COMPETÊNCIA MATERIAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
Sumário

Para uma ação em que um lesado de um acidente de viação, que foi simultaneamente acidente de trabalho, demandou o responsável civil pelos danos que sofreu, ou seja a respetiva seguradora, são competentes os tribunais cíveis e não os tribunais de trabalho, porque esta se configura como ação destinada a exercer a responsabilidade civil nos termos do art. 483º do Cód. Civil.

Texto Integral

Proc. n.º 1323/21.0T8MCN.P1 – 3ª Secção (Apelação) - 1480
Acção de Processo Comum – Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Marco de Canavezes

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
AA instaurou acção declarativa, de condenação, com forma de processo comum, contra X..., Cª DE SEGUROS SA.
Pediu a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 16.000,00 e a quantia a liquidar, na parte respeitante ao Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica que venha a apurar-se no futuro, acrescidas de juros, à taxa legal, desde a citação até efectivo pagamento.
Como fundamento, alegou factos tendentes a demonstrar que sofreu danos – que discriminou e quantificou – em consequência de acidente de viação ocorrido em 24.11.16, em Marco de Canavezes, por culpa exclusiva do condutor do veículo de matrícula ..-MP-.., encontrando-se a respectiva responsabilidade civil transferida para a ré, mediante contrato de seguro.
Mais alegou que o referido acidente foi também acidente de trabalho.
A ré contestou, além do mais, aceitando que o acidente de viação em causa foi simultaneamente um acidente de trabalho.
De seguida, foi proferido despacho saneador, que julgou o tribunal incompetente em razão da matéria e absolveu a ré da instância.

O autor recorreu, formulando as seguintes

CONCLUSÕES
1ª – Na petição inicial, o autor alega danos consequentes da prática, por terceiro, de factos violadores do disposto no artigo 483.º do CC, pretendendo o seu ressarcimento ao abrigo do disposto nos artigos 562.º e seguintes.
2ª – Nos artigos 1.º a 8.º da petição inicial, o autor descreve as circunstâncias do sinistro e invoca normas violadas e no artigo 12.º, com vista à devido contextualização do evento e ao evitar da cumulação de ressarcimento, esclarece que o evento é também acidente de trabalho.
3ª – A ré, na sua contestação (artigos 1.º e 2.º), aceitou o evento como acidente de viação, declarou ter assumido a sua responsabilidade e, no artigo 3.º, anuiu ao facto de o acidente ter sido igualmente acidente de trabalho.
4ª – Do acima alegado, com o devido respeito, retirou o Tribunal a errada conclusão vertida no § 3º da pág. 1, cujo teor aqui damos por reproduzido e integrado, uma vez que, na verdade, nem o autor, na sua petição inicial, classificou o acidente como, estruturalmente, de trabalho, nem a ré, na sua contestação (artigo 4.º), aderiu a tal qualificação.
5ª – O que a ré fez foi, apenas e tão só e porque contra factos não há argumentos, assumir que o evento - para além de acidente de viação - consubstanciou igualmente acidente de trabalho.
6ª – Por isso, porque é absolutamente incontestável que, em situação como a dos autos, assiste ao autor o direito de escolher a via judicial para tentar obter o ressarcimento dos seus danos - Tribunal Judicial, com vista à totalidade dos mesmos, ou apenas de parte, ou Tribunal do trabalho, com vista ao ressarcimento da específica cobertura, diversa e normalmente menos ampla, prevista na legislação infortunística.
7ª – Uma vez que, como resulta das normas a seguir indicadas, com destaque para o n.º 2 do artigo 71.º do CPC, haverá, nos termos dos artigos 26.º do DL 291/07, de 21.08 e 71.º, n.º 2, do CPC e do artigo 9.º da Portaria 377/08, de 26.05, que concluir que o Tribunal competente é exactamente o Juízo Local Cível de Marco de Canaveses.

A ré não contra-alegou.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

*
II.
Os elementos com interesse para a decisão do recurso são os que constam do ponto I.
*
III.
A questão a decidir – delimitada pelas conclusões da alegação do apelante (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do CPC) – é a seguinte:
- Competência material do Tribunal recorrido para conhecer da presente acção.

De acordo com a posição assumida pelas partes nos articulados, o acidente de viação em causa nos autos foi, simultaneamente, um acidente de trabalho.

Diz o artigo 17.º, n.º 1 da Lei 98/09, de 04.09, que, quando o acidente for causado por outro trabalhador ou por terceiro, o direito à reparação devida pelo empregador não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos gerais.
Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, se o sinistrado em acidente receber de outro trabalhador ou de terceiro indemnização superior à devida pelo empregador, este considera-se desonerado da respectiva obrigação e tem direito a ser reembolsado pelo sinistrado das quantias que tiver pago ou despendido.
Já se a indemnização arbitrada ao sinistrado ou aos seus representantes for de montante inferior ao dos benefícios conferidos em consequência do acidente, a exclusão da responsabilidade é limitada àquele montante (n.º 3 do mesmo preceito).
Diz ainda o n.º 4 do mesmo artigo 17.º que o empregador ou a sua seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente pode subrogar-se no direito do lesado contra os responsáveis referidos no n.º 1 se o sinistrado não lhes tiver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano a contar da data do acidente.
E, nos termos do n.º 5, o empregador e a sua seguradora também são titulares do direito de intervir como parte principal no processo em que o sinistrado exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que se refere este artigo.
Por seu turno, diz o n.º 1 do artigo 9.º da Portaria 377/08, de 28/05, se o acidente que originou o direito à indemnização for simultaneamente de viação e de trabalho, o lesado pode optar entre a indemnização a título de acidente de trabalho ou a indemnização devida ao abrigo da responsabilidade civil automóvel, mantendo-se a complementaridade entre os dois regimes.
E, sendo o lesado indemnizado ao abrigo do regime específico de acidentes de trabalho, as indemnizações que se mostrem devidas a título de perdas salariais ou dano patrimonial futuro são sempre inacumuláveis (n.º 2 do mesmo preceito).

Decorre dos preceitos citados que, no caso de um acidente que é simultaneamente de viação e de trabalho, as indemnizações a pagar ao lesado pelo terceiro responsável pelo acidente e pela entidade patronal ou pela sua seguradora não se cumulam, antes se complementam.
Essa situação tem como consequência que, se a entidade patronal ou a sua seguradora não tiverem exercido o direito de sub-rogação previsto no n.º 4 do artigo 17.º da Lei 98/09, ou não tiverem intervido na acção instaurada pelo lesado contra o terceiro responsável, nos termos do n.º 5 do mesmo preceito, na indemnização que vier a ser arbitrada nesta última acção, terá de ser descontado o valor das quantias já pagas por aquelas entidades, sob pena de o lesado que venha a receber do terceiro responsável o valor total da indemnização, ter de reembolsar as mesmas do valor que já lhe tivessem pagado.
É o que resulta das citadas normas do artigo 17.º da Lei 98/09, conjugadas com as normas dos n.ºs 2 e 3 do mesmo preceito.

A doutrina e a jurisprudência têm vindo a qualificar como sub-rogação legal o direito da seguradora de acidentes de trabalho ao reembolso do que pagou ao lesado em acidente de trabalho[1].
Na sub-rogação um terceiro cumpre uma obrigação alheia e adquire o direito que competia ao credor, substituindo-se a este; distingue-se assim do direito de regresso porque este surge “ex novo” na esfera do seu titular resultante do cumprimento de uma obrigação própria (v.g., emergente de um contrato), embora haja um terceiro que pode ser responsabilizado pelos danos que aquele sofreu em consequência do cumprimento.
Assim, a obrigação da entidade patronal de pagar uma indemnização fixada em acção de acidente de trabalho, que foi simultaneamente de viação, não é uma obrigação própria, mas sim uma obrigação alheia, que impende sobre quem tiver tido culpa na produção do acidente.
Não faria, pois, sentido que o lesado de um acidente de viação, que foi simultaneamente acidente de trabalho, fosse obrigado a instaurar uma acção contra a entidade patronal ou a seguradora desta, as quais passariam a cumprir uma obrigação alheia, sujeitando-as a ter de pedir ao responsável civil ou à respectiva seguradora, o reembolso das quantias que viessem a ser condenadas a pagar.

No caso, o autor optou por demandar o responsável civil pelos danos que sofreu, ou seja, o condutor do veículo a quem imputa a culpa na produção do acidente, mais exactamente, a ré seguradora, para a qual foi transferida a responsabilidade daquele condutor, por força do contrato de seguro.
Nos termos em que o autor a propôs, a presente acção configura-se, assim, como uma acção destinada a exercer a responsabilidade civil por facto ilícito, nos termos do artigo 483.º do CC.

A competência do tribunal deve ser apreciada em face dos termos em que a acção é proposta, ou seja, atendendo ao pedido formulado e à respectiva causa de pedir, não dependendo da legitimidade das partes nem da procedência da acção[2].

A presente acção não se inclui, pois, no âmbito da competência cível dos Juízos de Trabalho, mas sim no âmbito da competência dos Juízos Cíveis, como resulta das disposições conjugadas dos artigos 80.º, n.ºs 1 e 2, 81.º, n.ºs 1, 2 e 3, 117.º, n.º 1, al. a), 126.º, n.º 1 e 130.º, n.º 1, todos da Lei 62/13, de 26.08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário).

Conclui-se, assim, que o Tribunal recorrido é, materialmente competente para conhecer da presente acção.
*
IV.
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida e, em consequência:
- Julga-se improcedente a excepção dilatória de incompetência absoluta e, em consequência, declara-se que o Tribunal recorrido é materialmente competente para conhecer da presente acção.
Custas pela ré.
***
Porto, 29 de Setembro de 2022
Deolinda Varão
Isoleta de Almeida Costa
Ernesto Nascimento
____________
[1] Neste sentido, ver, entre muitos outros, os Acs. do STJ de 11.01.11, 25.10.12, 23.01.20 e 26.11.20, todos em www.dgsi.pt, e, na doutrina, Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 5ª ed., pág 946, Menezes Cordeiro, Manuel de Direito Comercial, 2007, pág. 820 e José Vasques, Contrato de Seguro, pág. 153.
[2] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 91.