VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
Sumário

É sabido que o bem jurídico protegido pela incriminação do artº 152º do Cód. Penal como bem escreve o Prof. Taipa de Carvalho (in “Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial”, Coimbra Editora, Tomo I, pág. 332), trata-se de “bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afetado por toda uma multiplicidade de comportamentos que (…) afetem a dignidade pessoal do cônjuge”.
A ratio do tipo legal de crime previsto no artigo 152º do Código Penal não está, pois, “na proteção da comunidade familiar, conjugal (...), mas sim na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana”. (ob. e loc. citados)
É sabido também que o crime de violência doméstica é mais do que a soma das várias condutas (ou de apenas uma, como agora se prevê no nº 1 do artº 152º do Cód. Penal) que constituem o que é habitual denominar-se de crimes subjacentes.
É essencial que com a conduta do agente se pretenda pôr em causa a dignidade pessoal da vítima.
A prova dessa pretensão só pode resultar das circunstâncias de cada caso concreto. Da vivência, actual ou passada (que se pode reflectir, ou não, em anteriores condenações, da mesma ou semelhante natureza), entre o agente e a vítima, da intensidade das ofensas, da natureza das ofensas, do carácter público, ou não, das mesmas, da reiteração dessas mesmas ofensas (o acto único não exclui o crime de violência doméstica, mas terá que ser especialmente ponderado para que só por si o preencha), etc., etc..
É do que em cada caso concreto se apurar que há-de resultar, ou não, o que distingue o crime da violência doméstica do somatório dos crimes subjacentes.

Texto Integral

ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
RELATÓRIO

O arguido AA foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, al. a), 2, al. a), 4 e 5, do Código Penal, na pena de três anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sujeita a regime de prova e à frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica.

Foi igualmente condenado na pena acessória de proibição de contacto por qualquer meio com a ofendida, de se aproximar do seu local de trabalho ou da sua residência pelo período de quatro anos, fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.

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Inconformado com tal condenação, o arguido recorreu da sentença, tendo terminado a motivação e recurso com as seguintes conclusões:

“1º - Não se conformando com a douta sentença proferida nestes autos que o condenou como autor material de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo nº 152º, nº1, alínea a) e 2º, alínea a) e nº 4 e 5 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo, sujeita a regime de prova à frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica, bem como lhe aplicou a sanção acessória de proibição de contato por qualquer meio com a ofendida, de se aproximar do seu local de trabalho ou da sua residência pelo período de quatro anos, fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, nos termos do disposto nos nºs 4 e 5 do artigo 152º do mesmo diploma legal, vem da mesma interpor recurso.

2º - Circunscrevendo-se este à matéria de direito, em virtude do aqui recorrente considerar que a douta sentença ora em crise fez uma errada qualificação jurídica dos factos que considerou por provados, concluindo como integrantes da prática do crime de violência doméstica pelo arguido.

3º - Salvo o devido respeito e melhor opinião, em face da matéria de facto provada na douta sentença, o arguido não deveria ter sido condenado como autor material de um crime de violência doméstica, mas sim, como autor material de um número indeterminado de crimes de injúrias, p. e p. pelo artigo 181º do Código Penal, e bem assim, por dois crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º e 155º, nº1, alínea a) do Código Penal.

4º - Consequentemente, ao arguido não deveria ter sido aplicada a sanção acessória de proibição de contato por qualquer meio com a ofendida, pelo período de quatro anos, fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, prevista nos nºs 4 e 5 do artigo 152º do Código Penal.

5º - Devendo operar-se a qualificação jurídica nos termos requeridos pelo arguido no presente recurso, sem necessidade de prévia comunicação ao mesmo, nos termos do disposto no artigo 358º, nº1 e 3 o CPP, uma vez que, ao degradar a acusação por um crime de violência doméstica (do artigo 152º, nº1 do Código Penal) - cometido por meio de condutas que traduzem ameaças e injúrias – em dois crimes de ameaça agravada e vários crimes de injúria, não implica necessidade de nova defesa, não sendo juridicamente relevante, não “surgem vulneradas as garantias de defesa do arguido”.

6º - Há, porém, que apurar se se verificam quanto a esses crimes – injúrias e ameaça agravada -as necessárias condições objetivas de procedibilidade, designadamente quanto à dedução de acusação particular relativamente ao crime de injúrias, já que a ameaça reveste natureza pública.

7º - Quanto ao crime de injúrias, a sua natureza particular atribuída pelo artigo 188º do Código Penal, a dedução de acusação particular, imposta pelo artigo 50º do CPP, constitui pressuposto processual do procedimento criminal respetivo, ou seja, condição positiva daquele mesmo procedimento que, do mesmo modo, condiciona a responsabilidade penal.

8º - No caso vertente não foi deduzida acusação particular, sendo essa falta insuscetível de suprimento; a sua verificação na fase de julgamento ou de recurso impede o prosseguimento do procedimento criminal pelo crime respetivo, se a questão se colocar até ao encerramento da audiência ou a condenação do arguido nas hipóteses em que a questão se coloque depois daquele, nomeadamente em resultado da qualificação jurídica dos factos provados operada na sentença ou no recurso.

9º - Não sendo possível, a falta de acusação particular, carece o MP de legitimidade para o prosseguimento do processo pelo referido crime de injúrias, artigo 50º do CPP, impondo-se o arquivamento dos autos.

10º - Importando realçar que, o crime de violência doméstica é um “crime de relação”, em que releva um certo grau de proximidade ao lado de uma estreita comunidade de vida, realidades que instituem normas de conduta cuja violação fundamenta ou agrava a ilicitude do facto, que põem em destaque a especial relação que intercede entre os sujeitos ativo e passivo da conduta criminosa.

11º - Entre as pessoas que se incluem no âmbito de proteção da norma encontram-se o cônjuge ou o ex-cônjuge; a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; o progenitor de descendente comum em 1º grau, entre outras.

12º - Ora, no caso em apreço, como resulta da matéria de facto provada – os atos de agressividade verbal imputados ao arguido e praticados na pessoa da ofendida, sua ex-mulher, não tem a virtualidade de se integrarem na previsão da norma do artigo 152º do Código Penal, por não representarem um potencial de agressão que supere a proteção oferecida pelo crime de injúria simples e de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 181º, 153º e 155º, nº1, alínea a), todos do Código Penal.

13º- Desde logo, porque não se trata de um comportamento repetido, reiterado, humilhante ou vexatório, mas também por não serem factos de gravidade tal que prescindam dessa reiteração para serem qualificados como maus-tratos psíquicos, muito embora se reconheça que possam abalar a tranquilidade moral da pessoa visada e, como tal, constituam factos ilícitos típicos e, como tal, puníveis.

14º - Nos presentes autos, os factos dados por provados e constantes dos pontos 5º a 10º, bem como os pontos 11º a 13º integram os elementos objetivos e subjetivos da prática pelo arguido de pelo crime de injúria simples e de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 181º, 153º e 155º, nº1, alínea a), todos do Código Penal.

15º - Isto porque, é entendimento pacífico na Jurisprudência que nem todas as ofensas à integridade física, à honra e consideração ou à liberdade de determinação de outrem, constituem um crime de violência doméstica, apenas por ocorrerem no seio duma relação conjugal ou equiparada.

16º-É o que acontece na situação em apreço!

17º-Para poder concluir-se pela verificação do tipo legal do crime de violência doméstica pelo arguido, teria de existir uma relação de domínio ou de poder, entre o arguido e assistente, ou do arguido para com a assistente e vice-versa, relação de domínio que o caso dos autos não espelha, na medida em que, o arguido e assistente encontram-se divorciados desde …/2017, tal como decorre do ponto 2º- 17º da lista dos factos provados: “O divórcio do casal foi decretado por sentença transitada em julgado em … 2017, proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de ..., Juízo de Família e Menores ..., J....

18º-O arguido e a assistente fazem vidas totalmente autónomas, não dependendo a assistente daquele economicamente, visto que cada um exerce a sua própria atividade laboral, conforme decorre do ponto 15º da lista dos factos provados, e bem assim, cada um vive em casas separadas, vivendo aliás a assistente na moradia principal e o arguido num anexo.

19º-Nenhumas das ocorrências se passou no interior das habitações, nem do arguido, nem da assistente; mas sim no exterior.

20º-O mesmo é dizer, neste concreto aspeto, a assistente está até numa posição de superioridade e primazia relativamente ao arguido.

21º-De igual modo, a assistente já há muito refez a sua vida afetiva, o que também se extrai dos factos provados, tendo aliás o seu marido sido a única testemunha dos factos nestes autos, o qual ao que parece, sempre esteve presente em todas as ocorrências. Estando, pois, em termos emocionais e afetivos a assistente sem qualquer dependência do arguido.

22º-Acresce ainda que, como decorre da lista dos factos provados, no ponto 3º, decorre que: “ No dia …2020, no âmbito do processo nº239/19...., que correu termos no Juízo de Competência Genérica ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., foi proferida sentença na qual se decidiu absolver o arguido da prática de um crime de violência doméstica.”

Sendo os fatos então em apreciação praticamente iguais aos que estiveram em causa nos presentes autos.

23º-E, o Tribunal a quo considerado que no período temporal compreendido entre o dia 15/08/2019 e o dia 18/12/2019, não se verificou uma qualquer relação de domínio ou poder entre o arguido e a ofendida.

24º-Logo, se tal relação em momento anterior ao dos fatos em causa nestes autos não existia, não poderá afirmar-se que no período temporal compreendido entre o dia 16/12/2020 e o dia 02/05/2021 a sobredita relação de domínio ou poder tenha voltado a existir, na medida em que o arguido e a ofendida não estreitaram as suas relações; pelo contrário, mais se distanciaram. A aludida sentença foi até objeto de recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Évora, vindo a ser confirmada.

25º-Acresce quinda que, o arguido é doente …, conforme decorre do ponto 18º dos factos provados, auferindo por via disso uma reforma, conforme decorre do ponto 20º dos factos provados, pelo que também por este motivo não se encontra numa posição de domínio e/superioridade face à assistente, ao invés, é um homem debilitado.

26º- Ora, o crime de violência doméstica pressupõe uma especial relação entre o agente e o sujeito passivo, pautada pela união matrimonial, pela união de facto, pela relação de namorou ou ainda em virtude da de a vítima ser progenitor (a) de descendente comum, ou então, caso se verifique que as agressões físicas e psíquicas sejam infligidas a pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com o agente coabite.

27º- O crime de violência doméstica pode ser preenchido pela prática de múltiplas condutas, de forma reiterada ou através de uma só conduta do agente, solução que anteriormente a esta nova redação do Código Penal, já vinha sendo defendida na jurisprudência, no sentido de se admitir poder integra um crime de violência doméstica (anteriormente, designado crime de maus tratos) uma só resolução criminosa, desde que, revestindo uma gravidade tal, que configurasse atentado grave contra a saúde física, psíquica ou moral da vítima, atingindo, inexoravelmente a sua dignidade enquanto pessoa humana, e tornando insustentável a relação com o agressor.

28º-Veja-se o douto Acórdão da Relação do Porto, proferido no processo nº 189/17.0GCOVR.P1., disponível em www.dgsi.pt: 1.“ Nem todas as ofensas à integridade física, à honra e consideração ou à liberdade de determinação de outrem, constituem um crime de violência doméstica, apenas por ocorrerem no seio duma relação conjugal ou equiparada.

2.Se os atos de agressividade verbal não representam um potencial de agressão que supere a proteção oferecida pelo crime de injúria e de ameaça, então, não são suscetíveis de integrar o tipo legal de violência doméstica.”

O crime de violência doméstica pode ser preenchido pela prática de múltiplas condutas, de forma reiterada ou através de uma só conduta do agente, solução que anteriormente a esta nova redação do Código Penal, já vinha sendo defendida na jurisprudência, no sentido de se admitir poder integra um crime de violência doméstica (anteriormente, designado crime de maus tratos) uma só resolução criminosa, desde que, revestindo uma gravidade tal, que configurasse atentado grave contra a saúde física, psíquica ou moral da vítima, atingindo, inexoravelmente a sua dignidade enquanto pessoa humana, e tornando insustentável a relação com o agressor.

29º-Veja-se também o douto Acórdão da Relação de Lisboa, proferido no processo nº 428/17.7PCSNT.L1.3, disponível em www.dgsi.pt: 1. “Nem toda a ofensa representa maus tratos, pois estes pressupõem que o agente ofenda a integridade física ou psíquica de um modo

30º-O crime de violência doméstica pode ser preenchido pela prática de múltiplas condutas, de forma reiterada ou através de uma só conduta do agente, solução que anteriormente a esta nova redação do Código Penal, já vinha sendo defendida na jurisprudência, no sentido de se admitir poder integra um crime de violência doméstica (anteriormente, designado crime de maus tratos) uma só resolução criminosa, desde que, revestindo uma gravidade tal, que configurasse atentado grave contra a saúde física, psíquica ou moral da vítima, atingindo, inexoravelmente a sua dignidade enquanto pessoa humana, e tornando insustentável a relação com o agressor.

31º-Veja-se também o douto Acórdão da Relação de Lisboa, proferido no processo nº É uma relação de domínio ou de poder que está aqui em causa.”

32º-Veja-se ainda o douto Acórdão da Relação do Porto, de 09.01.2013, disponível em www.dgsi.pt: “ Este tipo legal de crime previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e atue, dos mais diversos modos, um domínio ou uma subjugação.

Este é, segundo cremos, o verdadeiro tração distintivo deste crime relativamente aos demais onde igualmente se protege a integridade física, a honra ou a liberdade sexual.

O bem jurídico tutelado pela incriminação, assim caracterizado, é plural e complexo, visando essencialmente a defesa da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal.”

“ No ilícito de violência doméstica é objetivo da lei assegurar uma “tutela especial e reforçada” da vítima perante situações de violência doméstica desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu caráter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima.”

Daqui sobressai o que cremos ser essencial para a caracterização do crime de violência doméstica, que se evidencia da sua génese e evolução; a existência de uma vítima e de um vitimador, este numa posição de evidente dominação e prevalência sobre a pessoa daquela.”

33º-A douta sentença recorrida não deixou de fazer o enquadramento jurídico-penal da causa. Fê-lo, e até de forma detalhada, concretizando que no caso dos autos, de forma mais expressiva temos as agressões verbais.

34º-O que o aqui recorrente discorda é que o Tribunal a quo na mesma tenha concluído que a conduta desenvolvida pelo arguido preencha a factualidade típica da violência doméstica, quer quantos aos elementos objetivos, quer subjetivos.

35º-Não se podendo afirmar, em face da factualidade provada que a conduta do arguido se revelou especialmente censurável, permitindo concluir pela subjugação de um membro da relação a outro- porque, em bom rigor, não existe qualquer relação entre o arguido e a assistente, muito menos subjugação.

36º-De igual modo, não se pode afirmar, como afirmou a douta sentença recorrida que o arguido exerceu um domínio emocional de facto de um sobre o outro, neste caso o arguido sobre a ofendida, consubstanciando assim um “infligir de maus-tratos psicológicos a esta”.

37º-Não existe a referida relação de domínio do arguido sobre a ofendida, ou daquele para esta. Donde terá de se considerar, ao invés do que foi feito na douta decisão ora em crise que, as condutas do arguido não tem a virtualidade de ofender e molestar a dignidade e a liberdade daquela.

38º-Sendo as condutas em apreço integradoras, como já se disse, da prática dos crimes de crime de injúria simples e de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 181º, 153º e 155º, nº1, alínea a), todos do Código Penal.

39º-Deste modo, impõe-se a absolvição do arguido como autor material de um crime de violência

TERMOS, EM QUE SEMPRE COM MUI DOUTO SUPRIMENTO DE V/EXA, DEVE O PRESENTE RECURSO SER APRECIADO, MERECENDO PROVIMENTO, COM A CONSEQUENTE:

A)ABSOLVIÇÃO DO ARGUIDO DA PRÁTICA COMO AUTOR MATERIAL DO CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, P. E P. PELO ARTIGO 152º, Nº1, ALÍNEA A), E Nº2, ALÍNEA A), E Nº S 4 E 5 DO CÓDIGO PENAL;

B)CONDENAÇÃO DO ARGUIDO PELA PRÁTICA DE DOIS CRIMES DE AMEAÇA AGRAVADA; P.E.P.PELOS ARTIGOS 153º, 155º, Nº1), ALÍNEA A) DO CÓDIGO PENAL;

C) ARQUIVAMENTO DOS AUTOS, POR AUSÊNCIA DE ACUSAÇÃO PARTICULAR E PELA FALTA DE LEGITIMIDADE DO MP, PARA O PROCEDIMENTO CRIMINAL PELO CRIME DE INJÚRIAS, 181º, DO MESMO DIPLOMA LEGAL, NA PESSOA DA ASSISTENTE;

D)DEVENDO AINDA SER REVOGADA A SANÇÃO ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONTATOS QUE FOI APLICADA AO ARGUIDO.

ASSIM SE FAZENDO A ACOSTUMDA JUSTIÇA!!”

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O Ministério Público respondeu ao recurso, tendo terminado a resposta com as seguintes conclusões:

“1. Veio o arguido recorrer da sentença datada de 27.04.2022, proferida pela Meritíssima Juiz que o condenou, como autor material, na prática de um crime de violência doméstica, p. e p. nos termos do artigo 152.º n.º 1 al. a), 2 al. a), 4 e 5 do Código Penal, na pena de três anos e seis meses de prisão, suspensa por igual período e sujeita a regime de prova e à frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica, e bem assim na pena acessória de proibição de contactos por qualquer meio com a ofendida, de se aproximar do seu local de trabalho ou da sua residência pelo período de quatro anos, fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.

2. Alega o recorrente que a factualidade dada como provada, no seu entendimento, configura a prática de um número indeterminado de crimes de injúrias e ameaças, devendo o arguido ser absolvido da prática do crime de violência doméstica.

3. Alega ainda o recorrente, quanto ao crime de injúria, que o arguido deverá ser absolvido do mesmo por ilegitimidade do Ministério Público, uma vez que não foi deduzida acusação particular.

4. Quanto à qualificação jurídica dos factos como crime de violência doméstica, cumpre referir que a Douta Sentença fez uma adequada análise dos factos enquadrando-os devidamente e fundamentadamente na prática do referido crime.

5. Não é, como quer fazer crer o Recorrente, a existência de relação de domínio e dependência que qualifica o crime em razão dos demais que o integram, mas sim a análise de cada caso em concreto, que permite aferir se a relação, ainda que pretérita e de não coabitação, mantém os vínculos que levam a qualificar o comportamento ao agente como degradante e humilhante para a vítima.

6. Assim, atenta a circunstância dos intervenientes se cruzarem diariamente, partilharem o mesmo espaço residencial, não terem realizado ainda as partilhas dos bens comuns por divergências e atenta a circunstância de pouco tempo antes da prática dos factos em discussão o arguido ter sido condenado pela prática de crime de violência domestica contra a assistente, dúvidas não restam que a continuidade dos comportamento do arguido conforme vertidos na acusação, cujos factos foram dados como provados, configuram a prática de um crime de violência doméstico.

7. No entanto, caso assim não se entenda, não pode o arguido ser absolvido da prática do crime de injúria por ilegitimidade do Ministério Público, uma vez que todo o processo foi tramitado como se um crime público se tratasse, não tendo sido a assistente oportunidade notificada para se deduzir acusação particular.

8. A prossecução de tal entendimento revestiria uma enorme injustiça para a vítima que, face à qualificação jurídica feita pelo Ministério Público, acompanhou a acusação público e, em sede de sentença, viu a matéria factual ser dada como provada, mas o arguido ser absolvido por uma questão procedimental, completamente incontrolável pela mesma.

Nestes termos deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, ser mantida a decisão recorrida, nos precisos termos em que a mesma foi proferida.

Porém, Vossas Excelências melhor decidirão, fazendo, como sempre, a costumada JUSTIÇA!”

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Neste tribunal da relação, o Exmº P.G.A. emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e tendo sido cumprido o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., o recorrente respondeu ao parecer, por referência à resposta ao recurso apresentada na 1ª instância.

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APRECIAÇÃO

A única questão que importa resolver no presente recurso é a da qualificação jurídica da matéria que se considerou provada.

Na sentença recorrida entendeu-se que estava em causa um crime de violência doméstica e assim se condenou o recorrente. Este entende que estão em causa vários crimes de ameaça agravada e de injúrias, devendo o mesmo ser condenado por aqueles, atenta a sua natureza pública, e absolvido destes face à sua natureza de crime particular, sendo certo que não houve acusação particular.

Antes de prosseguirmos, importa fazer o seguinte esclarecimento:

Na resposta ao parecer apresentado pelo Exmº P.G.A. neste tribunal, o recorrente realçou o que consta no 2º parágrafo da pág. 20 da resposta ao recurso, interpretando isso como uma assunpção por parte do Ministério Público de que não pode estar em causa um crime de violência doméstica.

O segmento que importa é o seguinte: “Assumindo que a factualidade dada como provada em sede de sentença não configura a prática de crime de violência doméstica, não poderá em última instância o arguido ser absolvido da prática do crime de injúria por tal fundamento, uma vez que se trata de uma questão de Justiça.”

A referida passagem tem que ser interpretada no contexto geral da resposta ao recurso, da qual resulta claramente que o Ministério Público pugna pela manutenção da qualificação jurídica feita na sentença recorrida. O que se pretendeu dizer com o segmento transcrito é que se se assumir que não há crime de violência doméstica, então o recorrente deve ser condenado também pelos crimes de injúrias subjacentes.

Em passo algum o Ministério Público assume que não há crime de violência doméstica. Tanto assim é que termina a resposta ao recurso solicitando que a sentença recorrida se mantenha nos seus precisos termos.

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Os factos considerados provados e não provados na sentença recorrida são os seguintes:

“1. Matéria de facto provada

Da audiência de discussão e julgamento e com relevo para a decisão do mérito da causa, resultaram provados os seguintes factos:

“1.º No âmbito do processo n.º 62/16...., que correu termos no Juízo de Competência Genérica ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., por sentença transitada em julgado a …2018, o arguido foi condenado como autor material, um crime de violência doméstica, agravado, p. e p. pelo art. º 152º, n.º 1 al. a) n.º 2 e n.º 4 do Código Penal, na pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo acompanhada de regime de prova, com a obrigação de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica, e foi ainda condenado na pena acessória de proibição de contactos com a vítima, pelo período de dois anos, com recurso aos meios de controlo de vigilância electrónica.

2.º Nessa sentença foram dados como provados os seguintes factos:

1º O arguido casou com BB em … 1978, sendo que a casa de morada de família do casal se fixou na Rua ..., ..., em ....

2º Após o casal celebrar o 25º aniversário de casamento, as discussões começaram a ser constantes, e em dias não concretamente apurados, o arguido começou a atingir o corpo e a saúde da ofendida com socos na face e cabeça.

3º Em resultado destas agressões a ofendida ficava com hematomas visíveis nas partes do corpo atingidas.

4º Igualmente após aquela data, em duas ocasiões, cujas datas não foi determinar, o arguido munido de uma faca, de características não apuradas, encostou este objecto, respectivamente ao pescoço e ao peito da ofendida, temendo esta pela sua vida.

5º O arguido também passou a dirigir à ofendida expressões que sabe que a humilham e a atemorizam, tais como “ puta…puta da estrada…tu tens amantes…eu mato-te…eu acabo com isto tudo“.

6º No decurso de muitas destas discussões, o arguido com socos e pontapés quebra diversas peças de mobiliário e objectos decorativos que compõe o recheio da casa de morada de família.

7º A partir de Junho de 2013, data em que o arguido deixou de poder trabalhar por lhe ter sido furtado o veículo de serviço, estas discussões começaram a ser diárias, dizendo o arguido reiteradamente à ofendida “ puta…grande puta…vai para os teus amantes…estás ai no computador a ver de homens…qualquer dia mato-te e acabo com isto tudo…não tenho nada a perder”.

Concretizando,

8º Em Julho de 2013, no decurso de uma discussão, o arguido partiu diversos objectos existentes no interior da casa de morada de família, o que levou a que a ofendida a partir dessa data deixasse de partilhar quarto com o arguido, receando voltar a ser agredida.

9º Em 15 de Setembro de 2013, pelas 13.30 horas, no decurso de mais uma discussão, motivada pelo facto de a ofendida não ter aceitado um telemóvel oferecido pelo arguido, este disse-lhe “ puta”, ao mesmo tempo que com ambas as mãos apertou o pescoço de CC.

10º Em consequência desta conduta do arguido, CC, sofreu contusão do pescoço, sem necessidade de assistência médica.

11º No dia 10 de Março de 2013, pelas 15.00 horas, no interior da casa de morada de família, no decurso de uma discussão, o arguido arremessou um saco de água quente contra uma das paredes do imóvel, ao mesmo tempo que dizia à ofendida “ puta…tu queres é meter um amante no teu quarto sem que eu possa ver”.

12º No dia 10 de Março de 2016, cerca das 23.48 horas, ocorreu mais uma discussão entre o casal, tendo o arguido com socos e pontapés quebrado diversas peças de mobiliário que compõe o receio da casa de morada de família.

13º Esta conduta descontrolada do arguido, levou a que a ofendida se visse obrigada a trancar-se no interior do seu quarto, com medo de ser agredida, telefonando de imediato para a GNR- PT de ..., solicitando auxílio.

14º No dia 3 de Fevereiro de 2017, pelas 10.00 horas, junto à casa de morada de família, o arguido no decurso de nova discussão entre o casal, disse à ofendida “ puta…vai para a estrada…não queres fazer nada…vai ganhar dinheiro “.

15º Acto continuo, o arguido desferiu um empurrão no corpo da ofendida, que levou a que esta se desequilibrasse e caísse no chão.

16º Em consequência desta conduta do arguido, CC, sofreu traumatismo da região lombar e do membro inferior direito, lesões essas que lhe causaram 7 (sete) dias de doença, com afectação para o trabalho geral em 1( um) dia e sem afectação para o trabalho profissional.

17º O divórcio do casal foi decretado por sentença transitada em julgado em … 2017, proferida pelo Tribunal da Comarca de ..., Juízo de Família e Menores- J....

18º As agressões, ameaças e injúrias supra descritas ocorreram no interior da casa de morada de família.

19º A ofendida vive em pânico receando que o arguido concretize as ameaças de atentar contra a sua vida.

20º O arguido agiu consciente e voluntariamente, bem sabendo que, de forma reiterada atingia o corpo e saúde da sua mulher CC, debilitando-a psicologicamente, fazendo-a recear pela sua vida, cerceando assim a sua liberdade pessoal, prejudicando o seu bem-estar psicossocial e ofendendo-a na sua honra e dignidade humana.

21º O arguido agiu sempre de modo livre, deliberado e consciente, conhecedor da ilicitude dos seus actos.

22º Sabia que as suas condutas eram proibidas por lei.

3.º No dia 15/07/2020, no âmbito do processo n.º 239/19...., que correu termos no Juízo de Competência Genérica ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., foi proferida sentença na qual se decidiu absolver o arguido da prática de um crime de violência doméstica.

4.º Diante essa decisão, pelo menos até ao dia 02/05/2021, o arguido começou a importunar a vítima junto à residência desta, sita na Rua ..., ..., em ....

5.º Assim, pelo menos até ao dia 02/05/2021, tanto de dia como de noite, por diversas vezes, o arguido dirigiu-se à vítima e proferiu as expressões “és uma puta”, “sua puta do caralho”, “desaparece daqui sua grande puta”, “qualquer dia mato-te sua puta” e “desaparece daqui, senão qualquer dia mato-te”.

6.º No dia 16/12/2020, junto à residência da vítima, o arguido dirigiu-se à vítima e proferiu a expressão “és uma puta, sua puta do caralho, desaparece daqui senão qualquer dia mato-te”.

7.º No dia 17/12/2020, pelas 19h55, junto à residência da vítima, o arguido dirigiu-se à vítima e proferiu a expressão “filha da puta, puta do caralho”.

8.º Em data não concretamente apurada mas ocorrido nos primeiros 15 dias do mês de Março de 2021, o arguido dirigiu-se à vítima, junto à residência desta, e proferiu a expressão “puta de um cabrão, parto-te os cornos todos”.

9.º No dia 17/03/2021, pelas 19h30, junto à residência da vítima, o arguido dirigiu-se à vítima e proferiu a expressão “puta do caralho, qualquer dia mato-te”.

10.º No dia 02/05/2021, pelas 11h30, junto à residência da vítima, o arguido dirigiu-se à vítima e proferiu as expressões “o que é que esses velhos estão aqui a fazer, puta do caralho, grande puta” e “sua vaca, vai levar no cu, puta dum cabrão”.

11.º O arguido sabia que dirigia palavras à vítima que eram adequadas a limitar a sua liberdade de agir e a provocar-lhe medo, inquietação, e receio pela sua vida e integridade física, o que quis e conseguiu.

12.º O arguido sabia que a sua conduta era apta a maltratar psicologicamente a vítima ao ponto de inquietá-la, atingindo a sua honra, consideração pessoal e dignidade, o que quis e conseguiu.

13.º O arguido sabia que a sua conduta afectava a dignidade da vítima, criando nela sentimentos de inquietação, medo e insegurança, bem sabendo que se tratava da sua ex-mulher, o que não o impediu de agir do modo descrito.

14.º O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Da contestação

15.º A ofendida vive na moradia principal – propriedade de ambos- e o arguido num anexo, e além do mais o posto de trabalho daquele está situado a escassos metros deste local.

16.º O arguido encontra-se profissional e socialmente inserido.

17.º É visto como uma boa pessoa, amigo do seu amigo, um homem sério e trabalhador.

Mais se provou:

18.º O arguido é doente ….

19.º Tem despesas mensais fixas com o estabelecimento que o mesmo explora em cerca de 1200€.

20.º Aufere cerca de 350€ a título de reforma.

21.º Estudou até ao 4º ano de escolaridade.

Factos não Provados:

A - Apesar do arguido se encontrar proibido de contactar com a vítima BB desde o dia desde o dia 27/08/2018 até ao dia 27/08/2020, o arguido decidiu não cumprir esta condenação de proibição de contactos com a vítima e continuou a importunar a vítima.

B - O arguido sabia que desde o dia 27/08/2018 e até ao dia 27/08/2020 estava impedido de comunicar com a vítima e de a importunar e, não obstante, dirigiu as aludidas expressões à vítima durante o referido período, como quis e conseguiu.

C - O arguido sabia que esse impedimento lhe foi imposto por um Tribunal e que se encontrava a cumprir a pena acessória de proibição de contactos com a vítima, tendo ficado ciente, no momento em que tomou conhecimento da decisão condenatória, que o desrespeito por esta determinação do Tribunal o faria incorrer na prática de um crime e, mesmo assim, quis e conseguiu importunar a vítima durante o período da pena acessória, desrespeitando a proibição que o Tribunal lhe havia determinado.

Da contestação

D - O arguido faz a sua vida, com todas as limitações de saúde que tem; procurando ao máximo não se cruzar com a ex-mulher.

E - A assistente tem ao seu dispor o equipamento de proteção (teleassistência), e não existiu no iato temporal descrito na douta acusação qualquer comprovação de que quando aquela o acionado tenha sido motivado por comportamentos anómalos do arguido.

F - A assistente tudo tem feito para desafiar o arguido, chamando-lhe frequentemente “caloteiro” e “malandro”, de entre outos impropérios, sendo frequente retirar a correspondência daquele da caixa do correio onde é depositada, apropriando-se da mesma o que já levou a que o arguido faltasse a diligências judiciais.

G - Apropriou-se também a mesma de algumas cartas envidas pelo município de ... ao arguido com os avisos de cobrança dos fornecimentos de água ao mesmo, o que teve como consequência que o abastecimento de água lhe fosse cortado, situção que lhe causou imensos constrangimentos.”

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Questão a resolver:

É sabido que o bem jurídico protegido pela incriminação do artº 152º do Cód. Penal como bem escreve o Prof. Taipa de Carvalho (in “Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial”, Coimbra Editora, Tomo I, pág. 332), trata-se de “bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afetado por toda uma multiplicidade de comportamentos que (…) afetem a dignidade pessoal do cônjuge”.

A ratio do tipo legal de crime previsto no artigo 152º do Código Penal não está, pois, “na proteção da comunidade familiar, conjugal (...), mas sim na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana”. (ob. e loc. citados)

É sabido também que o crime de violência doméstica é mais do que a soma das várias condutas (ou de apenas uma, como agora se prevê no nº 1 do artº 152º do Cód. Penal) que constituem o que é habitual denominar-se de crimes subjacentes.

É essencial que com a conduta do agente se pretenda pôr em causa a dignidade pessoal da vítima.

A prova dessa pretensão só pode resultar das circunstâncias de cada caso concreto. Da vivência, actual ou passada (que se pode reflectir, ou não, em anteriores condenações, da mesma ou semelhante natureza), entre o agente e a vítima, da intensidade das ofensas, da natureza das ofensas, do carácter público, ou não, das mesmas, da reiteração dessas mesmas ofensas (o acto único não exclui o crime de violência doméstica, mas terá que ser especialmente ponderado para que só por si o preencha), etc., etc..

É do que em cada caso concreto se apurar que há-de resultar, ou não, o que distingue o crime da violência doméstica do somatório dos crimes subjacentes.

Conforme refere Nuno Brandão (in “A Tutela Penal Especial Reforçada da Violência Doméstica”, Revista Julgar, nº 12, pág. 19), no crime de violência doméstica “devem estar em causa atos que, pelo seu carácter violento, sejam, por si só ou quando conjugados com outros, idóneos a refletir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima”, sendo ainda necessária a avaliação da “situação ambiente” e da “imagem global do facto” para se decidir pelo preenchimento, ou não, do tipo legal de crime em questão.

Assim sendo, se, por um lado, nem todas as ofensas (maus-tratos, no dizer do nº 1 do artº 152º do Cód. Penal) constituirão crime de violência doméstica, por outro lado, serão mais os casos em que se mostram preenchidos os elementos necessários para se concluir pelo crime de violência doméstica. E foi com esse objectivo que se passou a prever o crime de violência doméstica, punindo mais gravemente o que é mais grave.

Como bem se refere no sumário do ac. do S.T.J. de 20/4/2017 (relatado pelo Exmº Cons. Nuno Gomes da Silva):

“VI - Na identificação e caracterização dos bens jurídicos protegidos no crime de violência doméstica generalizadamente, se apontam como carecidas de protecção a saúde e a dignidade da pessoa entendida esta numa dimensão garantística da integridade pessoal contra ofensas à saúde física, psíquica emocional ou moral da vítima embora no estrito âmbito de uma relação de tipo intra-familiar pois é a estrutura “família” que se toma como ponto de referência da normativização acobertada nas alíneas a) a d) do nº 1 do art. 152º o que não significa porém, que seja a “família” a figura central alvo de protecção mas antes essa pessoa que nela se insere, individualmente considerada.

VII - A violência doméstica pressupõe um contacto relacional perdurável no seio dessa estrutura de tipo familiar, com o sedimento tradicional que esta noção inevitavelmente comporta e também, claro está, com a ponderação da realidade sócio-cultural hodierna o que se traduz numa multiplicidade de sujeitos passivos inseridos nesse contacto. - Mas pressupõe também uma contundente transgressão relativamente à esfera de autonomia da vítima sujeita na maioria dos casos, como a experiência demonstra, a uma situação de submissão à vontade do(a) agressor(a), «de alguém de quem possa depender, ao nível mesmo da vontade sobre as dimensões mais elementares da realização pessoal» redundando «numa específica agressão marcada por uma situação de domínio (…) geradora de um específico traço de acentuada censura» que escapa em geral à razão de ser dos tipos de ofensas à integridade física, coacção, ameaça, injúria, violação, abuso sexual, sequestro, etc. Serão estes os traços que mais vincam a natureza do crime, a sua peculiar estrutura, mais do que a discussão à volta do recorte preciso do bem jurídico protegido.”

Mas a referida relação do domínio da vítima relativamente ao agente, terá que resultar também das circunstâncias concretas de cada caso, tendo em conta o que acima se referiu.

Ora, o que temos no caso concreto é que:

a)- o arguido já havia sido condenado por sentença proferida em … 2018, na qual, entre o mais, se considerou provado (para o que aqui interessa) que o arguido:

“… também passou a dirigir à ofendida expressões (…), tais como “ puta…puta da estrada…tu tens amantes…eu mato-te…eu acabo com isto tudo“;

“A partir de Junho de 2013, data em que o arguido deixou de poder trabalhar por lhe ter sido furtado o veículo de serviço, estas discussões começaram a ser diárias, dizendo o arguido reiteradamente à ofendida “ puta…grande puta…vai para os teus amantes…estás ai no computador a ver de homens…qualquer dia mato-te e acabo com isto tudo…não tenho nada a perder”;

“Em 15 de Setembro de 2013, pelas 13.30 horas, no decurso de mais uma discussão, motivada pelo facto de a ofendida não ter aceitado um telemóvel oferecido pelo arguido, este disse-lhe “ puta”, (…);

“No dia 10 de Março de 2013, pelas 15.00 horas, no interior da casa de morada de família, no decurso de uma discussão, o arguido arremessou um saco de água quente contra uma das paredes do imóvel, ao mesmo tempo que dizia à ofendida “ puta…tu queres é meter um amante no teu quarto sem que eu possa ver”;

“No dia 3 de Fevereiro de 2017, pelas 10.00 horas, junto à casa de morada de família, o arguido no decurso de nova discussão entre o casal, disse à ofendida “ puta…vai para a estrada…não queres fazer nada…vai ganhar dinheiro “.

b) - o arguido foi absolvido pela prática de um crime de violência doméstica por sentença de …2020 e a partir daí, e até 2/5/2021, voltou a praticar factos parcialmente idênticos aos que levaram à anterior referida condenação, designadamente a ameaçar a assistente de morte (em 16/12/2020 e em 17/3/2021), a chamar-lhe “puta”, “filha da puta”, “puta do caralho”, “puta de um cabrão” (em 16/12/2020, 17/12/2020, primeiros 15 dias de Março de 2021, 2/5/2021), para além de a ter ameaçado que lhe “partia os cornos todos”, de lhe ter chamado “vaca” e de lhe ter dito “vai levar no cu”.

Quanto ao elemento subjectivo, considerou-se provado (sem ser posto em causa pelo arguido no presente recurso) que:

“11.º O arguido sabia que dirigia palavras à vítima que eram adequadas a limitar a sua liberdade de agir e a provocar-lhe medo, inquietação, e receio pela sua vida e integridade física, o que quis e conseguiu.

12.º O arguido sabia que a sua conduta era apta a maltratar psicologicamente a vítima ao ponto de inquietá-la, atingindo a sua honra, consideração pessoal e dignidade, o que quis e conseguiu.

13.º O arguido sabia que a sua conduta afectava a dignidade da vítima, criando nela sentimentos de inquietação, medo e insegurança, bem sabendo que se tratava da sua ex-mulher, o que não o impediu de agir do modo descrito.

14.º O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.”

Face ao referido, parece-nos evidente que estão preenchidos todos os elementos necessários para se concluir, como se concluiu na sentença recorrida: o recorrente incorreu na prática do crime de violência doméstica.

O arguido pretendeu, e conseguiu, pôr em causa a dignidade pessoal da assistente, tal como já havia feito anteriormente. Persistiu no seu anterior propósito, quiçá “estimulado” pela absolvição de foi alvo anteriormente.

O arguido pretende que se conclua que não existia qualquer situação de domínio relativamente à assistente, uma vez que estão divorciados desde …2017 e que não vivem juntos. São circunstâncias completamente indiferentes, sendo até certo que se não vivem juntos, vivem muito próximo, pois que a assistente reside numa casa e o arguido num anexo da mesma.

A relação de domínio tem que ser entendida de forma razoável, no sentido atrás referido, e não no sentido de permanentemente ocorrer uma situação de total subjugação da vítima. O certo é que resultou provado que em várias ocasiões o arguido ameaçou a assistente, e ainda em mais ocasiões (por vezes coincidentes com as ameaças) dirigindo-lhe palavras e frases que manifestamente punham em causa a sua idoneidade moral, a sua dignidade pessoal.

Não se compreende, pois, a alegação contida na conclusão 13ª da motivação de recurso de que não se tratou de um comportamento reiterado, quando é certo que provado está que em cinco ocasiões distintas o arguido ameaçou e/ou injuriou a assistente.

O domínio resulta das circunstâncias que provadas se consideraram e não do facto de já não fazerem vida em comum. E tanto assim é que o nº 1 do artº 152º do Cód. Penal prevê várias situações em que não se pressupõe qualquer vivência em comum.

É certo que os actos praticados pelo arguido de “per si” considerados não revestem gravidade substancial. Não se trata de uma situação de constante humilhação e tratamento cruel. Nada disso. Mas não deixa de ser um conjunto de actos praticados pelo arguido, ocorridos na sequência da ruptura da relação conjugal e que claramente demonstram uma superior “capacidade” do arguido em mal-tratar a assistente.

É para este tipo de situações que o crime de violência doméstica também foi previsto; não foi só para os casos de maus tratos com intensidade superior e com consequências bem mais gravosas, designadamente físicas.

É certo que não basta a existência de qualquer das relações “familiares” previstas no artº 152º do C.P. para que se considere que qualquer mau trato entre os seus elementos constitui um crime de violência doméstica. Se tivesse ocorrido apenas um qualquer dos factos praticados pelo arguido, poder-se-ia entender que ocorreria qualquer outro crime, designadamente ameaça e injúria.

A questão é que os actos praticados pelo arguido ocorreram todos no âmbito de um mesmo circunstancialismo, conforme referido, por cinco ocasiões distintas, no período de cerca de 4 meses e meio.

Como bem se refere no Código Penal Anotado e Comentado de Vítor Sá Pereira e Alexandre Lafayette, pág. 404, em anotação ao artº 152º do Cód. Penal: “O nº 1 estabelecia, no Projecto e na Proposta de Lei referidos, supra, em 3., um elemento redutor, exigindo que os maus tratos ocorressem «de modo intenso e reiterado». (…). As dificuldades oriundas da redução em causa, entretanto, foram superadas na redacção em último termo adoptada para o nº 1. De facto, não se exige mais «modo intenso e reiterado». Cura-se, realmente, dum mais vasto, e não reduzido ou limitado, «modo reiterado ou não»”.

Concorda-se, pois, inteiramente, com as seguintes considerações feitas na sentença recorrida a este propósito, com especial relevância para a referência ao domínio emocional:

“No caso, face à factualidade provada, não existem dúvidas de que a conduta desenvolvida pelo arguido preenche a factualidade típica da violência doméstica, quer quanto aos elementos objetivos, quer subjetivos. A factualidade provada evidencia que o arguido manteve diversas condutas que ofenderam a liberdade pessoal e a integridade moral da ofendida, mas que para além disso se revelou especialmente censurável, permitindo concluir pela subjugação de um membro da relação a outro, pelo exercício de um domínio emocional de facto de um sobre o outro, neste caso do arguido sobre a ofendida, consubstanciando assim um “infligir de maus tratos psíquicos a esta. O conjunto dos factos provados, reiterados e as atitudes agressivas são, a nosso ver, suscetíveis de colocar a vítima na situação de, permanentemente, sofrer um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade. O arguido teve claramente atos atemorizadores e de humilhação, ofendendo claramente a dignidade da sua ex-mulher. Enxovalhava-a, injuriava-a e tratava-a com desprezo. Por todo o exposto e de acordo com o que já acima se expôs, não restaram quaisquer dúvidas ao tribunal, em face da prova produzida, que o arguido, praticou os factos, integradores do tipo de crime de violência doméstica.”

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DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar o recurso improcedente.

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Atento o decaimento total no recurso, o recorrente deverá suportar as custas, com taxa de justiça que se fixa em 4 UCs.

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Évora, 13 de Setembro de 2022

Nuno Garcia

António Condesso

Edgar Valente