EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA
EXPURGAÇÃO DE HIPOTECA
LIQUIDAÇÃO EM EXECUÇÃO
PERMILAGEM DA FRAÇÃO
Sumário

I - Em execução hipotecária, a responsabilidade do proprietário de um imóvel, que o adquiriu já hipotecado e sem proceder à expurgação/distrate da hipoteca, resume-se ao valor desse imóvel (art.º 686º nº 1 do CC), pois não é ele o devedor do crédito garantido pela hipoteca.
II - Nos casos de hipoteca incidente sobre terreno para construção em que posteriormente se construiu edifício em regime de propriedade horizontal, e a entidade bancária efetuou já o distrate relativamente a várias frações do edifício, há que ter em conta a jurisprudência que determina que a garantia hipotecária será apenas a correspondente à permilagem da fração na totalidade do imóvel inicial.
III - Nessa medida, compete ao Exequente proceder à liquidação da quantia exequenda em função dessa permilagem, nos termos do art.º 724º nº 1 al. h) do CPC.
IV - Sempre que o Exequente indique como quantia exequenda o valor da totalidade do crédito garantido pela hipoteca, ainda em dívida, deve o juiz convidar ao aperfeiçoamento do requerimento executivo, nos termos do art.º 726º nº 4 do CPC.

Texto Integral

Apelação nº 13092/21.0T8PRT-A.P1



ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I – Resenha histórica do processo
1. Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que E... Unipessoal, Ldª lhe moveu, veio AA opor-se à execução por meio de embargos, alegando nunca ter celebrado qualquer contrato com a Exequente.
No requerimento executivo, a Exequente alegou, resumidamente, o seguinte: adquiriu o crédito exequendo por cessão de créditos, à M... Company, a qual, por sua vez, os havia adquirido à Banco 1..., S.A.
O objeto do contrato incluiu um conjunto de créditos vencidos, incluindo um crédito sobre a sociedade comercial G..., Lda. A cessão de créditos incluiu a transmissão de todos os direitos, garantias e acessórios, designadamente a hipoteca que garantia o crédito cedido.
A Banco 1..., S.A havia celebrado com a G... um contrato de abertura de crédito até ao montante de €470.000.000$00, garantido por hipoteca celebrada sobre um terreno para construção urbana, onde já se encontrava em construção um edifício. Essa hipoteca abrangia também as edificações urbanas e benfeitorias que nele fossem implantadas.
A G... não cumpriu o contrato e foi declarada insolvente.
Sobre a fração AF do imóvel encontra-se registada uma promessa de alineação, tendo havido uma decisão judicial, também registada, que declarou que em substituição da G..., se determina a transmissão do direito de propriedade do imóvel para a Executada.
A Exequente pretende assim executar a hipoteca, pelo correspondente valor em dívida.
Na sua petição de embargos, alegou a Executada nunca ter celebrado qualquer contrato com a Exequente; ter celebrado com a G... um contrato promessa de compra e venda da fração “AF”; que, tendo sido incumprido, lhe moveu ação de execução especifica, que foi julgada procedente por sentença transitada em julgado. A G... só foi declarada insolvente após essa sentença; não obstante, a referida fração foi apreendida a favor da massa insolvente; a Executada expôs a situação ao juiz titular do processo de insolvência, que determinou lhe fosse restituída a fração.
A Exequente ainda contestou, alegando que na sentença de execução específica não foi determinado o cancelamento da hipoteca; que a restituição que foi determinada no processo de insolvência teve por base a impossibilidade de serem apreendidos para a massa insolvente bens de terceiro, não resultando também qualquer cancelamento de hipoteca. A hipoteca é anterior ao registo do contrato-promessa, pelo que prevalece sobre o respetivo registo, não lhe sendo oponível.
A M.mª Juíza conheceu do mérito dos embargos em sede de despacho saneador-sentença, julgando «improcedentes os embargos, determinando a manutenção da penhora que incide sobre a fração “F” e o prosseguimento da execução nos termos constantes do requerimento executivo.».

2. Inconformada com tal decisão, dela apelou a Executada-Embargante, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1) O presente recurso versa sobre a decisão que julgou improcedentes os embargos, determinando a manutenção da penhora que incide sobre a fração “F” e o prosseguimento da execução nos termos constantes do requerimento executivo.
2) Desde logo, a sentença proferida padece de um lapso de escrita, pois a fração em causa nos autos é a fração “AF”, e não “F” como consta da douta sentença proferida.
3) Correção que se impõe, nos termos do disposto no nº do artigo 614ºCPC.
Sem Prescindir,
4) A exequente E... Unipessoal, Lda intentou a presente execução sumária contra AA, para pagamento de quantia certa, do montante de 3 410 332,97 € (Três Milhões Quatrocentos e Dez Mil Trezentos e Trinta e Dois Euros e Noventa e Sete Cêntimos).
5) E, apresenta como título executivo uma escritura de cessão de créditos celebrada com a M... que por sua vez havia adquirido os créditos detidos pela Banco 1..., S.A sobre a sociedade G..., Lda, declarada insolvente por sentença transitada em julgado, tendo a cessão de créditos, incluído a transmissão das hipotecas, designadamente a que incide sobre a fração “AF”.
6) Salvo melhor opinião, a douta decisão viola desde logo, os determinativos processuais, no que respeita ao título executivo,
7) Uma vez que a ora recorrente, é executada pela módica quantia de 3.410.332,97 €, referente a um empréstimo que, manifesta e inequivocamente, não contratou e jamais poderá ser responsável pelo seu pagamento.
8) Sendo apenas, a fração autónoma designada pela letra “AF”, correspondente a uma habitação no primeiro andar, com garagem, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Rua ..., ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na Conservatória de Registo Predial sob o número ... e inscrito na matriz sob o artigo ..., que pode responder pela dívida contraída pela G..., Lda, em virtude da hipoteca registada pela AP ... de 1999/11/05, e por ser anterior ao registo de aquisição.
9) Assim sendo, o valor da execução deve ser limitado nesses termos e medida.
10) Acresce que, os juros peticionados pela exequente, sempre terão que ser considerados prescritos, atento o disposto na alínea d) do artigo 310º CC.
Contudo, e sem prescindir,
11) Resulta dos documentos juntos e factos provados que, no dia 19 de maio de 2006, no Cartório Notarial de Espinho, a recorrente celebrou com a sociedade comercial G..., Lda, contrato promessa com eficácia real relativamente à fração autónoma AF do prédio sito na Rua ..., inscrito na matriz sob o artigo ..., e descrito na conservatória sob o nº ... da ..., na qual aquela sociedade promete vender à ora recorrente, pelo preço de 83.500,00€ (oitenta três mil e quinhentos euros) já recebido, a identificada fração, atribuindo-lhe eficácia real, com vista a reforçar a expetativa de aquisição da fração já identificada e relativamente à qual já tinham celebrado um contrato promessa com efeitos meramente obrigacionais no dia um de junho de dois mil e três, tendo procedido ao respetivo registo junto da CRP.
12) Bem como, que a recorrente interpelou a G..., Lda para a outorga da escritura definitiva a 16-10-2006 pelas 14h, não tendo a mesma comparecido.
13) Motivo pelo qual a recorrente intentou ação judicial para cumprimento do contrato- execução específica, que correu ermos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Espinho, com o nº 1426/06.1TBESP.
14) A propriedade da fração “AF” foi obtida, não pela outorga da escritura, mas através da sentença proferida no âmbito do referido processo judicial, nos seguintes termos: “Declaro, em substituição da R. G..., Lda, vender à A. AA, pelo preço de oitenta e três mil e quinhentos euros, já integralmente pago, a fração autónoma designada pela letra “ AF”, correspondente a uma habitação no primeiro andar, com garagem, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Rua ..., ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na Conservatória de Registo Predial sob o número ... e inscrito na matriz sob o artigo ...….”
15) A promessa de alienação foi devidamente registada junto da CRP, pela AP ... de 2006/06/16, e o registo da aquisição da propriedade a favor da recorrente (decorrente da sentença proferida no âmbito do processo nº 1426/06.1TBESP) através da AP ... de 2010/04/09.
16) A recorrente está na posse da fração AF, exercendo todos os direitos de proprietária, como é, usando e fruindo da mesma, à vista de toda a gente, desde pelo menos 19/05/2006, data da outorga do contrato promessa com eficácia real, sendo certo que o contrato promessa com efeitos meramente obrigacionais remonta a 1 de junho de 2003.
17) Durante mais de 20 (vinte) anos (contados desde a celebração do contrato de financiamento entre a Banco 1..., S.A e a G...- 05/11/1999 e constituição de hipoteca), e 5 (cinco) sobre o incumprimento de pagamento pela insolvente G..., ocorrido a 17/11/2004, jamais a ora recorrente foi interpelada seja pela Banco 1..., S.A, seja pela M..., seja pela ora exequente, a não ser com a propositura da presente execução e diligencias que antecederam, para proceder ao pagamento de qualquer quantia.
18) Nos termos do disposto na alínea b) do artigo 730º do código civil, a hipoteca extingue-se, por prescrição, a favor do terceiro adquirente do prédio hipotecado, decorridos vinte anos sobre o registo da aquisição e cinco sobre o vencimento da obrigação.
19) Não podendo olvidar-se que a recorrente comprou a fração AF, e pagou o respetivo preço, 83.500,00 €, atuando de boa-fé no cumprimento das suas obrigações, nos termos do disposto no artigo 762º do CC.
20) Atento o invocado e documentos juntos, a existir má fé, será por parte da G... que recebeu o preço e não pagou, e ou não diligência junto da Banco 1..., S.A pelo cancelamento da hipoteca que incide sobre a fração “AF”, falta ou omissão que a recorrente é alheia.
21) A verdade é que a atuação da sociedade G..., declarada insolvente por sentença transitada em julgado, acarreta graves consequências e prejuízos.
22) O prosseguimento da execução, que apenas por mero raciocínio se consente, e uma vez que o incumprimento da obrigação apenas ocorreu por parte da sociedade G..., terá que acarretar, salvo melhor opinião, a nulidade do contrato promessa com eficácia real, e consequentemente ser devolvido o valor pago. 23) Bem como o valor correspondente a todas as benfeitorias realizadas e ainda todas as despesas que suportou, nomeadamente a título de impostos (IMI, IMT, imposto de selo), condomínio, legalização da fração, etc, em montante a apurar.
24) Violou a douta decisão, entre outros, o disposto nos artigos 730º, 762º, 770º do código civil, e artigos 614º CPC.
Nestes termos e nos melhores de direito, doutamente supridos por v/ exas., deve ser dado provimento ao presente recurso e a douta decisão revogada de acordo com as alegações e conclusões que antecedem, por assim ser de justiça!

3. A Exequente-Embargada contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
4. OS FACTOS
Foram os seguintes os factos considerados na douta sentença:
1. No exercício da sua atividade creditícia, a Banco 1..., S.A., celebrou com a sociedade comercial G..., Lda., um contrato de abertura de crédito, até ao montante de €470.000.000$00 (contravalor €2.344.350,12), tendo sido o referido contrato celebrado em 5 de novembro de 1999, no Cartório do Porto do Notário Privativo do Banco 1..., S.A., perante o Notário BB.
2. No âmbito do referido contrato, foi acordada uma taxa de juros a uma taxa nominal variável indexada à Euribor a 3 meses, em vigor no último dia útil anterior ao início de cada período de contagem de juros, acrescida de um spread de 1,25%.
3.Para garantia do cumprimento do acordado, bem como do pagamento do capital mutuado, juros, comissões, despesas e penalizações, a sociedade comercial G... constituiu hipoteca sobre o seguinte imóvel:
- Prédio urbano, composto de terreno para construção urbana, onde já se encontra em construção um edifício de cave, rés-do-chão, dois andares e aproveitamento do vão do telhado, situado na Rua sem denominação oficial, com apoio na Rua ..., no Lugar ..., freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na 1.ª CRP desse concelho, sob o n.º ... e à data ainda omisso na matriz.
3. Nos termos do contrato celebrado, a hipoteca abrangia também as edificações urbanas e benfeitorias que nele fossem implantadas.
4. A referida hipoteca encontra-se registada pela Ap. ... de 1999/11/05 e objeto de uma cessão de créditos para a Exequente, registada pela Ap. ..., de 2020/12/30.
5. A referida sociedade G... foi declarada insolvente no âmbito do processo n.º 228/08.5TYVNG, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 4.
6. Através da AP. ... de 2006/06/16, foi inscrita no registo sobre a fração “AF” do imóvel supra identificado uma promessa de alineação, da referida fração a favor da aqui embargante.
7. No dia 19 de maio de 2006, no Cartório Notarial de Espinho, a embargante celebrou com a sociedade comercial G..., Lda, contrato promessa com eficácia real relativamente à fração autónoma AF do prédio sito na Rua ..., entrada “F”, inscrito na matriz sob o artigo ..., e descrito na conservatória sob o nº ... da ....
8. Pela referida escritura, a sociedade G... promete vender à ora embargante, pelo preço de 83.500,00€ (oitenta três mil e quinhentos euros) já recebido, a identificada fração, atribuindo-lhe eficácia real, “…com vista a reforçar a expetativa de aquisição da fração já identificada e relativamente à qual já celebraram um contrato promessa com efeitos meramente obrigacionais no dia um de junho de dois mil e três”.
9. Naquela data, 19/05/2006, foi celebrado o referido contrato promessa e não uma escritura de compra e venda atenta a inexistência de licença de utilização, como aliás ficou a constar da mesma “(…) Que a escritura pública do contrato definitivo de compra e venda deverá realizar-se logo que estejam resolvidas todas as questões inerentes à obtenção de licença de utilização correspondente, mas sempre até trinta de junho de dois mil e seis…”.
10. Decorrido aquele prazo, a embargante/executada interpelou a G..., Lda para a outorga da escritura definitiva a 16-10-2006 pelas 14h, não tendo a mesma comparecido, pois permanecia em falta a licença de utilização da fração o que impediu mais uma vez a celebração da mesma.
11. Nesse seguimento intentou ação judicial para cumprimento do contrato de execução especifica, que correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Espinho, com o nº 1426/06.1TBESP.
12. No referido processo, foi proferida sentença, transitada em julgado a 18/09/2008, a qual julgou a ação procedente, e em consequência:
A) Declaro, em substituição da R. G..., Lda, vender à A. AA, pelo preço de oitenta e três mil e quinhentos euros, já integralmente pago, a fração autónoma designada pela letra “AF”, correspondente a uma habitação no primeiro andar, com garagem, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Rua ..., ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na Conservatória de Registo Predial sob o número ... e inscrito na matriz sob o artigo ...….”.
13. A referida decisão judicial foi inscrita no registo pela AP. ... de 2010/04/09.
14. A sociedade G..., Lda por sentença proferida no processo nº228/08.5TYVNG em 28/05/2009 foi declarada insolvente.
15. A fração “AF” foi então, no âmbito do processo apreendida a favor da massa e inscrita no registo a referida apreensão.
16. Por decisão proferida a 16/04/2018, no âmbito do apenso A do processo de insolvência nº 228/08.5TYVNG-A, foi determinado, ao abrigo do artigo 141 nº 3 do CIRE, a separação do referido bem da massa insolvente e consequente restituição à ora embargante, determinando-se o cancelamento da inscrição que incide sobre o mesmo no Registo Predial.
17. Por escritura pública, celebrada em 30 de junho de 2017, a “Banco 1..., S.A.”, cedeu à “M... Company”, um conjunto de créditos vencidos de que era titular.
18. Entre os créditos suprarreferidos e, pela escritura pública supramencionada, foram cedidos à “M... Company” o crédito que detinha sobre a sociedade comercial G..., Lda.
19. Em 29 de dezembro de 2020, foi celebrada uma outra escritura de retificação e cessão de créditos, na qual foi feita a retificação à escritura de 30 de junho de 2017 acerca dos créditos cedidos relativamente à mutuária G... e, bem assim, nos termos da referida escritura, foi operada a cessão de créditos entre a M... e a E..., ora Exequente.
20. A mencionada cessão de créditos incluiu a transmissão, relativamente ao referido crédito, de todos os direitos, garantias e direitos acessórios àquele inerentes.
21.A referida cessão incluiu, designadamente, a transmissão das hipotecas, que garante o crédito cedido.
22. Nos termos da cláusula 1ª do Contrato de Abertura de Crédito ficou a constar:
«1. A Banco 1..., S.A, por este ato, concede à sociedade, representada do segundo outorgante, (adiante designada por sociedade mutuária, ou parte devedora), uma abertura de crédito até ao montante de quatrocentos e setenta milhões de escudos; e o segundo outorgante confessa desde já a sociedade que representa, devedora à Banco 1..., S.A, das quantias que forem debitadas na conta desta operação, de acordo com este contrato;
2. Este financiamento é concedido pelo prazo de três anos a contar de hoje, prazo este que compreende um período de utilização (os dois primeiros anos) e um período de amortização (o terceiro ano).»

5. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, incumbe decidir:
· do funcionamento da garantia-hipoteca;
· se ocorre a prescrição da hipoteca;
· do título executivo na execução hipotecária.

5.1. Questão prévia
Suscita a Recorrente a correção dum lapso de escrita, na medida em que no seu dispositivo se mencionou a fração penhorada como “F”, quando se trata da fração “AF”.
O art.º 614º nº 1 e 2 do CPC permite a retificação de erros de escrita, designadamente em sede de recurso, quando forem manifestos.
Um lapso manifesto há-de ser aquele que resulta do “próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita”, como estatui o art.º 249º do Código Civil (CC), ou seja, ostensivo, percetível a qualquer pessoa de medianos conhecimentos.
Analisados os autos, constata-se assistir razão à Recorrente; em todos os articulados, desde o requerimento executivo) e em toda a fundamentação da sentença (motivação de facto e de direito) se alude sempre à fração “AF”, pelo que se tem por manifesto ter-se incorrido em erro material de escrita.
Consequentemente, corrigindo-se o lapso, determina-se que se proceda à retificação da parte decisória da sentença, por forma a que, onde consta «(…) determinando a manutenção da penhora que incide sobre a fração “F” e o prosseguimento da execução (…)», passe a constar «(…) determinando a manutenção da penhora que incide sobre a fração “AF” e o prosseguimento da execução (…)».

5.2. Da hipoteca
A hipoteca constitui uma garantia especial das obrigações que, segundo o art.º 686º nº 1 do Código Civil (CC), “confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo”.
Tratando-se duma garantia, a hipoteca é sempre acessória de um crédito. Por norma, tem de haver coincidência entre a posição de credor e a do titular da garantia, pelo que a transmissão do crédito importará a cedência da garantia.
É ainda um direito real de garantia, significando que o credor hipotecário tem o poder jurídico de executar a coisa hipotecada, fazendo-se pagar com o respetivo produto preferentemente aos demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo, independentemente de quem seja o proprietário à data da execução – os denominados direito de sequela e de prioridade próprios dos direitos reais.
Esta garantia é inerente ao imóvel hipotecado, acompanhando-o sempre até ser levantada/expurgada e permanecendo mesmo em posteriores transferências do direito de propriedade para outrem que não seja pessoalmente responsável pela dívida garantida pela hipoteca.
Ou seja, a constituição de hipoteca não prejudica a transmissibilidade dos bens sobre quem incide. Aliás, a lei considera nula a cláusula pela qual o dono se obrigaria a não alienar ou a não onerar os bens hipotecados (cláusula de inalienabilidade): art.º 695º do CC.
Mas também não prejudica o recurso à ação executiva por parte do credor, constituindo um dos desvios à regra geral de que a execução deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor (art.º 53º do CPC). Nos termos do art.º 54º nº 2 do CPC, “a execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro segue diretamente contra este se o exequente pretender fazer valer a garantia”.
Por último, tem a caraterística da indivisibilidade (art.º 696º do CC). «Se a hipoteca recai sobre dois ou mais prédios, homogéneos, a garantia recai por inteiro sobre cada um deles e não apenas parcelarmente, ou fragmentariamente, em proporção ao valor de cada um deles» e «o mesmo regime se aplica à hipótese de o prédio onerado com a hipoteca vir a ser dividido em dois ou mais prédios distintos. Sobre cada uma das partes do imóvel dividido ou fracionado recai, por inteiro, o encargo da dívida assegurada». «Por outro lado, se o crédito garantido se fracionar, v.gr. mercê da sua cessão parcial a um ou mais cessionários, qualquer dos credores goza do poder de executar o seu crédito, por inteiro, sobre o imóvel ou imóveis onerados». [1]
A indivisibilidade não é obrigatória e as partes podem estipular de forma diversa, referindo logo qual a parte do crédito que corresponde a cada prédio.
De acordo com a factualidade provada, o crédito foi concedido para a construção de um edifício, a implantar num terreno. Esse edifício iria ser constituído por várias frações, totalmente independentes, em regime de propriedade horizontal. Ora, no contrato de mútuo ficou expressamente consignado que a hipoteca abrangia também as edificações urbanas e benfeitorias que nele fossem implantadas. Dicou, pois, expressamente consignada a indivisibilidade.
Do exposto, consideramos ter ficado bem patente a distinção (e a não incompatibilidade) entre o direito de propriedade (direito real absoluto) e a hipoteca (direito real de garantia) que incida sobre o imóvel.
Tratando-se de direitos distintos e autónomos, resulta claro que a eventual “nulidade do contrato promessa, devolução do valor pago e as benfeitorias” ─ a que a Recorrente alude nas conclusões 22ª e 23ª - são questões que nada contendem com a hipoteca, que se reporta ao prédio e não à pessoa do devedor.
Para além disso, importam relações jurídicas distintas: a nulidade do contrato promessa, devolução do valor pago e as benfeitorias pertencem à relação jurídica Executada – G...; a hipoteca contende com a relação jurídica Exequente – titular do prédio hipotecado (no caso, a Executada).
Pese embora a injustiça (como a embargante lhe chama), é este o regime legal e a situação não é tão inusitada como possa parecer. Por todos, conferir o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 11/03/2021, proferido no processo nº 2889/15.0T8OVR-A.P1.S1, [2], e onde se faz uma extensa análise de vária jurisprudência sobre o tema.
A execução específica de contrato-promessa não implica, de per si, ou automaticamente, o cancelamento dos ónus anteriormente registados sobre o imóvel. Como o registo da hipoteca foi anterior ao registo da sentença que declarou a execução específica, a hipoteca permaneceu válida e eficaz.
Na ação de execução específica, a executada/embargante poderia ter suscitado a expurgação da hipoteca, fazendo intervir o Banco credor, conforme lhe era facultado pelo nº 4 do art.º 830º e/ou do art.º 721º, ambos do CC. Não o fez. Poderia ainda ter depois lançado mão do processo especial de expurgação de hipoteca (processo existente à data da execução específica, pois apenas deixou de constar no CPC de 2013, constituindo antes o art.º 998º e seguintes). De registar ainda que o registo da hipoteca é anterior (1999) ao registo de eficácia real do contrato promessa (2006), bem como da ação de execução específica (2010).
Não tendo sido expurgada a hipoteca, a Executada/embargante adquiriu um imóvel onerado, razão por que o mesmo responde na medida da garantia hipotecária, independentemente de ela não ser a devedora.

5.3. Da extinção da hipoteca, por prescrição
O art.º 730º al. b) do CC consigna a possibilidade de extinção da hipoteca “por prescrição, a favor de terceiro adquirente do prédio hipotecado, decorridos vinte anos sobre o registo da aquisição e cinco anos sobre o vencimento da obrigação”.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela [3], «Estabelecem-se dois prazos cumulativos para a prescrição: o de vinte anos a partir do registo da aquisição do prédio e o de cinco anos a partir do vencimento da obrigação. O decurso de qualquer deles, de per si, é irrelevante.».
A Recorrente invoca a prescrição da hipoteca. Porém, só o faz em sede de recurso, nunca tendo suscitado a questão em 1ª instância. Daí constituir uma questão nova.
Ora, «A natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas» [4], exceto as que forem de conhecimento oficioso. E a prescrição não é de conhecimento oficioso, tendo de ser invocada pelo interessado (art.º 303º do CC).
De qualquer forma, podemos adiantar não assistir razão à Recorrente.
É aqui manifesto não terem decorrido os vinte anos sobre a aquisição da Executada/embargante, que só ocorreu com a sentença proferida na ação de execução específica, em 2010.

5.4. Do requerimento executivo em execução hipotecária
Perante o incumprimento do devedor, o credor pode executar a hipoteca, tendo sempre de recorrer ao processo executivo. E, tratando-se duma execução hipotecária, manda o art.º 752º do CPC, que a penhora se inicie pelos bens sobre que incide a garantia, só podendo recair noutros quando se reconheça a insuficiência deles para conseguir o fim da execução.
Nas suas conclusões, a Recorrente suscita a questão de o título executivo extravasar os limites da execução hipotecária (conclusões 6ª a 10ª). E, ainda que de forma genérica, já a havia suscitado na sua petição de embargos.
Neste âmbito, afigura-se-nos assistir razão Recorrente.
Na verdade, há que atender ao facto de casos como o presente, em que o “novo” proprietário do imóvel hipotecado (a aqui Executada/Embargante) não ser o devedor do crédito garantido pela hipoteca. O devedor é a sociedade G..., que foi quem beneficiou do crédito concedido pela Banco 1..., S.A (Banco 1..., S.A, agora substituída pela Exequente E...). Esse simples facto estabelece limites ao crédito exequendo.
A Executada/Embargante não é responsável pela totalidade do valor ainda em dívida pela G... à Banco 1..., S.A/E... ─ que no requerimento executivo consta como sendo de €3.410.332,97 (três milhões quatrocentos e dez mil trezentos e trinta e dois euros e noventa e sete cêntimos).
A responsabilidade da Executada reside na exata medida do valor da sua fração autónoma, de que se vê compelida a abrir mão por força da hipoteca que a onera (art.º 686º nº 1 do CC). O que significa que, na prática, depois de vendida a fração autónoma “AF”, o valor obtido com a venda é entregue à Exequente, extinguindo-se a responsabilidade da Executada e a execução contra ela, pois como se disse, ela não é devedora nem da Banco 1..., S.A, nem da atual detentora dos créditos. [5]
Acresce que resulta do requerimento executivo que foi já efetuado o distrate relativamente a várias frações do edifício. [6]
A ser assim, há ainda que ter em conta a jurisprudência que determina que em casos como o presente - hipoteca incidente sobre terreno para construção, em que posteriormente se construiu edifício em regime de propriedade horizontal -, a garantia hipotecária será apenas a correspondente à permilagem da fração autónoma da Executada na totalidade do imóvel inicial.
«4 - O art.696º do CCivil, que estabelece a regra da indivisibilidade da hipoteca, começa exatamente pela expressão salvo convenção em contrário - é essa convenção que se verifica quando o credor aceita o distrate da hipoteca sobre uma determinada fração, normalmente contra o pagamento da parte proporcional do crédito (ainda) em dívida.
5 - Essa parte proporcional é estabelecida, na transição daquilo que era o terreno para construção para o prédio em propriedade horizontal, através da fixação das permilagens do novo prédio.
(…)
Em conclusão: por acordo com o seu devedor e/ou os titulares de algumas das frações do prédio construído no terreno hipotecado, e constituído em propriedade horizontal, o banco credor autorizou o distrate da hipoteca sobre essas mesmas frações; essa convenção ou acordo, afeta apenas e só o banco e, no que aqui importa, os titulares das frações distratadas; extingue a hipoteca na medida exata da permilagem destas, qualquer que tenha sido o montante pago pelos respetivos titulares ou pelo devedor para obter o distrate por parte do banco; a hipoteca permanece para garantia do montante correspondente à permilagem das frações não distratadas, e apenas deste, não podendo o banco pedir de todos ou de cada um dos restantes titulares mais do que esse quantitativo restante.» [7]
No caso, não pode este Tribunal fixar desde já a medida da responsabilidade da Executada, por total omissão de elementos, designadamente a falta da escritura de constituição da propriedade horizontal do edifício e a definição clara de quais as frações que já expurgaram a hipoteca e as que ainda permanecem vinculadas à garantia hipotecária.
Essa liquidação compete à Exequente, de acordo com o art.º 716º e 724º nº 1 al. h) do CPC e respeitando as regras acabadas de enunciar.
Da mesma forma que, não o tendo ela feito, incumbe ao juiz suscitar o seu aperfeiçoamento nos termos do nº 4 do art.º 726º do CPC.

Por fim, a questão dos juros. Em tese geral, e na relação credor-devedor, nada impede que na execução se possam acionar juros de mais de três anos. Porém, não se pode esquecer que neste caso em concreto, a Executada o é apenas com base na garantia “hipoteca”.
Ora, o registo da hipoteca é constitutivo (art.º 687º do CC) e a hipoteca nunca pode abranger mais do que 3 anos de juros, sejam eles remuneratórios ou moratórios, já que a lei não distingue: art.º 693º nº 2 do CC.
Daqui decorre que, face à Executada, estão excluídos da garantia juros com mais do que 3 anos.
Decorre claramente do requerimento executivo [8] estarem a ser acionados juros em montante superior ao legalmente assegurado pela hipoteca.
«II - No caso, os terceiros/executados por força do direito de sequela da garantia hipotecária constituída sobre o imóvel de que são proprietários, e pela legitimidade que lhe é conferida pelo disposto no art.º 54º, nº2 do CPC, tornam-se garantes da dívida dos mutuários, mas apenas até ao limite do valor da hipoteca constituída.
III - A falta de interpelação prévia dos mesmos executados para pôr termo à mora, por forma a evitar o vencimento antecipado das prestações ou para evitar o incumprimento definitivo que dá lugar à resolução do contrato, só permite exigir aos referidos executados o valor das prestações vencidas e dos juros contados até à entrada em juízo do requerimento executivo.
IV - Os executados, titulares do bem hipotecado, não são devedores originários, pelo que, nos termos do nº2 do art.º 693º do Código Civil, os juros de mais de três anos não podem ser objeto da execução ou sendo-o estão excluídos da garantia hipotecária, sendo créditos comuns sobre os devedores originários.
V - A referida norma do art.º 693º, nº2 do CC é uma norma de ordem e interesse público, revestindo, assim, carácter imperativo, podendo por isso ser invocada por qualquer legítimo interessado e devendo ser oficiosamente aplicada pelo tribunal.» [9]

6. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO
7. Pelo que fica exposto, no provimento do recurso, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto:
7.1. Em ordenar se proceda em 1ª instância à retificação da parte decisória da sentença recorrida, por forma a que, onde consta «(…) determinando a manutenção da penhora que incide sobre a fração “F” e o prosseguimento da execução (…)», passe a constar «(…) determinando a manutenção da penhora que incide sobre a fração “AF” e o prosseguimento da execução (…)».
7.2. Em revogar a decisão recorrida e, em sua substituição, determinar se profira despacho de aperfeiçoamento convidando a Exequente a proceder à liquidação da quantia exequenda, respeitando a permilagem da fração da Executada na totalidade do imóvel, bem como os juros, que não podem exceder três anos.

Custas do recurso a cargo da Recorrida, por nele ter decaído.

Porto, 30 de junho de 2022
Isabel Silva
João Venade
Paulo Duarte Teixeira
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[1] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol. II, reimpressão da 7ª edição, 2001, pág. 556.
[2] Disponível em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
[3] In “Código Civil Anotado”, vol. I, 3ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, anotação ao artigo 730º, pág. 720.
[4] Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil”, 6ª edição atualizada, Almedina, pág. 139.
[5] Isto, naturalmente, se se chegar a essa fase, por inexistência de algum acordo entre Exequente e Executada, face ao que aqui se diz quanto aos montantes garantidos pela hipoteca.
[6] Alegou-se no requerimento executivo: Nos termos da reclamação de créditos apresentada pela Banco 1..., S.A., no processo de insolvência da mutuária G..., Lda., aquando da apresentação da mesma, a hipoteca apenas abrangia as frações ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., uma vez que relativamente às restantes frações, foram expurgadas as hipotecas no decurso da vigência do contrato.
[7] Acórdão do STJ, de 12/02/2004 (processo nº 03B2831).
No mesmo sentido, o já referido acórdão de 11/03/2021 (processo nº 2889/15.0T8OVR-A.P1.S1) e os demais nele citados.
[8] Onde se alegou: “a) Capital em dívida: €1.859.718,48 (um milhão oitocentos e cinquenta e nove mil setecentos e dezoito euros e quarenta e oito cêntimos);
Juros de mora: €1.550.614,49 (um milhão quinhentos e cinquenta mil seiscentos e catorze euros e quarenta e nove cêntimos).
Ao valor supra mencionado acrescerão juros de mora, á taxa de 4%, sobre o valor de capital e até efetivo e integral pagamento.”
[9] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (TRP), de 08/09/2020 (processo nº 423/15.0T8LOU-B.P1).