MAUS TRATOS
Sumário

É totalmente despida de sentido (com o devido respeito) a alegação (constante da motivação do recurso) segundo a qual “ainda que os recorrentes possam pegar ou ter pegado o ofendido por baixo dos braços, socorreram-se do poder/dever de correção, sem violência, ou seja, o dever de impor regras e limites, porquanto os mesmos são estruturantes da personalidade das crianças”.
Além de tal não corresponder à factualidade dada como provada, da qual flui ter existido efetiva violência física na atuação dos arguidos sobre o ofendido, o poder/dever de correção não abrange condutas como as perpetradas pelos arguidos.
Na verdade, as condutas dos arguidos, globalmente analisadas, possuem uma gravidade intrínseca suficiente para poder ser enquadrada no crime de maus tratos, por traduzir a inflição de violência física e psíquica sobre um menor de 14 anos de idade, desrespeitando flagrantemente a sua pessoa e a sua dignidade humana, constituindo uma humilhação da vítima, um tratamento desumano e um fator de intenso sofrimento mental para um menor da referida idade.
Ao contrário do alegado na motivação do recurso, as condutas dos arguidos ultrapassam, sem margem para dúvidas, os limites do que é razoável, colocando em causa, isso sim, a dignidade da pessoa humana.

Texto Integral

Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - RELATÓRIO

No processo comum (com intervenção do tribunal singular) nº 40/19.6GAPSR, do Juízo de Competência Genérica de ..., após audiência de discussão e julgamento, e mediante pertinente sentença, foi decidido nos seguintes termos:

“Em face do exposto, o Tribunal decide julgar a acusação pública procedente, por provada e, em consequência:

a) Condena o arguido AA, da prática, em coautoria material e na forma consumada, um crime de maus tratos, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 14.º, n.º 1; 26.º e 152.º-A, n.º 1, al. a), todos do Código Penal na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão;

b) Suspende a execução da pena de prisão pelo período de 2 (dois) anos, na condição de o arguido AA ser acompanhado por um regime de prova, que deverá ser cumprido de acordo com o plano de reinserção a elaborar pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, que após enviará relatórios semestrais ao Tribunal de acompanhamento dos arguidos;

c) Condena a arguida BB, da prática, em coautoria material e na forma consumada, um crime de maus tratos, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 14.º, n.º 1; 26.º e 152.º-A, n.º 1, al. a), todos do Código Penal na pena de 1 (um) ano e 15 (quinze) dias de prisão;

d) Suspende a execução da pena de prisão pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, na condição de a arguida BB, na condição de ser acompanhada por um regime de prova, que deverá ser cumprido de acordo com o plano de reinserção a elaborar pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, que após enviará relatórios semestrais ao Tribunal de acompanhamento dos arguidos;

e) Condena os arguidos AA e BB o pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça, para cada um, em 2 (duas) Unidades de Conta”.

*

Discordando da decisão condenatória, os arguidos interpuseram recurso, extraindo da motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

“1. A matéria dada como provada não é condizente com a prova produzida em sede de julgamento, impondo-se que se faça uma reapreciação da mesma, com vista a absolver-se os arguidos AA e BB, no uso legal do princípio do in dubio pro reo.

2. A Mma. Juiz a quo deu como provados todos os factos constantes da acusação, e sustentou a fundamentação nas declarações do jovem ofendido CC, coadjuvado pelas testemunhas DD e EE, no entanto os recorrentes entendem que devem ser considerados COMO NÃO PROVADOS os factos provados vii, viii, ix, x, xi, xii, xiii, xiv, xv, xvi, xvii, xviii, xix, xx.

3. No que concerne ao ponto vii referente ao alegado descontentamento dos recorrentes pelo ofendido querer ir viver com o pai para ... e que alegadamente terá motivado os recorrentes para praticar o alegado crime de maus tratos, o mesmo deverá ser dado como não provado em virtude da duvida séria que se suscitou dos depoimentos dos recorrentes no sentido de negarem em absoluto tal situação, tendo o recorrente AA esclarecido o tribunal que foi ele próprio que pediu ao seu advogado que relatasse a vontade do menor ao Processo de Promoção e Proteção para que fosse possível o ofendido ir de facto viver com o pai, sendo em virtude desse pedido que o menor concretizou o seu desejo tendo sido o recorrente que entregou o menor ao pai no tribunal.

4. Relativamente às alegadas expressões verbais proferidas pelos recorrentes constantes do ponto ix da fundamentação o mesmo foi dado como assente pela Mma. Juiz a quo que atendeu unicamente às declarações do ofendido e da testemunha DD que nas circunstâncias de modo, tempo e lugar, são imprecisas, vagas, que não podiam permitir ao tribunal a quo fazer um correto exame crítico das mesmas e sustentar a condenação dos recorrentes, devendo, salvo melhor opinião, ser dado como NÃO PROVADO.

5. No tocante à alegada violência física decorrente dos pontos x a xvi da fundamentação, devem os mesmos pontos ser dados como não provados, derivado dos depoimentos dos recorrentes conjugados com o depoimento do ofendido, desta feita, retira-se do depoimento do próprio ofendido CC, a instâncias da Mma. Juiz, que “era sempre o avô”, e que a recorrente BB “acho que foi só uma vez” esclarecendo depois que neste episódio em concreto “nada, nada, nada”.

6. Não pode a recorrente BB aceitar de forma alguma ser condenada pela prática, de um crime de maus tratos quando o próprio ofendido não lhe imputa diretamente esse facto/crime.

7. Também o ponto xvii dos factos assentes foi erradamente dado como provado pela Mma. Juiz a quo, desde logo porque se baseia nas declarações do ofendido, coadjuvadas principalmente pelas testemunhas DD e EE, sendo certo que do depoimento da testemunha EE (“o depoimento da senhora psicóloga do agrupamento escolar frequentado por CC, Dra. EE que relatou de modo muito pormenorizado e articulado toda a perceção que teve e lhe foi transmitida por este, quanto à sua dinâmica familiar junto dos arguidos.”) sempre se dirá que a mesma diz respeito, tão-só, ao que se encontra vertido nas conversas tidas entre a psicóloga e o menor, não implicando a indiciação quanto à prática dos factos, que não foram presenciados por esta profissional.

8. Mas há ainda um abalo enorme no depoimento da testemunha DD que tendo alegadamente presenciado todo o crime, NÃO SABE, se o seu filho ficou com hematomas no corpo, conforme se prova pelo seu depoimento (gravado em 20211124105716_1075655_2871427 / (minutos 22:34 a 23:12), não sendo crível que a própria mãe que a tudo assistiu não tenha visto os hematomas com que o seu filho ficou.

9. A verdade é que, a teoria do ofendido e da sua mãe, da existência de um crime de maus tratos por parte dos recorrentes falece por este depoimento, coadjuvado com o relatório médico elaborado pelo Dr. FF no dia 12/12/2019 junto aos autos a 20/12/2019 com a referência ...63 onde consta que o ofendido refere “ter sofrido agressão com apertão que terá sido infligida por familiares (…do evento terá resultado traumatismo dos membros superiores”), sendo o parecer do médico: “o examinando não apresenta lesões ou sequelas” relacionáveis com o evento, ora logicamente tais hematomas nunca existiram, porque nunca existiu crime.

10. Diga-se ainda que as declarações do ofendido não são claras, o discurso afigura-se ensaiado, pouco claro, no sentido de que a resposta de tal episódio de maus tratos e comportamentos alegadamente violentos dos arguidos ora recorrentes foi sempre provocada por perguntas dos diversos intervenientes processuais, nomeadamente por parte da Mma. Juiz a quo e Senhor Procurador do Ministério Publico.

11. A prova produzida em audiência deixa dúvida razoável não configurando os depoimentos do ofendido e das restantes testemunhas prova segura, consistente e sólida, para se condenar os arguidos pela prática do crime de maus tratos de que vinham acusados existindo uma dúvida séria, honesta e com força suficiente para se tornar um obstáculo intelectual à aceitação da versão dos factos vertidos pelo ofendido, uma vez que, não subsistiu uma convicção séria e forte de que os recorrentes tenham efetivamente praticado factos subsumíveis ao crime de violência maus tratos, de que vinham acusados, na pessoa do ofendido, devendo ter sido aplicado o princípio constitucional in dubio pro reo.

12. É indispensável que a atuação ilícita, única ou reiterada, atinja pela sua intensidade, circunstâncias ou modo como foi praticada, a integridade pessoal da vítima, a sua dignidade ou o livre desenvolvimento da sua personalidade. O que não cremos que aconteceu, sendo a palavra do ofendido e da sua mãe contra a versão dos recorrentes, proveniente de vinganças e sentimentos negativos por parte da testemunha DD.

13. Os recorrentes são pessoas de modesta condição social, a recorrente BB tem o 6º ano de escolaridade e o recorrente AA possui o 4º ano de escolaridade, são avô e “avó/madrasta” do ofendido, dando-lhe amor e carinho e naturalmente ralhando e discutindo como em qualquer família, quando havia motivo para tal.

14. Os recorrentes jamais ofenderam o neto com quaisquer expressões, ou atuaram com este com qualquer tipo de violência, embora no seio da vida familiar houvesse discussões e tivessem muitas vezes que repreender o ofendido pelos seus maus comportamentos e mentiras, derivados também da idade do mesmo, na fase da adolescência, apenas discussões e repreensões, nunca agressões ou ofensas verbais.

15. O legislador civil Português, com a Reforma de 1977 do Código Civil, optou por suprimir do conteúdo das responsabilidades parentais, o poder de castigar moderadamente os filhos, pese embora não tenha estabelecido expressamente a sua proibição, acontece porém, que a ampliação das condutas que podem configurar o crime de maus não implica, naturalmente, que necessariamente preencham o tipo legal do crime de maus tratos quaisquer ocorrências em que, por parte dos pais, haja recurso a uma palmada ou uma discussão, um ralhete, pois que sempre importará aferir, além do mais, do seu concreto contexto e da respetiva adequação.

16. Ora, tendo presente o concreto contexto em que os factos ocorrem, pode haver situações em que a notícia de uma discussão e de repreensões em nada indicia que tal circunstância dirá respeito a uma situação que preencha o tipo legal - objetivo e subjetivo - do crime de maus tratos, ou seja, ainda que os recorrentes possam pegar ou ter pegado o ofendido por baixo dos braços, socorreram-se do poder/dever de correção, sem violência, ou seja, o dever de impor regras e limites, porquanto os mesmos são estruturantes da personalidade das crianças, não se tendo provado que tenha sido exercida qualquer violência.

17. Consideram os recorrentes, salvaguardado o respeito que lhe merece mais douta opinião, que, a considerar-se alguns dos factos provados, estes não são suficientes nem assumem a gravidade suficiente para a verificação do crime de maus tratos, pelo que padece a sentença recorrida de erro de julgamento, pois que não estão preenchidos o tipo objetivo e subjetivo do crime em causa, devendo o Tribunal a quo ter absolvido os arguidos, ora recorrentes, da sua prática, o que se requer a V. Exas, Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores.

Termos em que, e nos melhores de direito que V. Exas doutamente suprirão, deve o presente recurso merecer provimento, revogando-se a douta sentença recorrida”.

*

A Exmª Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta ao recurso, apresentando as seguintes conclusões (em transcrição):

“1. Por sentença de 12-01-2022 os arguidos AA e BB foram condenados pela prática, em coautoria, e na forma consumada, de um crime de maus tratos, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º e 152.º-A, n.º 1, al. a), nas seguintes penas:

- O arguido AA na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos, na condição de o arguido ser acompanhado por um regime de prova, que deverá ser cumprido de acordo com o plano de reinserção a elaborar pela DGRSP;

- A arguida BB na pena de 1 (um) ano e 15 (quinze) dias de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, na condição de ser acompanhada por um regime de prova, que deverá ser cumprido de acordo com o plano de reinserção a elaborar pela DGRSP.

2. O Tribunal a quo enumerou as provas produzidas que serviram de base à decisão da matéria de facto, e fundamentou de forma clara essa mesma decisão, bem como todo o raciocínio lógico e racional que lhe serviu de base. Ademais, explicou a razão porque concedeu importância e credibilidade às declarações do ofendido e das demais testemunhas, em detrimento da versão trazida pelos arguidos.

3. As referências invocadas pelos recorrentes constituem uma mera contraposição da sua própria análise valorativa, não demonstram uma imposição lógica para uma decisão diversa (vide, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 01-04-2008, Rel. Ribeiro Cardoso, Proc. Nº 360/08-1, disponível para consulta em www.dgsi.pt).

4. De salientar que ao contrário do que pretendem fazer crer os recorrentes, o Tribunal a quo não se cingiu às declarações do ofendido CC. Com efeito, recorreu igualmente à demais prova testemunhal, designadamente ao depoimento das testemunhas DD, GG, HH e EE, e à prova documental junta aos autos, nomeadamente a extraída do processo de promoção e proteção, a qual não tem de ser produzida em julgamento para poder ser valorada, e que não foi sequer referida no recurso apresentado pelos arguidos, pese embora o relevo que assumiu na formação da convicção do Tribunal.

5. E, em face de toda essa prova, não teve o Tribunal recorrido qualquer dúvida de que os arguidos praticaram os factos dados como assentes, preenchendo com a sua atuação todos os elementos típicos do crime pelo qual foram condenados, pelo que não houve violação de qualquer princípio ou norma legal.

6. Ao colocarem em causa a convicção probatória, os recorrentes emitem discordância sobre o modo como foi valorada a prova e quanto à convicção da instância sobre os factos.

7. A alegada violação do princípio in dubio pro reo mais não constitui do que outra perspetiva de colocar a mesma questão relativa ao julgamento sobre a matéria de facto (vide, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 04-02-2020, Proc. 60/16.2GEBNV.E1, Rel. Laura Maurício, disponível em www.dgsi.pt).

8. Ora, no caso em apreço, o Tribunal a quo motivou e valorou de forma correta e isenta de dúvidas a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, pelo que o aludido princípio não foi alvo de qualquer violação. Na verdade, a apreciação conjunta das provas produzidas em audiência, designadamente as declarações do ofendido, os depoimentos das testemunhas e os documentos juntos aos autos, que o Tribunal efetuou no âmbito dos poderes que legalmente lhe são atribuídos pelo artigo 127º do Código de Processo Penal, permitiu dar como definitivamente assentes os factos constantes da decisão, o que resulta claramente explanado na fundamentação da sentença.

9. A factualidade dada como provada subsume-se ao tipo de crime de maus tratos, porquanto os arguidos tinham ao seu cuidado o menor CC, a quem infligiram maus tratos psíquicos e físicos.

10. As condutas perpetradas pelos arguidos assumem um grau de violência e gravidade tal, que, por si só, ainda que isoladas fossem, sempre justificariam a punição pelo crime de maus tratos, estando, por isso, muito longe de constituir “poder/dever de correção” ou “dever de impor regras e limites”, tal como invocam os arguidos.

11. Não merecendo qualquer reparo a douta sentença, pois faz uma correta aplicação de todas as disposições legais e não viola qualquer princípio processual penal ou mesmo constitucional, em concreto, o princípio in dubio pro reo e da presunção de inocência, invocados pelos arguidos como tendo sido violados.

12. Nestes termos, entende o Ministério Público que não deve ser dado provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida”.

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Neste Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, entendendo que o recurso dos arguidos não merece provimento.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

Foram colhidos os vistos legais e foi realizada a conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.

Tendo em conta as conclusões enunciadas pelos recorrentes, as quais delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal, são duas, em breve síntese, as questões que vêm suscitadas no presente recurso:

1ª - A impugnação alargada da matéria de facto (nomeadamente com invocação da violação do princípio in dubio pro reo).

2ª - O preenchimento dos elementos (objetivos e subjetivos) do crime de maus tratos.

2 - A decisão recorrida.

A sentença revidenda é do seguinte teor (quanto aos factos - provados e não provados - e quanto à motivação da decisão fáctica):

“FACTOS PROVADOS

i. Os arguidos AA e BB vivem juntos, em comunhão de mesa, leito e habitação, na residência sita na Rua ..., ..., em ....

ii. O menor e ofendido CC, nascido à data de .../.../2005, é filho de II e de DD e é neto do arguido AA.

iii. No período compreendido entre 06/05/2015 e 06/12/2019, o ofendido residiu com os seus irmãos, a sua mãe e o companheiro desta, na Praça ..., em ....

iv. Atenta a proximidade entre ambas as habitações, o ofendido, à semelhança dos seus irmãos, passava todo o seu tempo livre e tomava as refeições na casa dos arguidos, indo apenas pernoitar à residência da sua mãe.

v. Os arguidos - avô e “avó/madrasta” do ofendido - assumiam-se como seus principais cuidadores e tomavam-no diariamente à sua responsabilidade.

vi. Sucede que, pelo menos desde setembro de 2019 - e no âmbito do Processo de Promoção e Proteção n.º 2318/15...., a correr termos neste Tribunal -, o ofendido manifestou vontade de passar a residir com o seu progenitor, em ....

vii. Desde então, e porque desagradados com a decisão do menor, o comportamento dos arguidos sofreu alterações, passando a apresentar um temperamento violento e implicativo para com o ofendido e fazendo-o sem qualquer motivo.

viii. Em concreto, no dia 29/11/2019, no interior da residência dos arguidos, o arguido AA questionou o ofendido se o pai deste o havia contactado telefonicamente na escola, ao que o menor respondeu que não.

ix. Ato contínuo, o arguido AA encetou uma discussão com o ofendido, no decurso da qual lhe dirigiu as seguintes expressões, entre outras: “mentiroso!”, “és um vagabundo igual ao teu pai!”, “não queres fazer nada!!”, “és um filho da puta!”, “cabrão!”, bem como expulsou o ofendido de sua casa, dizendo-lhe: “nunca mais apareças cá em casa! Já não és meu neto!”, em desrespeito pelo sentido de consideração e pudor daquele, vexando-o e humilhando-o.

x. O menor retirou-se do interior da residência e permaneceu no exterior desta durante cerca de dez minutos, após o que a sua mãe - que presenciara a discussão - o veio chamar para entrar novamente na casa do avô; pedido a que este acedeu.

xi. Porém, aí chegado, o arguido AA manteve, para com o ofendido, o mesmo discurso, dizendo-lhe para ir para casa da sua mãe e que não o queria mais ali - ao que este foi para a sua residência, onde pernoitou.

xii. No dia seguinte (30/11/2019), pela hora do almoço, a mãe do ofendido chamou-o para ir almoçar a casa do avô, o que este recusou.

xiii. No mesmo dia, à noite, a mãe do ofendido chamou-o novamente para ir jantar a casa do avô, o que este recusou porquanto o avô o tinha expulso de sua casa.

xiv. Logo após, os arguidos AA e BB entraram na residência do ofendido, dirigiram-se ao quarto do menor e agarraram-no por debaixo dos braços, puxando-o para cima violentamente, com o intuito de o levantar e fazê-lo sair de casa.

xv. Perante tal atitude, o ofendido dirigiu-se à residência dos arguidos pelo próprio pé; contudo, aí chegado, sentou-se perto da porta de entrada.

xvi. Uma vez mais, ambos os arguidos, em comunhão de esforços e intentos, novamente agarraram o ofendido por debaixo dos braços com força, manietando-o e forçando a sua entrada na residência dos arguidos.

xvii. Como consequência direta de tais condutas, o ofendido sentiu dores e incómodos nas zonas atingidas, bem como, ficou com hematomas, com cerca de 1 cm, nas costas e nas axilas.

xviii. Os arguidos sabiam que o ofendido CC, à data dos factos com 14 anos de idade, não lhes podia oferecer qualquer resistência, porquanto particularmente indefeso em razão da sua idade e da dependência económica dos arguidos.

xix. Não obstante, e ao agirem das formas acima descritas, os arguidos sabiam que molestavam a saúde física e psicológica do menor, que o ofendiam na sua honra e consideração, que abalavam a sua segurança pessoal, o seu amor-próprio e a sua dignidade, ou seja, sabiam que lhe provocavam sofrimento físico e psíquico, pondo em causa o seu equilíbrio emocional, afetivo e comportamental e o seu desenvolvimento físico e psíquico harmonioso, o que pretenderam e fizeram.

xx. Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e tendo capacidade para se determinar de acordo com tal conhecimento.

Mais se provou que:

xxi. Os arguidos não possuem antecedentes criminais;

xxii. A arguida tem o 6º ano de escolaridade e encontra-se desempregada;

xxiii. O arguido possui o 4º ano de escolaridade, encontrando-se desempregado desde que sofreu um acidente de viação.

xxiv. Vivem em ..., em casa própria, com cinco filhos (de idades compreendidas entres os cinco e os vinte anos) e uma neta (de cinco anos).

xxv. O agregado dos arguidos é beneficiário do Rendimento Social de Inserção, numa prestação de € 900.00 mensais a que acrescem cerca de € 300.00 de abonos de família dos menores.

xxvi. Do relatório social junto aos autos resulta que:

“No que concerne às relações familiares, estas são coesas e com forte sentido de interajuda, protegendo-se e desresponsabilizando-se mutuamente pelos seus atos, perante a intervenção externa. […] AA, depois do acidente de que foi vítima, ficou fisicamente e cognitivamente diminuído, encontra-se socialmente inserido, sem indicadores de desajustamento a outros níveis, mostrando-se focalizado no seu agregado. AA não assume qualquer responsabilidade nos autos, situação que pode constituir-se como fator de risco”.

FACTOS NÃO PROVADOS

Não ficaram por demonstrar quaisquer factos.

Com relevância para a decisão da causa não resultaram provados ou não provados quaisquer outros factos, designadamente diferentes ou que estejam em oposição com os acima elencados.

MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Para formar a convicção do Tribunal quanto à factualidade apurada baseou-se este na análise de toda a prova produzida em audiência e constante dos autos, analisada de uma forma crítica e com recurso a juízos de experiência comum, conjugada com a apreciação crítica das declarações prestadas em audiência pelas testemunhas, que descreveram, no essencial, os acontecimentos da forma supra elencada.

A valoração da prova foi norteada pelo princípio da livre apreciação da prova consagrado pelo legislador no artigo 127º do Código de Processo Penal, o qual encontra os seus alicerces nos princípios da oralidade e da imediação. Cumpre proceder à motivação da matéria de facto, com relevância para a decisão da causa, considerada provada e não provada.

O Tribunal fundou a sua convicção nos seguintes meios de prova:

- Declarações dos arguidos.

- Declarações do ofendido CC;

Testemunhal - Declarações das testemunhas:

- DD, melhor id. a fls. 94;

- GG, melhor id. a fls. 105;

- HH, melhor id. a fls. 107;

- EE, melhor id. a fls. 5.; e

- JJ;

- KK

- LL

- MM, todas melhores identificadas na contestação.

Documental:

- Certidão do Assento de Nascimento com a Referência Citius n.º 31423913;

- Documentos de fls. 161-190, extraídos do Processo de Promoção e Proteção nº 2318/15...., a correr termos neste Tribunal.

- Certificados de Registo Criminal de fls. 159 e 160;

- Informações da Segurança Social de fls. 254;

- Relatórios sociais juntos sob as Referência Citius nº 1971832 e 1971942.

Cumpre concretizar em que moldes foram os supra aludidos meios probatórios tidos em conta pelo Tribunal.

Vejamos:

O Tribunal ouviu ambos os arguidos que confirmaram residir juntos, em comunhão de mesa, leito e habitação, há 22 anos, pelo que confirmam o facto provado i., bem como confirmam os factos provados ii., iii. e iv. (cuja prova também se fundou nos depoimentos de CC, de DD, de LL e de NN).

O facto ii. resulta provado atento o teor do assento de nascimento do ofendido, por onde se extraí a sua idade e a sua avoenga quanto ao arguido AA.

No que toca aos demais factos, os arguidos apresentaram uma versão em que, em breve súmula, negam quaisquer comportamentos subsumíveis à prática de um crime, revelando que nunca agrediram o menor CC, nem proferiram quaisquer das expressões constantes daquela peça processual, qualificando o sucedido quase como uma vingança, sem que esclareçam o motivo para a mesma, até porque, segundo defendem, sempre apoiaram o menor na decisão de ir residir com o progenitor deste, em ..., transmitindo ao Tribunal uma posição muito pacífica e tranquila com esta decisão/vontade do menor.

Contudo, não obstante a posição veiculada perante o Tribunal, não lograram os arguidos convencer da sua postura “magnânima” perante o ofendido, desde logo, porque as suas declarações acabaram por ser infirmadas pelas declarações do próprio CC, como adiante se verá e pela própria mãe deste, a que acresce o depoimento dos senhores militares da Guarda Nacional Republicana, que foram chamados à escola para tomar conta da ocorrência que veio a despoletar os presentes autos e, bem assim, o depoimento da senhora psicóloga do agrupamento escolar frequentado por CC, Dra. EE, que relatou de modo muito pormenorizado e articulado toda a perceção que teve e lhe foi transmitida por este, quanto à sua dinâmica familiar junto dos arguidos.

De referir que foi transversal a todos os depoimentos referidos, mesmo das declarações dos arguidos, (exceto dos senhores militares), que eram aqueles (arguidos) quem, na realidade, se assumia como principais cuidadores de CC. Não cabe, neste processo, aferir se o faziam por “demissão” da progenitora, por terem ascendente sobre a mesma, mas apenas, o que se confirmou, apurar que eram aqueles quem, no dia-a-dia, assumiam tal papel - veja-se a circunstância de serem os arguidos quem ia levar o menor à escola e buscá-lo, resultar dos depoimentos que as refeições do menor eram em casa dos arguidos, eram estes que se encontravam como referenciados na escola como tendo a direção da educação e do viver de CC e até o modo como assumem que aceitavam a ida do menor para ..., a forma como expressam tal postura, transmite a ideia de que, de facto, consideravam ter algo a dizer - o que só é compatível com a ideia de os próprios se considerarem principais cuidadores do jovem (e com uma palavra a dizer sobre o futuro do mesmo), daí que se tenha considerado provado o facto v.

O facto provado vi. resulta demonstrado do teor da informação constante de fls. 161 a 190, extraída do ... que correu termos neste Juízo de Competência Genérica de …, sob o nº 2318/15...., de onde se extraí que CC manifestou vontade de ir residir com o progenitor em ... - circunstância que foi confirmada por este, pela progenitora (testemunha DD), pela testemunha EE, mas que igualmente resulta demonstrada pelas declarações dos arguidos, já que os mesmos admitem ter conhecimento da vontade do menor, negam é que tenham praticado quaisquer dos factos constantes da acusação como consequência da expressão daquela vontade por CC.

No mais, como se referiu, o Tribunal não assimilou a versão veiculada pelos arguidos que, inclusive, quando confrontados sobre qual foi a sua reação quando terão sido informados pelo seu advogado de que o menor tinha feito queixas na escola de alegados maus tratos dos arguidos e tinha afirmado querer ir viver com o progenitor, de forma pouco séria ou credível, referiram nada ter feito, limitando-se a perguntar o que se passava e, na falta de resposta, foram ao café. O que não se afigura consentâneo com o normal da vida, na verdade, qualquer pessoa que receba um telefonema do seu advogado informando de queixas de maus tratos veiculadas pela criança, presumirá (até porque terá sido o advogado a telefonar) alguma gravidade na situação e procurará esclarecer a questão, insistindo, perguntando, procurando entender o motivo de tal queixa e, na verdade, estranhamente, são os arguidos quem introduz esta informação nos autos, mas a conclusão deste episódio revela-se desconforme ao que é expectável - não sendo, de todo, verosímil que a reação a tão grave imputação seja irem tomar café e nada mais.

Em concreto, no tocante aos factos provados vii., viii., ix., x., xi., xii., xiii., xiv., xv., xvi., xvi. e xviii., o Tribunal atendeu às declarações do jovem CC que relatou aos autos, de forma muito equidistante, madura (não obstante a sua idade, 16 anos) e sem denotar qualquer ensejo de prejudicar os arguidos, antes assumindo a postura de relatar as situações por si vivenciadas, o que fez, no modo descrito, mas também, com coerência, de forma contextualizada e sem contradições, pelo que mereceu credibilidade por parte do Tribunal, esclarecendo a pressão exercida pelos arguidos, com maior pendor para AA, seja ao proferir as expressões constantes da acusação, que acabou por as reproduzir, seja na concretização das agressões que terá sofrido - sendo certo que não obstante, retirar relevo à intervenção da arguida BB (o que reforça a credibilidade que o Tribunal atribuiu ao seu depoimento) não a afasta totalmente, referindo que a mesma sempre se encontrava presente - percecionando-se um apoio desta aos comportamentos do arguido -, a que se soma a situação relatada nos factos provados xiv., xv. e xvi., onde, em conjugação de esforços com o arguido AA, lograram puxar e manietar, de modo violento, o menor, causando-lhe lesões físicas.

Por sua vez, DD, filha do arguido AA e mãe do ofendido, prestou um depoimento emotivo, a oscilar entre a hostilidade para com os arguidos e um sentimento de arrependimento em relação ao ofendido, mas que, não obstante, acabou por merecer credibilidade do Tribunal, atenta a circunstância de ter prestado declarações contextualizadas, sem contradições e, a dado passo, até prejudiciais para a própria, porque indiciadoras de comportamentos que, em sede própria, poderão determinar a sua responsabilidade criminal perante os outros dois filhos, irmãos de CC, à data institucionalizados e que corroboram as declarações proferidas por este, já referidas, em moldes que não se afiguram combinados, porquanto, cada qual se exprimiu em vocabulário próprio, com modos e discurso globalmente concordantes (em todo o depoimento).

Esta testemunha atesta igualmente que os episódios de violência (verbal e física) para consigo e para com os seus filhos (não só o CC), se verificavam desde que estes vieram viver consigo (o que situa por volta do ano de 2015), mas que tais comportamentos se agravaram, aumentando a sua frequência, a partir do momento em que os arguidos tiveram conhecimento de que o CC manifestara o propósito de ir residir com o seu progenitor, em ....

O Tribunal ouviu ainda GG e HH, militares da Guarda Nacional Republicana, que confirmaram terem sido chamados à escola do menor, onde verificaram a existência de lesões, auxiliando, assim, na prova do facto xvi., para o qual contribuiu igualmente o depoimento prestado por EE, psicóloga no Agrupamento de Escolas .... Esta testemunha revelou um profundo conhecimento do modo de estar e de sentir de CC, relatando o ascendente dos arguidos sobre o mesmo, o receio que este manifestava dos mesmos, as oscilações de comportamento do menor, designadamente, que após os arguidos serem chamados à escola ou tomarem conhecimento de alguma queixa do menor, este se “fechava”, deixava de desabafar e de dar nota do que se passava, declarando que estava tudo bem e resolvido. Revelando que a família (sobretudo os arguidos) exercia pressão sobre o mesmo para que se retratasse. Oscilando, as suas queixas, ao longo do tempo de acordo com esta pressão.

A referida testemunha, especialmente pelas funções que exercia, historiou todo o acompanhamento que fez ao ofendido, incluindo o apontamento de faltas de higiene pessoal do mesmo, tendo sido contactados os arguidos que desvalorizavam os apontamentos prestados pela escola. Além de revelar todo o sofrimento do ofendido, a ansiedade por este sentida, que enquadrou como, por um lado, na vontade de ir viver com o progenitor e, por outro, na pressão sentida em casa, no excesso de castigos sofridos, na carga verbal utilizada pelos arguidos para com o ofendido - precisamente pela sua vontade em ir residir em ... - , nas ameaças e “chantagens” a que o mesmo era sujeito, de forma, segundo refere a testemunha, desproporcional, desnecessária, perturbadora e fonte de muita tristeza (além da ansiedade). Relatando ainda que os comportamentos que lhe eram transmitidos pelo ofendido, praticados pelos arguidos, se afiguravam como verdadeiros, nunca tendo motivos para desconfiar da ocorrência dos mesmos, sendo certo que o relato efetuado coincide globalmente com o que foi relatado pelo menor.

Com a nota, claro, de que a testemunha EE ofereceu a sua capacidade técnica para elucidar o Tribunal sobre como o comportamento dos arguidos pôs em causa o equilíbrio emocional, afetivo e comportamental de CC.

O Tribunal inquiriu ainda LL e MM, ambas filhas dos arguidos, sendo que o depoimento desta última não revelou qualquer apontamento de nota para os autos, sendo certo que a mesma tinha à data dos factos, entre 2015 e 2019, entre 8 e 12 anos. Por sua vez, LL adotou uma versão muito idêntica à dos seus progenitores, os arguidos, revelando igualmente uma teoria de vingança pouco concretizada (sendo certo que a ideia de que os presentes autos só surgem após uma queixa contra a mãe do menor levada a efeito pelos arguidos ou pela testemunha, falece pela circunstância de aqueles serem prévios a estes - em cerca de dois anos -).

A testemunha aludiu aos factos xiv., xv. e xvi. referindo que nada terá sido feito por parte dos arguidos, que foi o ofendido quem amuou, sem saber explicar porquê, fazendo ainda referência a tentativas de agressão por parte de CC ao arguido, sem que, no entanto, as mesmas tenham sido abordadas ou referidas por qualquer outra pessoa, nem mesmo os arguidos e que terá sido a própria progenitora deste quem o terá agarrado, deixando marcas - referindo ainda ter tido intervenção a impedir, na ocasião em causa, o ofendido de bater no arguido, o que também não é referido por ninguém. Revelando um discurso altamente protetor da posição dos arguidos e muito colado à vitimização destes, por contrapartida, a uma diabolização do ofendido e da progenitora deste, daí que não tenha merecido credibilidade pelo Tribunal.

Por último, no tocante às testemunhas JJ e KK nada de relevo adiantaram aos autos, quanto ao que nos mesmos constitui o seu objeto.

Relativamente ao dolo e consciência da ilicitude o Tribunal conjugou os meios de prova valorados positivamente nos termos supra expostos, com as regras da experiência comum e ainda com as declarações do ofendido e da testemunha EE. Pois que, sendo o dolo um elemento de índole subjetiva que pertence ao foro íntimo do sujeito, o seu apuramento (com exclusão de uma situação em que o agente admite a intenção direta) ter-se-á de apreender do contexto da ação desenvolvida, cabendo ao julgador - socorrendo-se, nomeadamente, de indícios objetivos, das regras de experiência comum e daquilo que constitui o princípio da normalidade - retirar desse contexto a intenção por ele revelada.

Os arguidos sabiam a idade do ofendido e da sua dependência económica (dos próprios arguidos) e sabiam que as suas condutas, as injúrias, ameaças, chantagens, agressões, atentas aquelas características do menor, o molestavam, o ofendiam na sua honra, abalando a sua segurança pessoal, o seu amor-próprio, a imagem que devia construir sobre si próprio e sobre a relação familiar, que se quer securizante, gratificante e motivadora, daí que se tenham dado como provados os factos xviii., xix. e xx.

Não subsistiram ao Tribunal quaisquer dúvidas sobre a atuação dos arguidos em relação ao ofendido, tendo o mesmo prestado declarações de forma espontânea e, quando se mostrou essencial, confrontado com situações específicas, merecendo total credibilidade ao Tribunal.

No que se reporta à situação pessoal, familiar, social e profissional dos arguidos, nesta data e à data dos factos, considerou o Tribunal as suas declarações, vertidas em matéria não criminal, para as quais contribuíram, igualmente, os relatórios sociais efetuados.

Quanto à inexistência de antecedentes criminais, teve o Tribunal em consideração o conteúdo dos Certificados de Registo Criminal junto aos autos a fls. 159 e 160.

Assim, em face do que supra se elenca, considerou o Tribunal que os arguidos praticaram os factos nos exatos termos em que estes foram considerados provados”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Da decisão sobre a matéria de facto.

Alegam os recorrentes que existe erro de julgamento da matéria de facto, porquanto, e em breve resumo, o Tribunal de primeira instância, indevidamente, considerou como credíveis e consistentes as declarações do menor ofendido, bem como valorou positivamente os depoimentos da mãe deste e da Sr.ª psicóloga da escola frequentada pelo mesmo.

Além disso, invocam os recorrentes que o Tribunal recorrido devia ter aplicado o princípio in dubio pro reo.

Cumpre decidir.

I - Em primeiro lugar, e ao invés do que parece entender-se na motivação do presente recurso, o recurso sobre a matéria de facto não envolve (não pode envolver) para o tribunal ad quem a realização de um “novo julgamento”, com a reanálise de todo o complexo de elementos probatórios produzidos.

A impugnação da decisão fáctica tem por finalidade, isso sim, o reexame de erros de procedimento ou de julgamento, erros que afetem a decisão recorrida e que os recorrentes indiquem (especificadamente), tendo ainda os recorrentes de indicar, por forma também especificada, as provas que, no entender dos mesmos, impõem (e não apenas permitem, sugerem ou possibilitam) uma decisão de conteúdo diferente.

Ora, os recorrentes não nos indicam qualquer elemento de prova que “imponha” decisão fáctica diferente da tomada em primeira instância, limitando-se, isso sim, a fazer uma análise própria de toda a prova produzida, concluindo depois, e sem mais de relevante, que a ponderação da globalidade da prova permite inferir e concluir diferentemente do decidido pelo Tribunal a quo.

Bem vistas as coisas, a discordância expressa pelos recorrentes visa toda a matéria de facto que é relevante para o preenchimento dos elementos do crime de maus tratos em questão, e, além disso, os recorrentes questionam a análise, efetuada pelo Tribunal recorrido, de toda a prova produzida.

Por outro lado, os recorrentes questionam o acervo factológico tido como provado na sentença revidenda com o fundamento - único - de o Tribunal de primeira instância ter seguido um processo de convicção diferente daquele que é o dos recorrentes.

Assim sendo, aquilo que os recorrentes pretendem, no fundo, é que este Tribunal de recurso proceda a um novo julgamento, analisando toda a prova produzida na primeira instância (depoimento a depoimento, ponto por ponto), e, é óbvio, fixando depois a matéria de facto de acordo com uma convicção que os recorrentes pretendem seja idêntica à deles próprios.

II - Em segundo lugar, para procedermos à pretendida alteração da decisão fáctica tomada na sentença revidenda, era necessário que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento não apenas aconselhasse, ou permitisse, ou consentisse, uma tal alteração, mas, isso sim, impusesse essa alteração da decisão a que o Tribunal recorrido chegou, fundamentadamente, sobre a matéria de facto (cfr. o disposto no artigo 412º, nº 3, al. b), do C. P. Penal).

Como bem se escreve no acórdão deste Tribunal da Relação de Évora datado de 15-03-2011 (relator Sénio Alves, disponível in www.dgsi.pt), “se, perante determinada situação de facto em concreto, as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis, e o juiz, fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável: o recorrente (tenha ele, nos autos, a posição processual que tiver), ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efetuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que por ela opte, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova”.

Também o Prof. Figueiredo Dias (in “Direito Processual Penal”, Vol. I, Coimbra Editora, 1981, pág. 233), em sentido similar, esclarece: “por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efetivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de um processo penal submetido predominantemente ao princípio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento”.

Acrescenta ainda o mesmo Ilustre Professor, a propósito dos princípios da oralidade e da imediação (ob. citada, págs. 233 e 234): “só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar, o mais corretamente possível, da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais”.

Lendo a motivação do recurso, verifica-se, facilmente, que a recorrente não atentou nestes princípios (da oralidade e da imediação), nem no princípio da livre apreciação da prova (artigo 127º do C. P. Penal), pretendendo que o tribunal (quer o tribunal a quo, quer este tribunal ad quem) acolha a versão dos factos que mais lhe convém.

Ora, e repetindo o acima dito, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3, al. b), do C. P. Penal, quando impugnem a decisão proferida sobre a matéria de facto, os recorrentes devem indicar, especificadamente, as provas que “impõem” decisão diversa da recorrida (que “impõem”, repete-se novamente, e não que permitem ou aconselham).

A esta luz, lendo a sentença revidenda, na “motivação” quanto à matéria de facto, verificamos, sem dificuldade, que as provas produzidas não “impõem” uma decisão diversa daquela que foi proferida em primeira instância.

Ou seja: o Tribunal a quo não decidiu ao arrepio da prova produzida, ou contra tal prova, nem deu como provado determinado facto com fundamento no depoimento de uma determinada testemunha, e, analisado tal depoimento, constata-se que a dita testemunha se não pronunciou sobre tal facto, ou que, pronunciando-se, disse coisa diferente da afirmada na decisão recorrida, nem, por último, o Tribunal recorrido valorou a prova produzida contra as regras da experiência, ou de modo aleatório e discricionário.

Pelo contrário, na “motivação” o Tribunal recorrido analisou os depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento, procedendo ao exame crítico dos mesmos, isto é, esclarecendo os motivos pelos quais deu credibilidade a certos depoimentos e não a outros, tudo por forma a permitir (como permite), quer aos destinatários diretos da decisão quer à comunidade em geral, perceber os seus raciocínios (as razões pelas quais atribuiu credibilidade a certos depoimentos, nomeadamente ao depoimento do menor ofendido).

III - Em terceiro lugar, este Tribunal de recurso, privado embora da oralidade e da imediação, mas após ponderação do depoimento do menor ofendido, em conjugação com os depoimentos das testemunhas ouvidas na audiência de discussão e julgamento, e ainda em conjugação com o teor dos documentos juntos aos autos, subscreve, inteiramente, os raciocínios formulados pelo Tribunal recorrido e a conclusão a que o mesmo chegou para fixar a matéria de facto.

Também nós, que estamos privados da imediação (importante para captar pormenores de expressão, de olhar, de maneira de estar, e outros, que ajudam a credibilizar ou não certos depoimentos), procedendo a avaliação autónoma da prova produzida na audiência de discussão e julgamento, ficamos inteiramente seguros dos factos dados por provados na sentença revidenda.

Com efeito, e ao contrário do que parece entender-se na motivação do presente recurso, o Tribunal a quo, para formar a sua convicção, não se cingiu à versão do menor ofendido.

Tal Tribunal atentou, igualmente, à demais prova testemunhal produzida, e, bem assim, à prova documental junta aos autos (note-se, por um lado, que o Tribunal recorrido ouviu até testemunhas completamente alheias à situação familiar em causa nos autos - GG e HH, ambos militares da G.N.R. -, as quais confirmaram terem sido chamadas à escola do menor, onde verificaram a existência de lesões físicas no corpo do mesmo, provocadas pela conduta delitiva dos arguidos, e, por outro lado, que existe prova documental relacionada com a factualidade em questão - extraída do “processo de promoção e proteção” que correu termos em Tribunal -, prova esta que, significativamente, não vem sequer referenciada, minimamente, na motivação do recurso dos arguidos).

Assim, sopesando todos os elementos probatórios, bem andou o Tribunal de primeira instância ao não dar credibilidade à versão dos arguidos, quer pelas contradições intrínsecas de tal versão (contradições devidamente explicitadas na sentença revidenda), quer por total desconformidade dessa versão com a demais prova produzida.

Mais: ao contrário do que parece também entender-se na motivação do recurso, nada obsta, por princípio, a que a convicção do Tribunal se forme exclusivamente com base no depoimento de uma única testemunha (ainda que essa testemunha seja o ofendido). Esse depoimento, como qualquer meio de prova oral, está sujeito ao princípio da livre convicção, consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal.

Em conformidade com o predito, é de concluir que não assiste qualquer razão aos recorrentes na impugnação da decisão fáctica tomada em primeira instância.

IV - Por último, e ainda na vertente da impugnação da decisão fáctica, invocam os recorrentes que na sentença recorrida foi violado o princípio in dubio pro reo.

O princípio in dubio pro reo (um dos princípios básicos do processo penal) significa, em síntese, que, para conduzir à condenação, a prova deve ser plena, sendo imprescindível que o tribunal tenha formado convicção acerca da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável, isto é, a formação da convicção é um processo que “só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para que pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse” (Prof. Figueiredo Dias, ob. citada, pág. 202).

Quando o tribunal não forma convicção, a dúvida determina inelutavelmente a absolvição, de harmonia com o princípio in dubio pro reo, o qual consubstancia princípio de direito probatório decorrente daqueloutro princípio, mais amplo, da presunção da inocência (constitucionalmente consagrado no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa).

Com efeito, dispõe a C.R.P. (no nº 2 do seu artigo 32º) que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”, preceito que se identifica genericamente com as formulações do princípio da presunção de inocência constantes, além do mais, do artigo 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e do artigo 6º, nº 2, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais.

Assim, “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 4ª ed., 2007, Vol. I, pág. 519).

O princípio in dubio pro reo apresenta-se, pois, como forma de suprir a ausência de ónus de prova, em sentido próprio, no direito processual penal.

Na verdade, apesar de toda a prova recolhida, é possível que todos os factos relevantes para a decisão não possam ser subtraídos à dúvida razoável do tribunal, e que, por isso, não possam considerar-se como provados.

No presente caso, e como acima se expôs, não restam quaisquer dúvidas (razoáveis) de que os factos foram, efetivamente, praticados pelos arguidos, nos precisos termos dados como provados na sentença revidenda (não existindo possibilidade ou viabilidade de tais factos não terem ocorrido).

Dito de outro modo: o Tribunal a quo não teve dúvidas na valoração da prova, fazendo um juízo seguro acerca dos factos imputados aos recorrentes, e, perante a prova, também este Tribunal de recurso com nenhuma dúvida fica relativamente à prática de tais factos por banda dos recorrentes.

Assim sendo, e ao contrário do alegado na motivação do recurso, não foi violado o princípio in dubio pro reo.

Face ao que vem de dizer-se, é de negar provimento a este segmento do recurso, considerando-se definitivamente fixada a factualidade dada como provada na sentença revidenda.

b) Do preenchimento dos elementos (objetivos e subjetivos) do crime de maus tratos.

Alegam os recorrentes, em breve síntese, que as atitudes que tiveram para com o ofendido, atento o contexto em que atuaram, se inscrevem no poder/dever de correção, não preenchendo, pois, os elementos (objetivos e subjetivos) do crime de maus tratos.

Cabe decidir.

Conforme dispõe o artigo 152º-A, nº 1, al. a), do Código Penal, comete o crime de maus tratos em discussão neste processo “quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente”.

Perante este inciso legal, e com o devido respeito, a alegação dos recorrentes em todo este segmento (e a consequente pretensão absolutória) carece, manifestamente, de sentido.

Com efeito, in casu não estamos perante um ofendido que seja um “fraldado”, a quem se dá “uma palmada” ou “um ralhete” (nas expressões constantes da motivação do recurso), não existindo, pois, qualquer “adequação” nas condutas dos arguidos para com o ofendido (então com 14 anos de idade).

Mais: é totalmente despida de sentido (com o devido respeito) a alegação (constante da motivação do recurso) segundo a qual “ainda que os recorrentes possam pegar ou ter pegado o ofendido por baixo dos braços, socorreram-se do poder/dever de correção, sem violência, ou seja, o dever de impor regras e limites, porquanto os mesmos são estruturantes da personalidade das crianças”.

Além de tal não corresponder à factualidade dada como provada (nos termos já acima ponderados e decididos), da qual flui ter existido efetiva violência física na atuação dos arguidos sobre o ofendido, o poder/dever de correção não abrange condutas como as perpetradas pelos arguidos.

Na verdade, as condutas dos arguidos, globalmente analisadas, possuem uma gravidade intrínseca suficiente para poder ser enquadrada no crime de maus tratos, por traduzir a inflição de violência física e psíquica sobre um menor de 14 anos de idade, desrespeitando flagrantemente a sua pessoa e a sua dignidade humana, constituindo uma humilhação da vítima, um tratamento desumano e um fator de intenso sofrimento mental para um menor da referida idade.

Ao contrário do alegado na motivação do recurso, as condutas dos arguidos ultrapassam, sem margem para dúvidas, os limites do que é razoável, colocando em causa, isso sim, a dignidade da pessoa humana.

Subscreve-se, perante o exposto, o que ficou consignado na sentença revidenda a propósito da “Subsunção dos factos ao tipo incriminador”: “os factos provados permitem considerar que a atuação desenvolvida pelos arguidos a respeito do ofendido subsume-se ao tipo de crime de maus tratos. Com efeito, e concretizando, é de ter em atenção que os arguidos se assumiam como principais cuidadores do ofendido, bem sabendo da sua idade e da dependência económica do mesmo em relação àqueles, sabiam que as expressões por si utilizadas, com especial enfoque no arguido AA, eram aptas a perturbar o bem estar psíquico de CC, afetando o seu são desenvolvimento, a sua autoestima e dignidade, a que acresce a circunstância de serem expressões aptas a criar constrangimentos na forma de se autodeterminar do ofendido. A que acresce a circunstância de se considerar selvático e irracional ir arrancar o menor a casa, à cama, puxando-o e arrastando-o, de modo a vincar uma posição de superioridade e de poder sobre o mesmo, usando de ascendente sobre o ofendido com recurso (além do mais) à força física, à violência e com atuação conjunta - sendo certo que esta atuação conjunta demonstra a violência exercida, o que provocou, necessariamente, naquele, sofrimento físico. Na verdade, os comportamentos dos arguidos, seja a violência verbal (perfeitamente concretizada quanto ao arguido AA), seja a violência física (de ambos os arguidos) exercidas sobre o ofendido, são atentatórios da saúde física e psíquica deste e conduzem à degradação da sua dignidade pessoal. Constata-se que a dimensão da atuação dos arguidos se enquadra nos maus tratos psicológicos, sobretudo de natureza verbal, que sempre imprimiram tristeza, medo, ansiedade no ofendido, especialmente pela desproporção e gratuitidade com que os mesmos eram infligidos ao ofendido, mas igualmente, pela situação de dependência e fragilidade em que o ofendido se encontrava, agravada pela atuação conjunta dos arguidos, que se permitiram ampliar o seu quadro de atuação, agredindo, como se viu, o ofendido. Evidenciando, deste modo, os arguidos um elevado desrespeito pela dignidade do ofendido, sendo as condutas por si praticadas particularmente desvaliosas, censuráveis e gravosas porque perpetradas contra uma criança, em relação a quem assumiam um papel de cuidadores e a quem se imponha um dever de proteção e não um direito à agressão. Consignando-se que resulta demonstrado o sofrimento do ofendido, porquanto o mesmo foi relatado pela psicóloga da escola que o acompanhou em todo o período em que decorreram os maus tratos a que se faz alusão e considerados provados. De referir que, atenta a prova produzida e demonstrada, a conduta da arguida BB se reconduz, concretamente, às agressões perpetradas ao ofendido, que pela sua intensidade, atendendo ao enquadramento das mesmas, ao crescendo das agressões verbais concretamente demonstradas quanto ao arguido AA, presenciadas e apoiadas pela arguida BB, à agressão física, ao dito contexto global da agressão, se têm que enquadrar no crime de maus tratos. Os arguidos atuaram a título de dolo direto, tal como conceptualizado no artigo 14º, nº 1, do Código Penal, resultando igualmente verificado o título de imputação subjetiva”.

Em conclusão: também na segunda vertente (preenchimento dos elementos - objetivos e subjetivos - do crime de maus tratos) o recurso dos arguidos não merece provimento.

Face a tudo o que ficou dito, o recurso apresentado pelos arguidos é totalmente de improceder.

III - DECISÃO

Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso dos arguidos, mantendo-se, consequentemente, a sentença recorrida.

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

*

Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 13 de setembro de 2022

João Manuel Monteiro Amaro

Nuno Maria Rosa da Silva Garcia

Edgar Gouveia Valente