a - Absolver a arguida dos crimes pelos quais vinha imputada.

b - Condenar a arguida no pagamento à demandada da quantia de 28.216,95€, acrescida de 956,38€ de potência indevidamente tomada e encargos administrativos no valor de 70,70€, acrescida dos respectivos juros moratórios e vincendos, contados desde a citação até integral pagamento.”

Inconformada, AA interpôs recurso de tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“A - Verificação de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal; violação da presunção de inocência através da violação do princípio in dubio pro reo

1. O tribunal dá como provado que “Foi a arguida que, em data não concretamente apurada, mas certamente entre o período de 23-06-2014 a 07-07-2014, por si ou com colaboração de terceira pessoa não identificada, rompeu o selo da tampa do contador de electricidade e procedeu à ligação à rede eléctrica pública, obtendo, dessa forma, energia eléctrica para exclusivo consumo nesse espaço comercial, em prejuízo da queixosa identificada em 1.”

2. A Recorrente negou o facto de ter procedido, por si ou por interposta pessoa, à reposição ilegítima do contador.

3. Não foi produzida prova em sede de julgamento que contrarie a posição da Recorrente e demonstre que a Recorrente procedeu à religação.

4. Nem tampouco consta da acusação, do pedido de indemnização cível ou da douta sentença, as circunstâncias de modo como a Recorrente procedeu terá efectuado a religação à rede elétrica.

5. Contudo, a Mme. Juiz a quo, conclui que a Recorrente procedeu à ligação à rede eléctrica, “por si ou com colaboração de terceira pessoa não identificada” e que a Recorrente consumou efectivamente o consumo, em autoria material ou em autoria moral.

6. E suportada nesta convicção condena a Recorrente no pagamento do pedido de indemnização cível tal como deduzido pela Recorrida.

7. Sem indicar os elementos de prova onde se alicerçou para criar a sua convicção.

8. Para além do raciocínio de ser a Recorrente a única beneficiária da energia consumida, pelo que a única interessada, afastando assim qualquer outra possibilidade.

9. Sem considerar que a absolvição da Recorrente pela prática dos dois crimes de furto, por não haver sido feita prova da efectivação do primeiro corte - alegadamente ocorrido em 23.04.2013 - nem da intenção de apropriação da energia conforme alegado pela Recorrida, atesta a inexistência de ilicitude do comportamento da Recorrida e deveria antes concluir pela inércia da Recorrida na falta de facturação da energia,

10. No âmbito de um contrato que a Recorrida não produziu qualquer prova de haver rescindido ou disso ter informado a Recorrente.

11. Ora, na ausência de prova da efectivação do corte em 23.04.2013, cai por terra a imputação de consumo ilegítimo desde então até 07.07.2014, bem como o respectivo valor peticionado pela Recorrida, inexistindo fundamento para a condenação da Recorrente no pagamento da indemnização deduzida pela Recorrida com base no consumo ilegítimo.

12. Pelo que, salvo o devido respeito, o entendimento da Mma. Juiz a quo, ultrapassa largamente o espectro da prova produzida, além de constituir um erro na apreciação da prova previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal e viola o princípio da presunção de inocência previsto no artº 32 nº 2 da Constituição da República Portuguesa.

B. Desconformidade entre a motivação da decisão e a decisão específica sobre a matéria

13. O tribunal a quo entendeu que apesar de inexistir responsabilidade criminal, existe responsabilidade civil, uma vez que a Recorrente consumiu electricidade sem proceder ao devido pagamento.

14. A responsabilidade civil que poderá ser apreciada em processo penal é só aquela que emerge da violação do direito de outrem, com dolo ou mera culpa e da qual resultem danos.

15. Contudo, os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos não se verificam, desde logo por não se ter apurado a imputação à Recorrente de um facto ilícito e culposo.

16. A Recorrida celebrou um contrato para fornecimento de energia elétrica com a empresa BB Lda. e não com a Recorrente.

17. Tampouco se provou a autoria da Recorrente na religação alegada pela Recorrida.

18. Nem se provou ter a Recorrente consumido a energia eléctrica referente a esse mesmo contrato.

19. Carece de fundamento a condenação da Recorrente no pagamento do pedido de indemnização civil, pelo consumo de electricidade efectuado que havia sido contratado com outra entidade, nos termos do artigo 483.º do Código Civil.

20. O valor a que a Recorrente foi condenada a pagar à demandante carece igualmente de fundamentação.

21. A demandante CC, ora Recorrida no seu articulado peticiona a título de energia eléctrica subtraída no período entre 23.04.2013 e 06.07.2014 o valor de € 28.216,95, acrescida do valor da potência indevidamente tomada no montante de € 956,39 e ainda custos de encargos administrativos no valor de €70,70, perfazendo o total de €29.244,03.

22. Ora, o valor peticionado pela Demandante é referente ao período que dista entre 23.04.2013 e 06.07.2014, exactamente o período em que o tribunal considerou como não provado o facto ilícito deligação abusiva à rede eléctrica e subsequente consumo indevido.

23. De acordo com o ponto 15 da matéria de facto provada “(…) ocorreram consumos de energia medidos por sistema de contagem, durante o período de abril de 2013 a junho de 2014 (…)”.

24. O que significa que, a Recorrente, não efectivou o corte de energia e continuou a fazer a contagem do consumo da empresa da Recorrente e não facturou por razões que a esta não são imputáveis.

C - Prescrição

25. Vem a douta sentença decidir que o prazo prescricional do pedido de indemnização civil (23.04.2013 a 07.07.2014) é o de 10 anos por aplicação do prazo prescricional do furto qualificado.

26. O Tribunal a quo entendeu não ter sido produzida prova da ocorrência do corte de energia em 23.04.2013, pelo que em coerência com este raciocínio deveria igualmente concluir que a inexistência de facturação apenas à Recorrida é imputável.

27. E, em consequência, declarar a caducidade do pedido indemnizatório reclamado pela Recorrida, decorrido o prazo de seis meses após o respetivo consumo, nos termos do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26-07.

28. Mesmo perante a decisão do Tribunal a quo de concluir pela ocorrência do segundo corte e da religação à rede elétrica pela Recorrente, também o entendimento deveria ir no sentido da declaração da prescrição dos créditos reclamados pela Demandante CC, uma vez que se aplica à situação o disposto no n.º 1 do artigo 498.º do Código Civil.

29. Conforme resulta expresso no acórdão do Tribunal da relação do Porto de 27.03.2017 “Provando-se que o contador de energia fora manipulado (...) à fatura referente ao período de contagem irregular de energia não é aplicável o prazo prescricional previsto no artigo 10.º da lei n.º 23/96, de 26/07, mas antes o que se prevê no n.º 1 do artigo 498.º do Código Civil.”

30. O que o Tribunal a quo carece de fundamento é determinar a absolvição da Recorrida pela prática do crime e, em simultâneo, aplicar o n.º 3, do artigo 498.º do Código Civil para alargar o prazo prescricional por o facto ilícito constituir crime.

31. Este entendimento contém em si uma contradição insanável, considerando a decisão do tribunal a quo em considerar a inexistência de prova quanto à práctica dos crimes de que a Recorrente vinha acusada.

Nestes termos e nos demais de direito,

Deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente e a decisão do Tribunal a quo ser revogada, por manifestamente desconforme à correcta interpretação e aplicação do Direito, devendo ser substituída por outra que declare a improcedência do pedido de indemnização cível da Recorrida.”

O recurso foi admitido.

O MP na 1.ª instância respondeu ao recurso, concluindo do seguinte modo (transcrição):

“O tribunal a quo absolveu a recorrente da prática dos dois crimes de furto de que a arguida vinha acusada uma vez não preenchidos os elementos deste tipo legal de crime, isto é, não se deu como provada nem a subtração, nem a apropriação de coisa móvel alheia.

Porém, não obstante a absolvição, o tribunal entendeu condenar a ora recorrente em responsabilidade civil por danos uma vez que considera que a recorrente teve um comportamento ilícito, culposo e que provou dano à demandante.

A arguida vem impugnar a douta sentença no que concerne ao quantum indemnizatório que lhe foi arbitrado, pugnando pela sua substituição por outra que declare a improcedência do pedido de indemnização cível da Recorrida.

O recurso, tal como se mostra delimitado pelas conclusões formuladas em nada contende com a decisão proferida sobre a causa penal, nem com a respetiva fundamentação.

Assim, entende-se que o Ministério Público não tem de responder ao recurso, já que para tal carece de legitimidade e interesse em agir.”

A Exm.ª PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer, defendendo que o MP não tem interesse em agir quanto ao presente recurso.

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP (1), sem resposta.

Colhidos os vistos legais e após conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

2.1. Factos Provados:

Apreciada a prova produzida em audiência, resultaram como provados os seguintes factos, relevantes para a boa decisão da causa – consignando-se a exclusão dos factos repetidos, irrelevantes ou conclusivos:

DA ACUSAÇÃO PÚBLICA

1 - A CC S.A. – mediante um contrato e fornecimento de energia elétrica, através dos seus funcionários, procede à ligação à rede pública no local de consumo, aplicando um aparelho de medição de contador destinado a registar os consumos efectuados, procedendo, posteriormente, à selagem do referido equipamento a fim de evitar a sua violação e a adulteração dos registos, por parte das pessoas não autorizadas, recolhendo periodicamente, no âmbito das suas competências, a leitura dos valores registados nos referidos equipamentos, para informação aos comercializadores de energia e emissão por estes da facturação e fiscalizando as ligações particulares às redes elétricas de consumo, com o objectivo de despistar eventuais ligações abusivas à rede elétrica publica ou manipulação ou adulteração.

2 - A BB é uma sociedade pessoal por quotas que tem o objecto social melhor descrito em certidão permanente junta em fls.85/86 para a qual se remete e se dá por reproduzida, tendo como única gente de facto a arguida, a qual dirigia efectivamente a referida sociedade.

3 - As suas instalações, sitas na Rua …, nº… em …, encontram-se ligadas à rede de electricidade pública, com o local de consumo nº… e aí instalado um contador destinado a registar os consumos efectuados para emissão da respectiva facturação.

4 - Nesse período a arguida explorou a sua actividade comercial naquele local.

5 - No dia 23-06-2014 o técnico DD realizou uma vistoria no local supra mencionado e verificou que o “o local de consumo está ligado sem contrato”.

6 - Para eliminar a anomalia detectada, ou seja, a referida ligação abusiva, o técnico que realizou a vistoria desligou o fornecimento de energia no contador, registou a leitura dos consumos efectuados e procede à selagem do referido equipamento a fim de evitar nova violação.

7 - A arguida celebrou, entretanto, um contrato para o local (2), pelo que, em 07-07-2014 o mesmo técnico deslocou-se ao local e constatou que “o local de consumo se encontrava com os selos quebrados e com alteração dos consumos de energia eléctrica”.

8 - Foi a arguida que, em data não concretamente apurada, mas certamente entre o período de 23-06-2014 a 07-07-2014, por si ou com colaboração de terceira pessoa não identificada, rompeu o selo da tampa do contador de electricidade e procedeu à ligação à rede eléctrica pública, obtendo, dessa forma, energia eléctrica para exclusivo consumo nesse espaço comercial, em prejuízo da queixosa identificada em 1.

9 - A arguida beneficiou de energia electrica no período entre 23-04-2013 a 07-07-2014, num total de 190.428kwh e no valor de 28.216,95€, acrescida de 956,38€ de potência indevidamente tomada, e encargos administrativos no valor de 70,70€.

10 - A empresa da Arguida solicitou em 31.12.2008 a instalação de um quadro de obra para as instalações em causa nos autos, com activação concretizada em 12.01.2009.

11 - A Arguida fez o pedido do ramal em 16.06.2009 o qual só veio a ser instalado em 08.02.2010.

12. Sendo também essa a data de início do contrato para fornecimento de energia n.º …, com o código de identificação do local n.º 0 113 559 063, pela Arguida em nome da sua empresa.

13 - A CC emitiu a primeira factura com n.º …, em 02.01.2012, referente ao período compreendido entre 2010-05-12 e 2012-01-02, no valor de €41.832,44, factura essa reclamada pela empresa da Arguida – provado com recurso a à análise das comunicações trocadas com a CC que se anexam juntas como doc. 1 a 8, as quais se dão por reproduzidas, nos termos legais.

14 - Após a imputação pela Demandante da existência de um comportamento fraudulento para ligação à rede eléctrica, a Arguida fez de imediato um pedido de vistoria à DGEG, no âmbito do art 5.º nº 2 DL 328/90, de 22 de Outubro – porvado com recurso à análise do doc. n.º 9, junto em contestação - a fim de demonstrar que não houve interrupção do fornecimento.

15 - Em resposta ao solicitado, a DGEG informa que: “(…) ocorreram consumos de energia medidos por sistema de contagem, durante o período de abril de 2013 a junho de 2014 (…) – provado com recurso à análise dos doc. n.º 10.

16 - Acontece que durante o período em que impendia sobre a Arguida, a ameaça de suspensão de energia por força das facturas alegadamente em dívida, surgiram técnicos da Demandante nas suas instalações a informar de que tinham ordem para proceder ao corte, sem que o tivessem concretizado.

17. Condições económicas, sociais e pessoais

a) Apresenta-se como pessoa bem aceite e integrada no meio social onde reside, mantendo uma relação cordial com vizinhos e conhecidos, não lhe sendo conhecidos outros comportamentos desviantes – cfr. relatório social da DGRSP.

b) Tem uma situação económica mediana – cfr.declaração de IRS junta em ofício de 03-11-2020.

c) Aufere 1.200,00€ e tem 3 filhos.

d) Tem casa própria, pela qual paga empréstimo bancário.

e) Tem o 12º ano de escolaridade.

18. A arguida não tem antecedentes criminais registados.

*

2.2. Factos não provados

A. A arguida não celebrou nenhum contrato de fornecimento de energia elétrica para o local de consumo referido em 3, para o período de 23-04-2013 a 23-06-2014.

B. A arguida não tinha celebrado qualquer contrato de fornecimento de energia, nem tinha efectuado qualquer pedido nesse sentido.

C. Foi a arguida que, em data não concretamente apurada, mas certamente entre o periodo de 23-04-2013 a 23-06-2014, por si ou com colaboração de terceiro pessoa não identificada, rompeu o selo da tampa do contador de electricidade e procedeu à ligação abusiva à rede eléctrica pública, obtendo, dessa forma, energia eléctrica para exclusivo consumo nesse espaço comercial, em prejuízo da queixosa identificada em 1, que, por inexistência de contrato nunca emitiu facturação.

D. Que em 8 tal tenha sido abusiva e que, por inexistência de contrato nunca emitiu facturação.

E. que em 9, com a referida conduta.

F. A arguida agiu com o propósito concretizado de consumir energia eléctrica, no valor referido em 9, bem sabendo que o fazia contra a vontade e sem o conhecimento da sua legítima proprietária, referida em 1, usufruindo da mesma sabendo que não lhe pertencia.

G. Actou com o propósito concretizado de obter, para si, benefícios e vantagens económicas a que sabia não ter direito, apropriando-se de energia não contabilizada e prejudicando a queixosa.

H. Agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo capacidade para se determinar de acordo com tal conhecimento.

(…)

Sem prejuízo da absolvição supra, o prazo prescricional é o do furto qualificado, nos termos do Acórdão do TRC, Proc.3834/18.6T8VIS.C1, Relator Carlos Moreira, datado de 03-11-2020, disponível em www.dgsi.pt: “II – O prazo de 6 meses de caducidade e de prescrição previsto no art. 10º n.ºs 1 e 4 da Lei n.º23/96 de 26/07 não se aplica aos direitos e ações derivados de apropriação indevida de eletricidade nos termos do DL328/90 de 22.10. III - A aplicação do prazo do nº3 do artº 498º do CC não exige uma condenação com prova dos elementos – objetivo e subjetivo – do crime, bastando que os factos provados relativos ao agente possam subsumir-se na previsão de um tipo legal criminal.”.

Assim sendo, datando os factos de 23-04-2013 a 07-07-2014, o prazo de prescrição – 10 anos, nos termos do art.º118º nº1 b), 204º nº2 do C.P. ex vi do 498º nº3 do C.C. - não está prescrito o direito de indemnização cível.

Ora, cremos que, sem prejuízo da absolvição quanto ao furto, está provada que a arguida consumiu tal electricidade, nos termos e valores imputados, sendo a ilicitude aqui no âmbito civil, por não cumprimento do valor contratual.

Vejamos.

A responsabilidade civil em que se baseia o pedido cível é a comummente designada de responsabilidade civil por factos ilícitos, encontrando-se regulada no art.º 483º do C.C. cujo n.º 1 estatui: “Aquele que, em dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”.

A responsabilidade civil por factos ilícitos confere o direito de indemnização desde que se verifiquem cinco requisitos, a saber:

a. Facto ilícito, ou seja, a verificação da existência de uma conduta do agente que preencha um tipo criminal, ou actuação contrária à lei;

b. Imputação subjectiva do facto ao agente, ou seja, necessidade de um comportamento voluntário do agente;

c. Culpa do agente, ou seja, que este ao agir como agiu, seja passível de censura por o ter feito, sendo de lhe exigir que tivesse agido de outro modo;

d. Surgimento de um dano, que pode ser patrimonial ou não patrimonial;

e. Imputação objectiva do dano ao facto, ou seja, o nexo de causalidade adequada entre o comportamento do agente e o dano verificado.

Refira-se, ainda, que, em sede de indemnização civil, incumbe ao lesado o dever de concretizar e demonstrar o facto concreto de que emerge o direito que pretende fazer declarar, porque sobre si impende esse ónus de prova (cfr. art.º 342º do C.C. ex vi art. 4º do C.P.P.).

Ora, sem prejuízo de entendermos que inexistiu responsabilidade criminal, tal não exclui a possibilidade de responsabilidade civil e mesmo que se considere a mesma no âmbito contratual e não aquiliana, tal não importa que a não possa ser aferida nesta sede.

Remeter, agora, a demandada para os meios comuns, quando já foi realizado julgamento quanto à matéria em apreço traduzir-se-ia numa interpretação formalista da lei, que vedaria à parte cível a justa composição do litígio.

No demais, pese embora, se tenha dado como provado a existência de contrato entre as partes, certo é que, a situação dos factos se situa num caso de fronteira, onde da parte da CC a mesma actuou posteriormente como se entendesse não existir contrato e da parte da arguida como se sim, mas mantendo-se sem pagar e tendo mesmo procedido entre 23-06-2014 a 07-07-2014 à religação do condutor, conduta que, se não reputamos como de densidade suficiente para merecer a tutela penal – que configura uma ultima ratio – se pode dizer, porém, que extravasa já o âmbito regular das relações contratuais e entra na esfera, em fronteira, com a responsabilidade aquiliana.

É neste exposto que entendemos – mas sempre com as reservas supra – subsumir o caso dos autos ao regime do art.º129º do C.P. e 483º do C.C.

Ora, da materialidade dada como provada resulta que a arguida, voluntariamente, usufruiu de elctricidade – facto – sem proceder ao seu pagamento á sua fornecedora, nos termos do art.º 47º do Regulamento n.º 1129/2020 de 30-12-2020, tendo ainda quebrado os selos e religado a ligação cortada – ilicitude – consumo a si imputável em termos causais, com produção de prejuízo à demandada pelo não pagamento e custos de reparação/administrativos – dano – no valor de 28.216,95€, acrescida de 956,38€ de potência indevidamente tomada e encargos administrativos no valor de 70,70€.

Encontrando-se preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, a arguida constitui-se responsável pelo ressarcimento dos danos que causou, no valor supra referido, à demandante, nos termos do art.º71º e 76º do C.P.P. e 483º do C.C.

Assim sendo, impõe-se a condenação no seu pagamento, acrescida de juros de mora legais desde a data do vencimento até integral pagamento.”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objeto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

Antes de equacionarmos as questões suscitadas no recurso, importa conhecer (oficiosamente) de uma questão que poderá obstar ao conhecimento daquelas, a saber a incompetência material do tribunal.

B. Decidindo.

Incompetência material do tribunal.

O tribunal absolveu a arguida dos dois crimes de furto de que vinha acusada.

Segundo o art.º 129.º do Código Penal, “[a] indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil” e, por tal razão, estabelece o Código de Processo Penal o princípio da adesão (3), prescrevendo, no art.º 71.º, que “[o] pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos termos previstos na lei”, estando ainda esta regra em conexão com o disposto no art.º 377.º, n.º 1.º do mesmo diploma, que determina que “[a] sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respetivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no artigo 82.º, n.º 3.»

Como pode ler-se no Acórdão deste TRE de 21.06.2022, proferido no processo n.º 1174/18.0T9STR-A.E1, “[d]aqui decorre que a sentença absolutória no domínio penal (em consequência da não verificação de crime) não deixará de condenar o arguido/demandado em indemnização civil, sempre que o pedido vier a revelar-se fundado. Todavia, apenas, se fundado na prática de crime (artigo 71.º), isto é, quando em causa esteja um caso de responsabilidade civil extracontratual.

Com efeito, a regra constante do artigo 377.º, n.º 1.º, tem como pressuposto que a causa de pedir do enxerto cível na causa penal, assenta nos mesmos factos que são pressuposto da responsabilidade criminal. Refere-se somente à responsabilidade civil que emerge da violação do direito de outrem ou de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, com dolo ou mera culpa e da qual resultem danos (artigo 483.º do Código Civil).

É esta a interpretação uniformizada deste complexo normativo, como desde há muito está consagrada no assento n.º 7/99, do Supremo Tribunal de Justiça.

Excluída está, pois, a indemnização que resulte de responsabilidade civil obrigacional (contratual).”

No caso dos autos, constavam dos factos provados duas intervenções no contador da eletricidade (uma entre 23.04.2013 e 23.06.2014 e outra entre 23.06.2014 e 07.07.2014) que teriam permitido a ligação à rede elétrica pública e possibilitando o consequente consumo de energia elétrica, que a demandante cível imputa, em bloco (4), à arguida.

Apenas a segunda intervenção resultou provada. (cfr. facto provado 8 e não provado C)

Do exposto flui com meridiana clareza que, muito embora se possa, eventualmente, considerar ilícita (5) a conduta da arguida / demandante (consubstanciada na segunda intervenção), falham o nexo causal entre tal conduta e o dano (que não está especificado) e os elementos subjectivos que teriam de integrar a responsabilidade civil extracontratual.

Em síntese, restará apenas a eventual responsabilidade contratual resultante de um consumo não pago de electricidade.

Assim, não se verificando o pressuposto da adesão do pedido cível ao processo criminal, carece, pelas razões apontadas, o tribunal a quo de competência em razão da matéria para conhecer do pedido formulado pela demandante contra a arguida, por violação das regras de competência material do tribunal, o que constitui nulidade insanável, nos termos do art.º 119.º, alínea e), do CPP, susceptível de ser oficiosamente conhecida até ao trânsito em julgado da decisão final. (art.º 32.º, n.º 1 do CPP)

Nestes termos, deve julgar-se procedente a excepção dilatória de incompetência material do tribunal para conhecer o pedido civil deduzido pela CC S. A. contra AA, absolvendo-a da instância.

Do exposto flui que o conhecimento das questões suscitadas no recurso se mostra, assim, prejudicado (6).

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente a excepção dilatória de incompetência material do tribunal para conhecer o pedido civil deduzido pela CC S. A. contra AA, absolvendo esta da instância.

Custas pela demandante. (art.º 523.º do CPP e 527.º, n.º 2 do CPC)

(Processado em computador e revisto pelo relator)

Évora, 08 de Novembro de 2022

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1 Diploma a que pertencerão todas as indicações normativas ulteriores que não tenham indicação diversa.

2 Incorpora também o ponto 12 do pedido de indemnização cível.

3 É de sublinhar que a consideração unitária processual entre as duas acções pressupõe que as partes cíveis se sujeitam ao regime próprio da acção penal: É a acção cível que se integra na acção penal e não esta que se submete às vicissitudes próprias e possíveis do processo civil. (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. I, Universidade Católica Portuguesa, 2013, página 136)

4 Ou seja, indiscriminadamente entre 23.04.2013 e 06.07.2014. (cfr. art.º 17.º do pedido cível)

5 O tribunal a quo evidencia dúvidas a este respeito, afirmando que “se pode dizer, porém, que extravasa já o âmbito regular das relações contratuais e entra na esfera, em fronteira, com a responsabilidade aquiliana”.

6 Art.º 608.º, n.º 2 do CPC, aplicável ex vi do art.º 4.º do CPP.