INSOLVÊNCIA
ENCERRAMENTO DO PROCESSO POR INSUFICIÊNCIA DA MASSA
VERIFICAÇÃO E GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE INCIDENTAL
Sumário

I – O encerramento do processo de insolvência antes do rateio final não determina a extinção da instância incidental de verificação dos créditos quando, como sucedeu no caso, for concedida liminarmente ao devedor a exoneração do passivo restante.
II – Nesse caso, apesar do encerramento daquele processo por insuficiência de bens da massa insolvente, o incidente de verificação e graduação dos créditos deve prosseguir, não ocorrendo inutilidade superveniente desta lide incidental.

Texto Integral


Processo n.º 2259/21.0T8ACB-A.C1

Acordam na 1.ª Secção Cível do tribunal da Relação de Coimbra

AA foi declarada em situação de insolvência por sentença proferida em 10 de Novembro de 2021.

Em 22 de Fevereiro de 2022, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo declarou encerrado o processo por insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente. Invocou, para tanto, o disposto nos artigos 230.º, n.º 1, alínea d), e 232.º, n.º 2, ambos do CIRE.

Em 14-04-2022, a administradora da insolvência apresentou a relação dos créditos reconhecidos e não reconhecidos.

No mesmo dia, os credores não reconhecidos foram avisados nos termos do n.º 4 do artigo 129.º do CIRE. Entre eles figurava a sociedade P..., S.A., que havia reclamando um crédito no montante de € 90 588,91.

Em 21 de Abril de 2012, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo determinou a extinção do incidente de verificação e graduação de créditos, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do disposto no artigo 233.º, n.º 2, alínea b), do CIRE.

P..., S.A., não se conformou com a decisão e interpôs presente recurso de apelação, pedindo a revogação dela e que, em consequência, se concedesse às partes interessadas o prazo legal previsto para que pudessem socorrer-se dos meios processuais admissíveis para a impugnação à relação de créditos apresentada nos autos.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. Publicado o anúncio de declaração da insolvência da ora devedora, a aqui recorrente reclamou tempestivamente o respectivo crédito que lhe é devido.
2. Em 14/04/2022, a Sra. administradora de insolvência nomeada juntou à instância principal a relação de credores prevista no art.º 129.º do C.I.R.E., com inclusão do crédito da aqui recorrente na relação de créditos não reconhecidos.
3. Na mesma data, foi a aqui recorrente notificada nos termos do n.º 4 do art.º 129.º do C.I.R.E.
4. Do aviso em apreço foram os autos informados em 20/04/2022, data em que não se encontrava ainda ultrapassado o prazo de 10 dias para impugnação da lista de credores (cfr. art.º 130.º do C.I.R.E..).
5. Contudo, por sentença proferida pelo tribunal a quo, datada de 21/04/2022 e notificada no dia seguinte, foi ordenada a extinção do incidente de verificação e graduação de créditos por inutilidade superveniente da lide, decisão na qual é firmado que, apresentada a lista definitiva de credores, a mesma não foi objecto de impugnações.
6. Ora, o prazo legal previsto no art.º 130.º do C.I.R.E. consubstancia um prazo processual peremptório, de cumprimento obrigatório e cuja alteração e sobrelevação não se encontra na disponibilidade das partes ou do douto tribunal.
7. In casu, na data da prolação da sentença que extinguiu o apenso de reclamação de créditos (21/04/2022), não se encontrava ainda precludido o prazo peremptório de 10 dias estatuído no C.I.R.E., cuja contagem se iniciaria apenas em 15/04/2022.
8. Estando, portanto, naquele momento ainda pendente a possibilidade de a relação de créditos oferecida ser alvo de impugnação.
9. Ao que se acrescenta que, proferida a douta sentença da qual aqui se recorre, fica esgotado o poder do tribunal quanto à matéria em causa.
10. Nessa decorrência, encerra-se outrossim a viabilidade de as partes processuais de se socorrerem dos meios processuais disponíveis para reagir aos documentos juntos pela Sra. administradora de insolvência.
11. Certo é que, vendo a ora recorrente o seu crédito como não reconhecido em sede de relação definitiva, por todo o aclarado no articulado da competente reclamação, assim como por toda a prova documental à mesma junta, não pode comungar os fundamentos da Sra. administradora de insolvência para o não reconhecimento do mesmo.
12. Mormente, face à junção de sentença proferida, confirmada por acórdão do douto Tribunal da Relação de Coimbra (igualmente junto) que julga totalmente improcedentes os embargos de executado nos quais é precisamente litigado o valor peticionado em sede executiva pela aqui credora.
13. Assim, ajuizado por decisão judicial ser devido o valor peticionado naquela instância executiva, e ora reclamados, não pode entender-se como verídica a afirmação da Sra. AI, por um lado de que apenas foi junto o requerimento executivo, como outrossim que este não se encontra demonstrado o valor em dívida, aliás, reduzido nestes autos por conta de pagamentos realizados na execução.
14. Cumprido pela recorrente o n.º 1 do art.º 128.º do C.I.R.E. pela aqui recorrente, limita-se a Sra. administradora de insolvência a não admitir um crédito que reconhecidamente é devido, ao invés de potencial e diligentemente solicitar esclarecimentos à credora, (sem prescindir, ainda, da aplicabilidade do art.º 11.º do C.I.R.E.).
15. Face ao supra discorrido, sempre tenciona(va) a ora credora, aqui recorrente, impugnar a lista junta pela Sra. Administradora de Insolvência, o que lhe foi, desta feita, inviabilizado por decorrência da prolação da sentença recorrida.
16. A sentença ora recorrida incorre em violação dos normativos previstos no art.º 130.º do CIRE, e nos artigos 4.º e 139.º do C.P.C. (ex vi art.º 17.º do C.I.R.E.), motivo pelo qual deve ser dado provimento ao presente recurso, com a consequente revogação da sentença proferida pelo tribunal a quo que julga extinto o incidente de verificação e graduação de créditos, com a consequente concessão às partes interessadas do prazo legal previsto para que se possam socorrer dos meios processualmente admissíveis para impugnação à relação de créditos apresentada nos autos.

Não houve resposta ao recurso.


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Questão suscitada pelo recurso

Saber se, ao determinar a extinção do incidente de verificação e graduação dos créditos, a sentença recorrida violou o art.º 130.º do CIRE e os artigos 4.º e 139.º do C.P.C.


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Os factos relevantes para a decisão do recurso são constituídos pelos antecedentes processuais da decisão recorrida e ainda pelo facto de, em 21-04-2022, ter sido proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante.

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Descritos os factos, passemos à resolução da questão acima enunciada.

A decisão sob recurso julgou extinto o incidente de verificação e graduação de créditos por considerar inútil o seu prosseguimento. A inutilidade procedia do facto de não ter sido apreendido qualquer bem a favor da massa insolvente. Juridicamente a decisão baseou-se na alínea b) do n.º 2 do artigo 233.º do CIRE.  

A recorrente impugnou a decisão com a seguinte linha argumentativa:
· Que quando foi proferida a decisão impugnada ainda não havia decorrido o prazo de 10 dias previsto no artigo 130.º, n.º 1, do CIRE para impugnar a relação de créditos apresentada pelo administrador da insolvência;
· Que tal prazo é um prazo processual peremptório, de cumprimento obrigatório e cuja alteração e sobrelevação não se encontrava na disponibilidade do tribunal;
· Que proferida a decisão ficava esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria em causa, e em consequência, encerrava-se a possibilidade de as partes processuais se socorrerem dos meios processuais disponíveis para reagir aos documentos juntos pela administradora da insolvência.

Apreciação do tribunal:

O recurso é de julgar procedente, embora não pelas razões alegadas pela recorrente. 

Antes de mais cumpre dizer que são exactas algumas das alegações da recorrente, concretamente:
· Que, quando foi proferida a decisão recorrida, estava em curso o prazo de 10 dias previsto no n.º 1 do artigo 130.º do CIRE, facultado aos interessados para impugnar a lista de credores reconhecidos e não reconhecidos;
· Que tal prazo, segundo a classificação dos prazos constante do n.º 1 do artigo 139.º do Código Civil, é um prazo peremptório;
· Que com a prolação do despacho, a julgar extinto o apenso de verificação e graduação de créditos, ficou esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto a essa questão (artigo 613.º, n.º 1, do CPC aplicável aos despachos por remissão do n.º 3 do mesmo preceito e aplicável ao processo de insolvência por remissão do n.º 1 do artigo 17.º do CIRE);
· Que, julgado extinto o apenso de verificação e graduação de créditos, os interessados deixaram de ter a faculdade de impugnar a relação dos créditos reconhecidos e não reconhecidos.

Apesar de exactas, estas alegações não justificam a revogação da decisão e a substituição dela por outra que determine o prosseguimento do processo de verificação de créditos.

A razão da revogação da decisão é a seguinte: o processo de verificação de créditos deve prosseguir porque o encerramento do processo de insolvência antes do rateio final não determina a extinção da instância do processo de verificação dos créditos quando for concedida liminarmente ao devedor a exoneração do passivo restante, como sucedeu no caso.

Vejamos. O CIRE dispõe sobre os efeitos do encerramento do processo de insolvência no artigo 233.º. Para o caso interessa-nos a alínea b) do n.º 2 do artigo 233.º do CIRE. Segundo este preceito,  “o encerramento do processo de insolvência antes do rateio final determina a extinção da instância dos processos de verificação e graduação de créditos e de restituição e separação de bens já liquidados que se encontrem pendentes, excepto se tiver já sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos prevista no artigo 140.º, ou se o encerramento decorrer da aprovação do plano de insolvência, caso em que prosseguem até final os recursos interpostos dessa sentença e as acções cujos autores assim o requeiram no prazo de 30 dias”.

Como se vê pela transcrição que se acaba de fazer, o preceito em causa dispõe sobre os efeitos do encerramento do processo de insolvência, antes do rateio final [hipótese que compreende o encerramento com fundamento na insuficiência da massa para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente], em relação aos seguintes processos pendentes que correm por apenso ao processo de insolvência: 1) sobre o processo de verificação e graduação de créditos; 2) sobre o processo de restituição e separação de bens já liquidados.    

Resulta do preceito, na parte em que dispõe sobre os efeitos do encerramento do processo em relação à instância dos processos de verificação de créditos – a única que interessa para o caso – que ele comporta uma regra e duas excepções.

A regra é a de que o encerramento do processo antes do rateio final determina a extinção da instância.

As excepções são as seguintes:
1. O encerramento do processo antes do rateio final não determina a extinção da instância dos processos de verificação de créditos se já tiver sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos prevista no artigo 140.º;
2. O encerramento do processo antes do rateio final não determina a extinção da instância dos processos de verificação e graduação de créditos se o encerramento decorrer da aprovação do plano de insolvência.

Se atendêssemos apenas à alínea b) do n.º 2 do artigo 233.º do CIRE o recurso seria de julgar improcedente. Com efeito, o processo não foi encerrado em consequência da aprovação de plano de insolvência e quando ele foi encerrado ainda não havia sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos. Logo valia a regra enunciada na 1.ª parte da alínea. E de acordo com ela, a circunstância de estar em curso, quando foi declarado o encerramento do processo, o prazo previsto no n.º 1 do artigo 130.º do CIRE, não obstava à extinção da instância do processo de verificação e graduação de créditos.

Sucede que, na interpretação da lei, há que ter em conta a unidade do sistema jurídico (n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil). E tal significa, socorrendo-nos das palavras de Manuel de Andrade, que o legislador não pensou “… a lei como um puro acervo ocasional de normas justapostas, mas como um sistema devidamente articulado. Daí que cada texto legal deva se relacionado com aqueles que lhes estão conexos por contiguidade ou por outra causa, tomando o seu lugar no encadeamento de que faz parte” [Sentido e Valor da Jurisprudência, Coimbra 1973, páginas 27 e 28].

Relacionando a alínea b) do n.º 2 do artigo 233.º do CIRE com as disposições relativas à exoneração do passivo restante [artigos 235.º a 248.º do CIRE], concluímos que a extinção do processo de verificação de créditos também não se verifica quando for concedida liminarmente ao devedor a exoneração do passivo restante.

E chegamos a esta conclusão porque há disposições reguladoras do incidente da exoneração do passivo restante cuja aplicação pressupõe expressa ou implicitamente que tenha sido proferida sentença de verificação.

Assim, a alínea d) do n.º 1 do artigo 241.º [redacção dada pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro], ao mandar afectar à distribuição, pelos credores da insolvência, parte do rendimento auferido em cada ano pelo devedor, diz expressamente que apenas beneficiam desta distribuição os credores “cujos créditos se mostrem verificados e graduados por sentença”. Esta restrição está em conformidade com a regra do artigo 173.º do CIRE, segundo a qual o pagamento dos créditos sobre a insolvência apenas contempla os que estiverem verificados por sentença transitada em julgado. Ora, se apenas os credores cujos créditos se mostrem verificados e graduados por sentença é que estão em condições de receber parte do rendimento do devedor auferido em cada ano, é bom de ver que o processo de verificação de créditos não pode extinguir-se na hipótese de ser concedida liminarmente ao devedor a exoneração do passivo restante.

Por sua vez, todas as disposições que se referem aos credores da insolvência, casos dos artigos 240.º, n.º 1, 242.º, 243.º, n.ºs 1 e 3, 244.º, n.º 1 e 246.º, n.º 2, pressupõem implicitamente a sentença de verificação de créditos. Com efeito, o único processo previsto no CIRE para a verificação da qualidade de credor da insolvência é o processo de verificação dos créditos. Assim sendo, apenas poderão invocar a qualidade de credores da insolvência, para os efeitos previstos em tais preceitos, aqueles a quem tal qualidade lhes tiver sido reconhecida no mencionado processo.

Resulta, assim, das disposições acabadas de indicar que o encerramento do processo de insolvência antes do rateio final não determina a extinção do processo de verificação de créditos quando for concedida liminarmente ao devedor a exoneração do passivo restante.

Segue-se do exposto que a decisão recorrida, ao declarar a extinção do apenso de verificação e graduação dos créditos, quando havia sido concedida liminarmente à devedora a exoneração do passivo restante, violou a regra, que se colhe nas disposições reguladoras do incidente de exoneração do passivo restante, de que o encerramento do processo de insolvência antes do rateio final não determina a extinção do processo de verificação de créditos quando for concedida liminarmente ao devedor a exoneração do passivo restante.

Em consequência, impõe-se a revogação da decisão recorrida e a substituição dela por decisão a determinar o prosseguimento da instância do processo de verificação de créditos.

 


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Decisão:

Julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga—se a decisão recorrida, que se substitui por decisão a determinar o prosseguimento da instância do processo de verificação de créditos.


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Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de a recorrida, devedora, ter ficado vencida no recurso, condena-se a mesma nas respectivas, sem prejuízo do n.º 1 do artigo 248.º do CIRE.

Coimbra, 12 de Julho de 2022