CONSERVAÇÃO DA GARANTIA PATRIMONIAL
PENHORA
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
Sumário

I- Se o credor prova: a existência de um direito de crédito; acto gratuito – doação de bens -, praticado pelo devedor que envolve diminuição da garantia patrimonial desse crédito; anterioridade do direito de crédito; impossibilidade resultante do acto de o credor obter a satisfação integral do crédito (ou agravamento dessa impossibilidade), impendendo sobre o devedor e o terceiro interessado na manutenção do acto o ónus da prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor, mas o devedor e terceiro não fazem tal prova, deve proceder a acção de impugnação pauliana.
II - O facto do credor e exequente, em execução movida contra o doador, ter registado a seu favor penhora sobre aqueles bens, não o inibe de deduzir impugnação pauliana contra o doador e donatário.

Texto Integral

I - Relatório

1. AA, residente na ..., instaurou acção declarativa contra BB e CC, residentes em ..., pedindo se declarem ineficazes as 2 doações dos imóveis identificados na petição inicial, efetuadas, em 16.9.2019, entre o primeiro réu (doador) e a segunda ré (donatária), sendo os mesmos restituídos ao património do primeiro réu, para que a autora os aí possa executar, na medida do seu crédito.

Para tanto, alegou, em síntese, ser titular de um crédito sobre o primeiro réu, que se encontra em execução no Tribunal ..., onde lhe foram penhorados os prédios identificados no artigo 3º da p.i., únicos bens conhecidos ao executado e sobre os quais já pendia penhora fiscal. Que o primeiro réu, depois da constituição do crédito da autora e referidas penhoras, em conluio com a segunda ré, sua mãe, doou tais prédios a esta, para, assim, causar prejuízo à credora autora.

Os réus, em contestações autónomas, pugnaram pela improcedência da acção, alegando, para o efeito, que não estão preenchidos os pressupostos da impugnação pauliana, impugnando, por um lado, o alegado conluio e, por outro lado, alegando que a autora já tinha registadas as penhoras anteriormente à realização da doação.

A autora respondeu, alegando, que a doação foi efetuada para defraudar os credores e que quando o primeiro réu fez a doação à segunda ré havia, entretanto, adquirido mais ¼ do segundo prédio, não tendo sido efetuada a penhora sobre essa proporção do direito de propriedade.

Realizou-se audiência prévia das partes, na qual se deu oportunidade às partes de se pronunciarem relativamente à possibilidade de conhecimento imediato do mérito da causa, tendo estas dito que nada tinham a acrescentar.

*

Foi proferido saneador-sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo os RR do pedido.

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2. A A. recorreu, tendo formulado as seguintes conclusões:

I. O presente recurso versa a questão de direito, sendo nesta dimensão deixada ao superior veredicto do Tribunal “ad quem”, adentro do poder cognitivo.

Assim:

II. Pela presente ação de impugnação pauliana, a Recorrente alegou e provou que o Recorrido é devedor de €40.546, 43, desde 3.04.2018, não tendo outros bens ou rendimentos além das ajuizadas frações autónomas (fração “AD” e ½ de “B”) as quais foram alienadas por doação em 16.09.2019.

III. E passou a ser aquisição processual ser a A. titular do direito de crédito sobre o devedor/alienante desse valor de €40.546,43; que esse ato de disposição envolve diminuição da garantia patrimonial desse seu crédito; e ser anterior à alienação, de natureza gratuita.

IV. Mau grado estar reunidos os pressupostos e requisitos para a subsunção ao instituto da impugnação pauliana, o Tribunal “a quo”, entendeu que em concreto não existia direito à Impugnante, alegadamente por existirem já penhoras sobre esses bem, que, por natureza, realizam a mesma finalidade e, outrossim, mesmo estando dado por assente que a penhora sobre a fração “B” seja quanto a ¼ (e não ½, como alienado), essa questão não e(ra) atendível nem pronunciável pelo deferimento da providência face à insuficiência de alegação aportada ao item 3 da P.I..

Ora,

V. O sentido da impugnada decisão vincula-se e basta-se a entendimento do instituto da impugnação pauliana, como se os efeitos relativamente ao credor da clamada providência (artigo 616 do Código Civil), se identifiquem ou esgotem com o efeito conseguido pela penhora.

VI. Porém, o deferimento da providência impugnatória embora no limite também preveja a restituição do valor do bem pela venda, na medida da satisfação do reconhecido crédito potencia que nesse ínterim os rendimentos e frutos revertam à titularidade do devedor e sejam autonomamente penhorados.

VII. Em abstrato, as conformadas penhoras, de per si, não excluem o direito à clamada providência, a dever ser reconhecido, inexistindo falta de direito “pro actionem”.

VIII. E, em concreto, havendo impugnação dos dois atos da disposição, é sobre os documentados direitos de propriedade, na totalidade sobre a fração “AD” e ½ sobre a fração “B” que se impunha a pronúncia da providência.

IX. A impugnação pauliana destina-se a atingir os atos geradores da transmissão de propriedade, cujo direito lhe estão subjacentes e são próprios e que foram documentados.

X. A imprecisão da alegação do artigo 3.º da P.I., encontrada inesperadamente pelo julgador “a

quo”, sem suscitar essa questão em particular em audiência prévia, nem usar o poder/dever de tanto mandar corrigir ou suprir, pese o contraditório aportado em sede de adrede pronúncia, é causal de nulidade da sentença, expressamente arguida – alínea d) n.º 1 do artigo 615 e 590 n.º 4, ambos do Código de Processo Civil.

XI. Sem embargo, sempre concorrem os pressupostos ao deferimento da providência, nos termos do disposto no instituto da impugnação pauliana (artigos 610 a 618 do Código Civil), pela singela razão de que a mudança de titularidade do devedor sobre os bens limita ao credor a satisfação do seu crédito pela penhora autónoma dos respeitantes rendimentos e frutos no ínterim até à venda, pela penhora, se, quando, e em caso disso.

XII. In casu, o crédito é avultado, há garantias registadas preferenciais e vicissitudes executivas com suspensão da instância executiva fiscal e os atos impugnados furtaram o devedor relapso à manutenção da penhora de rendas sobre (pelo menos) o bem da fração “B”, como o documento 3 inculca.

XIII. Finalmente, ainda que se entendesse, no que se não concede, que a penhora sobre a fração “B” satisfaz quanto a esse bem as finalidades prosseguidas pela providência a decretar, sempre se prefigura situação e direto à providência quanto a ¼ da fração “B”, sem penhora e desse jeito sem tutela.

XIV. Decidindo em contrário e em desconformidade, violou a sentença recorrida o instituto da impugnação pauliana plasmado e ínsito nos artigos 610 a 618 do código civil, vinculando-se e conferindo-lhe entendimento que não resulta desses preceitos, máxime do artigo 616, mas como se deles derivasse, assim violados, em declarando erro de julgamento.

XV. Deve ser concedido provimento ao recurso no alcance sobreditamente propugnado pelo decretamento de providência e, sempre, quanto à doação do bem da fração “B”, no concernente ao restante 1/4.

XVI. Se assim não se entender sempre a decisão carece de nulidade pela invocada falta de gestão processual devida, tendo sido violados os artigos 590 n.º 2 al. b), 3 e 4 e 615 do Código de Processo Civil.

Termos em que, e nos melhores de Direito, suprido e doutamente o omitido deve ser dado provimento ao recurso de apelação, revogando-se a sentença recorrida, assim se fazendo acostumada Justiça.

3. A R. contra-alegou, concluindo que:

1.º A douta e irrepreensível sentença proferida pelo Juízo Central Cível e Criminal ..., do Tribunal Judicial da comarca ..., a 21 de janeiro de 2022, não merece qualquer reparou ou censura, tendo o tribunal a quo feito uma correta aplicação do direito à factologia assente.

2.º A Recorrente não logrou demonstrar, em qualquer momento, os fundamentos essenciais de procedência da ação pauliana por si intentada, quer em 1.ª instância, quer em sede de recurso.

3.º O simples facto abstrato de, através da impugnação pauliana, ser possível realizar a penhora dos rendimentos e frutos dos bens objeto de doação, não justifica, por si só e em concreto, o recurso à figura da impugnação pauliana, sendo necessário ficar demonstrado que o ato praticado tornou impossível (ou agravou a impossibilidade de) satisfazer o crédito do credor.

4.º Sendo que o pretendido pela Autora/Recorrente, através da ação, é a restituição dos bens ao património do 1.º Réu para “a cabal execução das penhoras já efetivadas” – veja-se o artigo 9.º da petição inicial –, não se vê como possa ser necessária ou útil a impugnação pauliana, considerando que os bens cuja doação se vem impugnar já tinham, sobre eles, penhoras anteriores a favor da Recorrente.

5.º Não tem qualquer razão a Recorrente ao invocar, para efeitos de procedência da ação, o facto de 1/4 da propriedade de um dos imóveis doados não ter sido objeto de penhora, porquanto esse facto não se coaduna, de modo algum, com o conteúdo da petição inicial.

6.º Considerando que a Recorrente pretendia, através da impugnação pauliana, levar a cabo “a cabal execução das penhoras já efetivadas”, não se compreende que venha depois, inoportunamente, em sede de resposta à contestação, alegar que uma parcela da propriedade de um dos imóveis doados não se encontra onerada com penhora a seu favor.

7.º Constata-se, então, que a Recorrente pretendeu alterar a causa de pedir, o que, não se verificando qualquer das exceções previstas na lei, não lhe é permitido, por força do princípio da estabilidade da instância, previsto no artigo 260.º e concretizado nos artigos 264.º e 265.º, todos do Código de Processo Civil.

8.º Ao contrário do que a Recorrente alega, não pode imputar-se à decisão recorrida um qualquer vício, concretamente resultado da alegada violação do dever de gestão processual e da violação da proibição das decisões-surpresa.

9.º No decurso do processo, foi dada à Recorrente ampla oportunidade para exercer o contraditório, tendo-se aquela pronunciado acerca das questões sub judice em sede de resposta à contestação.

10.º Não pode equacionar-se a recusa do tribunal em considerar, para efeitos da procedência da ação pauliana, um facto inoportunamente trazido para o processo pela Recorrente, com uma decisão-surpresa.

11.º Não pode também afirmar-se ter sido preterida uma qualquer conduta imposta ao juiz pelo dever de gestão processual, na medida em que o tribunal a quo não podia, legalmente, permitir a introdução do facto no processo para efeitos de procedência da impugnação pauliana.

12.º Por tudo o exposto, carecem de fundamento as alegações da Recorrente, ficando por demonstrar o preenchimento dos pressupostos da impugnação pauliana e inexistindo um qualquer vício da sentença recorrida.

Nestes termos,

Deve ser julgado improcedente o recurso interposto pela recorrente, com as legais consequências.

Assim será cumprido o Direito e feita JUSTIÇA!

 

II - Factos Provados

1. No âmbito do processo comum singular n.º 334/15...., comarca ..., Juiz ... do Juízo de Competência Genérica ..., em 7/2/2018, foi judicialmente homologado acordo entre a Autora e o 1.º Réu, relativamente ao pedido de indemnização civil, por sentença que entretanto transitou em julgado, nos seguintes termos: - “Fixar o pedido de indemnização cível formulado nos presentes autos para o valor de 35.812,66€ (trinta e cinco mil oitocentos e doze euros e sessenta e seis cêntimos); - Tal quantia será paga pelo demandado no prazo de 45 (quarenta e cinco) dias a contar da data de hoje, mediante cheque que será entregue pelo demandado/arguido à Defensora que o representa e que esta fará chegar à Ex. Mandatária da denunciante/demandante” – cfr. doc. 1 junto com a petição inicial;

2. Pese embora essa obrigação assumida, para ser cumprida no prazo de 45 dias, o 1º Reu nunca pagou qualquer valor à Autora, tendo esta instaurado, em 3 de abril de 2018, o processo executivo que corre termos sobre o número n.º 334/16.... no Juízo de Competência Genérica ... - Juiz ..., tendo em vista a cobrança da quantia de 35.812,66€, taxa de justiça e juros de mora vencidos, tudo no montante global de 36.495,85€ – cfr. doc. 2 junto com a petição inicial;

3. O valor em dívida ascende ao montante de 40.546,43€ - admitido por acordo;

4. No âmbito dessa execução apurou-se que o ora primeiro Réu não possuía saldos bancários e não tinha rendimentos penhoráveis e que apenas se encontravam registados em seu nome os seguintes imóveis – cfr. docs. 3, 4, 5 e 6 juntos com a petição inicial:

  A) fração autónoma designada pelas letras ..., correspondente ao 4º andar esquerdo frente, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, destinado à habitação, sito na freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o Artigo ...77, descrito na Conservatório do Registo Predial ... sob o n.º ...19, com o valor patrimonial tributário atribuído no ano de 2016, para a totalidade da fração, de 47.551,95€;

 - Cujo direito de propriedade, pela ap. n.º ...24 de 24/07/2009, se encontrava registado em nome do ora primeiro réu;

 - E que, pela ap. ...75 de 18/09/2019, em consequência de doação efetuada, foi transmitido e registado em nome da ora segunda ré;

 - Sobre a qual consta registada, pela ap. ...25 de 24/07/2009, uma hipoteca constituída a favor da Banco 1..., para garantia do capital de 45.000,00€, com o montante máximo assegurado de 63.332,10€;

 - Sobre a qual consta registada, pela ap. ...89 de 05/07/2018, uma penhora, a favor da ora autora, para garantia do pagamento da quantia exequenda de 36.495,85€, no âmbito da execução supra referida;

 - Sobre a qual consta registada, pela ap. ...91 de 20/07/2016, uma penhora, a favor da Fazenda Nacional, para garantia do pagamento da quantia exequenda de 1.669,63€;

 B) fração autónoma designada pela letra ..., correspondente à cave frente, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, destinada comércio, sito na freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...76, descrito na Conservatório do Registo Predial ... sob o n.º ...18, com o valor patrimonial tributário de 14.315,00€;

 - Cujo direito de compropriedade, na proporção de ¼, pela ap. n.º ... de 28/09/1995, se encontrava registado em nome do ora primeiro réu;

 - Cujo direito de compropriedade, na proporção de ¼, pela ap. n.º ...00 de 10/12/2018, se encontrava registado em nome do ora primeiro réu;

 - E que, pela ap. ...75 de 18/09/2019, em consequência de doação efetuada, foi transmitido e registado em nome da ora segunda ré, na proporção de ½;

 - Sobre a qual consta registada, pela ap. ...42 de 01/10/2014, uma penhora, a favor da Fazenda Nacional, para garantia do pagamento da quantia exequenda de 1.169,43€, na proporção de ¼;

 - Sobre a qual consta registada, pela ap. ...89 de 05/07/2018, uma penhora, a favor da ora autora, para garantia do pagamento da quantia exequenda de 36.495,85€, no âmbito da execução supra referida, na proporção de ¼;

 - Sobre a qual consta registada, pela ap. ...45 de 20/05/2019, uma penhora, a favor da Fazenda Nacional, para garantia do pagamento da quantia exequenda de 2.670,76€, na proporção de ½;

5. Tendo a Autora promovido o registo das penhoras sobre os referidos imóveis, para satisfazer os pagamentos da impetrada dívida, como se encontravam já registadas penhoras fiscais prévias nos bens indicados, a autora reclamou o seu crédito nos processos fiscais, que se encontram suspensos, mercê de acordos de pagamento entre o 1.º R. e a Administração Fiscal, que obstaculizaram e foram prejudiciais às expectáveis vendas, ficando a A. nessa jurisdição fiscal sem resultado – cfr. docs. 7, 8 e 9 juntos com a petição inicial;

6. Em sede de reclamação num daqueles processos (P.º n.º 17/20...., que correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal ..., no qual a A., ali reclamante, vinha insistindo para que a Administração Fiscal promovesse a venda do imóvel penhorado), a autora tomou conhecimento que o 1.º Réu havia doado os bens possuía (indicados no artigo 3.º desta P.I. – que haviam sido objeto de penhora pela autora) à sua mãe, aqui segunda Ré, CC, que aceitou tal doação, em 16 de Setembro de 2019 – cfr. docs. 5, 6, 9 e 10 juntos com a petição inicial;

7. Mediante escritura pública de doação, outorgada no dia 16 de setembro de 2019, o primeiro réu dou à segunda ré, que aceitou a doação, os seus direitos de propriedade e compropriedade sobre os prédios identificados em 4, pelos respetivos valores patrimoniais, cujo valor tributário ascendia 54.709,45€ - cfr. doc. n.º 10 junto com a petição inicial.

 

III - Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Nulidade da sentença.

- Ineficácia das doações.

2. A A./recorrente veio arguir a nulidade da sentença, por não ter sido usado pelo tribunal a quo o poder/dever de mandar corrigir ou suprir o art. 3º da p.i., na parte relativa à alegação de que o R. tinha, a seu favor, registo predial do direito de compropriedade sobre a fração B, na proporção de ¼, quando afinal era de ½, nem ter suscitado essa questão na audiência prévia, o que é causal da nulidade da sentença, nos termos da d), do nº 1, do art. 615º e 590, nº 4, ambos do NCPC (cfr. conclusões de recurso X. e XVI.).

O aludido normativo, número e alínea, dispõe que é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Embora a recorrente não precise se é a 1ª parte ou não que está em jogo, percebe-se pele sua alegação que está a equacionar a omissão de pronúncia, prevista nessa 1ª parte, e não o excesso de pronúncia.

Na lição de Lebre de Freitas (em A Ação Declarativa Comum, À Luz do CPC de 2013, 3ª Ed., pág. 334) só se verifica tal nulidade quando, devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, e de todas as causas de pedir e excepções invocadas (além das excepções de conhecimento oficioso), nos termos do art. 608º, nº 2, do mesmo código, não conhece do pedido, causa de pedir ou excepção, não estando tal conhecimento prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão, já não se verificando tal nulidade se o juiz omite a consideração de linhas de fundamentação jurídica diferentes da sentença, que as partes hajam invocado.

Ora, a dita sentença, infra transcrita, conheceu da causa de pedir e pedidos formulados pela A., adjacentes à impugnação pauliana deduzida, pelo que não ocorre qualquer nulidade da sentença. A alegação concreta da A. seria, sim, susceptível de, eventualmente, desencadear uma nulidade processual, que, contudo, não se mostra ter sido arguida.

Improcede esta parte do recurso.

3. Na sentença recorrida escreveu-se que:

“A impugnação pauliana encontra-se prevista nos artigos 610º a 618º do Código Civil.

O artigo 610º consagra os «requisitos gerais», preceituando: «os atos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as circunstâncias seguintes: a) Ser o crédito anterior ao ato ou, sendo posterior, ter sido o ato realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor; b) Resultar do ato a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade».

O artigo 611º, relativo à «prova» dos requisitos, preceitua: «incumbe ao credor a prova do montante das dívidas, e ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do ato a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor».

O artigo 612º, relativo ao «requisito da má fé», preceitua: «1. O ato oneroso só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé; se o ato for gratuito, a impugnação procede, ainda que um e outro agissem de boa fé. 2. Entende-se por má fé a consciência do prejuízo que o ato causa ao credor».

(…)

O artigo 616º, relativo aos «efeitos em relação ao credor», preceitua: «1. Julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei. … 4. Os efeitos da impugnação aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido».

(…)

Nestes termos, constituem requisitos de procedência da ação de impugnação pauliana: a) existência de um crédito; b) a realização pelo devedor de um ato que envolva diminuição da garantia patrimonial do crédito (desde que não seja de natureza pessoal); c) ser o crédito anterior ao ato, ou sendo posterior, ter sido o ato realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor; d) que o ato seja de natureza gratuita ou, sendo oneroso, ocorra má fé tanto do alienante como do adquirente; e e) que resulte do ato a impossibilidade de o credor obter a satisfação integral do crédito ou o agravamento dessa impossibilidade.

Por serem factos constitutivos do seu direito (cfr. artigo 342º/1 do Código Civil), é sobre o autor/credor que impende o ónus da prova: a) da existência do direito de crédito; b) do ato (oneroso ou gratuito) praticado pelo devedor que envolve diminuição da garantia patrimonial do seu crédito (devendo ter-se em consideração que, nos termos do artigo 601º do Código Civil, o património do devedor é a garantia geral do cumprimento das suas obrigações - «pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor suscetíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios»); c) da anterioridade do direito de crédito; d) da má fé (relativamente ao ato oneroso) do alienante e do adquirente, ou seja, a consciência do prejuízo que o ato causa ao credor; d) da impossibilidade resultante do ato de o credor obter a satisfação integral do crédito (ou agravamento dessa impossibilidade) – impendendo sobre o devedor e o terceiro interessado na manutenção do ato o ónus da prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor.

(…)

Analisando os factos provados verifica-se que a autora logrou provar que:

a) É titular de um direito de crédito sobre o primeiro réu (no montante de 40.546,43€);

b) o primeiro réu realizou um ato jurídico que envolve a diminuição da garantia patrimonial do seu crédito (fez uma doação dos prédios/direitos identificados no artigo 3º da petição inicial á segunda ré, sua mãe) 1Nos termos do artigo 601º do Código Civil, o património do devedor é a garantia geral do cumprimento das suas obrigações - «pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor suscetíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios».

c) o seu direito de crédito é anterior ao ato de alienação do património;

d) o ato jurídico de alienação é de natureza gratuita – sendo irrelevante a boa ou má fé do alienante e da adquirente.

A única questão que subsiste é a de saber, tendo em consideração a factualidade alegada na petição inicial e, concretamente, tudo quanto alegou no artigo 3º da petição inicial, se do ato (de doação) resulta a impossibilidade de o credor (a autora) obter a satisfação integral do crédito ou o agravamento dessa impossibilidade.

A este respeito, apesar de impender sobre os réus (devedor e o terceiro interessado na manutenção do ato) o ónus da prova de que o obrigado (o primeiro réu) possui bens penhoráveis de igual ou maior valor (factualidade que também não foi alegada), subsiste a questão prévia que é a de saber se o ato de doação impossibilitou a autora de obter a satisfação integral do seu crédito ou agravou essa possibilidade.

Analisando a petição inicial verifica-se que a ação (pauliana) se centra exclusivamente nos bens identificados no artigo 3º da petição inicial, que haviam sido objeto de penhora em anterior execução, e, assim, no direito de propriedade sobre a fração ... e no direito de compropriedade sobre a fração B (na proporção de 1/4).

Se é certo que uma doação configura um ato de disposição, no caso concreto verifica-se que, aquando da doação, a autora já beneficiava da garantia da penhora sobre os referidos bens. E beneficiando da penhora, conclui-se que a doação posterior, incidindo sobre tais bens, não impossibilitou a autora de obter a satisfação integral do seu crédito, nem sequer agravou essa possibilidade, porquanto a penhora, constituído para estes efeitos, uma garantia real do cumprimento das obrigações, nos termos dos artigos 817º, 818º e 819º do Código Civil, determina a inoponibilidade dos atos de disposição efetuados sobre os concretos bens penhorados.

E sendo inoponível o ato de disposição à penhora anteriormente efetuada, a ação pauliana não tem qualquer sentido, porquanto a ineficácia resultante da sua procedência apenas iria permitir a realização de uma penhora que já se encontra realizada e subsiste para as finalidades da execução.

É certo que a autora alega na resposta às contestações que existe ¼ do direito sobre a fração B que foi objeto da doação e não havia sido objeto de penhora. Tal é também um facto provado.

No entanto, não podemos descurar que os pressupostos da ação pauliana tem que ser alegados na petição inicial e nesta a autora não faz qualquer referência a esse ¼ do direito, centrando-a exclusivamente nos bens penhorados na anterior execução e, mais concretamente, no direito de propriedade sobre a fração AB e no direito de compropriedade sobre a fração B, “na proporção de 1/4” – cfr. artigo 3º da petição inicial, sobre o qual se desenvolvem os artigos subsequentes.

Assim, não tendo a doação efetuada, em função dos concretos bens que haviam sido anteriormente penhorados, impossibilitado o pagamento do crédito exequendo ou agravado essa possibilidade, impõe-se a improcedência da ação.”.

A A. discorda, pelos motivos apontadas nas suas conclusões de recurso (conferir as IV. a IX. e XI. a XV.). A A. tem razão. Vejamos, então, os dois grandes obstáculos jurídicos erigidos pela sentença para a improcedência da acção.

Na decisão recorrida elencam-se adequadamente os 5 e únicos requisitos de procedência da acção de impugnação pauliana. O tribunal considerou estarem verificados os quatro primeiros e chegado ao quinto, verificar se do acto de doação resulta a impossibilidade de o credor/A. obter a satisfação integral do crédito ou o agravamento dessa impossibilidade, acaba por tergiversar, porquanto afirma, por um lado, que apesar de impender sobre os RR, devedor e o terceiro interessado na manutenção do acto, o ónus da prova de que o obrigado, o 1º R., possui bens penhoráveis de igual ou maior valor, factualidade que por ninguém foi alegada, de outro lado, constata que subsiste a questão prévia que é a de saber se o acto de doação impossibilitou a autora de obter a satisfação integral do seu crédito ou agravou essa possibilidade. Concluindo negativamente, dado que existem já penhoras sobre esses bens, que, por natureza, realizam a mesma finalidade.

Quanto à verificação do aludido 5º requisito é inquestionável que o mesmo se verifica, pois, dos factos provados 4. e 7., resulta que no âmbito da execução que corre contra o R. apurou-se que o mesmo não possuía saldos bancários e não tinha rendimentos penhoráveis e que apenas se encontravam registados em seu nome os imóveis indicados e que tal R. doou à 2ª R., sua mãe. Ao doar tais bens ficou sem nada mais. Nos termos do art. 611º do CC, relativo à prova dos aludidos requisitos, incumbe ao credor/A. a prova do montante das dívidas, prova que a A. fez, e ao devedor/R. ou a terceiro interessado/a R. na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor, prova que não se fez, porque nem foi intentada ou sequer alegada. Ou seja, a A. comprovou todos os únicos requisitos legais suficientes para a procedência da acção pauliana.

Por esta parte o recurso merece proceder.

No entanto, a sentença recorrida, deslocou a verificação do apontado quinto requisito para a circunstância de havendo já penhoras sobre esses bens, que, por natureza, realizam a mesma finalidade, então não se divisar que tal doação impossibilitou a autora de obter a satisfação integral do seu crédito ou agravou essa possibilidade, porque beneficiando a A. das penhoras sobre tais imóveis, a doação posterior, incidindo sobre tais bens, não impossibilitou a A. de obter a satisfação integral do seu crédito, nem sequer agravou essa possibilidade, porquanto a penhora, constituído para estes efeitos, uma garantia do cumprimento das obrigações, nos termos dos arts. 817º, 818º e 819º do CC, determina a inoponibilidade dos actos de disposição efetuados sobre os concretos bens penhorados, e sendo inoponível o acto de disposição à penhora anteriormente efetuada, a ação pauliana não tem qualquer sentido. Posição que não acompanhamos.

Se é certo que a impugnação pauliana e a penhora são meios de conservação da garantia geral das obrigações, uma não exclui a outra, nada dizendo a lei neste sentido, o que seria expectável e lógico que acontecesse. Aliás, do art. 615º, nº 1, do CC, até se vê que podem coexistir ao mesmo tempo dois meios de conservação da garantia geral das obrigações, o da declaração de nulidade (arts. 605º e 286º do CC) e o da impugnação pauliana.

De outra parte, não podemos esquecer o que resulta relevantemente do art. 616º, nº 4, do mesmo código, isto é, que os efeitos da impugnação aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido. Desta estatuição legal decorre, portanto, que só a A. irá beneficiar da procedência da impugnação não tendo de concorrer com outros credores sobre tais bens (vide justificação para tanto em Varela, CC Anotado, Vol. I, 3ª Ed., artigo 616º, notas 1. e 5., pág. 602., A. Menezes Cordeiro, Tratado de D. Civil, Vol. X, D. Obrigações, Garantias, 2015, pág. 388/389, e J. Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 3ª Ed., págs. 225/226).

Mercê desta disposição quebra-se a regra da par condicio creditorium. O bem alienado, através da dita impugnação, deixa de responder igualitariamente pelos créditos dos demais credores: fica preferencialmente afecto à garantia do impugnante. Significa isto que, com a impugnação pauliana, o impugnante adquire uma garantia especial. Ele dispõe da garantia geral, relativamente aos demais bens do devedor, concorrendo, em igualdade, com os diversos credores; e passa a dispor de uma garantia especial, centrada no bem indevidamente alienado. É um prémio à sua diligência e iniciativa por actuar aqui no seu exclusivo interesse.     

Como a impugnação pauliana não tem natureza anulatória, só relativamente ao impugnante é que a subtração á garantia patrimonial dos créditos comuns do bem retirado ao património do devedor, em consequência da transmissão operada, é ineficaz, pois quanto aos demais credores esse efeito é-lhes oponível, deixando estes de poder executar ou exercer medidas conservatórias sobre o bem alienado pelo devedor, após a sua transmissão para património de terceiro. De modo que estes credores, que se mantiveram passivos, concorrer com o credor impugnante na cobrança dos seus créditos pelo bem cuja alienação foi procedentemente impugnada.   

Assim, face ao que decorre do art. 616º, nº 1, do CC, a A. credora passa a ter o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse quantitativo creditício, e o direito de execução no património do obrigado à restituição, a R., que é a nova dona dos prédios (pelo que em rigor a restituição ao património do devedor, o R., não tem de ocorrer).

Desta sorte, por aqui, o recurso também merece proceder.

Finalmente, enfrentando, o outro obstáculo erigido na sentença recorrida, o de que estando dado por assente que a penhora sobre a fração “B” seja quanto a ¼ (e não ½, como alienado), essa questão não era atendível nem pronunciável pelo deferimento da providência face à insuficiência de alegação aportada ao item 3 da P.I. Tal objecção não pode ser aceite.

No art. 3º da p.i. alegou-se que:

No âmbito dessa execução apurou-se que o ora Réu não possuía saldos bancários e não tinha rendimentos penhoráveis, apenas se encontravam registados em seu nome os seguintes imóveis:

- Fração designada pelas letras ..., composta pelo ... andar frente na zona B - destinado a habitação – 100m2 e arrecadação no sótão com 5 m2 – e ainda um espaço para estacionamento de viaturas na subcave, com 10 m2, também designado pela mesma letra, do prédio inscrito na matriz sob o Artigo ...77, da União de Freguesias ... ... e ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...19, sito na .... Fr., ...;

- Fração autónoma designada pela ...", do prédio inscrito na matriz sob o artigo ...76, da União de Freguesias ... ... e ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...51, sito no Largo ..., na proporção de 1/4. (Cf. Docs. 3 e 4, que se juntam e reproduzem)”.

Desde logo se salienta que na sua resposta à contestação a A. alegou que quando o R. fez a doação à R. havia, entretanto, adquirido mais ¼ da fração “B”, não tendo sido efetuada a penhora sobre essa proporção do direito de propriedade. Ora o que resulta dos factos provados 4., 5. e 7., é isso mesmo, que relativamente à indicada fração havia um direito de compropriedade, na proporção de ¼, registado em nome do R., e depois, mais um direito de compropriedade, na proporção de ¼, mas apenas registado em 12/2018, a seu favor, tendo sido transmitida à R., em 09/2019, essa totalidade, na proporção de ½, pelo que aquando do registo da penhora pela A., em 07/2018, em data anterior a 12/2018, só podia estar registada aquela proporção de ¼. Daí que, atenta as diversas datas, a Fazenda Nacional já tenha registado, logicamente, em 05/2019, uma penhora, a seu favor na nova proporção de ½.  E foi isso mesmo que o R. doou à R., metade indivisa da referida fração, e que a R. exactamente registou (em 9/2019).

Ora sabemos, que a A. peticionou se declarem ineficazes as 2 doações dos imóveis identificados na petição inicial, efetuadas, em 16.9.2019, entre o R. (doador) e a R. (donatária), o que abarca a ½ da fração “B”, não tendo razão séria de ser a diferenciação que se fez na sentença para obstaculizar o pedido integral da A.

Procede o recurso em totum.

4. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) Se o credor prova: a existência de um direito de crédito; acto gratuito – doação de bens -, praticado pelo devedor que envolve diminuição da garantia patrimonial desse crédito; anterioridade do direito de crédito; impossibilidade resultante do acto de o credor obter a satisfação integral do crédito (ou agravamento dessa impossibilidade), impendendo sobre o devedor e o terceiro interessado na manutenção do acto o ónus da prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor, mas o devedor e terceiro não fazem tal prova, deve proceder a acção de impugnação pauliana;

ii) O facto do credor e exequente, em execução movida contra o doador, ter registado a seu favor penhora sobre aqueles bens, não o inibe de deduzir impugnação pauliana contra o doador e donatário.

 

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, assim se revogando a decisão recorrida, e, em consequência, procede o pedido da A., assim se declarando ineficazes as 2 doações dos imóveis identificados na petição inicial, efetuadas, em 16.9.2019, entre o primeiro R. (doador) e a segunda R. (donatária), sendo os mesmos restituídos ao património do primeiro R., para que a A. os possa executar, na medida do seu crédito.

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Custas pelos RR.

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                                                                   Coimbra, 12.7.2022

                                                                   Moreira do Carmo

                                                                   Fonte Ramos

                                                                   Alberto Ruço