INIMPUTABILIDADE EM RAZÃO DE ANOMALIA PSÍQUICA
IMPUTABILIDADE DIMINUIDA
IMPUTABILIDADE DUVIDOSA
Sumário

I. A inimputabilidade depende da existência de um pressuposto biológico (anomalia psíquica) e de um pressuposto psicológico ou normativo (incapacidade para avaliar a ilicitude do facto ou se determinar de harmonia com essa avaliação).
II. O modelo de inimputabilidade do artigo 20.º, § 1.º CP não limita às doenças mentais como fundamento de tal juízo, antes o alarga a todas as anomalias psíquicas que tenham como efeito não ter o arguido, no momento da prática do facto, capacidade para entender e querer. E exclui da noção de inimputabilidade as situações em que o agente padece de anomalia psíquica à data dos factos, mas esta não gera o efeito legalmente exigido, nomeadamente por não poder estabelecer-se a relação causal entre a anomalia e o ato do agente que o artigo 20.º, § 1.º pressupõe.
III. O § 2.º do artigo 20.º CP estabelece que «pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída.»
IV. Não se trata aqui de uma verdadeiramente diminuição do grau de imputabilidade, do que se trata, antes, é de casos de imputabilidade duvidosa. Isto é, a anomalia psíquica existe, mas não são claras as consequências relativamente ao elemento normativo-compreensivo exigido.
V. Nestes casos a lei permite que o juiz ponha em perspetiva as concretas conexões de sentido do facto ilícito praticado. Em casos graves e não acidentais – em casos, portanto, em que a prática do facto se revela já uma espécie de forma adquirida de existir psiquicamente anómalo -, considerar o agente imputável ou inimputável consoante a compreensão das conexões objetivas de sentido do facto.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório

a) No 1.º Juízo Local Criminal de …, procedeu-se a julgamento em processo comum e Tribunal singular de AA, nascido a …1999, com os demais sinais dos autos, a quem foi imputada a prática, como autor, de um crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º, §1.º, al. b) e § 2.º, al. a) do Código Penal (CP).

O acusado apresentou contestação negando a prática dos factos que lhe foram imputados.

Realizada a audiência de julgamento o Tribunal veio a proferir sentença, na qual condenou o arguido pela prática do crime pelo qual havia sido acusado, na pena de 3 anos e 9 meses de prisão.

b) Foi interposto recurso pelo arguido, nele se pugnando pela atenuação especial da pena e sua fixação em 1 ano de prisão, rematando as pertinentes motivações com as seguintes conclusões (transcrição):

«1ª – Pela sua vaguidade e total omissão de localização no tempo e no espaço, deverão ser dados como não provados os factos referidos nos pontos 7. e 8. da Douta Sentença: “O arguido deu chapadas, pontapés a BB, apodando-a 'vaca' e 'puta', em diversas ocasiões, em datas não concretamente apuradas, mas certamente situadas entre Março e Julho de 2020, cujas lesões aquela nunca tratou e disse à mãe serem resultado de quedas” - ponto 7.; e “Como consequência directa e necessária das múltiplas condutas do arguido, BB sofreu dores e hematomas em diversas partes do corpo” - ponto 8.;

2ª - Constitui tese indesmentível, sustentada por norma expressa - art.º 163.º do Código de Processo Penal – a de que o juízo técnico, científico ou artístico à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, salvo quando este daquele divergir, desde que fundamente o motivo de tal divergência;

3ª – Nada justificando qualquer alteração de procedimento no caso da perícia psiquiátrica prevista nos art.ºs 159.º e 351.º do mesmo Diploma Legal, destinada a apurar da existência e da medida da inimputabilidade penal do arguido;

4ª - Quanto ao Relatório – Perícia Psiquiátrica Forense – afigura-se-nos, salvo o devido respeito pelos seus autores e por quem sufrague diferente entendimento... -, que o mesmo não prima pela coerência;

5ª – Tal Relatório Pericial deve ser havido como um simples “Parecer”, sem eficácia probatória plena, sendo sua função útil a de poder contribuir para esclarecer o julgador;

6ª - Este não fica inibido de apreciar o relatório e ponderar a fim de adoptar a melhor decisão;

7ª – O que se invoca estribado em jurisprudência unânime, citando-se a título meramente exemplificativo o Douto Acórdão do STJ, datado de 7/11/2006, Pº 3460/06, 1ª secção: “valem quanto aos pareceres e relatórios periciais os princípios da liberdade de convicção do juiz”;

8ª - No caso da Perícia Psiquiátrica Forense que se mostra junta aos autos (Ref.ª CITIUS …), é manifesto que as premissas em que se alicerça, ali perfeitamente explicitadas, não se compaginam com as respectivas conclusões;

9ª - Com efeito, não podem restar dúvidas razoáveis de que:

- quem “apresenta capacidade cognitiva com valores muito inferiores (tendo em conta os valores considerados para a população em geral e relativos ao seu grupo etário), o que, permite inferir que apresenta défice cognitivo global, que aponta para um funcionamento intelectual de nível muito inferior, justificando a existência de limitações no funcionamento adaptivo, que comprometem a capacidade para a mudança/aprendizagem”;

- quem “é portador de uma estrutura psíquica com limitações significativas, ficando exposta a sua fragilidade congnitiva”;

- quem “apresenta sintomatologia psicopatológica invalidante”;

-quem, quanto às características específicas da personalidade, apresenta “traços acentuados, que nos levam a considerar que estamos perante alguém com funcionamento psicológico perturbado, sendo de admitir um transtorno de personalidade que merece atenção clínica»;

- aquele a quem são 3detetados traços acentuados, que podem ser determinantes na forma como interage com o meio social onde está inserido”;

- quem «apresenta um perfil que é comum em indivíduos que manifestam instabilidade emocional, comportamentos antissociais e acentuada dificuldade em controlar os impulsos, o que leva a actos irrefletidos e consequente para atuar de forma impulsiva sem prever as consequências dos seus actos” - (sublinhados nossos)...

10ª - … não pode ser a mesma pessoa acerca da qual se conclui que “nada impede nem impedia de avaliar a ilicitude dos seus atos ou de se determinar, pelo que, do ponto de vista psiquiátrico-forense e para os factos de que vem indiciado, não são de invovar razões de natureza psiquiátrica que permitam excluir ou diminuir a sua imputabilidade!!!”.

11ª -Ali afirma-se o que aqui se nega;

12ª – O Tribunal 'a quo' dedica poucas linhas ao referido Relatório, do qual apenas retira - ponto 17. - que “o arguido padece de uma deficiência mental leve (…) bem como de uma perturbação não especificada de personalidade (...)”;

13ª - … e que – ponto 18. “à data da prática dos factos provados da douta acusação pública, não se apurou qualquer sintoma psicótico grave do arguido, de natureza delirante ou alucinatória, que tivesse perturbado o sentido da realidade ou o impedisse de agir em consciência e vontade, admitindo-se que estaria minimamente capaz de se avaliar e de se determinar de acordo com a sua própria avaliação, porém, diminuída”;

14ª – Considerações estas que, ressalvados o muito respeito e elevada consideração devidos a quem as teceu, nos causam perplexidade;

15ª – Como seria possível concluir que (subentende-se) em cada uma das muitas acções assacadas ao arguido em múltiplas circunstâncias de tempo e espaço (nem sempre – quase nunca...- exatamente determinadas), este não estava impedido de agir em consciência e vontade, valorando corretamente os factos e conformando-se que essas prévias valorações?!

16ª – E se apenas “se admite” que o arguido “estaria minimamente capaz” de proceder a essas prévias valoração e determinação, não seria (será...), em sede de direito criminal, mais adequada a opção pelo não imputação ao arguido de crime algum, à míngua da prova cabal dessa imputabilidade, que apenas “se admite”?!

17ª – Mal se entende que em sede de fundamentação de direito, o Tribunal 'a quo' conclua, “em consequência do vertido nos factos provados em 17 e 18 supra”, tornar-se “patente que o arguido sofrerá de anomalia psíquica, mais se entendendo que a capacidade de avaliação do arguido e de determinação da sua conduta em razão de tal avaliação existia, sendo portanto o arguido imputável”;

18ª – Parece-nos surpreender, neste passo, uma contradição insanável na fundamentação – o que se argui 'hic et nunc' com base na previsão da alínea b) do n.º 2 do art.º 410.º do Código de Processo Penal;

19ª - Caso raro e muito curioso: quase em simultâneo são apresentados ao mesmo Excelentíssimo Magistrado Judicial, acerca do mesmo arguido, duas Perícias Psiquiátricas, que fundadas em bases algo díspares (aparentando-se-nos mais gravosas e indiciadoras da conclusão da inimputabilidade ou da imputabilidade diminuída aquela que conclui pela plena imputabilidade do arguido..., transportam os Excelentíssimos Peritos para conclusões opostas); com efeito,

20ª - No âmbito do Processo que corre os seus trâmites sob o n.º … do mesmo Juízo Local Criminal – Juiz … foi, em 11 de Março de 2022, apresentado um segundo Relatório Pericial, o qual, em sede de “Conclusão”, assim reza:

“A sua capacidade cognitiva apresenta valores muito inferiores (tendo em conta os valores considerados para a população em geral e relativos ao seu grupo etário), o que nos permite inferir que apresenta défice cognitivo global, que aponta para um funcionamento intelectual de nível muito inferior, justificando a existência de limitações no funcionamento adaptativo, que comprometem a capacidade para a mudança/aprendizagem. Verificamos estar perante um indivíduo portador de uma estrutura psíquica com limitações significativas, ficando exposta a sua fragilidade cognitiva.

Na atualidade verificamos que o examinado apresenta sintomatologia psicopatológica invalidante.

Da avaliação das características específicas da personalidade, foram detetados traços acentuados que nos levam a considerar que estamos perante alguém com funcionamento psicológico perturbado, sendo de admitir um transtorno de personalidade que merece atenção clínica. Foram detetados traços acentuados que podem ser determinantes na forma como o examinado interage com o meio social em que está inserido. Este perfil é comum em indivíduos que manifestam instabilidade emocional, comportamentos antissociais e acentuada dificuldade de controlar impulsos, o que leva a atos irrefletidos e consequente culpabilização, podendo apresentar transtornos do pensamento, desconfiança, alterações de humor, imaturidade e irresponsabilidade, exibindo hostilidade e baixa intolerância à frustração e com propensão para atuar de forma impulsiva sem prever as consequências dos seus atos.

Globalmente, não apresenta indicadores de desejabilidade social, que coloquem em causa os resultados obtios nos testes de avaliação psicológica” - sublinhados nossos.

21ª - O Relatório Pericial junto aos autos não mereceu do Tribunal 'a quo' mais do que uma leve alusão no intróito da douta Sentença, nenhuma consequência dele tendo sido extraída!

22ª - Se dúvidas restassem ao Tribunal, valeria aqui, opinamos, também e ainda o princípio 'in dubio pro reo'...

23ª - Note-se 'a latere' que, conforme, de resto, se extrai do relatado em 45. a 55. da Douta Sentença, por nenhum crime de sangue foi condenado ou está imputado ao arguido;

24ª - Donde nos parece mais que razoável retirar a conclusão de que, sendo parcialmente inimputável, o arguido não pode ser considerado “perigoso”;

25ª – E jamais, concluir, paradoxalmente, que “não obstante a existência de anomalia psíquica no arguido e de a sua imputabilidade ser considerada diminuída, importa referir que é entendimento do tribunal que a sua conduta vertida nestes autos é reveladora de uma culpabilidade que não impede a imputabilidade do arguido nem tem por efeito a atenuação de tal culpa, e, consequentemente da pena”;

26ª – O arguido, nascido em … 1999, contando, pois, atualmente verdes 22 anos de idade, sofrendo de graves problemas de saúde mental, não merecerá, ao invés de imolado por sucessivas frias condenações, ainda, uma oportunidade para, com recurso a tratamento médico adequado, tentar reverter o seu terrível percurso de vida?

27ª – Seguramente que sim!

28ª – De resto, na própria Douta Sentença em crise vai aludido o sentido eminentemente pedagógico e ressocializador das penas;

29ª – Como também ali se salienta, a propósito do afastamento da aplicabilidade ao caso dos autos do Regime Penas consagrado no DL n.º 401/82, “as anteriores condenações não lograram instilar no arguido qualquer efeito dissuasor da vontade de delinquir (…)”;

30ª - Na esteira, aliás, do explanado na Douta Sentença 'sub judice', citando Paulo Pinto de Albuquerque, é caso de o arguido ser condenado numa pena atenuada;

31ª – Especialmente atenuada, opinamos, atendendo ao circunstancialismo pessoal do arguido;

32ª - A atenuação especial da pena, que 'in casu' propugnamos, cabe na previsão dos n.ºs 1 e 2 do art.º 72.º do Código Penal;

33ª - Verifica-se, 'ad minus', a acentuada diminuição da culpa contemplada no n.º 1, sendo a enumeração das circunstâncias elencadas no n.º 2 do citado preceito não é taxativa;

34ª - (E 'ad magis' a completa ausência dessa mesma culpa);

35ª - O art.º 73.º, n.º 1, a) e b) do Código Penal estabelece que sempre que houver lugar à atenuação especial da pena o limite máximo desta é reduzido de um terço e o limite mínimo ao mínimo legal, ou seja, um mês – art.º 41º, n.º 1;

36ª - Isto é, o arguido deveria – deverá... - ser condenado pela prática do crime que lhe vem assacado numa pena de prisão fixada entre 3 anos e 4 meses e um mês de prisão;

38ª – No caso dos autos, afigura-se-nos bem doseada a pena de 1 anos de prisão;

39ª - Foram violadas as normas dos artigos 71º; 72.º, n.ºs 1 e 2; 73.º, n.º 1, a) e b) todos do Código Penal; e 163.º e alínea b) do n.º 2 do art.º 410.º do Código de Processo Penal; e ainda princípio in dubio pro reo.»

c) O Ministério Público junto do Tribunal de 1.ª instância respondeu defendendo, em síntese, que:

«1. Os factos nº. 7 e 8 têm como suporte as declarações da assistente BB, tendo igualmente suporte no depoimento de CC e nas mensagens escritas transcritas nos autos.

2. O ponto 7. dos factos dados como provados indica condutas típicas ilícitas concretas e define uma baliza temporal em que tais condutas foram praticadas, pelo que não resulta a violação do direito ao contraditório, à defesa ou a um processo equitativo.

3. O Tribunal a quo requereu a realização de exame pericial ao “Instituto nacional de Medicina Médico-legal e Ciências Forenses, IP.” de modo a se pronunciar sobre se a imputabilidade do o ora recorrente na altura dos factos.

4. O exame foi apreciado na fundamentação da Douta sentença recorrida, tendo concluído pela inimputabilidade diminuída do arguido, encontrando-se refletido nos factos dados como provados relativos ao elemento subjetivo e na fundamentação para a aplicação da pena.

5. O regime previsto no Decreto-Lei n.º 401/92, de 23 de setembro não é de aplicação automática, pelo que a atenuação especial da pena consagrada deve ser ponderada consoante as circunstâncias do caso concreto.

6. No caso em apreço, da conjugação dos factos dados como provados, o crime cometido pelo ora recorrente e a forma como o perpetrou, os bens jurídicos violados e os antecedentes criminais do arguido, resultam exigências de prevenção geral que se opõem a tal atenuação.

7. A pena de 3 anos e 9 meses de prisão em que o ora recorrente foi condenado, apresenta-se como adequada, suficiente e proporcional aos factos praticados, atendendo à culpa do agente, bens jurídicos violados, as circunstâncias da sua prática, as suas repercussões sociais e as exigências de prevenção geral e especial.

8. A sentença recorrida fez uma determinação ponderada e correta do Direito aos factos em apreço e consequente condenação.

9. O Tribunal a quo não violou qualquer disposição legal.

Pelo que, deve ser mantida a sentença proferida nos presentes autos e negado provimento ao douto recurso, para que se faça Justiça.»

d) Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância exarou douto parecer, pelo qual, em síntese, considera que a sentença contém contradição insanável entre os fundamentos e a decisão, na medida em que estando assente a verificação de uma imputabilidade diminuída do arguido relativamente aos factos que são objeto do processo, não pode esta conduzir a uma «culpa elevada», como se considerou, uma vez que se trata de proposições contraditórias relativas à culpa.

e) No exercício do contraditório relativamente ao aludido parecer (artigo 417.º, § 2.º CPP), nada se acrescentou.

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (1)

E, nessa sequência, as que vêm suscitadas pelo recorrente são as seguintes:

- Erro de julgamento da questão de facto (relativamente aos factos julgados provados nos pontos 7 e 8);

- Contradição insanável da fundamentação (artigo 410.º, § 2.º, al. b) CPP);

- In dubio pro reo;

- Erro de julgamento de direito na graduação da culpa.

2. Na sentença recorrida o tribunal a quo deu como provado e como não provado o seguinte acervo factual, que motivou nos termos que a seguir se indicam:

«II – Factos provados e não provados (…)

A) Factos provados (…)

Após a realização da audiência de julgamento, provaram-se os seguintes factos com relevância para a boa decisão da causa:

A.I) Da acusação pública

1. BB, nascida em …2004, e o arguido, AA, iniciaram uma relação de namoro em data não concretamente apurada mas situada entre os meses de Janeiro e Fevereiro de 2020, sendo que em momento posterior, no mês de Março de 2020, o arguido foi detido para cumprimento de pena de prisão efectiva.

2. Tal relação foi retomada em Abril de 2020, na sequência da libertação do arguido, a coberto do regime excepcional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19.

3. Após a sua libertação, o arguido revelou ser controlador e possessivo, iniciou frequentes discussões com BB motivadas por ciúmes, fazendo-lhe exigências para que esta estivesse e fosse ter consigo.

4. Em data concretamente não apurada desse mês de Abril de 2020, em frente à porta do prédio da ofendida, sito na Rua …, …, a discussão entre ambos passou de verbal a física, tendo BB desferido uma bofetada ao arguido e este ripostado da mesma forma.

5. Subsequentemente, BB procurou pôr termo ao namoro com o arguido, altura a partir da qual este começou a pressioná-la para que não prosseguisse nesse intento, recorrendo à violência verbal e física.

6. No mês de Junho de 2020 a situação agudizou-se, sendo constante o envio de mensagens do arguido, através da rede social Instagram, para BB, do seguinte teor: “Eu mato-te.”; “Eu vou à tua procura.”; “Eu sei onde tu moras.”.

7. O arguido deu chapadas, pontapés a BB, apodando-a “vaca” e “puta”, em diversas ocasiões, em datas concretamente não apuradas, mas certamente situadas entre Março e Julho de 2020, cujas lesões aquela nunca tratou e disse à mãe serem resultado de quedas.

8. Como consequência directa e necessária das múltiplas condutas do arguido, BB sofreu dores e hematomas em diversas partes do corpo.

9. O arguido começou outrossim a estender os anúncios da prática de males à família de BB, levando a sua mãe, durante dois meses, entre Julho e o final Agosto de 2020, a sair de casa com a filha e refugiar-se em casa de familiares.

10. Apesar disso, o arguido não deixou de contactar com BB por mensagem, mantendo com ela diálogos do seguinte teor:

“N - Vou te rebentar.

B - eu peço te por tudo não me batas. oh AA, a sério, eu estou toda partida de ontem pvf,. Eu só te peço isso.

N - Ahahaha. Podes pedir o que quiseres. Vou te rebentar toda. Já gozaste tudo acredita”;

“N - Nem te atrevaz. ‘Tás onde? Não brinques cmg BB. Acredita se continuas vou te aleijar a sério. Vamos falar na boa. Não queiras as coisas assim. Se queres resolver a mal a gente resolve”;

“N - Só te peço isso. BB desculpa. Vais te arrepender. Fizeste mesmo queixa de mim a bofia?” Amanhã tenho que tar no tribunal as 2 falto vou?”

11. Em todo o circunstancialismo narrado, agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente, com intenção de molestar física e psiquicamente sua namorada e de pôr em crise a sua dignidade pessoal.

12.- O arguido não ignorava que BB era sua namorada, que contava apenas quinze anos e que tinha ascendente sobre ela, o que a levava a fazer o que ele lhe exigia, em detrimento da sua integridade física e psíquica e das determinações e vontade da família da jovem.

13. Ao esbofetear e pontapear BB, o arguido actuou com o propósito de a magoar e ciente de que tal tratamento era cruel e desumano.

14. Por outro lado, ao anunciar que a aleijava, que a matava, que a procurava, que a “rebentava”, bem sabia o arguido que tais afirmações eram idóneas a aterrorizar BB e a causar-lhe alarme e temor pela integridade física e pela vida.

15. Por seu turno, ao apodá-la de “vaca” e “puta”, actuou ainda o arguido com intenção de diminuir e achincalhar BB e bem sabendo que aqueles epítetos eram aptos a transtorná-la psiquicamente e a atingi-la na sua honra e na sua consideração, o que igualmente sucedeu.

16. Estava o arguido ciente que a sua conduta era proibida e punida por lei, sendo capaz de a orientar de harmonia com esse conhecimento.

A.II) Do relatório pericial

17. O arguido padece de uma deficiência mental leve (F70; CID-10) bem como de uma perturbação não especificada de personalidade (F60.9; CID-10).

18. À data da prática dos factos provados da acusação pública, não se apurou qualquer sintoma psicótico grave ao arguido, de natureza delirante ou alucinatória, que tivesse perturbado o sentido da realidade ou o impedisse de agir em consciência e vontade, admitindo-se que estaria minimamente capaz de se avaliar e de se determinar de acordo com a sua própria avaliação, porém, diminuída.

A.III) Das condições pessoais do arguido e da sua situação económica.

19. O arguido pertence a uma família numerosa, no total de sete filhos do relacionamento entre os pais, tendo um irmão uterino e outros germanos.

20. Num contexto sociofamiliar de baixa condição económica e pouco estruturante, o arguido foi alvo de fraco investimento afectivo e educativo das figuras parentais, com falta de cuidados básicos, situação que se agravava devido a comportamentos reputados de consumo abusivo e dependência de álcool por parte do pai, reputando-se a ocorrência frequente de episódios de violência e agressão no meio familiar.

21. O arguido entrou em contacto com o sistema da justiça no âmbito tutelar-educativo, com integração em centro educativo.

22. O arguido iniciou a escolaridade aos 6 anos de idade, tendo apresentado um percurso de instabilidade, com inúmeras retenções, não tendo concluído o 5.º ano de escolaridade.

23. O arguido foi acompanhado no Hospital … na especialidade de psiquiatria da infância e adolescência, com regularidade, no período compreendido entre …2012 e …2014, prendendo-se o motivo do acompanhamento médico com um quadro de perturbação do comportamento e insucesso escolar.

24. Em Maio de 2013 o arguido foi sujeito a avaliação psicológica onde se aponta a existência de défice intelectual.

25. Não é reputada ao arguido a participação em actividades estruturadas e organizadas.

26. À data dos factos destes autos, o arguido residia no agregado da mãe.

27. Maioritariamente desocupado, o arguido referiu que desempenhou trabalhos agrícolas sazonais em Abril de 2020 através de uma empresa de trabalho temporário e trabalhou numa empresa do grupo “…” cerca de um mês, passando de novo à situação de desemprego.

28. O arguido mantinha consumos regulares de haxixe, comportamento que não avalia como problemático.

29. Em período anterior ao cumprimento de pena de prisão efectiva, o arguido não comparecia às entrevistas com os Serviços de Reinserção Social.

30. A Equipa de Reinserção Social … encontrava-se a intervir em vários processos, nos quais tinha sido condenado em penas de prisão, suspensas na sua execução e com regime de prova, tendo o arguido incumprido com os mesmos em todos os processos, não seguindo os respectivos Planos de Reinserção Social.

31. No contacto estabelecido com o arguido em meio prisional, este tem revelado um estilo de interacção adequado e colaborante.

32. O arguido verbaliza reconhecimento da necessidade de realizar alterações comportamentais futuras, pelo que refere pretensão de investir no domínio laboral, afastar-se da interacção com pares conotados com condutas desviantes e não consumir estupefacientes.

33. O arguido dispõe do suporte da mãe e em particular da irmã, que refere ter uma vida organizada e activa.

34. O arguido perspectiva coabitar no agregado da irmã ou com a mãe e sobrinha.

35. A mãe do arguido reside em casa camarária de tipologia T3, com condições de habitabilidade adequadas, pagando a renda de € 6,00.

37. O agregado aufere o Rendimento Social de Inserção no montante de € 269,00 e abono e subsídio de doença da sobrinha, no total de € 121,00, sendo que a mãe do arguido aguarda a atribuição de pensão de reforma.

38. A irmã do arguido trabalha como empregada numa loja comercial, aufere o salário mínimo nacional, e vive em casa arrendada com dois filhos menores.

39. O arguido não dispõe de recursos financeiros próprios nem de projecto de empregabilidade.

40. Referente ao período decorrido em meio prisional, sinaliza-se ao arguido o registo de 3 medidas disciplinares de permanência obrigatória no alojamento – 20, 4 e 2 dias, respectivamente –, por infracções cometidas em Outubro e Novembro de 2020, e Fevereiro de 2021.

41. A 27 de Janeiro de 2021 realizou teste de rastreio ao consumo de estupefacientes com resultado positivo a THC.

42. No Estabelecimento Prisional … o arguido retomou a actividade escolar, ao frequentar no presente ano lectivo o EFA B2, com assiduidade e sendo participativo.

43. O arguido frequentou, em Dezembro de 2020, o programa “Estrada Segura”, em que também se mostrou participativo.

44. O arguido tem sido visitado em meio prisional pela mãe e irmãs.

A.IV) Dos antecedentes criminais do arguido.

45. O arguido respondeu e foi condenado, por factos datados de 28.01.2016, pela prática de um crime de roubo qualificado e um crime de sequestro, previstos e punidos, respectivamente, pelos artigos 210.º n.º 2 do Código Penal e 158.º do Código Penal, por sentença datada de 15.12.2016 com trânsito em 02.11.2017, na pena única de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período e revogada por despacho datado de 18.11.2020.

46. O arguido respondeu e foi condenado, por factos datados de 27.12.2018, pela prática de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25.º al. a) do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, por referência À tabela I-C anexa ao referido diploma, por sentença datada de 26.10.2020 com trânsito em 25.11.2020, na pena de 1 ano e seis meses de prisão efectiva.

47. O arguido respondeu e foi condenado, por factos datados de 03.09.2017, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98 de 3 de Janeiro, por sentença datada de 14.09.2017 com trânsito em 02.11.2017, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 5,00, convertida, por despacho datado de 30.05.2018, em 53 dias de prisão subsidiária e extinta por despacho datado de 23.11.2018.

48. O arguido respondeu e foi condenado, por factos datados de 10.03.2017, pela prática de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º do Código Penal, por sentença datada de 20.03.2018 com trânsito em 02.05.2018, na pena de 14 meses de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período, sujeita a regime de prova, e extinta por despacho datado de 11.09.2019.

49. O arguido respondeu e foi condenado, por factos datados de 29.07.2016 e 13.12.2016, pela prática de dois crimes de furto qualificado, dois crimes de furto simples, um crime de condução de veículo sem habilitação legal e um crime de furto simples, previstos e punidos, respectivamente, pelos artigos 203.º, 204.º n.º 2 al. e), com referência ao artigo 202.º al. e) do Código Penal, 203.º n.º 1 do Código Penal, 3.º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98 de 3 de Janeiro e 203.º do Código Penal, por sentença datada de 26.02.2019 com trânsito em 08.07.2020, na pena única de 5 anos de prisão efectiva.

50. O arguido respondeu e foi condenado, por factos datados de 13.07.2017, pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 203.º n.º 1, 204.º n.º 2 al. e) e 73.º n.º 1 al. a) do Código Penal, por sentença datada de 14.03.2019 com trânsito em 23.04.2019, na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período, sujeita a regime de prova, e revogada por despacho datado de 16.11.2020.

51. O arguido respondeu e foi condenado, por factos datados de 25.05.2018 e 28.05.2018, pela prática de três crimes de furto qualificado, um crime de condução de veículo sem habilitação legal, um crime de roubo e três crimes de furto simples, previstos e punidos, respectivamente, pelos artigos 203.º, 204.º n.º 2 al. e), com referência ao artigo 202.º al. d) do Código Penal, 3.º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98 de 3 de Janeiro, 210.º n.º 1 do Código Penal e 203.º n.º 1 do Código Penal, por sentença datada de 16.12.2019 com trânsito em 28.01.2020, na pena única de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período, sujeita a regime de prova.

52. O arguido respondeu e foi condenado, por factos datados de 21.07.2017, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º n.º 1 al. c), por referência ao artigo 2.º n.º 1 al. n) e 3.º n.º 2 al. i) da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro, por sentença datada de 16.12.2019 com trânsito em 19.02.2020, na pena de 2 anos e 8 meses de prisão efectiva.

53. O arguido respondeu e foi condenado, por factos datados de 12.02.2020, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98 de 3 de Janeiro, por sentença datada de 04.05.2020 com trânsito em 02.07.2020, na pena de 10 meses de prisão efectiva, extinta por despacho datado de 19.04.2021.

54. O arguido respondeu e foi condenado, por factos datados de 22.06.2020, pela prática de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º n.º 1 do Código Penal, por sentença datada de 14.07.2020 com trânsito em 30.09.2020, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão efectiva.

55. O arguido respondeu e foi condenado, por factos datados de 27.12.2018, pela prática de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, por sentença datada de 26.10.2021, com trânsito em julgado a 26.11.2021, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão efectiva, operando-se o cúmulo das penas aplicadas e não extintas referidas nos pontos antecedentes, em 8 anos, 1 ano e 9 meses e 5 anos e 6 meses de prisão efectiva.

B) Factos não provados (…)

Após a realização da audiência de julgamento, não se provou que:

1. Que AA tenha impedido BB de estar e conviver com as suas amigas ou outras pessoas;

2. Que o evento referido em 4. supra dos factos provados tenha ocorrido novamente dias depois e no mesmo local;

3. Que, em finais de Maio de 2020, na sequência da deslocação de BB e sua mãe a casa da irmã do arguido para reclamar junto dele a devolução de um telemóvel que retirara à mãe de BB, AA saiu dessa residência e, instantes volvidos, ligou à namorada, exigindo-lhe que viesse ao seu encontro, à porta do prédio;

4. Que, na sequência do descrito no ponto anterior, BB assim tenha feito e, chegada ao pé do arguido, este deu-lhe chapadas e pontapés, ao mesmo tempo que a apodava de “porca” e “puta” e lhe anunciava que, nesse mesmo dia, “furtava o carro à sua mãe”;

5. Que no dia 10.06.2020, no contexto de mais uma discussão, no interior da residência do arguido, sita na …, …, este pontapeou BB nas pernas e fê-la ajoelhar-se perante si para lhe pedir perdão, ainda que não houvesse qualquer razão para tal pedido;

6. Que, tendo BB regressado à sua residência habitual após a ocorrência do referido em i) supra e em virtude do início do ano lectivo, em data concretamente não apurada do mês de Setembro de 2020, à porta da escola, o arguido abordou BB logo no primeiro dia de aulas, intimidando-a e insultando-a nos termos acima já transcritos;

7. Que, desde a data referida no ponto anterior até ser novamente privado da liberdade, no termo de Setembro de 2020, o arguido tenha continuado a contactar BB todos os dias, constantemente, a fiscalizar os seus movimentos e anunciando-lhe que, caso desacatasse as suas determinações, a matava ou lhe batia.

C) Fundamentação da convicção do Tribunal quanto aos factos provados e não provados.

O tribunal fundou a sua convicção quanto aos factos provados na análise crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, à luz das regras da experiência comum e de acordo com o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º, do Código de Processo Penal), designadamente declarações do Arguido, depoimentos das testemunhas, bem como o acervo documental junto aos autos.

Importa referir que se segue o entendimento segundo o qual se deve apreciar factos como os não provados que relevância para a boa decisão da causa, sejam carreados para o processo pela defesa em sede de audiência de julgamento, importando a sua consignação e motivação expressa, na esteira dos acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 18.01.2012 com o n.º de processo 392/10.3PCCBR.C1, na esteira dos acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 18.01.2012 com o n.º de processo 392/10.3PCCBR.C1 e de 24.04.2019 com o n.º de processo 708/15.6T9CBR.C1, disponíveis em http://www.dgsi.pt/

Quanto à prova documental, o Tribunal valorou os documentos constantes dos autos, nos termos consagrados no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 87/99, de 09/02/1998, ou seja, tenham ou não sido expressa e formalmente debatidos em audiência de julgamento, porquanto o seu teor sempre poderia ter sido ter sido questionado e apreciado naquela sede, ficando assegurado o exercício do princípio do contraditório.

Efectivamente não basta a indicação dos meios de prova pré constituídos e produzidos audiência de julgamento que serviram para fundamentar a sentença.

É ainda necessário um exame crítico desses meios, que servirá para convencer os interessados e a comunidade em geral da correcta aplicação da justiça no caso concreto. Trata-se de significativa alteração do regime do Código de Processo Penal de 1929, e mesmo do que, segundo alguma doutrina, anteriormente, vigorava por alterações introduzidas no C.P.P.

Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum), nem os meios de prova (thema probandum), mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência.

A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente permita aos sujeitos processuais o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, conforme impõe o art. 410°, n.º 2. do C. P. P..

E extraprocessualmente a fundamentação deve assegurar, pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais, mas a própria sociedade.

O Tribunal fundou a sua convicção quanto aos factos provados: a) Nas declarações tomadas à assistente (progenitora da vítima do reputado crime); b) Nos depoimentos prestados pelas testemunhas BB (vítima do reputado crime), DD e CC (respectivamente, avó e tia de BB) e, ainda, EE (terapeuta de BB); c) os depoimentos prestados pelas testemunhas FF e GG (respectivamente, irmã e cunhada do arguido); e d) no que tange à prova documental, em particular, o auto de denúncia de fls. 2 e 113, com o aditamento de fls. 9 e 118, a participação de fls. 317, os printscreens de fls. 72 e ss., e 138 e ss., a informação de fls. 335, o certificado de registo criminal do arguido (ref.ª CITIUS 89962123), o relatório social elaborado pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais – DGRSP – (com a ref.ª CITIUS 7831666) e o Relatório da Perícia Médico-Legal – Psiquiatria, elaborado pela Delegação do Centro – Serviço de Clínica e Patologia Forenses – Unidade Funcional de Clínica Forense do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P. (ref.ª CITIUS 8628987).

Importa, analisar a prova por declarações e testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento.

Refira-se, antes do mais, que o arguido se remeteu ao silêncio, exercendo o direito que decorre do artigo 61.º n.º 1 al d) do Código de Processo Penal.

De outro modo, no que respeita à prova pessoal decorrente do requerimento probatório da acusação pública, importa dizer que as declarações e depoimentos prestados foram credíveis e com um grau de fiabilidade de salientar, não se procurando nos mesmos exacerbar a factualidade que consta dos autos (exemplificativamente, todos estes intervenientes processuais precisaram, com cuidado, quais os factos que tinham conhecimento directo ou indirecto, se algum, havendo de igual modo a testemunha BB refutado com clareza certos comportamentos do arguido que a instâncias do Ministério Público e dos mandatários lhe eram questionados, como o desferimento de murros por parte do arguido), inexistindo qualquer motivo para não relevar tal prova em função da inimizade que as suas relações com BB pudessem sugerir.

Assim, em particular, no que importa às declarações tomadas à assistente, que se reitera ser progenitora de BB, o tribunal considerou o seu depoimento amplamente credível, circunstanciado e descritivo, revelando conhecimento directo de certos factos (lesões físicas percepcionadas visualmente, bem como injúrias e ameaças), entendendo o tribunal que as suas declarações revelaram um grau de fiabilidade seguro, não obstante o evidente transtorno e emotividade causado pelo relato da factualidade dos autos e o interesse subjacente na causa.

Sem esconder a sua evidente preocupação com o objecto deste processo, mas sem com isso exacerbar a imputação ao arguido (referindo, exemplificativamente, nunca ter assistido a agressões físicas), a assistente relatou a sua percepção da relação de BB com o arguido, isto é, o estado de desestabilização emocional crescente desta, mais relatando episódios pessoalmente presenciados da conduta do arguido ou do resultado desta, verificando hematomas nos membros inferiores da sua filha, visualizando mensagens telefónicas de teor gravemente insultuoso e ameaçador para com esta, no contexto de uma reunião familiar, sendo que BB terá utilizado o telefone da sua avó para comunicar com o arguido numa estada na residência desta.

O depoimento de BB, sobre a qual foram praticados os factos dados como provados supra, foi pautado por uma compostura assinalável, atenta a idade da testemunha e a sua razão de ciência acerca da matéria dos autos, tendo relatado com sinceridade toda a imputação fáctica que recai sobre o arguido e de forma confirmatória da generalidade dos factos, precisando detalhadamente quaisquer imprecisões que resultassem da acusação pública.

Concretamente, BB relatou uma relação conflituosa e possessiva quase desde o seu início (pois que o arguido esteve em cumprimento de pena de prisão no início da relação), com um grau de agressividade crescente, que começou com agressões verbais (presenciais e por vias telemáticas) e partiu para físicas (chapadas e pontapés), que se agravaram e assumiram reiteração (semanal no dizer da testemunha), posto o que, na tentativa de terminar a relação de namoro entre ambos, assumiu o arguido condutas de ameaças de males futuros à testemunha e à assistente. Relatou, de outro modo, que a reaproximação e os novos contactos com o arguido após o período de reclusão da testemunha (levada a cabo pela família desta num período de 2 meses), em momento anterior ao cumprimento de nova pena de prisão efectiva por este e correspondente ao início do ano escolar, não assumiu quaisquer contornos de agressividade ou teor ameaçador, diversamente do relatado na acusação pública.

Sem prejuízo da verosimilhança e fiabilidade atribuída ao seu depoimento, que não é beliscada de modo algum, salienta o tribunal que se notou no depoimento de Bárbara Leão um certo desvalorizar ou conformismo com as situações dos autos e a conduta do arguido, facto que se poderá reconduzir à sua precoce idade (não estando a sua personalidade integralmente formada, crê-se que pretendeu a testemunha, acima de tudo, demonstrar um semblante composto) ou constituir o mesmo evidência de um comportamento típico das vítimas do crime de violência doméstica, um baixar de braços perante a vivência de tal quadro comportamental abusivo.

No mais, quanto às testemunhas DD e CC (respectivamente, avó e tia de BB) e, ainda, EE (terapeuta de BB), sem prejuízo para a sua ligação evidente com BB, nas suas vestes familiares e profissionais, considerou-se os respectivos depoimentos isentos, prestados de forma circunstanciada no que respeita à parte dos factos dos autos que era do conhecimento das testemunhas (injúrias e ameaças percepcionadas pela visualização de mensagens de texto, a respeito da avó, hematomas percepcionados visualmente pela tia, e injúrias e ameaças percepcionadas pela terapeuta no contexto de consulta de BB, em que o arguido se encontrava na rua junto ao prédio do seu consultório) inexistindo qualquer motivo que infirme ou ponha em causa os seus relatos, considerados como credíveis pelo tribunal.

Por outro lado, no que concerne à prova pessoal arrolada pela defesa, entende o tribunal que os depoimentos das testemunhas em questão foram igualmente credíveis, se bem que em certos momentos algo subjectivados e porventura desculpabilizantes, depondo na generalidade com espontaneidade relativamente às questões colocadas, revelando parco ou nenhum conhecimento acerca da factualidade imputada ao arguido, mais revelando apenas um conhecimento de ordem geral da relação deste com BB.

Concretamente, inquirida FF (que se reitera ser irmã do arguido) quanto aos factos dos autos, esta refutou a factualidade dos autos, mas, de forma algo inconsistente, referiu textualmente e de forma não concretizada saber que o irmão não tinha sido correcto com BB, mais admitindo a existência de ameaças (que diz terem sido recíprocas) e, ainda, a instâncias do Ministério Público, o proferimento de insultos do arguido a BB.

Por seu turno GG, cunhada do arguido, com um depoimento algo inconcretizado, referiu com interesse para a matéria dos autos que ouviu apenas discussões entre arguido e BB, referindo tratar-se de um relacionamento normal de um casal novo, circunstância que o tribunal não pôde deixar de considerar uma asserção subjectivada, considerando-se que a conflituosidade não será a normalidade das relações amorosas, independentemente das idades em questão.

Importa atentar que as testemunhas arroladas pela defesa não demonstraram conhecimento significativo acerca dos factos imputados ao arguido, ora refutando, sem mais, a ocorrência do que consta da acusação, ora alegando o seu desconhecimento, razão pela qual se considerou os seus depoimentos meramente acessórios.

Tais depoimentos contribuíram para a convicção do tribunal acerca dos factos provados e não provados em escassa medida, consistente apenas na corroboração dos insultos propalados e do quadro de conflituosidade, já que, sendo provenientes da defesa, tais factos desfavoráveis assumem um grau de fiabilidade mais preponderante.

No que concerne à prova documental, sem prejuízo para o que se dirá adiante, cumpre salientar que contribuiu de forma preponderante para a convicção do tribunal a visualização de printscreens de mensagens de texto trocadas entre o arguido e BB, analisadas em audiência de julgamento, de teor que se considera revelador de um quadro generalizado de abusividade da conduta do arguido e da relação que este mantinha com BB.

Assim, a convicção do tribunal acerca dos factos provados em 1. e 2. resultou do relato empreendido pela testemunha BB, ao que acresceu o relato da assistente e a consulta do certificado do registo criminal do arguido (a respeito do seu ingresso e saída de estabelecimento prisional).

Consigna-se, desde já e para que dúvidas não restem, que foi rectificado o erro de escrita constante da acusação no facto provado em a), nos termos do artigo 146.º n.º 1 do Código de Processo Civil (aplicável ex vi do artigo 4.º do Código de Processo Penal), o qual indicava que BB teria nascido no ano de 2014 antes que no ano de 2004, facto evidente mas oportunamente esclarecido em sede de audiência de julgamento (pela assistente), sendo que data surge evidenciada no contexto da acusação como um mero lapso, devidamente ressalvado.

No que respeita aos factos provados em 3., 4. e 5., dir-se-á que a convicção do tribunal a respeito dos mesmos se fundou essencialmente no depoimento de BB, que confirmou as características possessivas do arguido, consubstanciadas no clima conflitual por este instilado na relação de ambos (com discussões diárias), confirmando in totum o primeiro episódio de violência física e a tentativa de quebrar o namoro e as subsequentes ameaças. Tal factualidade foi ainda corroborada pelo depoimento da assistente e da testemunha DD, que confirmaram que o arguido telefonava e enviava mensagens incessantemente para BB causando nesta ansiedade e desconforto, o que é corroborado pela análise das mensagens de texto que constam dos autos.

O proferimento de expressões insultuosas para com a arguida num contexto de agravamento das condutas quezilentas e agressivas do arguido (facto provado em 6., foi corroborado por BB, referindo ser ameaçada neste período, sendo corroborado pela assistente, a qual descreveu uma senda persecutória do arguido e o teor ameaçador das mensagens trocadas, que foram igualmente analisadas e que corroboram o facto aqui em questão.

No que concerne aos factos consignado em 7. e 8., a prova do mesmo resultou do depoimento de BB, a qual relatou, inequivocamente, a reiteração diária das expressões reputadas ao arguido e do desferimento semanal de chapadas e pontapés no seu corpo. O facto de BB ter ocultado as lesões incorridas da assistente decorreu do depoimento desta última, sendo de relevar que tal ocultação é uma característica tipicamente associada a vítimas do crime imputado ao arguido, sendo a sua admissão considerada ela própria vexatória ou possibilitadora de represálias por parte do agente de tais factos. A ocorrência de lesões físicas resulta, entre o mais, das declarações da assistente e da testemunha CC, que verificaram hematomas em membro inferior de BB, sendo corroboradas as dores sentidas pelas regras da experiência comum, sendo o desferimento de chapadas na cara e o desferimento de pontapés por parte de um homem numa jovem (à data com 15 anos) logicamente apto a provocar indesmentíveis dores. Esta circunstância decorre igualmente do teor das mensagens escritas trocadas, como é vivo e expressivo exemplo aquela constante do facto provado em j) (“N - Vou te rebentar. // B - eu peço te por tudo não me batas. oh AA, a sério, eu estou toda partida de ontem pvf,. Eu só te peço isso […]”).

O facto 13., no que tange à circunstância de a família de BB a ter afastado e a si própria do arguido resultou da generalidade da prova pessoal proveniente da acusação (com excepção para a terapeuta EE), que descreveram tal período de reclusão de forma amplamente circunstanciada, relatando a assistente ser a forma de estancar as condutas imputadas ao arguido. No que concerne ao anúncio da ocorrência de males relevantes por parte do arguido, a sua ocorrência resultou essencialmente das declarações da assistente com conhecimento directo e factual (reputando, para mais, que em tal período BB terá desenvolvido um comportamento retraído e evasivo), sendo ainda confirmado por DD e pela própria BB, ainda que indirectamente, ao referir que, por oposição, tais comportamentos não terão ocorrido no final de Agosto e em Setembro.

O teor e autoria das mensagens referidas em 10. foi confirmado pela testemunha BB, sendo que as mesmas foram devidamente analisadas em audiência de julgamento.

No que importa à imputação subjectiva dos factos ao arguido (factos 11. a 16.), diga-se que os mesmos resultaram da conjugação dos restantes factos provados da acusação pública com as regras da experiência comum, notando-se que as condutas comissivas adoptadas pelo arguido de forma reiterada no tempo, sucessiva e de crescente gravidade, são inteiramente capazes de revelar uma intenção inequívoca de praticar os factos em questão, como efectivamente o logrou fazer, de forma livre e deliberada.

No que importa à consciência da ilicitude por parte do arguido (facto provado em 16.), além do que se disse no parágrafo antecedente, é relevante atentar que a constatação da mesma é aquilatada no relatório pericial produzido e acima elencado o qual refere, em termos inequívocos, que o arguido mostrava arrependimento posterior pelas suas condutas, aí se concluindo que cognitivamente o arguido tem consciência da ilicitude dos seus actos.

No que importa aos factos 17. e 18., a convicção do tribunal decorreu do relatório pericial dos autos (analisado em audiência de julgamento), sendo de relevar que ao arguido são atribuídas maleitas do foro psicopatológico (ainda que não hajam sido realizados testes psicométricos foi analisado o historial clínico do arguido e observado o mesmo no contexto da realização da perícia), sem que no entanto se lhe atribua qualquer sintoma ou ideação que impedisse o arguido de agir livremente, ainda que a sua capacidade de formação consciência e vontade seja reputada como diminuída.

O enquadramento sócio-económico e as condições pessoais do arguido (factos 19 a 43. supra), resultaram da consulta e análise do relatório social elaborado pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais de junto aos autos por iniciativa do tribunal.

Por seu turno, os antecedentes criminais do arguido (factos provados de 44. a 55.) resultaram da consulta e análise do seu Certificado de Registo Criminal junto aos autos.

No que respeita aos factos não provados dir-se-á que os mesmos resultaram ou da sua falta de prova ou prova bastante para formular a convicção do tribunal além de quaisquer dúvidas (factos consignados 1., 2., 4., e 5.), ou da sua infirmação pela prova pessoal produzida, concretamente, o testemunho de BB (factos consignados em 3., 6. e 7.), ao que se atribuiu uma fiabilidade bastante para, em face da demais prova, o tribunal não os poder ter por provados.»

3. Apreciando

3.1. Questão prévia

A dado passo da audiência, na sequência da produção de prova, o Tribunal considerou justificado alterar não substancialmente os factos imputados pela acusação pública ao arguido. Para tanto, por despacho notificado aos sujeitos processuais, despoletou o incidente correspetivo, previsto no artigo 358.º CPP, ficando o arguido ciente da intenção de considerar integrado no objeto do processo outros factos, do mesmo jaez dos já descritos na acusação, praticados no mesmo espaço temporal. Ao invés de o arguido se pronunciar sobre a questão que lhe foi colocada e requerer, se assim o entendesse, tempo para preparar a defesa quanto à nova factualidade, resolveu interpor um recurso! Nessa sequência o Tribunal, na sessão seguinte, esclarecendo e aproveitando para corrigir os termos da formulação do referido incidente, deu novamente a palavra ao defensor do arguido para se pronunciar, o que este fez, prescindido de prazo para preparação da defesa. E é por essa singela razão que o tal recurso, intempestivamente apresentado, nunca chegou sequer a ser admitido. Sendo essa a razão pela qual o Ministério Público (junto do Tribunal a quo) nunca se pronunciou sobre tal matéria. Não obstante o arguido, nas suas alegações para o presente recurso, refere-se àquele, fazendo tábua rasa do que efetivamente sucedeu! Também o parecer do Ministério Público junto deste Tribunal da Relação se pronunciou sobre um recurso que, afinal, nunca o foi. Fica, pois, esclarecido, que o objeto do presente recurso se cinge ao que vem delimitado pelas conclusões extratadas supra.

3.2. Do erro de julgamento da questão de facto

O recorrente considera que os pontos 7 e 8 da factualidade julgada provada, o foi erradamente. No essencial as razões apontadas pelo recorrente para impugnar esta factualidade, assentam na invocação de que a factualidade vertida nesses pontos não está suficientemente balizada no espaço e no tempo.

Lembremos que a impugnação ampla da matéria de facto tem, naturalmente, as suas regras, que neste conspecto estão previstas no artigo 412.º, § 3.º CPP, ali se referindo concretamente ser ónus do recorrente a indicação dos factos que considera incorretamente julgados e as provas que impõem decisão diversa.

Vejamos, então.

Os factos em referência têm a seguinte redação:

«7. O arguido deu chapadas, pontapés a BB, apodando-a “vaca” e “puta”, em diversas ocasiões, em datas concretamente não apuradas, mas certamente situadas entre março e julho de 2020, cujas lesões aquela nunca tratou e disse à mãe serem resultado de quedas.

8. Como consequência direta e necessária das múltiplas condutas do arguido, BB sofreu dores e hematomas em diversas partes do corpo.»

O Tribunal a quo motivou a sua decisão, no essencial, do seguinte modo: «resultou do depoimento de BB, a qual relatou, inequivocamente, a reiteração diária das expressões reputadas ao arguido e do desferimento semanal de chapadas e pontapés no seu corpo. O facto de BB ter ocultado as lesões incorridas da assistente decorreu do depoimento desta última, sendo de relevar que tal ocultação é uma característica tipicamente associada a vítimas do crime imputado ao arguido, sendo a sua admissão considerada ela própria vexatória ou possibilitadora de represálias por parte do agente de tais factos. A ocorrência de lesões físicas resulta, entre o mais, das declarações da assistente e da testemunha CC, que verificaram hematomas em membro inferior de BB, sendo corroboradas as dores sentidas pelas regras da experiência comum, sendo o desferimento de chapadas na cara e o desferimento de pontapés por parte de um homem numa jovem (à data com 15 anos) logicamente apto a provocar indesmentíveis dores. Esta circunstância decorre igualmente do teor das mensagens escritas trocadas, como é vivo e expressivo exemplo aquela constante do facto provado em j) (“N - Vou te rebentar. // B - eu peço te por tudo não me batas. oh AA, a sério, eu estou toda partida de ontem pvf,. Eu só te peço isso […]”).»

Temos, portanto, a indicação da fonte probatória (declarações prestadas pela ofendida e pela testemunha CC), as quais efetivamente se referiram a tais factos e nos termos que vieram a ser fixados e cuja credibilidade o recorrente não coloca em causa! A acrescer que as agressões físicas e verbais a que nesses pontos se alude, a mais de bem precisadas quanto à sua natureza (chapadas e pontapés e os epítetos de «vaca» e de «puta») e consequências (a ofendida «sofreu dores e hematomas em diversas partes do corpo»), o estão também, suficientemente, quanto à sua ocorrência no tempo (entre março e julho de 2020).

Sendo que o recorrente não indica qualquer outra prova em que possa estribar a sua impugnação.

É, pois, manifesta a falta de fundamento desta impugnação, que por assim ser improcederá.

3.3. Dos vícios da decisão recorrida

Alega o recorrente que a sentença recorrida integra uma contradição insanável na fundamentação! Sem precisar qual seja ela, alude a «duas Perícias Psiquiátricas», quando nos autos foi realizada apenas uma! Confunde também perícias com pareceres. Neste caso do que se trata é de uma perícia (e não de um «parecer»). Sendo bem distintas as respetivas características. Enquanto os primeiros são meio de prova, com um valor probatório específico (artigo 163.º CPP), por técnicos nomeados pela autoridade judiciaria ou membros de Instituto ou Laboratório Público, estando os respetivos membros vinculados a critérios de imparcialidade (artigos 151.º ss. CPP e Lei n.º 45/2004, de 19 de agosto); estes, não sendo meios de prova, constituem meras opiniões produzidas por técnicos (p. ex. 165.º, § 3.º CPP e 426.º CPC).

Também o Ministério Público junto deste Tribunal de recurso, no parecer emitido nos termos previstos no artigo 416.º CPP, considera verificar-se este vício da decisão e, porventura, o vício do erro notório na apreciação da prova. Para tanto argumenta-se, em síntese, que resultando do exame pericial que o arguido tinha uma imputabilidade diminuída aquando da prática dos factos e relevando esta para o juízo de culpa, enquanto juízo de censurabilidade dirigido ao agente pelos factos que lhe são imputados, não pode uma imputabilidade diminuída conduzir a uma culpa elevada, como considerou a sentença. Tal redundando numa contradição nos termos.

«Com efeito, a culpa pressupõe a liberdade necessária para o agente se determinar de acordo com a avaliação da ilicitude da conduta, da consciência e vontade de praticar a conduta ilícita. Donde não podia a podia a sentença recorrida retirar da imputabilidade diminuída a conclusão de que o arguido revelou uma culpa elevada, para nela assentar a determinação da medida concreta da pena.»

Concordando-se com todas as considerações de direito substantivo doutamente aduzidas no citado parecer, já não acompanhamos a conclusão relativa a vício(s) da decisão.

Com efeito, os vícios previstos no artigo 410.º, § 2.º, reportam-se à lógica jurídica ao nível ou com arrimo na matéria de facto, isto é, às circunstâncias de facto que inviabilizam uma decisão logicamente correta e em conformidade com a lei. Reportam-se às circunstâncias que inviabilizam uma decisão logicamente correta e em conformidade com a lei. E por isso, para a sua verificação, o Tribunal de recurso prescinde da análise da prova concretamente produzida, atendo-se somente à conexão lógica do texto da decisão, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum. Mas só assumem tal natureza os erros constatáveis pela simples leitura do teor da própria decisão da matéria de facto, não sendo admissível o recurso a elementos estranhos àquela, para os fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento. E assentam numa conexão necessária com a decisão da matéria de facto e respetiva motivação, com referência ao objeto do processo. Não se reportando a erros de julgamento de direito. Como afirma o Supremo Tribunal de Justiça, «há contradição insanável da fundamentação quando através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou seja, quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditória entre a fundamentação probatória da matéria de facto.» (2) «Havendo contradição insanável entre a fundamentação e a decisão quando, também através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova indicados na fundamentação como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo.»(3) Ora nos pontos 17. e 18. da matéria de facto provada, fixam-se as circunstâncias relativas à imputabilidade diminuída do arguido, indicando-se na motivação respetiva, como meio de prova demonstrativo, o relatório pericial, o qual tem o valor probatório já supra aludido, conforme previsto no artigo 163.º CPP. O problema que se deteta e alega (imputabilidade diminuída ser – alegadamente - incompatível com culpa elevada) não emerge, pois, da fixação dos factos provados ou não provados ou da sua fundamentação, sendo porventura erro de direito na determinação da medida da pena (que será objeto da respetiva analise adiante), pois só nesta fase se afere da medida da culpa do arguido, no contexto da imputabilidade diminuída que se provou. Não pode pretender-se, em suma, que um eventual erro de julgamento da questão de direito, respeitante à determinação da medida da pena, possa servir de lastro a vício inquinador da sentença, seja o de erro notório na apreciação da prova, seja de contradição insanável na fundamentação (4).

Não se verificam, pois, os vícios que se assinalam à sentença.

3.4. Da preterição do princípio in dubio pro reo

O recorrente invoca o princípio in dubio pro reo nas conclusões 22.º e 39.º, mas nem nas conclusões nem na motivação sustenta (adianta, concretiza) a razão para tal!

Ora o sentido e conteúdo do in dubio pro reo, como salienta Figueiredo Dias (5), é «um non liquet na questão da prova – não [se] permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita decisão (…) - tem de ser sempre valorado a favor do arguido.»

O in dubio pro reo encerra uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas na apreciação da prova produzida na instância, não se descortina qualquer ofensa do princípio in dubio pro reo, na medida em que não se vislumbra, nem o recorrente demonstra, que o Tribunal a quo haja resolvido qualquer non liquet contra o arguido. E é por demais sabido que a violação de tal princípio supõe, de um lado, a formação de uma convicção positiva sem suporte probatório bastante, o que não ocorre; ou de outro, que demonstrada uma dúvida razoável ante a prova produzida o Tribunal a tenha resolvido contra o arguido, o que também não sucede.

Pelo que também não se verifica qualquer vulneração do princípio in dubio pro reo.

3.5. - Erro de julgamento de direito

Considerou o Tribunal a quo - no que se mostra inquestionável - que a factualidade provada era integradora da prática pelo arguido do crime de violência doméstica, previsto no artigo previsto no artigo 152.º, § 1.º, al. b) e § 2.º, al. a) CP, em razão da relação de namoro que mantinha com a ofendida e o facto de esta ser menor de idade (factos respeitam a janeiro/fevereiro de 2020 a junho do mesmo ano, tendo a ofendida nascido a … 2004).

Tal crime é punível com pena de prisão de 2 a 5 anos.

O recorrente não questiona a qualificação jurídica dos factos praticados, nem sequer a sua imputabilidade, se bem que diminuída e, por tal razão, deverá a pena ser especialmente atenuada.

A sentença considerou provado que «o arguido padece de uma deficiência mental leve (F70; CID-10) bem como de uma perturbação não especificada de personalidade (F60.9; CID-10)» e que «à data da prática dos factos provados (…), não se apurou qualquer sintoma psicótico grave (…), de natureza delirante ou alucinatória, que tivesse perturbado o sentido da realidade ou o impedisse de agir em consciência e vontade, admitindo-se que estaria minimamente capaz de se avaliar e de se determinar de acordo com a sua própria avaliação, porém, diminuída.»

Dispõe o artigo 20.º do CP, que:

«1 - É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.

2 - Pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída.

(…)»

Daqui deriva que inimputabilidade depende da existência de um pressuposto biológico (anomalia psíquica) e de um pressuposto psicológico ou normativo (incapacidade para avaliar a ilicitude do facto ou se determinar de harmonia com essa avaliação).

Devendo-se concluir que a lei consagra um modelo lato de inimputabilidade no artigo 20.º, § 1.º CP, o qual se não limita às doenças mentais como fundamento desse juízo, antes o alarga a todas as anomalias psíquicas que tenham como efeito não ter o arguido, no momento da prática do facto, capacidade para entender e querer. Excluindo-se da noção de inimputabilidade as situações em que o agente padece de anomalia psíquica à data dos factos mas esta não gera o efeito legalmente exigido, desde logo por não poder estabelecer-se a relação causal entre a anomalia e o ato do agente que o artigo 20.º, § 1.º pressupõe.

No § 2.º do artigo 20.º CP estabelece-se, por sua vez, que «pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída.»

Exigindo-se, pois, que no momento da prática do facto o agente padeça de anomalia psíquica grave (e não qualquer anomalia psíquica), não acidental, isto é, que não seja de aparecimento súbito e que desapareça rapidamente, cujo efeito não domine, sem que por isso possa ser censurado. Por contraste com o elemento normativo da inimputabilidade em sentido próprio, pressupõe-se que o agente tenha capacidade para avaliar a ilicitude do ato ou de se determinar de acordo com ela (pois se faltar esta capacidade, o arguido portador de anomalia psíquica é inimputável nos termos do artigo 20.º, § 1.º), mas que tal capacidade se encontre sensivelmente diminuída.

Tal como parece ser a posição da decisão recorrida, também seguimos o entendimento de Jorge de Figueiredo Dias relativamente à vexata quaestio da imputabilidade diminuída, assumido a divergência face à tese tradicional sobre esta matéria. Considerando neste conspecto, que hoje se vai reconhecendo não se tratar já «de uma diminuição da imputabilidade na aceção se um seu grau menor, ou sequer de uma diminuição da “capacidade de controlo” e consequentemente capacidade de inibição: toda esta forma de suscitar o problema é ainda filha de uma conceção da culpa como capacidade individual de motivação pela norma. Do que se trata é antes, verdadeiramente, de casos de imputabilidade duvidosa, no particular sentido de que neles se comprova a existência de uma anomalia psíquica, mas sem que se tornem claras as consequências que daí devem derivar relativamente ao elemento normativo-compreensivo exigido; casos pois, da nossa perspetiva, em que é duvidosa ou pouco clara a compreensibilidade das conexões objetivas de sentido que ligam o facto à pessoa do agente.

(…) Se nos casos de imputabilidade diminuída, as conexões objetivas de sentido entre a pessoa do agente e o facto são ainda compreensíveis e aquele deve, por isso, ser considerado imputável, então as qualidades especiais do caráter entram no objeto do juízo de culpa e por elas tem o agente de responder. Se essas qualidades forem especialmente desvaliosas de um ponto de vista jurídico-penalmente relevante elas fundamentarão – ao contrário do que sucederia na perspetiva tradicional – uma agravação da culpa e um (eventual) aumento de pena; se pelo contrário elas fizerem com que o facto se revele mais digno de tolerância e de aceitação jurídico-penal, poderá justificar-se uma atenuação da culpa e uma diminuição da pena.

(…) com o disposto no artigo 20.º-2 [o legislador] propôs-se oferecer ao juiz uma norma flexível que lhe permite, em casos graves e não acidentais – em casos, portanto, em que a prática do facto se revela já uma espécie de forma adquirida de existir psiquicamente anómalo -, considerar o agente imputável ou inimputável consoante a compreensão das conexões objetivas de sentido do facto.» (6)

Nas particulares circunstâncias do caso presente, o Tribunal recorrido considerou que:

«(…) não obstante a existência de anomalia psíquica no arguido e de a sua imputabilidade ser considerada diminuída, importa referir que é entendimento do tribunal que a sua conduta vertida nestes autos é reveladora de uma culpabilidade que não impede a imputabilidade do arguido nem tem por efeito a atenuação de tal culpa, e, consequentemente da pena.

Pois bem. A este respeito, é de atentar que o juízo de censura atinente aos factos dos autos situa-se no mais elementar do dever-ser jurídico e na consciência da respectiva ilicitude.

Tais elementos são revelados no facto do grau de anomalia psíquica do arguido não ser de tal modo grave que impeça a formação de tal consciência da ilicitude, devendo ser relevado a este respeito, a duração das condutas lesivas do arguido perante a vítima (com renovação sucessiva da culpa dolosa), as consequências do ilícito para a vítima (que para estancar a perpetração dos factos foi forçada pela sua progenitora a refugiar-se em casa de familiares), bem como a persistência da conduta e o escalar de violência que se percepcionou.

Pelo exposto, não se considera o arguido inimputável, nem se considera que o arguido patenteie uma culpabilidade atenuada.

(…)

Não obstante a imputabilidade diminuída do arguido, entende-se que este revelou uma culpa que se considera ser alta, no que respeita concretamente à pulsão interna contrária com o dever-ser jurídico-penal, sobrepondo a sua vontade aos valores protegidos pela norma. Crê-se que tanto ficou evidenciado nos seguintes factores: a idade precoce da vítima à data dos factos (15 anos), a duração das condutas lesivas por um período que não se considera curto e, decisivamente, a crueldade revelada nos factos (em concreto, a mensagem de texto na qual o arguido troça jocosamente da vítima que lhe pede para que este a não agrida de novo).

As exigências de prevenção geral têm-se por elevadas, uma vez que a reiteração da prática do crime em questão na nossa sociedade acarreta que a preservação do ordenamento jurídico no que tange ao concreto ilícito importe uma reacção significativa por forma a reafirmar a norma violada.

As exigências de prevenção especial do arguido são elevadas, atenta a sucessão ininterrupta de condenações por este sofridas desde 2016, concretamente mais de uma dezena de condenações, que ostentam uma pluri-ofensividade de bens jurídicos.

Milita a favor das exigências de prevenção especial do arguido o facto de este estar a empreender pela sua formação educativa em meio prisional e ainda o facto de a sua família o visitar, demonstrando laços familiares que poderão constituir um reduto da sua ressocialização possível.

O grau de ilicitude dos factos revela-se medianamente elevado, atentas as concretas ofensas à integridade físicas e psíquicas perpetradas contra a ofendida, o que é agravado pelas consequências que advieram do ilícito, em particular, a necessidade de a família da vítima se relocalizar por um período de 2 meses para estancar a perpetração do crime aqui em questão.

O arguido agiu com dolo directo, a forma mais intensa de dolo.

De acordo com o ora expendido, o tribunal entende ser adequada uma que se cifra em três anos e nove meses, ligeiramente acima da mediania.»

No essencial o Tribunal recorrido considerou, justificadamente, que apesar do diagnóstico efetuado às capacidades mentais do arguido, o modo como o ilícito foi praticado (complexo fáctico de cariz agressivo) e o padrão de vida que vem seguindo (evidenciado pelo seu percurso criminal) demonstra, não só, que ele tem capacidade de avaliação da ilicitude dos factos incorporados na sua atuação (o que a conclusão pericial confirma), como nada compromete a liberdade de se determinar em conformidade com o padrão normativo, que decidiu desrespeitar.

A natureza do crime (violência sobre as pessoas), circunstâncias do caso (traduzidas na pressão agressiva do arguido sobre a vítima durante cerca de 4 meses, com ofensas à integridade física, algumas ameaças e outras tantas injúrias) e a idade do arguido (então com 20 anos) não permitem sustentar um elevado grau de culpa, o qual deveras não excede o patamar mediano.

Mas só nesta parte, do grau de culpa, o juízo ora sob escrutínio é merecedor de reparo, o que necessariamente se traduzirá na medida concreta da pena.

No concernente à escolha e medida da pena norteiam os seguintes princípios e regras:

- A finalidade das penas é a de proteger bens jurídicos e reintegrar o agente na sociedade, não podendo a pena exceder a medida da culpa do infrator (artigo 40.º CP).

Ensina Figueiredo Dias (7), que «toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial; a pena concreta é limitada no seu máximo inultrapassável pela medida da culpa; dentro desse limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função das exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais.» - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigo 71.º do CP). A culpa aqui em referência reporta-se à censura dirigida ao agente por referência à prática do facto ilícito, que consiste na desaprovação da sua atitude interna face às exigências do dever ser sociocomunitário. E as exigências de prevenção reportam-se à prevenção geral e à prevenção especial: aquela traduzida pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada (sendo por isso uma razoável forma de expressão afirmar como finalidade primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime); e esta, numa vertente positiva ou de socialização, que se traduz na oferta ao arguido das condições para prevenir a reincidência (8). A doutrina vem consistentemente densificando estes conceitos e o modo como eles operam conjugadamente, referindo que: «dentro da moldura ou dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração – entre o ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos (ou de “defesa do ordenamento jurídico”) – devem atuar, em toda a medida possível, os pontos de vista de prevenção especial, sendo sim eles que vão determinar, em última instância, a medida da pena. Isto significa que releva neste contexto qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza: seja a função positiva de socialização, seja qualquer uma das funções negativas subordinadas de advertência individual ou de segurança ou inocuização. A medida de necessidade de socialização do agente é no entanto, em princípio, critério decisivo das exigências de prevenção especial, constituindo hoje – e devendo continuar a constituir no futuro – o vetor mais importante daquele pensamento (9).» Temos, pois, que a medida da culpa fixa o máximo que a pena concreta pode comportar; a prevenção geral impõe o limite mínimo da pena em medida ainda suportada pelas expectativas comunitárias face à norma de proteção de bens jurídicos que foi violada; fixando-se depois a medida concreta da pena de acordo com as necessidades de prevenção especial, por referência à ressocialização do infrator e à prevenção de futuros crimes (pelo próprio).

Breve: dentre os limites fixados pela medida da culpa (máximo de pena) e pela prevenção geral (mínimo da pena) a prevenção especial virá a determinar o quantum concreto da pena. Mostram-se ajustadas as considerações aduzidas pelo Tribunal a quo para arredar a aplicação do regime penal especial dos jovens adultos, previsto no Decreto-Lei n.º 401/82 de 23 de setembro (ex vi artigo 9.º CP). E assim, porquanto as exigências mínimas de prevenção geral tal não acomodam, em face não apenas da gravidade do ato ilícito cometido, mas considerado o contexto de uma relação de namoro, com inarredáveis sinais patológicos (desigualdade entre os pares, multiplicidade de agressões). Tudo isso sem que em nenhum momento (nas oportunidades), o arguido tenha feito uma confissão dos factos com verdadeira contrição. Pelas mesmas razões se considera não haver fundamento para preconizada (no recurso) atenuação especial da pena, por não se surpreender circunstância que haja diminuído acentuadamente a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena (artigo 73.º CP).

Depois destas considerações, vistos os parâmetros em o Tribunal a quo balizou a sua avaliação e o resultado a que chegou no processo de determinação da pena concreta, consideramos que atentas as supra referidas circunstâncias, caracterizadoras dos factos praticados e da pessoa do arguido (idade e demais circunstâncias pessoais, de inserção social e antecedentes criminais), mais considerando a moldura abstrata da pena para o ilícito em referência, a pena concreta não deverá exceder os 2 anos e 8 meses de prisão, a qual não se substitui nem suspende, por tal não ter sido suscitado no recurso, sendo a mais disso, bem fundadas as razões dadas pelo Tribunal recorrido. Apesar de o recurso o não suscitar, importará ainda significar o acerto da decisão recorrida relativamente às razões de não substituição da pena de prisão efetiva. O recurso é parcialmente merecedor de provimento, devendo fixar-se a medida concreta da pena em 2 anos e 8 meses de prisão.

4. Das custas

Em vista do parcial provimento do recurso interposto pelo arguido, não há lugar a custas (artigo 513.º, § 1.º do CPP a contrario).

III – Dispositivo

1. Destarte e por todo o exposto, acordamos em conceder parcial provimento ao recurso interposto, e, consequentemente, alterar a pena aplicada ao arguido, pela prática do crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º, §1.º, al. b) e § 2.º, al. a) CP, fixando-a em 2 anos e 8 meses de prisão.

2. Mantendo no demais a sentença recorrida.

3. Sem custas (artigo 513.º, § 1.º CPP a contrario).

Évora, 13 de setembro de 2022

J. F. Moreira das Neves (relator)

Maria Clara Figueiredo (1.ª adjunta)

Fernanda Palma (2.ª adjunta)

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1 Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.

2 Acórdão proferido a 11jan2017, no proc. 93/14.3JAGRD.C1.S1;

3 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24fev.2016, proc. 502/08.0GEALR.E1. S1.

4 É este o entendimento que pensamos sufragado pela doutrina e pela jurisprudência. Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, 4.º ed., 2011, Universidade Católica Editora, pp. 1101 ss.; Pereira Madeira et al, CPP Comentado, 3.ª ed., 2021, pp. 1291/1293; e acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, .

5 Direito Processual Penal, vol. I, 2004, Coimbra Editora, pp. 213.

6 Jorge de Figueiredo Dias, Direito penal, Parte Geral, tomo I, 3.º ed., 2019, Gestlegal, pp. 683/684.

7 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 3.ª ed., pp. 96.

8 «Por reforço dos standards de comportamento e de interação na vida comunitária (condução da vida “de forma socialmente responsável”)» - Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pp. 74, 110 e 238 ss., Aequitas – Editorial Notícias, 1993. Também Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, Lições aos alunos de Direito Penal III, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2010-2011, pp. 31 e ss

9 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 3.º edição, 2019, Gestlegal, pp. 93. No mesmo sentido Maria Fernanda Palma, Direito Penal – Conceito Material de Crime, Princípios e Fundamentos, 2019, AAFDL, pp. 53 e ss.