CASO JULGADO
Sumário

I - O caso julgado só pode relevar como autoridade de caso julgado noutro processo, quando a decisão constituir caso julgado material, o que afasta as decisões proferidas nas providências cautelares e as decisões que recaiam unicamente sobre a relação processual.
II - O caso julgado e, correspondentemente, a autoridade do caso julgado, podem atingir terceiros.
II - Na autoridade de caso julgado não se exige a  absoluta identidade das partes na acção prejudicial e na acção dependente. O que importa é que aquela acção tenha decorrido entre todos os interessados directos, quer se situem do lado activo quer do lado passivo, podendo concluir-se que esgotou os sujeitos com legitimidade  para discutir a tutela judicial  da situação jurídica implicada no objecto prejudicial, pois, assim sucedendo, o que aí ficou definido entre os legítimos contraditores deve ser aceite por qualquer terceiro, falando-se a este respeito de eficácia reflexa do caso julgado.

Texto Integral



Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

  I - Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, Fundação do Divino Coração de Jesus e, AA e BB,

  interpuseram acção declarativa de condenação, em  9/7/2009, contra,  

o Seminário Pio XII, a Diocese de ..., representada pelo respetivo Bispo,    CC, que igualmente se demanda individualmente, e DD,

pedindo que seja declarada nula e de nenhum efeito a confissão nos P. 635/07.0TBPDL do 2º Juízo de ..., revogando o despacho de homologação e determinando-se que o processo siga os seus termos, anulando-se todos os actos subsequentes que pressupõem ou têm como fundamento a referida «confissão», e condenando-se os RR., solidariamente, nas custas dos actos a que deram causa e nas despesas suportadas pelas AA., a liquidar rem execução de sentença.

   Alegam, em síntese, que o 3.º R. (Bispo de ...) emitiu dois decretos, designando o 4.º R. (DD) como comissário adjunto, invocando, como norma habilitante, o cânone 318, que é exclusivamente aplicável a associações públicas e a bens eclesiásticos, sendo que, com base nos mesmos, foi emitida credencial utilizada pelo 4.º R., para, em representação da A. Pia União, confessar a ação ordinária 635/07.0TBPDL (à qual se encontra apensa a presente). Mais alega que a Pia União é uma associação privada de fiéis, pelo que tem autonomia na administração dos seus bens. Conclui ser nula a nomeação do 4.º R. como comissário adjunto e, bem assim, a confissão efetuada por este 4.º R., em nome da A. Pia União, no processo supra referido.

  Os RR. contestaram, invocando diversas exceções (incompetência material, entendendo competir a competência internacional e material aos Tribunais Eclesiásticos, nulidade da petição inicial, caso julgado, litispendência ou causa prejudicial, ilegitimidade da 2ª e 3º AA ,  ilegitimidade dos 3º e 4º RR ), excepções essas, já apreciadas e decididas no Acórdão da Relação de Lisboa de 12/07/2012, como adiante melhor se verá. Impugnaram, após, a matéria constante da petição inicial, designadamente a respeitante à classificação da A. Pia União como uma associação privada de fieis, defendendo que a mesma é uma associação pública de fieis, erecta canonicamente por recomendação do Bispo de A..., com a indicação de que passaria a ser de direito diocesano, ou seja, dependente do Ordinário do Lugar, no caso o Bispo de ..., pelo que não pode deixar de se considerar válido o Decreto emitido pelo Bispo de ... que nomeou comissário o 4.º R. e, bem assim, válida a confissão do pedido por este efetuado no processo supra referido, concluindo pela improcedência da acção e absolvição do pedido.

Juntaram cópia do Acórdão da Relação de Coimbra proferido em 29/9/2009, no Proc 2153/06.5 TBCBR.C1, Agravo – cfr 152 - em que foi confirmado o despacho proferido na 1ª instância julgando válido o decreto do Prelado Diocesano D. CC, Bispo de ..., mediante o qual conferiu poderes a DD para revogar a procuração conferida pela Pia União  ao Sr Dr EE, tendo, nos termos e para os efeitos do disposto no art 39º/1 CPC, considerado revogado o mandato conferido a este advogado, com efeitos desde a data em que o mesmo foi notificado dessa revogação, fazendo-o no pressuposto de que a Pia União constitui uma associação pública de fieis.

As AA. responderam às exepções.

Em 15/3/2011 foi proferido despacho no sentido das partes se pronuncirem sobre a existência de inutilidade superveniente da lide, em face do que «ficou decidido em todas as instâncias no processo principal».

Ao que os AA. se opuseram, entendendo que a acção devia prosseguir, ao contrário do que o entenderam os RR.

Foram juntas por determinação da Exma Juiza certidões proferidas, nas três instâncias, no processo principal 635/07.0TBPDL, fls  464 e ss.

Teve lugar audiência preliminar em que se gorou a conciliação das partes.

Foi então proferida sentença, em 3/1/2012, que julgou a instância extinta por impossibilidade superveniente da lide.

Interpuseram as AA. dela recurso,  tendo as RR. apresentado contra alegações em que procederam à ampliação do objecto do recurso, requerendo a apreciação das excepções com que se defenderam na contestação.

A apelação foi julgada procedente e improcedente a ampliação do recurso, por acordão da Relação de Lisboa,  proferido em  12/7/2012 -  cfr fls  666 e ss.

Teve lugar nova audiência preliminar, na qual, entre o mais, foi proferido despacho  em que se convidaram as AA. a concretizar os factos de que retiram a conclusão, de natureza jurídica, de que se trata de uma associação privada de fieis, o que as AA. fizeram por requerimento de  fls 723 vº.

As  AA. juntaram aos autos, por certidão de fls 733 e ss, requerimento de recurso e respectivas alegações, proferidas na providência cautelar cortrespondente ao Proc 27/09.7TBHRT.L1, em face do acórdão aí proferido em 16/2/2012, requerendo  revista excepcional - por entenderem  ter o mesmo decidido, em contradição com o que foi decidido no Ac STJ de 22/2/2011, proferido no Proc 332/09.2TBPDL, igualmente providência cautelar, relativamente a duas questões decisivas para determinar o sentido do julgado, a natureza jurídica da Pia União, associação privada de fiéis ou associação pública  e a competência dos tribunais do Estado para apreciarem e decidirem sobre a validade de actos da hierarquia da Igreja Catolica.

Por despacho de 11/4/2013 o Tribunal da 1ª instância suspendeu a instância nos presentes autos até que se mostrasse transitada em julgado a decisão a proferir na referida revista excepcional.

O STJ  acordou em 16/2/2012 em determinar a remessa dos autos à distribuição normal.

A fls 768 mostra-se junto Acórdão do  STJ, proferido no âmbito dos referidos autos de providência cautelar, que revogou o acórdão recorrido, declarando a incompetência internacional e em razão da matéria dos tribunais judiciais portugueses para o conhecimento do pedido, fazendo-o no pressuposto de que a Pia União constitui uma associação pública de fiéis. 

Convidadas as partes a pronunciarem-se sobre a verificação das excepções da incompetência internacional e em razão da matéria, face ao decidido no aludido acordão do STJ, as RR., a fls 781, pronunciaram-se  no sentido de dever ser tido em consideração o ali decidido no âmbito de outros processos em que a mesma questão de direito seja levantada, irrelevando do seu ponto de vista a não coincidência entre as partes . Já as AA. lembraram que a questão da competência dos Tribunais portugueses para julgarem esta acção  esta já decidida na mesma pelo Ac R L de 12/7/2021 proferida em 2/9/2013, atrás referido.

Depois de juntas aos autos peças dos Proc  692/11.5TBVNO do 2º Juízo do Tribunal Judicial ... e do Proc  915/09.0TBCBR.C1.S1, foi junta, a fls  921, cópia do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no acima referido Proc 2153/06.5TBCBR-C.C1, em que se confirmou a  sentença de 1ª instância que julgou incompetentes internacionalmente e em razão da matéria os tribunais portugueses.

 

Foi proferido saneador sentença, nos presentes autos, em 7/7/2015 – fls 934 e ss -  tendo sido julgada procedente a acção, declarando-se a nulidade da confissão do pedido efectuada pelo R. DD no Proc 635/07.0BPDL de que a presente acção constitui apenso.

Do decidido, foi interposta apelação pelos RR., vindo o Tribunal da Relação de Lisboa,  por acórdão proferido em  19/12/ 2017  - cfr fls  1043 - declarar nula a sentença recorrida e ordenar o prosseguimento dos autos, tendo em vista a realização da audiência de discussão e julgamento.

Fixado valor à acção - € 822.400,00 - foi declarado incompetente, em razão do valor, o Juízo Local Cível ...,  sendo determinada a remessa dos presentes autos para os Juízos Centrais de ..., que, por sua vez, se julgaram incompetentes  em razão do território, tendo sido considerado competente o Juízo Central Cível ....

Teve aí lugar audiência prévia, nela tendo sido definido o objecto do litigio e fixados os temas de prova, constituindo  objecto do litigio  a apreciação da validade da designação pelo Bispo da Diocese de ... do representante da R. que transacionou no processo principal e, tema de prova, a definição da natureza pública ou privada da mesma instituição.

 

Foi junta aos autos cópia do acórdão da Relação de Coimbra de 16/10/2018, proferido no Proc 4680/08.0TBLRA.C2,  no qual se decidiu pela validade do decreto de 15/7/2008  do Bispo ...  e pela natureza pública da Pia União, confirmando a decisão da 1ª instância.

Deste acordão foi interposto recurso para o STJ, no qual o Exmo Relator não conheceu do recurso de revista normal e determinou a remessa dos autos à Formação de Juízes para verificação dos pressupostos de admissibilidade da revista excepcional, tendo os AA., inconformados com tal despacho, apresentado reclamação para a Conferência.

Tendo sido designado dia nos presentes autos para a audiência de julgamento, nela,  o R. Seminario Pio XII, entendendo que o pedido formulado nessa acção  4680/08.0TBLRA.C2 é exactamente igual ao da presente, suscitou a questão da litispendência,  do caso julgado ou da prejudicialidade, pelo que requereu a suspensão da instância até ao trânsito em julgado da referida acção.

Apesar da oposição dos AA., foi proferido despacho deferindo o requerido  - a suspensão da instância até que se mostre definitivamente apreciada a reclamação apresentada pela não admissão de recurso ordinário e a decisão sobre a admissão ou não do recurso extraordinário.

 

Foi junto aos autos a fls 1194 e ss acórdão do STJ de 5/12/2019 proferido nos autos 208/11.3TBHRT.L1.S1  e  Despacho do Senhor Presidente do STJ de 23/1/2020.

E a fls 1241 e ss, acórdão do STJ de 8/10/2020,  nos autos  4680/08.0TBLRA.C2.S, que revogou o acórdão recorrido, declarando procedente o primeiro pedido formulado na acção – a declaração de nulidade do Decreto Bispal  de 15/7/2008, bem como dos actos praticados ao abrigo e na sequência desse Decreto  para os efeitos civis comptentes, sendo os restantes pedidos julgados improcedentes.

Cessada a suspensão da instância com a junção deste acórdão, teve lugar, em 27/4/2021, audiência de julgamento, finda qual, veio a ser proferida sentença que julgou procedente a ação e declarou nula e de nenhum efeito a confissão nos P. 635/07.0TBPDL, do 2º Juízo, revogando o despacho de homologação e determinando que o processo siga os seus termos, anulando todos os atos subsequentes que pressupõem ou têm como fundamento a referida confissão.

  II – Do assim decidido, apelaram os RR., que concluíram as respectivas alegações do seguinte modo:

  1º Entendem os ora recorrentes que da prova produzida nos presentes autos, vista no seu conjunto e nomeadamente do depoimento das testemunhas Padre FF, GG, Padre HH, e Padre II, resultou demonstrada mais factos provados que deveria ter sido dada como provada e que se enquadram no único tema de prova, que relevam e são essenciais para esse tema de prova, os quais, por erro na apreciação da prova gravada o M.mo Juiz a quo desconsiderou.

  2º Em concreto, os meios probatórios que se evocam como fundamento no erro notório na apreciação da prova e do incorreto julgamento da matéria de fato (mais concretamente os fatos não considerados na douta decisão recorrida), cuja reapreciação se requer constam nos depoimentos gravados e acima transcritos das testemunhas: Padre FF que ficou egistado no sistema digital de gravação integrado H@bilus Média Studio N.º 20210506102648_3852711_2870939, dia 06-05-2021 com início às 10:26:50 horas e fim às 11:19:10 horas [00:00:00 a 00:52:21]; JJ Advogados GG que ficou registado no sistema digital de gravação integrado H@bilus Média Studio N.º 20210506144424_3852711_2870939, dia 06-05- 2021 com início às 14:44:26 horas e fim às 15:28:44 horas [00:00:00 a 00:44:18]; Padre HH que ficou registado no sistema digital de gravação integrado H@bilus Média Studio N.º 20210506154448_3852711_2870939, dia 06-05-2021 com início às 15:44:52 horas e fim às 15:55:28 horas [00:00:00 a 00:10:36]; e Padre II que ficou registado no sistema digital de gravação integrado H@bilus Média Studio N.º 20210506155631_3852711_2870939, dia 06-05-2021 com início às 15:56:34 horas e fim às 16:39:09 horas [00:00:00 a 00:42:36].

  3º Em face dos depoimentos supra e após a reapreciação da prova gravada por V. Exmas. Venerandos Desembargadores, que para o efeito se requer, deverá ser alterada a decisão sobre a matéria de fato e, nos termos do disposto no art. 662º nº 1 do CPC, serem julgados como provados os seguintes factos:

  1º O decreto formal de ereção da Pia União foi precedido de contactos formais por parte do Bispo de A... e bem assim por parte do seu Fundador Padre KK, constando de troca de correspondência enviada ao Bispo de ... no sentido de que o propósito e os fins a prosseguir por parte das irmãs era de trabalho apostólico, nas paróquias e em várias outras actividades assistenciais em cooperação com a outra instituição religiosa em que o Fundador se integrava.

   2º A intenção das senhoras que pretendiam integrar a Pia União era a formação de uma congregação religiosa, vivendo ao serviço da igreja em comunidade religiosa, com despojo da vida material e entrega ao serviço religioso de oração e de assistência aos pobres.

  3º As senhoras que passaram a integrar a Pia União viveram sempre em comunidade religiosa, denominavam-se como irmãs e passavam a ter um nome religioso.

  4º A actividade das irmãs da Pia União, nomeadamente na angariação de fundos junto de paróquias nos Estados Unidos da América e nas práticas religiosas junto das paróquias com quem colaboravam, foi sempre feita ao abrigo das orientações e por recomendação do Bispo de ... que confirmava junto dessas outras instituições da Igreja que as irmãs actuavam no âmbito daquela Igreja Diocesana.

  5º O serviço de evangelização das irmãs da Pia União era feita no dia a dia, tanto numa dimensão espiritual de oração, de estilo de vida e de colaboração com as paróquias e com outros Institutos Religiosos, como numa dimensão caritativa e de acção junto dos pobres.

  6º A Pia União tinha Capelas próprias que eram abertas ao público para celebração da Eucaristia e para a prática de outro culto religioso.

  7º Todas as eleições das Superioras da Pia União eram e foram sempre presididas por representante do Bispo de ... e após essa eleição a Superiora marcava audiência com o Bispo para presencialmente fazer juramento de fidelidade e para ser por ele confirmada a eleição.

  8º Designadamente, em 19-12-1959, sob a presidência do Monsenhor LL, em representação de Dom MM, então Bispo da Diocese de ... procedeu-se à eleição da Superiora das Irmãs do Divino Coração de Jesus, e foi eleita a irmã NN.

  9º Na acta lavrada em 22-06-1990 da reunião das Irmãs Escravas do Divino Coração de Jesus para procederem à eleição da superiora, consta, designadamente, que: “A fundadora da Pia União, Irmã NN, superiora da comunidade por eleição unânime de mandatos sucessivos (…) partiu para a eternidade a 27 de Abril (…)”.

  10º Presidiu ao acto da eleição o Padre OO, tendo sido eleita a Irmã PP.

  11º Em 04-07-1990 o Bispo de ... confirmou a eleição da Irmã PP para o cargo de Superiora.

  12º Todas as alienações de bens da Pia União, eram e foram precedidas de autorização para o efeito, que era pedida pela respectiva superiora ao Bispo de ..., o qual depois emitia credencial autorizando a prática desse acto a fim de possibilitar a outorga das respectivas Escrituras Públicas.

  13º Com data de 12-02-1992, Pe. QQ, Vigário Geral para a Diocese de ..., na sequência do solicitado pela superiora da “Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus”, visando obter isenção do pagamento da Contribuição Autárquica para um prédio sito em ..., emitiu a Declaração na qual fez constar que a Pia União é um instituto religioso da Igreja Católica, que goza de personalidade jurídica no foro canónico e civil, tendo como finalidade o serviço da Igreja em ordem ao culto, estando abrangido pelo estabelecido na alínea c) do artigo 50º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado pelo Dec.Lei 215/89, de 01-07.

   4º A apreciação da natureza pública ou privada da Autora Pia União, à luz do Direito Canónico, é um pressuposto implícito do que verdadeiramente releva para o objecto do processo e para o pedido principal nos autos.

  5º Assim, e a ser como se espera, alterada a decisão de fato através da reapreciação da prova gravada de modo a dar como provados os fatos acima enunciados, é por demais evidente que, deverá ser reconhecido que a Autora Pia União se revesta da natureza de Associação Pública de Fiéis e, em consequência, ser revogada a douta decisão recorrida que julgou a ação procedente.

  6º  O Meritíssimo Senhor Juíz a quo, na douta sentença ora recorrida, reconheceu autoridade de caso julgado ao douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08 de Outubro de 2020, proferido no Processo n.º 4680/08.0TBLRA, onde foi decidida a declaração de nulidade do Decreto Bispal de 15 de Julho de 2008, bem como dos actos praticados ao abrigo e na sequência desse decreto, para os efeitos civis competentes.

  7º Esse douto Acórdão teve como pressuposto a declaração de que a aqui Autora Pia União se reveste da natureza de Associação Privada de Fiéis à luz do Direito Canónico e, como tal, não estava sujeita à autoridade e direção da Diocese de ....

  8º Salvo o devido respeito os recorrentes mantêm o entendimento de que não poderá ser reconhecida autoridade de caso julgado, com relevância para os presentes autos, àquele Acórdão do STJ.

  9º Com efeito – tendo presente que o que esteve subjacente ao decidido no sobredito Acórdão do STJ foi a natureza pública ou privada da Pia União – a questão da natureza dessa Associação ficou definitivamente arrumada no Acórdão do STJ de 0I.03.2016 (processo nº 2153/06.5TBCBR-C.CI.SI - relator Fonseca Ramos, disponível e www.dgsi.pt) onde a respectiva natureza foi apreciada pela primeira vez numa ação de carácter não cautelar, tendo-se aí consagrado que a Pia União não é Associação Privada de Fiéis, mas Associação Pública de Fiéis.

  10º A decisão da natureza desta Associação nessa primeira ação, constitui autoridade de caso julgado quando volta a inserir-se no objecto das ações posteriores, ainda que não sejam totalmente as mesmas partes ou pedidos e deve ser acatada por se impor a autoridade de caso julgado, por ser uma questão concreta, que se entende ter alcançado já resposta definitiva.

  11º Se é certo que a sentença só constitui caso julgado nos precisos termos e limites em que julga, entendem os Recorrentes que quando abrange a análise de uma questão subjacente e concreta, esta fica definitivamente assente quando é definitivamente julgada na primeira ação onde se coloca.

   12º Por outro lado e se também é certo que a eficácia do caso julgado material incide nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença, essa eficácia estende-se à decisão das questões preliminares que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva do julgado, como é o caso da natureza da Pia União como Associação Pública ou Privada de Fiéis.

  13º Sem prescindir, acresce que, ao contrário do que era esperado em face da contradição de julgados em diversos outros Acórdãos dos Tribunais da Relação de Coimbra e de Évora e também do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) relativamente à mesma matéria, o Acórdão do STJ proferido no Processo 4680/08.0TBLRA, já junto aos autos, não foi proferido e não se constitui como Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, pelo que não vincula o julgador dos presentes autos.

  14º Não relevando também para os presentes autos em virtude de o aqui Réu Seminário Pio XII não ter sido parte naquele Processo em que foi proferido o Acórdão do STJ ora em causa.

  15º Deverá, pelo exposto, revogar-se a douta decisão recorrida, decidindo-se que o douto Acórdão do STJ de 08/10/2020, proferido no Processo n.º 4680/08.0TBLRA, não tem autoridade de caso julgado com relevância para os presentes autos, reconhecendo-se antes autoridade de caso julgado ao douto Acórdão do STJ de 0I.03.2016 proferido no Processo nº 2153/06.5TBCBR-C.CI.SI, declarando-se que a Pia União se revesta da natureza de Associação Pública de Fiéis e julgando-se a acção improcedente. Ainda sem prescindir,

  16º Na medida em que, é à luz do Código de Direito Canónico que se determina a capacidade e poder de quem praticou o ato de confissão em causa nos autos e sua consequente validade, a pedra de toque da decisão a proferir no presente recurso, está – no essencial – na questão da natureza canónico-jurídica da Pia União, como sendo uma Associação Pública ou Privada de Fiéis.

  17º Sobre essa questão, haverá que reconhecer que, tendo essa matéria sido decretada pela autoridade eclesiástica competente, a Pia União reveste-se da natureza de Associação Pública de Fiéis.

  18º E que a sua tutela, a Diocese de ..., sempre considerou e sempre se relacionou com a mesma e com as suas Superioras, como se tratando de uma Associação Pública de Fieis, exercendo sobre a mesma a sua autoridade.

  19º Com efeito, a Pia União foi erecta canonicamente por Decreto de 02/03/1959 emitido pelo Bispo de ... Dom MM, tendo sido posteriormente feita comunicação de participação de erecção ao Governador Civil ... e registada na Secretaria do Governo Civil ... sob o nº 181 em 06/03/1959 (vide Decreto de Ereção já junto aos autos).

  20º A sua natureza pública e os fins religiosos que prossegue são bem ilustrados desde o início pelo pedido de erecção e reconhecimento da Pia União, em que o Bispo titular de então da Diocese de A..., enviou uma recomendação ao Bispo de ..., em 31/08/1957, em que expressamente refere: “… que se trata de pessoas sérias e que desejam realmente entregar-se ao serviço de Deus e das almas …”

  21º As circunstâncias de a Pia União ter sido erecta canonicamente e de prosseguir fins religiosos, proclamados nos seus Estatutos e vividos pelas irmãs que faziam e fazem parte dessa comunidade religiosa, em obediência aos princípios evangélicos de castidade, pobreza e obediência à Igreja, são elementos caracterizadores da Pia União como Associação Pública de Fiéis.

  22º A Pia União sempre foi sujeita ao governo e autoridade eclesiástica do ordinário do lugar (Bispo de ...) que era quanto a ela exercido ora directamente pelo Bispo, ora indirectamente pelo capelão ou assistente por ele nomeado

  23º O CIC 1917, cân. 506 nº 4, é explícito quanto à eleição dos membros representativos da Pia União, que deve ser presidida pelo Ordinário do Lugar ou em alternativa nomear um representante, devendo essa eleição ser confirmada, devendo o representante eleito apresentar-se a juramento, que foi sempre o que aconteceu no seio da Pia União, além de que sempre submeteu-se à jurisdição canónica quer no aspecto religioso, quer ainda no tocante aos aspectos temporais, conforme alegado em sede de réplica.

  24º Indo um pouco mais além e apreciando o outro critério distintivo das Associações Públicas ou Privadas de Fieis – o dos fins que prossegue – há desde logo que atentar nos próprios Estatutos da Pia União.

  25º Com efeito e como decorre dos seus Estatutos (art.º 1º) as “«Escravas do Divino Coração de Jesus» é o nome de família das Senhoras que, por sua livre vontade, quiseram viver em comunidade e dar-se totalmente a Nosso Senhor Jesus Cristo, na pessoa dos pobres, em todas as obras de Caridade.”

  26º A Pia União é assim uma comunidade religiosa, cujo fim “é, em primeiro lugar, a santificação individual pelo cumprimento dos Preceitos e Conselhos Evangélicos e Normas da Igreja; e em segundo lugar, a evangelização dos pobres pelo exemplo e prática das Obras de Misericórdia.”

  27º Também como proclamado nesses Estatutos, a Pia União é (art.º 3º) “consagrada aos Sagrados Corações de Jesus e Maria e propõe-se desagraváLos pela oração, penitência e caridade.”

  28º Foi no reconhecimento desses fins religiosos e da sua “grande utilidade para as almas” que, em 02/03/1959, o Bispo de ... decretou a erecção da Pia União, esperando “confiadamente que o Sagrado Coração de Jesus e o Coração Imaculado de Maria, cujas intenções de Misericórdia as Escravas prometem fazer suas, tomem sob a Sua protecção e amparo esta Pia União e a façam crescer e desenvolver-se no espírito da Mensagem de ....”

   29º Ainda a este respeito, note-se que as Irmãs que faziam parte da Pia União, tinham e têm Capela nas suas casas, para o exercício do culto religioso, da oração, penitência e celebração eucarística, bem como e essencialmente mantinham nessas capelas o Santíssimo Sacramento.

  30º Tendo sido essa actividade religiosa proclamada e depois vivenciada pelas Irmãs «Escravas» ao longo dos tempos, sempre na submissão e prossecução dos fins da Igreja, está encontrado o elemento distintivo dos fins religiosos que caracteriza a Pia União como associação pública de fiéis.

  31º Aliás, até mesmo a “prática das Obras de Misericórdia” que seria o meio de, nos termos dos seus Estatutos, a Pia União atingir a finalidade da “evangelização dos pobres” é algo que está indissociavelmente ligado aos fins prosseguidos pela Igreja no sentido mais amplo, pois inscreve-se na matriz que é a essência da Doutrina Social da Igreja;

  32º Mas para além disso e agora no que toca a um outro elemento distintivo que é o da autonomia, também releva a vivência das Irmãs que integravam e integram a Associação, bem como o modo como sempre se consideraram e como se relacionaram com a Autoridade Eclesiásticas no reconhecimento da autoridade e direcção do Bispo de ... e no cumprimento das normas de Direito Canónico aplicáveis às Associações Públicas de Fieis.

   33º Tendo ao longo de toda a sua vida cumprido na íntegra todos os trâmites canónicos previstos para as Associações Públicas de Fieis, com vista à JJ Advogados regularidade de eleição dos seus membros representativos, com excepção da última eleição.

  34º Cumprindo as regras canónicas, a eleição dos membros representativos das associações públicas de fieis, deverão ser presididas por um assistente espiritual ou capelão, nomeado pelo Bispo que tutela o instituto religioso, devendo essa eleição ser depois confirmada por essa Autoridade Eclesiástica, após juramento, no caso o Bispo de ....

  35º A última eleição da irmã PP (a Autora RR) como superiora da Pia União que foi confirmada pelo Bispo de ..., ocorreu em 11 de Junho de 2005.

  36º Sendo que o acto eleitoral da Irmã PP como Superiora da Pia União, com data de 25 de Maio de 2008, em que intitulou-se associação privada de fiéis, não foi presidido por Assistente Espiritual.

  37º Sendo certo que, essa eleição também não foi confirmada pela Autoridade Eclesiástica competente, ou seja pelo Bispo de ..., pelo que, o mandato da Irmã PP como Superiora da Pia União, caducou em 11 de Junho de 2008 e, como já dito a mencionada eleição é nula. Acresce que, conforme os documentos dos autos,

  38º A Irmã PP na qualidade de representante da Pia União. no exercício das suas funções, solicitou em 1991 junto do Ordinário do Lugar – o Sr Bispo de ...- JJ Advogados ... – a emissão de documento que reconhecesse que a sua representada como instituição religiosa de utilidade pública, com vista a obter isenção fiscal.

  39º Ora, nos termos do artigo 8º da Concordata de 1940 então em vigor, a mencionada isenção fiscal só poderia ser concedida relativamente a bens e entidades eclesiásticos.

  40º Quanto à questão da génese, o que releva não é que a Associação tenha partido da iniciativa dos Fieis, pois a sua própria natureza de Associação leva a que sejam os próprios Fieis quem tenham a iniciativa de criar a Associação, não se vislumbrando como é que a Autoridade Eclesiástica decretaria a criação de uma Associação de Fieis sem que estes se propusessem associar-se.

  41º O critério distintivo entre associação pública e privada de fiéis, assenta e deverá atender por isso às circunstâncias concretas pelas quais foram constituídas associações de fiéis.

  42º Uma coisa será os fiéis constituírem-se como associação e a mesma vir a ser posteriormente reconhecida no âmbito da Igreja e outra coisa será os fiéis manifestarem à autoridade eclesiástica a sua intenção de se constituírem como associação de fiéis e de pedirem a sua criação por decreto que a erija.

  43º Quanto a isso, aquilo que o Cân 301 do CDC, dispõe no seu § 3 é que as associações de fiéis que sejam erectas pela competente autoridade eclesiástica se designam como associações públicas.

  44º E é ainda quanto a este critério distintivo que releva a circunstância de, conforme alegado supra, o fundador da Pia União ter sido um religioso (Padre) e não as associadas por si próprias.

  45º É que, pretendendo as mesmas associarem-se, não o fizeram por convénio privado, tendo antes apresentado essa sua pretensão à autoridade eclesiástica; e para isso foi necessária a intervenção de um religioso que veio a pedir à autoridade eclesiástica a erecção da dita associação de fiéis; daí que o mesmo tenha sido considerado como fundador, assumindo as funções de capelão.

  46º Tendo sido expresso como motivo da fundação, “Colaborar pelo seu humilde Ministério na renovação da face da terra em união com a Santa Igreja”.

  47º E foi por a autoridade eclesiástica reconhecer que os fins a prosseguir pelas fiéis que se pretendiam associar eram os mesmos prosseguidos pela Igreja Católica, que veio a mesma a erigi-las por decreto bispal como associação de fiéis.

  48º A este respeito, importará referir também que a existência na Ordem Jurídica Canónica – e por força da referida Concordata também na ordem jurídica portuguesa – de Associações de Fieis com natureza Privada é uma novidade introduzida no actual Código de Direito Canónico de 1983, pois no âmbito do anterior todas as Associações de Fieis tinham natureza pública e estavam sujeitas ao respectivo regime.

  49º Não tendo o atual CDC aplicação retroativa, a novidade da introdução da figura de associações privadas de fiéis com o regime de autonomia que lhes é caraterístico é insuscetível de aplicação às pessoas jurídicas canónicas existentes à data da sua entrada em vigor cujo regime de sujeição à autoridade eclesiástica era em tudo idêntico ao regime que no novo CDC veio a ser estabelecido (quase repetido) para as associações públicas.

  50º Ainda que ao caso se pretendesse aplicar a diferenciação de regimes (Associações Públicas ou Privadas) no âmbito do actual Código de Direito Canónico, sempre se teria de reconhecer que, tendo sido erecta canonicamente pela Autoridade Eclesiástica e não erigida pelos Fieis com aprovação posterior, a Pia União é, e deverá ser, considerada na ordem jurídica canónica como uma Associação Pública de Fieis e jamais como uma Associação Privada de Fieis.

  51º Consequentemente, por a Pia União estar sujeita à autoridade e direcção da Autoridade Eclesiástica, jamais se poderá deixar de considerar como válidos os Decretos emitidos pelo Bispo de ..., que nomeou comissário (moderador na expressão do CDC) e cuja validade foi colocada em causa na presente ação.

  52º Acresce que nos negócios jurídicos que a Pia União formalizou até à data da intervenção eclesiástica ora colocada em causa, a recorrida RR (em religião Irmã PP) sempre se fez acompanhar por credencial com poderes específicos para os actos, conforme se alcança dos pedidos de emissão de credencial para a prática desses actos específicos, apresentados à Diocese de ..., bem como das credenciais emitidas, em clara afirmação da obediência e dependência legal da Diocese de ... e JJ Advogados no reconhecimento da natureza publica da Pia União e que agora a Irmã PP diz ser privada.

  53º Enquanto Associação Pública de Fieis, a Pia União está sujeita à vigilância e à autoridade do Bispo de ..., que, em circunstâncias especiais, poderá intervir na sua vida e organização interna, designando – como fez – comissário que em seu nome dirija temporariamente a Associação (Cfr. Cânones 305, 318 e 1276 do Código de Direito Canónico).

  54º Mesmo que se quisesse discutir os fundamentos para a intervenção do Bispo de ... na vida e organização interna da Pia União designando – como fez – comissário que em seu nome dirija temporariamente a Associação, do ora exposto nas alegações supra resulta claro que essa intervenção não só foi legítima como é fundamentada e necessária.

  55º Fica assim demonstrado substancialmente que a Pia União se reveste da natureza de Associação Pública de Fieis, e que, por isso, a douta sentença recorrida, ao considera-la como Associação Privada de Fieis – ainda que por via da atribuição de autoridade de caso julgado ao douto Acórdão do STJ de 08/10/2020 (proferido no Processo n.º 4680/08.0TBLRA) - deverá ser revogada.

  56º Devendo, em consequência, ser a douta sentença recorrida substituída por douto Acórdão que reconheça a Pia União como Associação Pública de Fieis e que o seu representante que praticou o ato de confissão no P.º 635/07.0TBPDL que foi colocado em causa nos autos, tinha capacidade e poderes para esse efeito, julgando-se a ação improcedente.

  57º Ao decidir pela procedência da acção, o douto Tribunal a quo violou e fez errada interpretação do disposto no artigo 353º n.º 1 do Código Civil, nos artigos 580º e 581º do CPC e, bem assim, do disposto nos Cânones 299, 301, 305, 312 e 318 do Código de Direito Canónico, os quais deverão ser interpretados e aplicados no sentido exposto nas alegações e conclusões supra.

 

  Os AA. apresentaram contra-alegações, que concluíram nos seguintes termos:

   A. Os Recorrentes convocam os depoimentos dos padres SS e TT e da testemunha GG para sustentar que deve ser alterada a matéria de facto dada como assente pela sentença recorrida, dando como provados 13 factos que enunciam no ponto terceiro das suas conclusões.

  B. Porém, os Recorrentes limitam-se a reproduzir “a eito” os depoimentos dessas três testemunhas, para logo a seguir, também “a eito”, passarem a estabelecer como assentes os 13 factos que entendem que devem ser dados como provados. Não se estabelece qualquer relação, concretamente sustentada, entre os meios probatórios convocados e os concretos pontos de facto que os recorrentes entendem que devem ser aditados ao probatório.

  C. Ora, tal conduta não respeita o ónus previsto no art. 640.º, n.º 1, als. b) e c), do CPC, porque não se explicita porque é que os concretos meios probatórios convocados impunham uma decisão sobre os pontos da matéria de facto que se pretendem ver aditados.

  D. Pelo exposto, sem necessidade de outras considerações, a impugnação da matéria de facto deve ser rejeitada.

  E. A sentença recorrida julgou – e bem – verificada a autoridade integral do caso julgado da decisão proferida no proc. n.º 4680/08.0TBLRA, que declarou a nulidade do Decreto Bispal de 15/07/2008, bem como dos actos praticados ao abrigo e na sequência desse Decreto para os efeitos civis competentes, o que naturalmente há-de compreender a nulidade da confissão efectuada no âmbito do processo principal destes autos, que correu termos no 2.º Juízo de ..., uma vez que tal confissão foi efectuada ao abrigo do referido Decreto Bispal.

  F. Entendem os Recorrentes que não existe autoridade do caso julgado pela circunstância do R. SEMINÁRIO PIO XII não ter sido parte naquele processo.

   G. Mas não têm razão, como bem se sustenta na sentença recorrida, cujo excerto mais relevante ora se transcreve, em que os Recorridos se louvam: Assim, e quanto ao réu Seminário Pio XII, que não foi parte no processo n. 4680/08.0TBLRA, entendemos que se trata de um terceiro titular de uma relação ou posição dependente da definida entre as restantes partes no âmbito do referido processo n. 4680/08.0TBLRA. Assim, para nós, e ressalvado o devido respeito por opinião contrária, tal decisão tem, neste processo, autoridade de caso julgado, levando à procedência dos pedidos aqui formulados. Só deste modo se evita que “a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa”. Como já referimos, a autoridade de caso julgado forma-se, ainda que não ocorra identidade de partes entre as diversas ações. Ressalvado o devido respeito, é indiferente que não exista acórdão uniformizador de jurisprudência quanto à natureza da 1ª autora. Neste processo em concreto, a declaração de nulidade do referido decreto bispal, e atos que lhe seguiram tendo-o como pressuposto, é suficiente para a desnecessidade de apreciar tal questão. Nos termos do disposto no art. 353.º, n. 1, do Código Civil “A confissão só é eficaz quando feita por pessoa com capacidade e poder para dispor do direito a que o facto confessado se refira”. Ora, como temos vindo a referir, no caso em concreto, falta a capacidade e o poder para dispor do direito e, como tal, a confissão do pedido deduzido contra a aqui Autora Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus não pode subsistir. Declarada nula a confissão, por consequência, são nulos todos os atos posteriores que dependem da mesma. Verificada a autoridade integral do caso julgado da decisão proferida no processo n. 4680/08.0TBLRA que tem como consequência lógica e jurídica a procedência dos pedidos formulados, torna-se desnecessário apreciar as restantes questões.

  H. Em qualquer caso, não têm razão os Recorrentes quando insistem na validade do acto de confissão praticado ao abrigo do Decreto Bispal em causa, uma vez que partem do pressuposto erróneo no sentido de que a PIA UNIÃO teria uma natureza de associação pública de fiéis, o que não acontece.

  I. No STJ houve acórdãos com abordagens diferentes dessa matéria, mas a questão em pauta tinha sido tratada de forma incidental até que foi proferido, no processo n.º 208/11.3TBHRT.L1.S1, o acórdão de 2/12/2019 (que pode ser consultado em www.dgsi.pt), transitado em julgado em 19/12/2019, onde foi proferida uma decisão de mérito sobre a natureza jurídica da PIA UNIÃO, concluindo pela sua natureza de associação privada, numa acção em que foram partes a PIA UNIÃO e a DIOCESE ..., de onde emanou o Decreto Bispal ao abrigo do qual foi praticado o acto de confissão ora anulado.

  J. Depois disso, na acção em que a sentença recorrida funda a autoridade do caso julgado, o STJ teve oportunidade de se pronunciar mais uma vez sobre o assunto, mas desta feita pronunciando-se concretamente sobre o pedido formulado na acção relativamente à natureza jurídica da PIA UNIÃO e à nulidade dos decretos bispais, ao abrigo dos quais a Recorrente sustenta a validade da confissão ora anulada.

  K. Foi assim que foi proferido o acórdão do STJ de 8/10/2020, a que se reporta o facto n.º 14 dos factos provados, onde foi declarado que a PIA UNIÃO é uma associação privada de fiéis, sendo nulos os decretos bispais e actos subsequentes, em que se sustentou a DIOCESE ..., partindo do pressuposto erróneo de que a PIA UNIÃO se trataria de uma associação pública de fiéis, para conferir os poderes ao abrigo dos quais foi proferido o acto de confissão ora anulado.

  L. De todo o modo, se se entender voltar a discutir o tema, o que só por cautela se equaciona, a questão deve ser avaliada à luz do CDC de 1983.

   M. É o que resulta do art. 12.º, n.º 2, do CC, que rege a aplicação das leis no tempo, onde se estabelece que, dispondo a lei directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas.

  N. Ora, o CDC de 1983 quis precisamente abstrair-se do facto que deu origem às associações de fiéis, passando a qualificá-las como públicas ou privadas, em função da iniciativa da sua constituição e dos fins prosseguidos, não ressalvando nada do que constava do CDC de 1917.

  O. À luz destas regras, é claro que a natureza privada das associações decorre de dois critérios fundamentais: i) por um lado, a iniciativa da sua constituição; ii) por outro lado, os fins prosseguidos, uma vez que, de acordo com o Cân. 301, § 1, só às associações públicas cabe ensinar a doutrina cristã em nome da Igreja ou promover o culto público, ou prosseguir outros fins cuja função esteja reservada à autoridade eclesiástica.

  P. In casu, a PIA UNIÃO foi constituída por convénio privado, a partir de uma livre iniciativa das senhoras que se juntaram para esse fim, pelo que nenhuma dúvida se pode colocar quanto ao facto da PIA UNIÃO ter resultado de uma iniciativa privada (cfr. artigo 1.º dos estatutos da PIA UNIÃO).

  Q. Por outro lado, os fins prosseguidos – a santificação individual e a evangelização dos pobres pelo exemplo e a prática das obras de misericórdia (cfr. artigo 2.º dos estatutos da PIA UNIÃO) – inscrevem-se nos fins gerais previstos no Cân. 298 para todas as associações de fiéis, não se incluindo nos fins reservados às associações públicas, nos termos do Cân. 301, §1. Ademais, o artigo 55.º das Normas Gerais das Associações de Fiéis refere expressamente que a evangelização e a realização de obras de piedade e de caridade podem constituir fins das associações privadas, só lhes estando vedados a promoção do culto público e a transmissão da doutrina cristã em nome da Igreja, o que as Irmãs nunca fizeram, nem se provou que tivessem feito.

  R. Assim sendo, quer pela iniciativa da sua constituição, quer pelos fins prosseguidos, é incontornável que a PIA UNIÃO é uma associação privada de fiéis.

  S. Estabelecida a natureza privada da PIA UNIÃO, é incontroverso que os decretos bispais produzidos pela DIOCESE DE ..., que poderiam ser válidos se estivéssemos perante uma associação pública de fiéis, são nulos, o que gera a nulidade dos actos praticados ao seu abrigo, designadamente a confissão que teve lugar nos autos principais.

 

  III – O Tribunal da 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

   1. A Autora Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus foi ereta canonicamente por Decreto de 02.03.1959 do Bispo de ..., tendo sido posteriormente feita comunicação de participação de ereção ao Governador Civil ... e registada na Secretaria do Governo Civil ... sob o nº 181 em 06/03/1959.

  2. A Autora RR, em religião chamada Irmã PP, é a superiora eleita pelas associadas, reeleita em 25 de maio de 2008.

   3. Em 19 de Outubro de 2005, no cartório Notarial ..., RR, na qualidade de Superiora Geral da Autora Pia União, constituiu procurador daquela, UU, conferindo-lhe poderes para, em nome da Pia União, constituir uma fundação de natureza social, bem como para a administrar e alienar bens.

  4. No dia 22.06.2006, UU, na qualidade de procurador, em nome e representação da Pia União, outorgou a escritura pública em que instituiu uma fundação de solidariedade social com a denominação “Fundação Divino Coração de Jesus”.

  5. Por decreto emitido pela Diocese de ... datado de 15.07.2008, confirmado e ratificado por decreto de 29.07.2008, o Réu DD foi designado comissário adjunto.

  6.. Nessa sequência foi emitida a favor do Réu DD credencial que este apresentou no processo 635/07.0TBPDL para agir em nome e representação da Autora Pia União.

  7. No Proc. 635/07.0TBPDL o Réu DD declarou confessar o pedido deduzido contra a aqui Autora Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, confissão que foi homologada por sentença.

  8. As Irmãs que faziam parte da Pia União, tinham Capela nas suas casas, para o exercício do culto religioso, da oração, penitência e celebração eucarística, bem como e essencialmente mantinham nessas capelas o Santíssimo Sacramento.

  9. Os Srs Padres VV e o Padre KK exerceram desde a primeira eleição da Madre Superiora as funções de assistente espiritual, por nomeação do Sr Bispo de ..., até à morte de ambos.

  10. Após a eleição da primeira Superiora da Pia união, a Irmã PP (que é a ora 3ª A. RR) bem como a Superiora eleita subsequentemente ao longo da sua vida, foi encarregado assistente espiritual nomeado para proceder à comunicação ao Prelado da eleição realizada, com o envio da ata para confirmação por parte do Bispo de ..., procedendo ao juramento devido em ato próprio e subsequente confirmação Bispal.

  11. Pelo menos desde 1991 que a Irmã PP exerceu as funções de Superiora e representante da ora 1ª A. Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus. A sua última eleição como superiora da 1ª A. que foi confirmada pelo Bispo de ..., ocorreu em 11 de junho de 2005.

  12. O ato eleitoral da Irmã PP como Superiora da 1ª A., com data de 25 de maio de 2008 não foi presidido por Assistente Espiritual e essa eleição também não foi confirmada pela Autoridade Eclesiástica .

  13. Nos negócios jurídicos que formalizou até à data de 15/07/2008, em que foi emitido o Decreto do Bispo de ..., a 3ª A. RR (em religião Irmã PP) fez-se acompanhar por credencial com poderes específicos para os atos na sequência de pedidos de emissão de credencial para a prática desses atos específicos.

  14. Por acórdão do STJ de 8 de outubro de 2020, já transitado em julgado, proferido no âmbito do processo n. 4680/08.0TBLRA, que Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, e AA e BB intentaram contra Diocese de ..., CC, WW e DD, foi declarado “procedente o primeiro pedido formulado na acção: a declaração de nulidade do Decreto Bispal de 15 de julho de 2008, bem como dos actos praticados ao abrigo e na sequência desse decreto, para os efeitos civis competentes”.

  O Tribunal da 1ª instância entendeu não existirem factos não provados com relevo para a decisão.

  IV – Atentas as conclusões da apelação e no seu confronto com a decisão recorrida, embora sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que possam colocar-se e relativamente às quais, não tendo sido objecto de decisão anterior, os autos contenham os elementos necessários para o respectivo conhecimento, são as seguintes as questões a apreciar no recurso:

  - se deve ser rejeitada a impugnação da matéria de facto pretendida pelas RR./ apelantes, como o sustentam as AA./apeladas;

  -  se, sendo a mesma admissível, se mostra procedente tal impugnação e, se dessa procedência se deverá concluir que a A. Pia União  constitui  uma associação pública de fiéis, com a correspondente alteração do decidido em termos de mérito da acção;

  - se se deve fazer operar a excepção da autoridade do caso julgado, fazendo-a advir, ao contrário do que foi entendido pela decisão recorrida (que a reconheceu ao acórdão do STJ de 8/10/2020, proferido no Processo nº 4680/08.0TBLRA), ao acórdão do  STJ de 1/3/2016, proferido no Proc nº 2153/06.5TBCBR-C.CI.SI, e se, também por esta via, se deve  concluir que a Pia União constitui uma  associação pública de fiéis, com a correspondente alteração do decidido em termos de mérito da acção.

  A sentença recorrida pese embora na sequência da realização da produção da prova na audiência de julgamento tenha decidido a matéria de facto que considerou relevante para a apreciação do único tema de prova evidenciado na audiência prévia (a definição da natureza pública ou privada da Pia União), agindo, assim, em obediência ao determinado pelo Ac R L de 19/12/2017 - que julgou nula a sentença anteriormente proferida nos presentes autos, determinando o prosseguimento dos  mesmos, por entender  ser necessário “esclarecimento factual” que “permita perceber a verdadeira natureza privada ou pública para o Direito Canónico” daquela associação - acabou por fazer sobrepor aos factos que enunciou como provados a excepção da autoridade do caso julgado material,  que entendeu  decorrer, na esteira do sustentado pelas AA.,  do  acórdão do STJ de 8/10/2020, proferido no Processo nº 4680/08.0TBLRA, tendo aliás, precedentemente,  suspendido a instância nos presentes autos, como se mencionou no relatório deste acórdão, até que fosse proferida a decisão em causa.

  Do que decorre que não chegou a fazer a subsunção dos factos provados às normas jurídicas aplicáveis.

  Procedimento esse, que se tem como inteiramente corrrecto, assim se entenda  que se deve, efectivamente, fazer impor uma primeira decisão transitada a respeito da natureza jurídica da Pia União como pressuposto da decisão de mérito na presente acção, afirmando-se a autoridade do caso julgado dessa primeira decisão.

  Tem, com  efeito, sido posta em evidência a natureza peremptória da excepção da (extensão) da autoridade do caso julgado material, afirmando-se que o seu efeito preclusivo é em tudo similar ao de uma excepção peremptória impeditiva,  subsumivel ao conceito vertido no nº 3 do art 576º CPC.

  Vejamos - para melhor se compreender a natureza peremptória da excepção em causa - a que corresponde a autoridade de caso julgado.

  Há muito que tem sido salientado na doutrina e jurisprudência que o caso julgado  material –  de que resulta que a decisão sobre a relação material controvertida  fica a ter força obrigatória no processo em que foi proferida a decisão,  e também fora dele,  em processo distinto, ainda que com limites, como decorre do nº 1 do art 619 º CPC  -  se analisa em duas vertentes distintas, uma de natureza negativa, falando-se aí de excepção de caso julgado,  que obstaculiza a  que seja proferida nova decisão de mérito, outra de natureza positiva, aí impondo a primeira decisão como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito [1] . Nas palavras do Ac R C 26/2/2019 [2] , «o caso julgado não se limita a produzir um efeito processual negativo, traduzido na insusceptibilidade de qualquer tribunal,  mesmo aquele que é o autor da decisão, se voltar a pronunciar sobre essa mesma  decisão. Ao caso julgado deve também associar-se um efeito processual positivo: a vinculação do tribunal que proferiu a decisão e, eventualmente de outros tribunais, ao resultado da aplicação ao caso concreto que foi realizada por aquele tribunal,  ou seja, ao conteúdo da decisão desse mesmo tribunal» .

  Como igualmente é acentuado nesse aresto,  citando-se  Teixeira  de Sousa [3], numa vertente ou outra, «o caso julgado  constitui exigência da boa administração, da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, dado que dá expressão aos valores da segurança e certeza imanentes a qualquer ordem jurídica: a res judicata obsta a que a uma mesma acção seja  instaurada várias vezes, impede que sobre a mesma situação jurídica recaiam decisões contraditórias e garante uma composição, tendencialmente definitiva, dos litígios que os tribunais são chamados a resolver».   

  Afirma Teixeira de Sousa [4] «que a excepção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção de caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente, mas tambem  a inviabilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica». (…). Acrescentando: «Quando vigora como autoridade do caso julgado, o caso julgado manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada  (…).

  Se é indiscutível que a excepção do caso julgado exige a identidade do pedido, da causa de pedir e de sujeitos – art 581º CPC [5]– já no que se refere à autoridade do caso julgado, a questão, não sendo inteiramente pacífica tem recebido resposta  dominante no sentido de não se impor aquela tríplice identidade [6], embora a não identidade total das partes ofereça reservas e a não identidade dos objectos postule entre eles necessárias relações de conexão.

  Lebre de Freitas [7] sintetiza essas relações, salientando que o efeito positivo do caso julgado  «assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida» .

  A propósito desta relação de prejudicialidade e da operacionalidade da excepção de autoridade de caso julgado,  explica-se no Ac Relação de Coimbra, a que se tem vindo a fazer referência,  que, « (…) se a relação entre o objecto da decisão transitada e o da acção subsequente não for de identidade, mas de prejudicialidade, nem por isso o caso julgado deixa de ser relevante: a decisão proferida sobre o objecto prejudicial (i é, que constitui pressuposto ou condição de julgamento de outro objecto) vale como autoridade de caso julgado na acção em que se discuta o objecto dependente. Quando isso suceda, o tribunal da acção posterior  - acção dependente – está vinculado à decisão proferida na causa anterior – acção prejudicial».

  A questão das relações entre objectos processuais não inteiramente coincidentes mas com aspectos comuns e em que este aspecto comum, tendo sido julgado precedentemente, se deve entender, em nome da certeza e segurança imanente a qualquer ordem jurídica,  condicionar o julgamento posterior, prende-se com os limites objectivos do caso julgado, sobretudo no que respeita aos chamados motivos da decisão final.

  A esse respeito considera Manuel Andrade [8]: «Para estatuir quanto à pretensão do Autor, o tribunal tem de considerar e resolver uns tantos pontos de que depende ser ela bem  ou mal fundada. Pode chamar-se-lhes pontos prejudiciais (em sentido lato) ou ainda questões prejudiciais, pelo menos quando sobre eles se tenha suscitado controvérsia entre as partes. As soluções que lhes são dadas pelo tribunal, os juízos por ele emitidos  ou as posições por ele tomadas acerca dessses pontos  (também, por vezes, qualificados de preliminares) são motivos, pressupostos ou antecedentes lógicos do dispositivo da sentença  - da dictio júris lá pronunciada sobre o objecto directo e principal da acção». Acentua, porém, Manuel de Andrade, que «o problema, verdadeiramente, só interessa quanto a pontos  susceptiveis de discussão e apreciação em processo à parte – no qual, sem dúvida, se formaria sobre eles o caso julgado com a sua autoridade normal; e se tais pontos concernem à existência ou inexistência (validade ou invalidade, eficácia ou ineficácia) de estados, condições  ou relações jurídicas deduzidas pelo Autor  para legitimar a sua pretensão  ou pelo Réu para legitimar a sua defesa, não se identificando, todavia, com o próprio direito (estado, condição, situação  ou relação jurídica) que o  Autor intenta fazer valer mediante aquela pretensão – para a qual suscita a tutela judiciária».

  Ora, sendo indiscutível que o caso julgado cobre a parte decisória da sentença – diz Manuel de Andrade, «a sentença há-de valer como caso julgado, pelo menos, até onde se contenha a resposta do tribunal ao pedido do autor» -, a questão está em saber  até que ponto inclui a matéria apreciada para o tribunal ter chegado àquela «resposta». Afastada a concepção restritiva  - que defende que só inclui a parte decisória - e a concepção ampla – que entende que inclui toda a matéria apreciada, todos os fundamentos da decisão - parece ter vingado uma concepção intermédia, segundo a qual  o caso julgado abrange as questões apreciadas que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva da sentença  [9].

  A este nível, Teixeira de Sousa é muito claro [10]: «Como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), o respectivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos  fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida  pelo caso julgado  não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio  silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão  de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos daquela».  De tal modo qu, os  fundamentos de facto, como refere mais adiante,  «não valem por si mesmos, isto é, não são vinculativos quando desligados da respectiva decisão, pelo que eles valem apenas enquanto fundamentos da decisão e em conjunto com esta» [11].

Em função do que se explanou, deve entender-se que quando opere a autoridade de caso julgado o tribunal em que se faça valer essa excepção resulta impedido de apreciar os factos inerentes ao objeto prejudicial  [12] , na medida em que, também eles, como premissa do silogismo que conduziu à decisão desse objecto, se inscrevem no objecto da acção dependente.

  Com efeito, se «a autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença» - como se afirma  no Ac R C 28/9/2010 [13], aliás, em sintonia com o Ac STJ  22/2/2018 [14], onde se refere coincidentemente, que «a autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em acção anterior cujo objecto se inscreve, como pressuposto indiscutível , no objecto de uma acção posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa», torna-se inútil a apreciação e conhecimento dos factos referentes à situação jurídica material definida precedentemente nesta segunda acção.

  De que resulta que, a ordem pela qual os apelantes deveriam ter colocado as questões cuja apreciação requerem neste recurso, deveria ter sido a inversa à acima referida:  é que, em 1º lugar, importa saber se a apreciação de mérito no que respeita à natureza jurídica da Pia União, se mostra inútil na presente acção, por se dever impor nela a decisão proferida em decisão anterior, em função da autoridade de caso julgado, sendo que, apenas se assim não se concluir, importará decidir a  impugnação da matéria de  facto [15], para, fixando em definitivo os factos provados, se conhecer então da referida questão.

  Vejamos, pois, se assiste razão aos RR/apelantes quando pretendem que a autoridade de caso  julgado deverá advir,  no que aos presentes autos respeita,  do acórdão do  STJ de 1/3/2016, proferido no Proc 2153/06.5TBR-C.CI.SI, ou se antes, como foi entendido na decisão recorrida e corresponde ao ponto de vista dos AA./apelados, do acórdão do STJ de 8/10/2020, proferido no Proc 4680/08.0TBLRA, ou, em todo o caso, de outra decisão das muitas acima referidas no relatório do presente acórdão.

  Para assim decidir, importará que melhor se  analisem as relações possíveis entre objectos processuais passíveis de conduzirem a que num segundo processo em que o objecto já decidido se recoloque, se imponha a  autoridade de  caso julgado material.

  Já acima foi referido  que a diversidade entre os objectos dos dois processos deverá implicar para a operatividade  da excepção em apreço, que o objecto processual decidido na primeira acção se inscreva  no objecto de uma acção posterior, surgindo como condição para apreciação do respectivo objecto processual, o que necessariamente há-de implicar  uma  conexão ou dependência entre o objecto das duas acções.

  Teixeira de Sousa, a propósito da autoridade de caso julgado e excepção de caso julgado, no estudo que dedicou ao Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, já acima referido na nota 4, explica que [16], «das relações de inclusão entre objectos processuais nascem as situações de consumpção objectiva». E que «a consumpção objectiva  pode ser reciproca, se os objectos processuais possuem idêntica extensão, e não reciproca, se os objectos processuais tem distinta extensão». Relativamente à consumpção  não reciproca,  a mesma pode ser inclusiva, «se o objecto  antecedente engloba o objecto subsequente, e prejudicial, se o objecto subsequente abrange o objecto antecedente. Assim, a consumpção reciproca e a consumpção não reciproca inclusiva firmam-se na repetição de um objecto antecedente num objecto subsequente e a consumpção não reciproca prejudicial  apoia-se na condição de um objecto anterior para um objecto posterior». Acrescentando: «Esta repartição nas formas e consumpção objectiva, acrescida de identidade de partes adjectivas, é determinante para a qualidade  da relevância em processo subsequente da autoridade de caso julgado material ou da excepção de caso julgado: quando o objecto processual anterior é condição para a apreciação do objecto processual posterior, o caso julgado da decisão antecedente  releva como autoridade de caso julgado material  no processo subsequente; quando a apreciação do objecto processual antecedente é repetido no objecto processual subsequente, o caso julgado da decisão anterior releva como excepção de caso julgado no processo posterior».

Referindo, mais à frente [17], relativamente ao caso julgado: «Dada a reciproca delimitação entre autoridade de caso julgado  e a excepção de caso julgado, o caso julgado material só se torna excepção de caso julgado nas eventualidades de consumçao reciproca entre objectos processuais».

  E conclui, relativamente à autoridade de caso julgado: «Dada a mútua determinação da autoridade de caso julgado e da excepção de caso julgado, o caso julgado material só se torma autoridade de caso julgado nas eventualidades de consumção prejudicial entre objectos processuais. A consumção prejudicial  exige a pressuposição da decisão do objecto posterior  pela decisão do objecto anterior, o que torna a decisão sobre o objecto antecedente uma premissa da decisão do objecto subsequente: existe sempre prejudicialidade entre a consequência jurídica decidida e as consequências jurídicas dela dependentes. Esta dependência pode ser adjuntiva, quando o objecto dependente é acrescido  ao objecto prejudicial pela parte adjectiva que o pode introduzir em juízo, ou sinalagmática, quando o objecto dependente é adicionao ao objecto prejudicial pela parte adjectiva que o pode contestar em juízo».

  Importa ainda, na matéria em apreço, deixar bem claro que a autoridade de caso julgado pressupõe que se tenha verificado na acção prejudicial caso julgado material, isto é, que tenha ocorrida nela decisão final de mérito. 

O que desde logo afasta as providências cautelares, nas quais, como é sabido, não se forma caso julgado definitivo, pois, como decorre do nº 4 do art 364º do CPC, nem o julgamento da  matéria de facto nem a decisão final proferida no procedimento têm qualquer influência no julgamento da acção principal de que o procedimento cautelar depende [18].

Sendo por isso que as partes  nos presentes autos estão de acordo em que, pese embora a questão da natureza jurídica da A. Pia União à luz do Direito Canónico, como associação pública ou privada de fiéis, tenha sido  apreciada como fundamento em vários procedimentos cautelares (Proc 590.09....; 2047/08 ..., 27/09...., 332/09.2TBPDL. L1.S1), a autoridade resultante das decisões dessas providências não se deve estender ao presente processo.

  Verifiquemos, pois, as relações entre o objecto processual na presente acção e os das acções 2153/06.5TBR-C.CI.SI e 4680/08.0TBLRA.

  No presente processo são autoras  a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, a Fundação do Divino Coração de Jesus e AA e BB, e réus o Seminário Pio XII, a Diocese de ..., CC, e DD.

  Pede-se nela, como acima se referiu no relatório deste acórdão,  que seja  declarada nula e de nenhum efeito a confissão nos P. 635/07.0TBPDL  do 2º Juízo, revogando o despacho de homologação e determinando-se que o processo siga os seus termos, anulando-se todos os actos subsequentes que pressupõem ou têm como fundamento a referida «confissão», e condenando-se os RR., solidariamente, nas custas dos actos a que deram causa e nas despesas suportadas pelas AA., a liquidar em execução de sentença.

  Esta acção teve a sua génese, no seguinte circunstancialismo fáctico processual, de que aqui se dá nota abreviada:

  Nos Proc nº 635/07.0TBPDL, 635/07.0TBPDL-A e 635/07.0TBPDL-B,     intentados pelo Seminario Pio XII contra a Pia União, pedia aquele a declaração de nulidade da escritura de justificação notarial  em que foi reconhecido que a Pia União  é, com exclusão de outrém, dona e legitima possuidora do prédio sito à Rua ..., ...  freguesia ..., concelho ..., sucedendo que  em determinada altura do mesmo se apresentou em juízo o aqui 4º R, na qualidade de legal representante da Pia União, juntando, para o efeito, duas credenciais emitidas pela Diocese de ..., e, por termo junto a esses autos, declarou que aquela Pia União, R. nesses autos, confessa o pedido, aceitando  consequentemente a declaração de nulidade daquelas escrituras de justificação, revogando ainda os mandatos judiciais conferidos nos autos ao advogado Dr EE.

  Estas confissões de pedidos foram homologadas por sentença e desta foi interposta apelação pela Pia União. A apelação foi considerada sem efeito,  na medida em que interposta por requerimento do Dr EE. Deste despacho foi interposto recurso pela Fundação, vindo o STJ a admitir a referida apelação.

  È nesse contexto que surge a presente acção declarativa com vista a ser declarada a nulidade da confissão produzida nos processos de que esta é apenso,  ao abrigo da 1ª parte do nº 2 do art 291º CPC.

  Alegaram as AA., em síntese, que o 3º R. emitiu dois Decretos designando o 4º R. como comissário adjunto, invocando como norma habilitante o cânone 318, que é exclusivamente aplicável a  associações públicas e a bens eclesiásticos, e com base nos mesmos foi emitida credencial utilizada pelo 4º R., para, em representação da A. Pia União, proceder às confissões dos pedidos atrás referidas e à renúncia dos mandatos  judiciais nessas acções. Mais alegaram que a Pia União é uma associação privada de fiéis,  pelo que tem autonomia na administração dos seus bens,  concluindo ser nula a nomeação do 4º R. como comissário adjunto, e bem assim, as confissões efectuadas pelo mesmo nos processos referidos.

Pretensão que os RR. contestaram, defendendo que a Pia União é uma associação pública de fiéis, erecta canonicamente  por recomendação do Bispo de A...  com a indicação que passaria a ser  de direito diocesano, ou seja, dependente do Ordinário do Lugar, no caso o Bispo de ..., pelo que é válido o Decreto  emitido pelo 3º R. que nomeou comissário o 4º R., e bem assim a confissão dos pedidos por este efectuado nos processos referidos, concluindo pela improcedência da acção.

  No Processo 2153/06.5TBCBR.C, são autores a Fundação do Divino Coração de Jesus e a Pia União e réus os mesmos que na presente acção (a que se adiciona um outro, igualmente nomeado comissário), sendo pedido que seja declarada nula e de nenhum efeito a confissão no P. 2153/06.5TBCBR, revogando-se o despacho de homologação e determinando-se que o processo siga os seus termos, anulando-se todos os actos subsequentes que pressupõem ou têm como fundamento a referida “confissão” e condenando-se os RR., solidariamente, nas custas dos autos a que deram causa e nas despesas suportadas pelas AA., a liquidar em execução de sentença.

Para tal, alegaram, em resumo, que na sequência do afastamento do signatário da petição inicial, como mandatário da A. Pia União, com base no entendimento de que esta é uma associação canónica pública de fiéis, foi homologado o termo de desistência da acção e confissão da reconvenção, a que a A. não pôde reagir. Não obstante, a A. é uma associação privada de fiéis, representada pela sua Superiora, pelo que são nulos, por absoluta falta de poderes de representação, os actos praticados pelo R. DD em representação daquela, nomeadamente os tidos em vista com os presentes autos. Consequentemente, não podia o 3º R., na qualidade de Bispo da Diocese de ..., emitir os dois decretos, que emitiu, em 15 de Julho de 2008 e 29 de Julho de 2008, designando o ora 4º R. como comissário-adjunto, para representar a Pia União, invocando o disposto no cânone 318.º do Código de Direito Canónico, por este ser apenas aplicável a associações públicas de fiéis e a bens eclesiásticos, o que, defendem, não ser o caso. Sendo, como é, uma associação privada,  o 3º R  não tem poderes para indicar o 4.º R. como representante da Pia União, o que se traduz na absoluta falta de vontade desta, que determina a nulidade ou anulabilidade da confissão/transacção que foi levada a cabo nos autos principais.

Na contestação, os Réus, alegaram, além do mais, a incompetência material do Tribunal para julgar a acção, dado que o que está em causa é a apreciação da validade dos Decretos Bispais acima já referidos, o que implica averiguar da natureza jurídica da Pia União, se se trata de uma associação pública ou privada de fiéis, sendo certo que só no 1.º caso estaria sujeita à autoridade do Ordinário do Lugar (no caso o Senhor Bispo da Diocese de ...  e ao disposto nos cânones 318 e segs. do CDC),estando-lhe vedada no caso de se tratar de associação privada de fiéis. Acrescentam que estando em causa um acto relativo à organização de uma pessoa jurídica canónica praticado com fundamento no Direito Canónico, a apreciação da sua validade cabe em exclusivo ao ordenamento jurídico canónico, estando vedado o conhecimento de tal matéria aos tribunais comuns.

Respondendo, as Autoras, reiteraram que a Pia União se tem de qualificar como associação privada de fiéis, do que decorre serem os tribunais portugueses os competentes para dirimir a disputa entre as partes, nos termos do disposto no artigo 65.º-A, CPC, em face do que pugnam pela improcedência da invocada excepção.

Nesses autos, na audiência prévia, julgou-se procedente a excepção de incompetência do tribunal, em termos internacionais e em razão da matéria, com o fundamento, em resumo, de a Pia União constituir uma associação pública de fiéis. 

As AA. apelaram, tendo o  Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 23/6/2015 – fls. 732 a 738 –negado provimento ao recurso. De novo inconformadas, as AA. recorreram de revista excepcional para o STJ, que não admitiu tal recurso, sendo os autos remetidos à distribuição como revista normal, vindo a ser proferido acórdão em 1/3/2016 que confirmou a incompetência internacional e em razão da matéria dos tribunais portugueses, referindo previamente, para assim concluir, que «Entendemos que a 1ª Autora Pia União  é uma associação pública de fiéis, pelas razões que não se afastam do sentenciado pelas Instâncias, e cremos, da Jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça».

  No Processo 4680/08.0TBLRA foram autores a Pia União e RR, e reús  a Diocese de ..., CC, WW  e DD,  sendo pedido neles, entre o mais, que seja declarado nulo  e de nenhum efeito o Decreto do Bispo de ... de 15/7/2008 que designou os 3º e 4º RR, comissário e comissário adjunto para administrarem bens da 1ª A, e bem assim todos os actos praticados ao abrigo do referido decreto, nomeadamente termos de desistência, ou confissão, procurações, revogações  de procurações, escrituras ou quaisquer deles resultantes, tendo vindo a ser decidida por acordão do STJ de 8/10/2020- cfr fls 1241 destes autos - no qual, tendo  sido entendido precedentemente que a Pia União  é uma associação privada de fiéis, foi declarado «o primeiro pedido formulado na acção, a declaração de nulidade do Decreto do Bispo de ... de 15/7/2008, bem como os actos praticados ao abrigo e na sequência desse  decreto, para os efeitos civis competentes».

  Resulta, da breve exposição que se fez relativamente aos objectos das acções de que emergiram os dois acórdãos do STJ - e que as partes contrapõem, para, de um ou do outro, consoante os respectivos interesses, fazerem decorrer a excepção da autoridade de caso julgado - é que em ambos se insere como questão prejudicial para o conhecimento do nelas pedido a natureza privada ou pública da Pia União enquanto associação.

  Sucede que, enquanto no Proc 2153/06.5TBCBR.C, a decisão do STJ que o veio a decidir partiu do pressuposto de que a Pia União é uma associação pública de fiéis para logo concluir pela incompetência material dos tribunais judiciais, entendendo competir a competência internacional e material aos Tribunais Eclesiásticos, não tendo chegado a decidir de mérito, tal não sucedeu com o Proc 4680/08.0TBLRA que, partindo do pressuposto que a Pia União é uma associação privada de fiéis, veio a concluir pela declaração de nulidade do Decreto do Bispo de ... de 15/7/2008, bem como a dos actos praticados ao abrigo e na sequência desse  decreto.

Foi a circunstância destes diferentes resultados, um que se situa meramente nos pressupostos processuais, outro que chega ao mérito da acção, que foi evidenciada no Despacho do Senhor Presidente do STJ de 23/1/2020, junto a fls 1229 dos presentes autos, destinado a decidir se se verificavam ou não as condições normativas para que o julgamento do Proc  4680/08.0TBLRA.C2.S1 se fizesse com o Pleno das Secções Civeis, quando aí se referiu que, «mais recentemente e já depois de ter sido interposto recurso nestes autos, foi proferido o Acórdão de 5/12/2019 (revista nº 208/11.3TBHRT.L1.S1 – 2ª Secção), sendo que foi neste aresto que o Supremo Tribunal de Justiça se pronunciou, pela primeira vez, sobre a qualificação da Pia União para resolução material do litigio   (e já não a titulo incidental e para a resolução de questões processuais) qualificando-a como associação privada».

E para o que está primacialmente em questão nestes autos – saber se a autoridade de caso julgado que neles se há-de fazer valer, para não se decidir,  mais uma vez, enquanto pressuposto da decisão subsequente,  se a Pia União é uma associação privada ou pública de fiéis – não pode deixar de relevar se essa decisão foi proferida ou não por decisão final que tenha acabado por recair unicamente sobre a relação processual, pois que, como decorre do art 620º CPC, essas decisões só formam caso julgado formal, apenas tendo força obrigatória dentro do processo, e a autoridade de caso julgado, como acima se evidenciou, pressupõe, por definição, o caso julgado material.

O que implica que se afaste, para o que importa aqui decidir, o caso julgado advindo do Proc 2153/06.5TBCBR.C, e implicaria que se houvesse de partir do caso julgado resultante do acórdão do STJ, proferido em 5/12/2019, no Proc nº 208/11.3TBHRT.L1.S1, porque se mostra antecedente ao obtido no Proc 4680/08.0TBLRA.C2.S1.

Acontece que a essa conclusão obstam os limites subjectivos do caso julgado, visto que no referido Proc nº 208/11.3TBHRT.L1.S1 foram autores a Diocese de ... e a Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, e réus, UU e AA, sendo que esta diversidade subjectiva não admitirá a extensão do caso julgado ali formado ou em todo o caso a eficácia reflexa desse caso julgado, por não terem sido partes nesse processo todos os sujeitos a que se deve atribuir, na matéria em causa, legitimidade processual, como é o caso do Seminário Pio XII e de DD.

 Refere Teixeira de Sousa [19], a respeito da eficácia reflexa do caso julgado, que a mesma se verifica «quando a acção decorreu entre todos os interessados directos (quer activos, quer passivos) e, portanto, esgotou os sujeitos com legitimidade para discutir a tutela judicial de uma situação jurídica, pelo que aquilo que ficou definido entre os legítimos contraditores (na expressão do art.2503 § único , CC/1867) deve ser aceite por qualquer terceiro», o que, como atrás referimos, não parece ser o caso.

Explica Teixeira de Sousa a respeito do efeito reflexo do caso julgado que o mesmo «não constitui propriamente uma excepção  à sua eficácia entre as partes. Esse efeito mais não é do que o correlativo daquela eficácia relativa: como as partes da acção esgotam aqueles que para ela possuem legitimidade processual (dado que todos os interessados são partes nela, art 26º/1) aquilo que vale – relativamente – entre as partes vale igualmente perante qualquer terceiro».

De todo o modo, a consequência de se fazer advir a autoridade de caso julgado da decisão do Proc nº 208/11.3TBHRT.L1.S1 ou da decisão do Proc 4680/08.0TBLRA.C2.S1, para o caso dos presentes autos, é indiferente, visto que em ambas se qualificou a Pia União como associação de fiéis de natureza privada.

Sendo que a circunstância do  aqui R. Seminário Pio XII e a Fundação do Divino Coração de Jesus não terem sido parte no Proc 4680/08.0TBLRA.C2.S1, verificando-se, no demais a identidade das partes se mostra irrelevante, por aqui se poder dizer, sem receios, que  aquela acção esgotou os sujeitos com legitimidade para discutir a tutela judicial da situação jurídica que está em causa, apresentando-se o Seminario Pio XII,  sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, como portador do mesmo interesse substancial dos demais RR. naquela acção [20], não sendo exigível uma correspondência física dos sujeitos nas duas acções. Acresce, quanto  à Fundação do Divino Coração de Jesus, que a a mesma se encontra sub-rogada nos direitos da Pia União.

Conclui-se, pois, que o efeito de autoridade de caso julgado que se mostra impeditivo de nos presentes autos  se renovar a apreciação da qualificação da Pia União como associação pública ou privada de fiéis, enquanto pressuposto necessário que é  relativamente ao que nela vem  pedido, decorre do Acórdão do STJ  8/10/2020, proferido no Proc 4680/08.0TBLRA.

Chegados  aqui,  sempre haveria de se concluir, na decorrência da Pia União constituir uma associação privada  de fiéis,  pela procedência da acção, por se dever entender  que  a mesma não está sujeita à autoridade e direcção eclesiásticas, e que, por isso, as questões relacionadas com a sua organização interna e representatividade, que aqui estão em causa no que respeita à legitimidade para confessar validamente nas  acções judiciais referidas, não pertenciam  ao 3º A., que não tinha poderes para designar comissários, sendo por isso inválida a designação do 4ª R., DD,  como representante da Pia União.

Mas, caso este raciocínio dedutivo não fosse suficiente para a procedência da acção, essa procedência sempre se imporia, sem necessidade de mais considerações, do concretamente decidido no referido Acórdão do STJ de 8/10/2020, enquanto resposta do tribunal ao pedido do autor.

É que, tendo nele sido declarada «a nulidade do Decreto do Bispo de ... de 15/7/2008, bem como dos actos praticados ao abrigo e na sequência desse  decreto, para os efeitos civis competentes»- essa decisão constitui, também ela e prevalecentemente, porventura, tornando inútil a demais apreciação feita nos autos,  antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.

Lembrem-se as palavras acima referidas de Teixeira de Sousa: «Quando o objecto processual anterior é condição para a apreciação do objecto processual posterior, o caso julgado da decisão antecedente  releva como autoridade de caso julgado material  no processo subsequente. (…) A consumção prejudicial exige a pressuposição da decisão do objecto posterior pela decisão do objecto anterior, o que torna a decisão sobre o objecto antecedente uma premissa da decisão do objecto subsequente: existe sempre prejudicialidade entre a consequência jurídica decidida e as consequências jurídicas dela dependentes».

Sendo «nulo o Decreto do Bispo de ... de 15/7/2008, bem como dos actos praticados ao abrigo e na sequência desse  decreto, para os efeitos civis competentes», é nula, sem necessidade de maiores considerações, a confissão do pedido que teve lugar nos Proc 635/07.0TBPDL, procedendo, por isso a presente acção, revogando-se o despacho de homologação dessa confissão e determinando que o processo siga os seus termos, anulando-se todos os actos subsequentes que pressupõem ou têm como fundamento a referida confissão.

V – Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

Custas pelos apelantes.

Coimbra, 24 de Maio de 2022
(Maria Teresa Albuquerque)
(Falcão de Magalhães)
(Pires Robalo)

(…)


               [1] – Assim se pronuncia Lebre de Freitas, «Código de Processo Civil Anotado», Vol. II, Coimbra Editora, 3.ª Edição, 1981, págs.354 4, referindo: «(..) a autoridade do caso julgado tem  o efeito postivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito».; cfr Ac STJ 11/7/2019 (Bernardo Domingos).
               [2] - Relator, Fonte Ramos, acórdão esse a que se farão subsquentes referências.
               [3]Estudos  sobre o Novo Processo Civil», Lex, 1997, p 568
               [4]O objecto da sentença e o caso julgado material», BMJ nº 325, p. 49 e ss

               [5] - Cfr o já acima referido Ac STJ 11/7/2019 (Bernando Domingos), que refere, com muito interesse, no seu sumário: «1-A figura da excepção de caso julgado tem que ver com o fenómeno de indentidade entre relações jurídicas, sendo a mesma relação submetida sucessivamente a apreciação jurisdicional, ignotando-se ou desvalorizando-se o facto de essa mesma relação já ter sido, enquanto objeto processual  perfeitamente individualizado nos seus aspectos subjectivos e objectivos, anteriormente apreciada jurisdicionalmente, mediante decisão que transitou em julgado. II- Há identidade do pedido quando o efeito partico jurídico pretendido pelo autor em ambas as acções é substancialmente o mesmo. III -A essencial identidade e individualidade da causa de pedir tem de aferir-se  em função de uma comparação entre o núcleo essencial  das causs petendi invocadass numa e noutra das acções em confronto, não sendo afectada tal identidade  nem por via da alteração da qualificação jurídica  dos factoso concretos  em que se fundamenta a pretensão, nem por qualquer alteração ou ampliação factual  que não afecte o núcleo essencial da causa de pedir que suporta ambas as acções, nem pela invocação na primeira acção de determinada factualidade, perspectivda como meramente instrumental ou concretizadora dos afctso essenciais»
               [6]  - Cfr Lebre de Freitas, «Código de Processo Civil Anotado», Vol. 2º, 2001, págs. 260 e 318 e ss; Manuel de Andrade, ob. cit., págs. 304 e ss; Alberto dos Reis, «Código de Processo Civil Anotado», Vol. III, 4ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, 1985, págs. 91 e ss; Anselmo de Castro, «Direito Processual Civil Declaratório», Vol. III, Almedina, 1982, págs. 383 e ss, e entre muitos outros, os Ac STJ de 26.01.1994, 19.5.2016,20.12.2017, 27.02.2018,18.9.2018,18.10.2018 e 13.11.2018, todo em www.dgsi.pt. ; Ac RC de 28.9.2010, 24.02.2015, 30.6.2015,14.11.2017 e 06.3.2018, tambem todos els acessíveis em www.dgsi.pt
               [7] - Obra referida, p. 354
               [8]  - «Noções Elementares de Processo Civil», 1979,  p. 327

               [9]  - Neste sentido, entre outros, Ac STJ  6/3/2008 (Oliveira Rocha);  23/11/2011 (Pereira da Silva) in www.dgsi. pt; 10/7/1997, CJSTJ, II,  65; 10/7/97 CJ/STJ 2º-165;  Ac R C 24/2/2015. 
               [10]  - «Estudos…», p. 578  

               [11] - Referindo, pois, em sintonia com o Ac R E 29/9/1994, BMJ 438-667, que cita, que os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados  da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado.
               [12] - Como se refere no Ac RC  26/2/2019 (Fonte Ramos)
               [13] - Relator, Jorge Arcanjo
               [14] - Relator, Tomé Gomes; a respeito da mesma matáeria e do mesmo Relator, cfr  Ac STJ 8/11/2008 e 28/3/2019. 
               [15] - Defendendo os AA/apelados a inadmissibilidade dessa impugnação por incumprimento dos ónus impostos para a mesma
               [16] -  Cfr p. 132
               [17] - P. 136 do estudo referido
               [18] - Cfr, por exemplo, Ac STJ 12/7/2018 (Gonçalves Rocha)
               [19] - «Estudos Sobre o Novo Processo Civil», p 590
               [20] - Alberto dos Reis, «Código de Processo Anotado», 3ª ed, 1981, p 101