RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DESPACHO DE PRONÚNCIA
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
NULIDADE
REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
Sumário


I- Na medida em que, perante o acórdão da Relação, o juiz de instrução na 1ª instância não poderia divergir dos termos da decisão de pronúncia, tal como fora fixada naquela decisão superior, apenas se pode concluir que o Tribunal da Relação estava a funcionar nessa parte como se fosse a 1ª instância e, por isso, é aqui aplicável o disposto nos arts. 310.º, n.º 3 e 308.º, n.º 2, articulados com os arts. 399.º e 432.º, n.º 1, al. a), do CPP (o que afasta a aplicação do art. 432.º, n.º 1, al. b) do CPP, por desadequado neste caso), sendo admissível o recurso do acórdão que indeferiu a arguição de nulidade por, além do mais, ter sido determinada a pronúncia por factos que os arguidos entendiam constituir “alteração substancial dos descritos no requerimento para abertura de instrução” (Só esta interpretação se conforma com o art. 32.º, n.º 1, da CRP, revelando que o processo penal assegura todas as garantias de defesa dos arguidos, incluindo o direito ao recurso).
II- Tendo a Relação alterado o objeto de cognição e fixado um novo (violando os princípios do acusatório e da vinculação temática), que se traduziu numa decisão surpresa para os arguidos/recorrentes, na medida em que introduziu factos novos que constituem uma alteração substancial dos que constavam do RAI, sem ter feito a prévia comunicação aos arguidos, assim não garantindo os seus direitos de defesa, não há dúvidas que, ao contrário do que refere no acórdão impugnado, cometeu a nulidade prevista nos arts. 303.º e 309.º do CPP (uma vez que, inversamente do que refere nessa decisão impugnada, o acórdão que, de forma anómala, ditou os termos da pronúncia foi objeto de uma alteração substancial de factos).
III- O princípio da plenitude das garantias de defesa (art. 32.º, n.º 1, da CRP) tem de ser assegurado ao arguido quando o Tribunal superior introduz novos factos, que constituem uma alteração substancial, na definição dos termos da pronúncia, exigindo-se que o arguido não seja surpreendido com essa decisão (art. 424.º do CPP) e tenha a oportunidade de ser ouvido (o que se relaciona com o direito de audiência e o princípio do contraditório), quando ocorre essa convolação, como aqui sucede, e nada disso havia sido discutido anteriormente no processo (sendo certo que nem sequer houve qualquer produção de prova depois da apresentação do RAI).

Texto Integral




Proc. n.º 6597/16.6T9LSB.L2.S1

Recurso

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

Relatório

I. Os arguidos Banco Comercial Português e AA notificados do acórdão do TRL de 9.03.2022, que indeferiu a arguição de nulidade do acórdão de 26.01.2022 que havia determinado a sua pronúncia por factos que entendiam constituir “alteração substancial dos descritos no requerimento para abertura de instrução” e que também os condenou em custas, vieram dele interpor recurso para o STJ, ao abrigo do disposto nos arts. 4.º, 310.º, n.º 3, 379.º, 1, al. b), 399.º, 425.º, n.º 4 e 432.º, n.º 1, al. a), do CPP, suscitando a questão prévia da admissibilidade do mesmo recurso e consequente subida do recurso, apresentando as seguintes conclusões:

1ª. O presente recurso tem por objeto o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação em 9.03.2021, que indeferiu a arguição de nulidade do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 26.01.2022, que revogou a decisão instrutória de não pronúncia e determinou a sua substituição por outra que pronuncie os arguidos por factos que, no entender destes, constituem uma alteração inequivocamente substancial dos descritos no requerimento para abertura de instrução apresentado pelos assistentes e que, consequentemente, condenou os arguidos em custas.

2ª. O Acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 309º, 379º n.º 1 alínea b), 424º n.º 3 e 425º n.º 4, todos do CPP, ao indeferir a arguição de nulidade do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 26.01.2022.

3ª. Com efeito, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 26.01.2022 é nulo, porquanto determinou a pronúncia dos arguidos por factos que constituem alteração substancial dos descritos no requerimento para abertura de instrução, ao aditar, sem prévia comunicação do seu teor, os factos constantes dos seus pontos i), ii) xiv), xviii), xix) e xx).

4ª. Efetivamente, como resulta inequivocamente do teor literal do despacho de 10.12.2021 que antecedeu a prolação de tal Acórdão, não foi comunicada a alteração de um único dos factos que integravam a acusação material deduzida pelos assistentes mas tão só da alteração da qualificação jurídica.

5ª. Para se concluir estarmos perante uma alteração substancial dos descritos no requerimento para abertura de instrução, basta atentar que foram pura e simplesmente aditados os factos xviii), xix) e xx) que sustentam a verificação da tipicidade subjetiva e que não constavam de maneira nenhuma do libelo acusatório formulado pelos assistentes, como resulta do cotejo entre ambos os textos, sendo patente a divergência – infundamentada – com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão n.º 1/2015.

6ª. A acusação formulada pelos assistentes não alegava quaisquer factos que sustentassem a verificação da tipicidade subjetiva do crime de uso de documento falsificado, quer ao nível do dolo genérico, quer ao nível do elemento subjetivo especial.

7ª. Tal como era completamente omissa quanto à alegação de um elemento essencial da culpa jurídico-penal sem o qual nunca poderá falar-se de facto punível: a alegação de que o agente atuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

8ª. A natureza substancial das alterações factuais dos pontos ii) e xiv) resulta também patente ao nível da tipicidade objetiva, pois a nova conduta típica não estava sequer alegada quanto à arguida AA, como aliás não estava quanto a ela alegada nenhuma conduta concreta.

9ª. Efetivamente, quanto à arguida AA, nenhuma conduta concreta lhe fora imputada na acusação dos assistentes que se subsumisse à alínea e) do n.º 1 do artigo 256º do CP, pelo que a mesma nunca poderia vir a ser pronunciada por tal crime.

10ª. Tal como também não estava alegada quanto a nenhuma pessoa singular que no BCP ocupasse uma posição de liderança ou tivesse agido em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo, o que se afigurava um obstáculo inultrapassável no que concerne à eventual pronúncia da pessoa coletiva Banco Comercial Português pela prática de um crime de uso de documento falsificado, p.p. na alínea e) do n.º 1 do artigo 256º do CP.

11ª. Como é sabido, a possibilidade de responsabilização criminal das pessoas coletivas à luz do artigo 11º n.º 2 do Código Penal pressupõe que os factos típicos tenham sido cometidos em seu nome e no interesse coletivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança ou por quem aja sob a autoridade destas pessoas em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem.

12ª. Ora, a mera leitura do requerimento de abertura de instrução apresentado pelos assistentes revelava inequivocamente não ter sido em momento algum sequer alegado que a pretensa adulteração tivesse sido efetuada por quem ocupasse uma posição de liderança ou em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo, nem se mostrava sequer identificada qualquer pessoa singular que tivesse sido o concreto agente da nova conduta típica.

13ª. As alterações e/ou introduções factuais relativamente ao libelo acusatório determinadas pelos Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa consubstanciam uma alteração substancial de tais factos, nos termos e para os efeitos dos artigos 1º alínea f), 309º, 379º n.º 1 alínea b) e 425º n.º 4 do CPP.

14ª. Foi o Tribunal Superior que delimitou o seu novo objeto de cognição (em clamorosa violação do princípio do acusatório) e procedeu no Acórdão de 26.01.2022 a um aditamento de factos que traduzem uma alteração substancial do objeto do processo, proferindo assim – porque baseada nesse novo objeto de cognição, contrário ao princípio da vinculação temática – uma decisão surpresa, manifestamente atentatória dos direitos de defesa dos arguidos.

15ª. Assim, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 26.01.2022 padece de nulidade, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1º alínea f), 309º, 379º n.º 1 alínea b) e 425º n.º 4 do CPP, a qual foi legítima e tempestivamente arguida, impondo-se a sua revogação.

16ª. O Acórdão recorrido violou ainda o artigo 513º n.º 1 do CPP, ao condenar os arguidos em custas pelo indeferimento daquela arguição de nulidade do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 26.01.2022.

17ª. A condenação de um arguido em custas por uma arguição de nulidade é atualmente – e já há cerca de treze anos… – desprovida de qualquer base legal, pelo que os Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa tinham provavelmente em mente a redação do artigo 513º n.º 1 do CPP anterior à introduzida pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro (diploma que aprovou o Regulamento das Custas Processuais), que estabelecia que “é devida taxa de justiça pelo arguido quando for condenado em instância, decair, total ou parcialmente, em qualquer recurso ou ficar vencido em incidente que requerer ou a que fizer oposição”.

18ª. Conclui-se assim que a arguição de nulidade formulada pelos arguidos está legalmente prevista, era justificada, visava a defesa dos seus direitos processuais e era o meio idóneo para o fim visado, pelo que em caso algum o seu indeferimento daria lugar a qualquer tributação.

19ª. Assim, carece de fundamento legal a condenação dos arguidos em custas pelo indeferimento da arguição de nulidade do Acórdão Tribunal da Relação de Lisboa em 26.01.2022, tal como decidido pelo Acórdão recorrido, impondo-se a sua revogação.

II. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões:

1.º

Os arguidos vieram interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do douto acórdão proferido em 9.03.2022, que indeferiu a arguição de nulidade do Acórdão de 26.01.2022. proferido pelo mesmo tribunal, que revogou a decisão instrutória de não pronúncia e determinou a sua substituição por outro que pronuncie os arguidos por factos que, no entender destes, constituem uma alteração substancial dos descritos no requerimento para abertura de instrução apresentado pelos assistentes e que, consequentemente, condenou os arguidos em custas.

2.º

Alegam, em síntese, que

a) o Acórdão proferido em 26.01.2022 é nulo por, sem prévia comunicação, ter alterado a factualidade que fora imputada aos arguidos no requerimento de abertura de instrução apresentado pelos assistentes.

b) o Acórdão proferido em 26.01.2022 é nulo por determinar a pronúncia dos arguidos por factos que constituem alteração substancial dos descritos no requerimento para abertura de instrução, tendo sido aditados os factos que sustentam a verificação da tipicidade subjetiva e que não constavam do libelo acusatório formulado pelos assistentes.

3.º

Defendem que o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 26.01.2022 padece de nulidade, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1º alínea f), 309º, 379º n.º 1 alínea b) e 425º n.º 4 do CPP, a qual foi legítima e tempestivamente arguida, impondo-se a sua revogação.

4.º

A questão que se coloca é a de se saber se e quando se verifica alteração dos factos?

5.º

A alínea f) do n.º 1 do art.º 1º do CPP considera alteração substancial dos factos aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

Fornece a lei uma definição genética. Não diz como é, mas como surge.

6.º

Importa, por isso, integrá-la. Alterar significa mudar, modificar, introduzir (factos novos).

Não é, porém, toda e qualquer modificação que a lei proíbe, mas apenas e tão só a que importe alteração do objeto do processo, que mexa com os direitos do arguido.

7.º

Só quando aos factos da acusação (ou do RAI) se acrescentam outros, novos, ou se substituem os mesmos por outros, novos, é que estamos perante a alteração dos factos a que alude o artigo 1º.

8.º

A alteração dos factos nada tem a ver com a alteração da qualificação jurídica.

9.º

A alteração é substancial quando “tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.”

10.º

“Alteração não substancial” constitui uma divergência ou diferença de identidade que não transformem o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas, de modo parcelar e mais ou menos pontual, e sem descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não têm relevância para alterar a qualificação penal ou para a determinação da moldura penal; a alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa.

11.º

Ora, no caso concreto destes autos, o douto acórdão de 26.01.2022 veio a imputar aos arguidos a comissão de um crime que não é diverso daquele que constava do RAI e que nem sequer constitui ou a agravação do limite máximo da pena aplicável.

12.º

Na verdade, o crime é o mesmo (falsificação de documento) sendo que a modalidade imputada é o uso de documento falso, cuja pena é exatamente a mesma.

13.º

Assim, e tratando-se como se trata de uma alteração não substancial e tendo a mesma sido comunicada aos arguidos nenhum obstáculo existe ao decidido.

14.º

Assim, não existe nenhuma nulidade, mormente a invocada do artº 379º do C.P.P.

15.º

Em face de todo o exposto, o presente recurso deve ser julgado improcedente, confirmando-se o douto acórdão recorrido.

III. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça e, o Sr. PGA emitiu parecer no sentido da irrecorribilidade do acórdão do TRL de 9.03.2022, por entender ser caso de rejeição sumária, por inadmissibilidade legal (arts. 400, n.º 1, al. c), 414.º, n.ºs 2 e 3, 417.º, n.º 6, al. b), e 420.º, n.º 1, al. b), todos do CPP), embora, se assim não se entender, concorde com a posição defendida no acórdão da Relação e na resposta ao recurso, quanto à inexistência da nulidade invocada pelos arguidos e concorde que deve ser revogado o acórdão na parte em que condena os arguidos em 3 UC, por falta de fundamento legal.

IV. Notificados do Parecer do Sr. PGA, os arguidos além de assinalarem a incoerência do parecer quando defende por um lado a não admissibilidade do recurso, mas por outro concorda com a revogação do acórdão na parte em que os condenou em custas, voltam a reafirmar que lhes assiste o direito ao recurso, mantendo o anteriormente sustentado, concluindo pela procedência do recurso e consequente revogação da decisão impugnada.

V. No exame preliminar a Relatora ordenou que os autos fossem aos vistos legais, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.

Fundamentação

Factos

VI. Resulta dos autos, em resumo, com interesse para a presente decisão (incluindo para a questão prévia se é ou não admissível recurso para o STJ), o seguinte:

- o inquérito n.º 6597/16.6T9LSB, a correr termos no DIAP ..., ... secção, que teve origem na denúncia apresentada por BB, CC e DD contra Millennium Banco Comercial Português, por um crime de falsificação de documento, p. e p. no artigo 256.º, n.º 1, alíneas b) e d) e n.º 3, do CP, foi objeto de arquivamento em 31.07.2019 (quanto ao crime de falsificação de documento, ao abrigo do disposto no artigo 277.º, n.º 2, do CPP, sem prejuízo de posterior reabertura, nos termos do artigo 279.º do CPP);

-os assistentes BB e DD, discordando desse arquivamento do inquérito, em 19.09.2019 apresentaram RAI, com dedução de acusação contra o Millennium Banco Comercial Português e contra AA pelo crime de falsificação de documento p. e p. no art. 256.º, n.º 1, alíneas b) e d) e n.º 3, do CP e dedução de pedido de indemnização civil contra Millennium Banco Comercial Português e contra AA;

- por despacho de 9.10.2019 foi rejeitado o RAI (por os factos alegados serem insuficientes e não preencherem todos os pressupostos objetivos e subjetivos do crime de falsificação de documento, que pretendiam que os arguidos fossem pronunciados) e, na sequência de recurso interposto pelos assistentes, foi por ac. do TRL de 16.06.2020 revogado aquele despacho e “determinado o prosseguimento da Instrução quanto à prática do crime de falsificação p. e p. no art. 256.º, n.º 1, als. b) e d) e n.º 3 do C. Penal.”;

- por despacho da JI de 24.10.2020 foi declarada aberta a instrução e, sem terem sido realizadas quaisquer diligências (tendo sido indeferidas as requeridas pelos assistentes), o debate instrutório veio a ser realizado em 28.05.2021, tendo sido depois proferido despacho de não pronúncia datado de 4.06.2021, embora assinado eletronicamente no dia seguinte (em 5.06.2021);

- admitido o recurso interposto pelos assistentes desse despacho de não pronúncia, o Senhor Desembargador Relator em 10.12.2021, no exame preliminar, proferiu o seguinte despacho:

 “(…)

Prevenindo a hipótese de revogação da decisão recorrida e prolação de nova mas com a imputação aos arguidos de um crime p. e p. pelo artº 256º nº 1 al. e) e 3 do Código Penal, nos termos do disposto no artº 424º nº 3 do C.P.P., concedesse aos arguidos o prazo de 10 dias para se pronunciarem sobre tal alteração não substancial de factos.”

- os arguidos pronunciaram-se através de requerimento que apresentaram em 6.01.2022, concluindo que não devia haver qualquer alteração não substancial dos factos ou alteração da qualificação jurídica e que o recurso dos assistente devia ser julgado improcedente;

- por acórdão do TRL de 26.01.2022, foi decidido em que moldes de facto e de direito devia ser efetuada a pronúncia dos arguidos e, assim, foi julgado o recurso procedente, sendo revogada a decisão recorrida e determinada a prolação de decisão de pronúncia nos termos assinalados naquela decisão;

- em 7.02.2022 os arguidos vieram arguir a nulidade do acórdão do TRL de 26.01.2022, por terem determinado a sua pronuncia pela 1ª instância, incluindo por factos que constituíam uma alteração substancial dos descritos pelos assistentes no RAI;

- por acórdão do TRL de 9.03.2022, foi decidido, em resumo, que “o Tribunal (este Tribunal) veio a imputar aos arguidos a comissão de um crime que não é diverso daquele que constava do RAI e que nem sequer constitui ou a agravação do limite máximo da pena aplicável. Na verdade, o crime é o mesmo (falsificação de documento) sendo que a modalidade imputada é o uso de documento falso (um minus em relação ao que vinha imputado que era a adulteração) e cuja pena é exactamente a mesma.”, concluindo que “tratando-se como se trata de uma alteração não substancial e tendo a mesma sido comunicada aos arguidos nenhum obstáculo existe ao decidido” e, por isso, improcede a arguição uma vez que “nenhuma nulidade existe, mormente a invocada do artº 379º do C.P.P.”, condenando os arguidos nas custas, “fixando em 3 (três) U.C. para cada um.”[1];

- foi deste último acórdão que foi interposto em 7.04.2022 o recurso para o STJ acima referido, o qual foi admitido por despacho de 8.04.2022, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo.

           

Direito

Questão Prévia

VI. Coloca-se previamente a questão de saber se é ou não admissível o recurso interposto conjuntamente pelos arguidos para o STJ, do acórdão do TRL de 9.03.2022, que indeferiu a arguição de nulidade do acórdão proferido pelo mesmo tribunal em 26.01.2022, que havia determinado a sua pronúncia, por factos que entendiam constituir “alteração substancial dos descritos no requerimento para abertura de instrução” (RAI) e que também os condenara em custas.

Repare-se que o acórdão do TRL de 9.03.2022, objeto do recurso para o STJ, conheceu de nulidade arguida em relação ao acórdão proferido pelo mesmo TRL em 26.01.2022 que, diremos, praticamente “pronunciou” os arguidos, uma vez que contém já a respetiva decisão a pronunciar os arguidos (em termos de facto e em termos de direito), determinando que a 1ª instância, mais concretamente, o Juiz de Instrução competente, venha a executar aquela decisão da Relação, sem divergências (o que resulta claro do dispositivo, quando decidiu revogar a decisão recorrida e determinou “a prolação de decisão de pronúncia nos termos assinalados”).

E, nesse acórdão de 26.01.2022 o TRL acrescentou desde logo novos factos, particularmente relativos ao tipo subjetivo do crime de falsificação de documento, na modalidade de uso de documento falso, pelo qual pronunciou os arguidos (p. e p. no art. 256.º, n.º 1, al. e) e n.º 3, do CP), os quais não constavam do RAI (sendo que neste era imputado aos arguidos crime diverso, a saber o crime de falsificação de documento, mas p. e p. no art. 256.º, n.º 1, als. b) e d) e n.º 3, do CP, ou seja, na modalidade de falsificação de documento, que no caso era uma livrança, a qual se alegava ter sido em parte adulterada pelos arguidos), que nem comunicou previamente aos arguidos (dado que decidiu fazer o dito “despacho de pronúncia”, apenas comunicando uma alteração da qualificação jurídico-penal).

Adiante-se que a introdução de novos factos que não constavam do RAI, para poder ser feita a pronúncia pelo crime de uso de documento falso, p. e p. no art. 256.º, n.º 1, al. e) e n.º 3, do CP, devia igualmente ter sido comunicada previamente aos arguidos, tanto mais que sem a mesma não era possível fazer aquela imputação e, portanto, os arguidos não podiam ser pronunciados.

Isto significa, desde logo, que o aditamento daqueles factos relativos ao tipo subjetivo do crime diverso pelo qual foi feita a pronúncia implicou uma alteração substancial em relação aos que constavam do RAI, até tendo em atenção a jurisprudência fixada no acórdão do STJ n.º 1/2015 (no sentido de que “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.”)

Assim sendo, como é (na medida em que, perante aquela decisão de 26.01.2022 a 1ª instância não poderia divergir da decisão de pronúncia da Relação, quer em termos de facto, quer em termos de direito), o Tribunal da Relação está a funcionar nessa parte como se fosse a 1ª instância e, por isso, é aqui aplicável o disposto nos arts. 310.º, n.º 3 e 308.º, n.º 2, articulados com os arts. 399.º e 432.º, n.º 1, al. a), do CPP (o que afasta a aplicação do disposto no art. 432.º, n.º 1, al. b) do CPP, por desadequado neste caso).

Só esta interpretação se conforma com o art. 32.º, n.º 1, da CRP, revelando que o processo penal assegura todas as garantias de defesa dos arguidos, incluindo o direito ao recurso.

É, pois, admissível o recurso interposto conjuntamente pelos arguidos para este STJ, do acórdão do TRL de 9.03.2022, que indeferiu a arguição de nulidade do acórdão proferido pelo mesmo tribunal em 26.01.2022 (que havia determinado a sua pronúncia, por factos que entendiam constituir “alteração substancial dos descritos no requerimento para abertura de instrução” e que também os condenou em custas), por aplicação do disposto nos arts. 310.º, n.º 3 e 308.º, n.º 2, articulados com os arts. 399.º e 432.º, n.º 1, al. a), do CPP.

VIII. Como sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação que apresentou (art. 412.º, n.º 1, do CPP).

Ora, analisadas as conclusões do recurso apresentado conjuntamente pelos arguidos para o STJ, verifica-se que colocam as seguintes questões:

- o acórdão recorrido, proferido em 9.03.2022, deve ser revogado e substituído por outro que determine a arguida nulidade do acórdão proferido em 26.01.2022, uma vez que ao aí ser determinada a pronúncia foi imputada uma concreta factualidade que não constava do RAI (em violação dos princípios do acusatório e da vinculação temática), sendo que os factos nele descritos só por si (isto é, sem o acrescento dos novos factos que se relacionam com a tipicidade objetiva e com a tipicidade subjetiva do crime diverso pelo qual foram pronunciados) determinavam a não pronúncia;

- tendo sido efetuada uma alteração substancial de factos com o acrescento de novos factos para permitir a pronúncia por crime diverso do indicado no RAI (assim tendo o TRL fixado um novo objeto de cognição, que se traduziu numa decisão surpresa para os recorrentes) foi cometida a nulidade prevista no art. 309.º do CPP, por não ter sido feita a respetiva comunicação aos recorrentes e, assim, não lhes ter sido dada previamente a oportunidade de sobre eles se pronunciarem, sendo violada a sua garantia fundamental a uma defesa efetiva;

- igualmente foi cometida a nulidade prevista no art. 309.º do CPP por aditarem factos (que não estavam no RAI) relativos ao tipo subjetivo do crime diverso pelo qual pronunciaram os recorrentes (crime de uso de documento falsificado), em violação da jurisprudência fixada no ac. do STJ n.º 1/2015;

- foi ilegal a condenação dos recorrentes em custas pelo indeferimento da arguição da nulidade que suscitaram, por essa decisão não ser tributável.

Vejamos então.

Um dos principais problemas que se colocam neste recurso, que levaram à alteração (de forma anómala) da tramitação normal do processo, relaciona-se com o facto de a Relação de Lisboa, no seu acórdão de 26.01.2022 (alvo de arguição de nulidade pelos recorrentes em 7.02.2022, dando origem ao acórdão sob recurso de 9.03.2022), ter proferido uma decisão em que funcionou como um tribunal de 1ª instância, no caso como um Juiz de Instrução, quando além de ter indicado as razões pelas quais concluía ser caso de pronunciar (assim revogando a decisão de não pronúncia da 1ª instância), resolveu indicar os termos concretos em que a pronúncia devia ser feita, não deixando qualquer margem de manobra para divergir, na descrição dos factos, ao Juiz de Instrução competente para o efeito.

Mas, mais do que isso, a Relação de Lisboa, apesar de no seu acórdão de 26.01.2022 reconhecer que não era possível pronunciar os arguidos nos exatos termos (de facto e de direito) que constavam do RAI apresentado pelos assistentes, em 10.12.2021 limitou-se (através do Relator) a proferir despacho em que “para prevenir a hipótese de revogação da decisão recorrida e prolação de nova, mas com a imputação aos arguidos de um crime p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, al. e) e n.º 3, do Código Penal, nos termos do disposto no art. 424.º, n.º 3 do CPP”, lhes (aos arguidos) concedeu o prazo de 10 dias para se pronunciarem sobre a tal alteração não substancial dos factos.

Só que, atenta a imputação dos factos feita aos arguidos no RAI (integradora do crime de falsificação de documento p. e p. no art. 256.º, n.º 1, als. b) e d) e n.º 3 do CP), que se relacionava com a falsificação e adulteração de uma livrança, a modificação feita na Relação para uso de documento falso (e, portanto, a imputação de diferente crime, ainda que modalidade diversa do crime de falsificação, p. e p. no art. 256.º, n.º 1, al. e), n.º 3, do CP), implicou mais do que a comunicada alteração de qualificação jurídica dos factos ou comunicação de alteração não substancial de factos.

A Relação reconheceu, tal como a 1ª instância, que não podia pronunciar os arguidos pelos factos e crimes que lhes eram imputados no RAI.

No entanto, pretendeu imputar-lhes um crime de uso de documento falso p. e p. no art. 256.º, n.º 1, al. e), n.º 3, do CP, apesar de não dispor de todos os factos pertinentes para o efeito no RAI (o que não era de admirar uma vez que se tratam de modalidades distintas do crime de falsificação de documento p. e p. no art. 256.º do CP, que integram crimes diversos para efeitos do art. 1.º, al. f) do CPP).

Repare-se que a expressão «crime diverso» constante do art. 1, al. f) do CPP não corresponde necessariamente a «diferente tipo legal de crime» no sentido substantivo[2].

Mas, analisando os factos, importa conferir os que constam da acusação do RAI e comparar com os que estão descritos no acórdão de 26.01.2022.

Ora, confrontando o teor do RAI[3], com o teor dos termos da pronúncia[4] que consta do acórdão da Relação de 26.01.2012, verifica-se que foram introduzidos, melhor dizendo, acrescentados novos factos, que foram essenciais e, por isso, determinantes para viabilizar a referida pronuncia pelo crime de uso de documento falso p. e p. no art. 256.º, n.º 1, al. e), n.º 3, do CP, que de outro modo não era possível.

É precisamente o que se passa com os factos que constam das alíneas i), ii), xiv), xviii), xix) e xx) que figuram no acórdão de 26.01.2022 (de forma anómala), como sendo os termos em que o JI deve fazer a pronúncia.

Particularmente no que se refere aos factos integradores do tipo subjetivo do crime diverso imputado aos arguidos (sendo certo que em relação ao Banco, nem sequer foi indicado quem o representa, até para poder em audiência prestar declarações, eventualmente efetuar uma confissão[5], o que mostra como o próprio RAI se mostrava deficiente por não identificar de forma completa aquele arguido, pessoa coletiva, o mesmo se passando no acórdão de 26.01.2022, não bastando, para o efeito, concluir que o BCP podia ser arguido nos termos do art. 11.º do CP e nem sequer indicar o seu representante) uma vez que ocorreu um aditamento de novos factos que não constavam do RAI (até porque o crime imputado passou a ser diferente, a saber, o uso de documento falso em vez da falsificação de documento) não há dúvidas que existe uma alteração substancial de factos, conforme jurisprudência fixada no ac. do STJ n.º 1/2015, que nem sequer foi, como devia, comunicada aos arguidos.

Portanto, por um lado sem o acrescento dos factos novos indicados no citado acórdão da Relação de 26.01.2022, os arguidos não podiam ser pronunciados e, por outro lado, com a introdução daqueles factos novos ocorreu uma alteração substancial dos factos, sem ter sido observado o disposto no art. 303.º, do CPP (uma vez que a Relação tomou a iniciativa de agir como se fosse a 1ª instância e definiu os termos em que seria feita a pronúncia e, nessa perspetiva, deveria ter previamente igualmente cumprido tal dispositivo).

Não tendo observado o disposto no art. 303.º do CPP, comunicando previamente aos arguidos aquela alteração substancial dos factos que introduziu nos termos da pronúncia que definiu no acórdão de 26.01.2022, cometeu a nulidade prevista no art. 309.º, n.º 1, do CPP (independentemente de ter determinado à 1ª instância que executasse a sua decisão nos termos que definiu), suscitada atempadamente pelos arguidos.

Tudo isto mostra que, perante a falência da acusação contida no RAI, a mesma «não pode ser “salva” pelo mecanismo da alteração substancial dos factos»[6], salvo “acordo” dos sujeitos processuais.

Efetivamente, tendo o TRL alterado o objeto de cognição e fixado um novo (violando os princípios do acusatório e da vinculação temática), que se traduziu numa decisão surpresa para os recorrentes, na medida em que introduziu factos novos que constituem uma alteração substancial dos que constavam do RAI, sem ter feito a prévia comunicação aos arguidos, assim não garantindo os seus direitos de defesa, não há dúvidas que ao contrário do que refere no acórdão impugnado cometeu a nulidade prevista nos arts. 303.º e 309.º do CPP (uma vez que, ao contrário do que refere nessa decisão de 6.03.2022 impugnada, o acórdão de 26.01.2022 foi objeto de uma alteração substancial de factos como se explicou).

O princípio da plenitude das garantias de defesa (art. 32.º, n.º 1 da CRP) tem de ser assegurado ao arguido quando o Tribunal superior introduz novos factos, que constituem uma alteração substancial, na definição dos termos da pronúncia, exigindo-se que o arguido não seja surpreendido com essa decisão (art. 424.º do CPP) e tenha a oportunidade de ser ouvido (o que se relaciona com o direito de audiência e o princípio do contraditório), quando ocorre essa convolação, como aqui sucede, e nada disso havia sido discutido anteriormente no processo (sendo certo que nem sequer houve qualquer produção de prova depois da apresentação do RAI).

Em conclusão: com a introdução dos novos factos acima indicados no Acórdão de 26.01.2022 ocorreu uma alteração substancial dos factos constantes da acusação contida no RAI, sem ter sido feita qualquer comunicação aos arguidos (além da arguida pessoa coletiva nem ter sido devidamente identificada), o que constitui nulidade prevista nos arts. 303.º e 309.º do CPP, arguida atempadamente, impondo-se, em consequência, a revogação do acórdão de 9.03.2022, determinando-se que seja proferido outro em sua substituição que tenha em atenção o supra decidido.

Perante o decidido fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.

*

Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento ao recurso interposto pelos arguidos Banco Comercial Português e AA e, consequentemente, revogar o acórdão proferido pelo TRL em 9.03.2022, determinando que seja proferido outro em sua substituição que tenha em atenção o supra decidido, visto o disposto nos artigos 303.º, 309.º, 424.º do CPP e 32.º, n.º 1 da CRP.

Sem custas.

*

Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2 do CPP), sendo assinado pela própria, pelo Senhor Juiz Conselheiro Adjunto e pelo Senhor Juiz Conselheiro Presidente da secção.

*

Supremo Tribunal de Justiça, 14.07.2022

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Cid Geraldo

Eduardo Almeida Loureiro

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[1] Entretanto, ainda em 16.03.2022 os arguidos arguiram a nulidade do acórdão do TRL de 9.03.2022 (por omissão de pronúncia quanto à questão colocada de não lhes ser comunicada a alteração de factos que veio a ser aditada, sem prévia comunicação do seu teor e, particularmente com o aditamento de factos novos relativos ao dolo, em divergência infundamentada com a jurisprudência fixada no acórdão do STJ n.º 1/2015), tendo sido designado dia para a conferência, com vista à decisão, mas devido à interposição do recurso para o STJ, o Sr. Juiz Desembargador Relator veio depois a proferir despacho no sentido de retirar da tabela a decisão de tal questão, por a julgar supervenientemente inútil com a interposição do referido recurso (ou seja, com a opção de levar a questão a instância superior – cf. decisões de 8.04.2022 e de 2.05.2022).
[2] Ver António Gama, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Coimbra, Almedina, 2019, p. 51.

[3] No RAI consta a seguinte dedução de acusação contra “Millennium Banco Comercial Português, com o n°. de matrícula e identificação fiscal 501.525.882, doravante designado BCP e,AA, identificada a fls. 595 e 596, dos autos, 3.° Volume, porquanto:

1.º

Em Março de 2004, o ora acusado Banco BCP entrou na posse e detenção de 3 (três) livranças/caução, com os números ...18. ...00 e ...26. todas em branco.

2.º

As mencionadas 3 (três) livranças/caução continham, apenas, a assinatura pessoal de DD que não era, então, gerente daquela Sociedade, tendo passado a sê-lo só três anos e onze meses depois, em 28 de Dezembro de 2007.

3.°

Conforme os autos, em 4 de Abril de 2012, isto é, 8 (oito) anos mais tarde, o ora acusado Banco BCP preencheu as referidas três livranças, manuscrevendo, em todas elas, pela primeira vez, como subscritora, a Soe. M..., Lda.

4.°

O ora acusado Banco BCP, relativamente às duas livranças que preencheu nos valores de 37.874,99 e 64.123,17, conservou a configuração original destas.

5.°

Todavia e, conforme o Relatório Pericial da Polícia Judiciária (fls. 431 a 435, 3.° Volume), no tocante à livrança no valor de 1.421.872,10, ao invés, o ora acusado Banco BCP preencheu-a de forma distinta da respectiva configuração original, sobrepondo à assinatura pessoal do mencionado DD e dactilografando depois, a expressão "M..., Lda".

6.°

E, abaixo de tal referência o ora acusado Banco BCP dactilografou, ainda, a expressão "p. p. presidente", na óptica (errada) de, assim, conferir vinculação societária ao subscritor.

7.°

Na livrança do valor de 1.421.872,10, a expressão Soe. M..., Lda não está impressa, pois está dactilografada.

8.°

No verdadeiro carimbo da Sociedade, as palavras "p. p. PRESIDENTE' estão e são impressas em maiúsculas, conforme a própria documentação, junta aos autos pelo ora acusado Banco BCP.

9.° figuram como avalistas.

10.º A letra e a caligrafia manuscritas no "rosto" das 3 (três) livranças/caução, não são a letra e a caligrafia do "verso" das mesmas, isto é, não são a letra e a caligrafia dos requerentes e ora acusadores BB e DD, que, no "verso", milhão, quatrocentos e vinte e oito mil oitocentos e vinte e sete euros e dez cêntimos), integra, pois, a previsão das alíneas b) e d) do n° 1 do referido art. 256° do Código Penal.

11°

As referidas 3 (três) livranças/caução, depois de enviadas, permaneceram sempre e exclusivamente no poder e na esfera jurídica do ora acusado Banco BCP (seu portador imediato, nos termos da LULL, pois)

12.°

O invocado pelo ora acusado Banco BCP, a 10 de Abril de 2018, no requerimento dessa mesma data (fls. 305 a 306, dos autos, 2.° Volume), não corresponde à verdade e está em contradição com o depoimento do seu intitulado representante legal, Sr. EE (fls. 135, 136, dos autos, 1.° Volume e 282 a 284, dos autos, 2.° Volume ) e com o e-mail da autoria do próprio Banco BCP (fls. 427, dos autos, 3.° Volume).

13.°

Antes do preenchimento pelo ora acusado Banco BCP, a Soe. M...., Lda havia sido declarada insolvente no Tribunal de ... (proc. 822/10.4T8TMR), em 5 de Julho de 2010, no qual, o ora acusado Banco BCP recebeu, por rateio (fls. 54, dos autos, 1.° Volume), o valor de 89.519,66, referente ao crédito comum, que reclamara àquela Sociedade, no montante de 1.945.459,76 (fls. 44 a 45 verso, dos autos, 1.° Volume).

14.°

O crédito comum de 1.945.459,76 incluía, maioritariamente:

a garantia bancária ...55, subjacente à livrança de 37.874,99 (fls. 11, dos autos);

. a garantia bancária ...41;

. o contrato de abertura de crédito ...98, subjacente à livrança (adulterada posteriormente) de 1.421.872,10;

. a livrança ...96. no valor de 117.000,00, subscrita pela Soe. M...., Lda, mas com o carimbo verdadeiro.

15.°

Naquele processo falimentar, o Banco BCP reclamou créditos com base nas relações extra-cartulares relativamente a duas das 3 livranças/caução, entre elas, a que veio, posteriormente, a adulterar- a livrança de 1.421.872,10 -

16.°

Todavia, as 3 (três) livranças/caução vieram a constituir, diferentemente, os títulos executivos no processo que o ora acusado Banco BCP moveu posteriormente, em 17 de Abril de 2013, aos co-requerentes e ora acusadores, BB e DD, enquanto avalistas (fls. 48 a 53, dos autos, 1.° Volume).

17.°

Os quais já estão penhorados no montante de 899.108,19 (art. 5.° da queixa complementar de 18 de Abril de 2017 - fls. 123 a 128, dos autos, Io Volume -), montante aquele que emerge, substancialmente, da livrança adulterada de 1.421.872,10.

18.°

Tal montante é, por um lado, o benefício ilegítimo do ora acusado Banco BCP e, por outro lado, o prejuízo ilegítimo dos requerentes e ora acusadores, BB e DD.

19.°

As livranças são títulos cartulares, previstos e contemplados na Lei Uniforme (a chamada LULL), à luz da qual tem de haver total correspondência entre quem faz a promessa de pagamento e a assinatura das livranças, sob pena da inexistência das mesmas.

20.°

A subscrição e a promessa de pagamento são, legalmente, os requisitos essenciais, da existência dos títulos cartulares (art. 75° da LU).

21°

Requisitos que têm que coincidir entre si, isto é, o promitente pagador tem que ser o subscritor e este tem que ser aquele, sob pena dos títulos cambiários não chegarem sequer a formar-se e a constituir-se como tais.

22.°

Acarretando, nesse caso, a inexistência dos avales.

23.°

O art°. 7° e o art. 8.° da LU, não são aplicáveis, uma vez que as 3 livranças/caução e, portanto, a livrança adulterada de 1.421.872,10, não entraram no circuito cambiário, sendo, assim, o ora acusado Banco BCP o seu portador imediato.

24.°

O teor originário das livranças, enviadas em branco ao ora acusado Banco BCP, apenas com a assinatura pessoal de DD e sem qualquer indicação e identificação concreta do subscritor, como sendo a Soe. M..., Lda, preclude, de todo, o teor adulterado (art. 69.° LULL).

25.°

As livranças, como títulos cartulares, integram o elenco dos títulos enunciados no n° 3 do art. 256° do Cód. Penal.

26.°

A adulteração da livrança n°. ...26, no montante de 1.428.827,10 (um milhão, quatrocentos e vinte e oito mil oitocentos e vinte e sete euros e dez cêntimos), integra, pois, a previsão das alíneas b) e d) do n° 1 do referido art. 256° do Código Penal.

27.º

A adulteração efectuada é punível, nos termos do n° 4 do referido artigo 256.° do CP..

28.º

O ora acusado Banco BCP, como Pessoa Colectiva do sector financeiro e bancário, é "susceptível de responsabilidade criminal, tanto geral, (n°. 1 do art. 11° do Cód. Penal), como específica (n° 2 do referido art. 11° do Código Penal), pela prática do crime previsto no art. 256° do Cód. Penal.

29.°

Crime pelo qual respondem, por parte do ora acusado Banco BCP, "as pessoas que nele ocupam uma posição de liderança" (alínea a) do n° 2 e n° 4 do art. 11o do Cód. Penal), sem exclusão da responsabilidade individual (n° 7 art. 11° do Cód. Penal) da colaboradora  daquele Banco, e por este identificada, AA (fls. 427 dos autos, 3.° Volume), já constituída arguida (fls. 595 e 596, dos autos, 3.° Volume).

30.°

Constituem o "iter criminis" da adulteração, pelo Banco, da livrança de 1.421.872,10:

o reconhecimento, pelo ora acusado Banco BCP, em 18-05-2005, da não vinculação da Sociedade M..., Lda, por DD, isoladamente;

a reclamação, pelo ora acusado Banco BCP, em 23 de Julho de 2010, no processo de insolvência da Soe. M..., Lda, do seu crédito comum sobre esta Sociedade, no valor de 1.945.459,76 (fls. 44 a 46, dos autos, 1.° Volume);

o falecimento, em 29 de Dezembro de 2010, do Sr. FF (com a consequência jurídica da caducidade da procuração de 30 de Abril de 1999);

o rateio de 89.519,66 (fls. 54, dos autos, 1.° Volume), que veio a caber, posteriormente, ao ora acusado Banco BCP, no processo falimentar de 2010;

o preenchimento, em 4 de Abril de 2012, pelo ora acusado Banco BCP, da livrança de 1.421.872,10 (fls. 25 a 28, dos autos, 1.° Volume);

a instauração, em 17 de Abril de 2013, do processo executivo, pelo ora acusado Banco, em que as referidas 3 (três) livranças (não invocadas no processo falimentar, que o precedeu em três anos) são e constituem o título executivo (fls. 9 a 31, dos autos, 1.° Volume);

31°

O «iter criminis» espelha, à evidência, o dolo, por parte do ora acusado Banco BCP e da atrás referida colaboradora/trabalhadora, AA, no preenchimento e adulteração da livrança de 1.421.872,10.

32.°

O dolo está, também, patente, pela ausência da mesma adulteração, nas restantes 2 (duas) livranças, cujo valor somado é, apenas, de 7% do valor único da livrança adulterada, superior em 14 (quatorze) vezes àquele, depois de aglutinado.

[4] Consta o seguinte, nessa parte relativa aos termos da pronúncia, do acórdão de 26.01.2022:

i) O arguido Banco Comercial Português S.A. é uma instituição bancária devidamente constituída que opera em Portugal exercendo a actividade bancária para a qual está autorizada;

ii) A arguida AA era, em 2013, colaboradora do Banco BCP e era responsável, à data, pelo processo de constituição de garantias bancárias/ contratos bancários e, bem assim, pelas três livranças aqui em causa;

iii) Em Março de 2004, o Banco BCP entrou na posse e detenção de três livranças/caução, com os números:

a. ...18:

b. ...00:

c. ...26:

iv)  As livranças continham a assinatura pessoal de DD;

v) Em Abril de 2013, o Banco BCP moveu contra os Assistentes execução para pagamento da quantia certa, no valor global de 1 589 114,47 € - processo n.° 506/13.1..., que correu termos no Tribunal Judicial de ... - cujo título executivo foi:

a) livrança ...18. no valor de 37 874,99 €;

b) livrança ...00. no valor 64 123, 17 €;

c) livrança ...26. no valor de 1 412 827,10 €.

vi)  O Banco BCP preencheu as três livranças;

vii) Relativamente às duas livranças, nos valores de 37 874,99€ e 64 123,17€, o Banco BCP conservou a configuração original destas;

viii) No tocante à terceira livrança, no valor de 1 421 872,10 €, o Banco BCP apresentou-a à execução preenchida de forma distinta da respectiva configuração original.

ix) Na verdade, quando apresentada à execução a livrança apresentava:

Sobrepondo, dactilograficamente,  à  assinatura  de José  Armando Vizela Cardoso, a expressão “M..., Lda”;

E, abaixo de tal referência, dactilografada, a expressão “p.   p. presidente":,

x) Dessa forma, na terceira livrança, passou a figurar como subscritora a “Sociedade M... Lda”;

xi) As referidas 3 (três) livranças/caução, depois de enviadas, em Março de 2014, permaneceram sempre e exclusivamente no poder e na esfera jurídica do Banco BCP;

xii) A Assistente BB, em sede de processo executivo, deduziu oposição à execução, arguindo, entre outros, a adulteração da referida livrança;

xiii) O Assistente DD não podia, nem tinha poderes, para vincular a sociedade M... Lda;

xiv) A colaboradora do Banco BCP responsável, à data, pelo processo de constituição de garantias bancárias/ contratos bancários e, bem assim, pelas três livranças foi AA tendo sido sob a sua égide e supervisão que as livranças foram entregues em Tribunal para execução

xv) A sociedade M... Lda foi declarada insolvente - pelo Tribunal Judicial de ...- três anos antes do processo executivo movido contra os Assistentes, tendo reclamado, como crédito comum sobre a massa 1 945 459,76 €;

xvi) Os créditos reclamados incluíam as garantias bancárias (...55; ...73) e o contrato de abertura de crédito ...89 (e subsequentes alterações), os quais, a título de caução, determinavam a entrega ao BCP das livranças;

xvii) Em face da execução (com base na livrança), os Assistentes, tiveram e (têm), prejuízos individuais que, em Abril de 2017, ascendiam a 899 108,19 €.

xviii) Ao agir da forma descrita a arguida AA usou documento que sabia falso por não corresponder ao negócio que subjazia à sua emissão e nele estar aposto o escrito supra indicado vertido por pessoa diferente do subscritor da livrança e sem o seu aval ou autorização, aceitando que o seu uso iria causar, como causou prejuízo, aos assistentes e, não obstante, não deixou de agir da forma descrita conformando-se com o resultado e previndo que o Banco arguido viesse a obter ganhos com tal conduta.

xix) Da mesma forma o Banco Comercial Português não procedeu de acordo com os deveres de vigilância e controlo que sobre si impendiam permitindo, através da sua inércia e por via da falta de estabelecimento de protocolos de controlo e vigilância, o uso do documentos falsificado conformando-se com a conduta da sua colaboradora sabendo que da mesma adviriam ganhos para si e prejuízos para os assistentes;

xx) Ambos os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente conhecedores que as respectiva condutas era contrárias à Lei, o que quiseram.

Cometeram desta forma, em co-autoria, um crime p. e p. pelo artº 256º nº 1 al. e) e 3 do Código Penal sendo a responsabilidade criminal do BCP proveniente do disposto no artº 11º nº 2 al. b) do C.P.P..”

Dispositivo

Por todo o exposto, julga-se o recurso procedente, revoga-se a decisão recorrida e determina-se a prolação de decisão de pronúncia nos termos assinalados. Sem custas. Notifique.

[5] Augusto Silva Dias e Vânia Costa Ramos, O direito à não auto-inculpação (nem tenetur se ipsum accusare) no processo penal e contra-ordenacional português, Coimbra: Coimbra Editora 2009, p. 42, quando interrogando-se sobre a aplicabilidade do nemo tenetur às pessoas coletivas, referem que “é razoável que lhes sejam atribuídos os direitos que assistem ao arguido, nomeadamente o direito à não auto-incriminação”.
[6] Ver António Gama, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Coimbra, Almedina, 2019, p. 51.