INSOLVÊNCIA
PEDIDO
GERENTE DE SOCIEDADE
ILEGITIMIDADE
Sumário

I - Da conjugação da previsão do art. 20º nº1 com o art. 6º nº2 do CIRE, decorre que a declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, considerando-se como tal as pessoas que, nos termos da lei, respondem pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas do insolvente, ainda que a título subsidiário;
II - Considerando que nas sociedades por quotas só o património social é que responde para com os credores pelas dívidas da sociedade (art. 197º nº3 do CSC), é de concluir que o sócio desta, ainda que gerente, não é pessoa que responda pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas da sociedade, ainda que a título subsidiário;
III - Não obstante nos arts. 23º e 24º da Lei Geral Tributária (Dec.Lei 398/98 de 17/12) se preveja a responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes por dívidas da sociedade, tais preceitos referem-se a dívidas tributárias cuja frustração de pagamento pela sociedade seja imputável a conduta do administrador ou gerente e acabam por ser uma espécie de concretização, para efeitos tributários, da responsabilidade dos gerentes ou administradores para com os credores sociais prevista no art. 78º nº1 do CSC, na qual tal responsabilidade é também circunscrita às situações de inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção de tais credores por parte daquelas pessoas;
IV - São portanto casos especiais de possível responsabilização do administrador ou gerente uma vez verificados os circunstancialismos concretamente exigidos naqueles preceitos e não se integram numa qualquer responsabilidade geral e ilimitada por quaisquer dívidas da sociedade, que é a que está em causa por via da previsão do corpo do art. 20º do CIRE em conjugação com o disposto no art. 6º nº2 do mesmo diploma.
V - Assim, o sócio e gerente de sociedade por quotas não preenche o conceito de responsável legal pelas dívidas de tal sociedade nos termos definidos pela conjugação daqueles preceitos do CIRE, do que decorre a sua ilegitimidade para, por si próprio, pedir a declaração de insolvência de tal sociedade.

Texto Integral

Processo nº1912/21.3T8STS.P1
(Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Santo Tirso – Juiz 4)



Relator: António Mendes Coelho
1º Adjunto: Joaquim Moura
2º Adjunto: Ana Paula Amorim



Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório

AA propôs acção para declaração de insolvência de “A..., Lda.”, alegando, em síntese, o seguinte:
- que a requerida tem como únicos sócios o requerente e sua mulher, BB, com quem está casado no regime de comunhão geral de bens, sendo que ambos forma declarados insolventes no processo nº2401/16.3T8STS, que corre termos no Juízo de Comércio de Santo Tirso;
- que é também gerente da requerida, respondendo subsidiariamente pelas suas dívidas tributárias, uma vez que foi o seu único gerente e que houve, e há, dívidas fiscais geradas, motivo pelo qual, atento o disposto nos arts. 20º e 6º do CIRE, tem legitimidade para requerer a declaração de insolvência da requerida;
- que a requerida foi constituída em 16 de Outubro de 2012, tendo como escopo a actividade de mediação de seguros, no seguimento da constituição de outras duas sociedades, a “X..., Lda.” e a “K... Lda.”, a primeira constituída em Outubro de 2010 e a segunda em 2006, sendo que, em 2015, a primeira, que prestava serviços de apoio às empresas de transporte e era quem angariava clientes para as três empresas, veio em Março de 2017 a ser declarada Insolvente, o que levou a que, desde então, a requerida foi perdendo clientes para a concorrência e acumulando passivo;
- que face às dificuldades de tesouraria com as quais a requerida se começou a debater, esta começou a financiar-se constantemente junto da banca, suportando os respectivos encargos financeiros, e foi-se constituindo devedora ao ISS das contribuições e cotizações, ao que acresceu o incumprimento das obrigações fiscais, tal como a regularização dos pagamentos por conta;
- que a dívida à Autoridade Tributária ascende a mais de 74.000 euros;
- que já se encontram revertidos para o requerente e sua mulher vários processos por dívidas fiscais;
- que a requerida se encontra inactiva e não possui qualquer activo que possibilite honrar o seu passivo.
Proferido despacho a ordenar a junção aos autos de certidão comercial permanente da requerida, foi, depois da junta tal certidão, proferido o seguinte despacho de indeferimento liminar (transcreve-se):

Veio o aqui requerente, AA, contribuinte fiscal n.º ..., residente na Rua ..., ..., ... Maia, instaurar a presente ação especial de insolvência contra a sociedade “A..., Lda.”, com sede social na Avenida ..., ..., ... Matosinhos, requerendo que se declare a insolvência desta.
Porém, da sua própria alegação e dos elementos juntos aos autos resulta, desde logo, que o requerente é o próprio gerente, e único (para além de sócio) da requerida, ou seja, é o seu único legal representante.
No entanto, não apresenta a sociedade à insolvência, enquanto legal representante daquela, antes instaurou esta ação contra a sociedade, depreendendo-se da sua alegação que se coloca numa posição de terceiro, nomeadamente credor.
Na verdade, o requerente refere ser credor, parecendo que pretenderia requerer a insolvência da sociedade também nessa qualidade, alegando que “é sócio e gerente da requerida, respondendo subsidiariamente pelas dívidas tributárias da sociedade, uma vez que foi o único sócio-gerente da requerida até à presente data e que houve, e há, dívidas fiscais geradas neste período, existindo, efetivamente, responsabilidade subsidiária deste por tais dívidas”.
Porém, como se disse, o requerente é o próprio legal representante da sociedade, por ser o seu único gerente, e de responsabilidade limitada, e com o dever de, se verificados os pressupostos, apresentar a sociedade à insolvência, não tendo legitimidade para requerer contra aquela o processo.
Vejamos:
De acordo com o consagrado no artigo 20.º, n.º 1, do CIRE, a declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público (…).
No que respeita à possibilidade de ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, visa a mesma tutelar as pessoas que também são responsáveis pelas dívidas do devedor e que poderão ver a sua posição de responsáveis por tais dívidas a agravar-se à medida que o devedor for subsistindo e contraindo mais dívidas.
Mas, conforme defendido por Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (cfr.“Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª ed. pág. 202) nem todos os responsáveis por dívidas do insolvente podem desencadear o processo, mas apenas quem preencha o condicionalismo definido no n.º 2 do art.º 6.º do CIRE. Pelo que, para efeitos do código da insolvência e da recuperação de empresas são considerados responsáveis legais as pessoas que, nos termos da lei, respondam pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas do insolvente, ainda que a título subsidiário.
Ou seja, e se não obsta à dita qualidade a circunstância de alguma dívida, ou mesmo algum tipo de dívidas, estar subtraída à responsabilidade da pessoa que se considera, desde que ela exista para o conjunto das demais obrigações do insolvente, é essencial que se esteja perante uma responsabilidade ilimitada, designadamente que não haja dependência dos montantes das dívidas ou da sua natureza ou fonte e, por outro lado, que exista afetação da totalidade das forças do património do responsável no pagamento.
No caso de sócios que assumam responsabilidade pelas dívidas da sociedade por quotas ao abrigo do dispositivo no artigo 198.º do CSC não se enquadram nessa qualidade de responsáveis pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas do insolvente (são aqui responsáveis legais, no específico contexto do CIRE, todos aqueles, mas só aqueles, que estão sujeitos a pagar a generalidade das dívidas do insolvente por determinação da lei, que é sempre e unicamente a fonte da responsabilidade).
Por outro lado, no caso destes autos seguir os seus termos tendo do lado ativo o requerente, também do lado passivo a sociedade requerida seria representada pelo aqui requerente, seu único representante legal (!).
Conclui-se que quer pela factualidade que alega, quer pela qualidade em que intervém, o aqui requerente não tem legitimidade para instaurar esta ação contra a sociedade aqui requerida.
Face a tudo o que fica exposto, e ao abrigo do disposto no artigo 27.º, n.º 1, alínea a), do CIRE, indefiro liminarmente o presente pedido de declaração de insolvência.
Custas pelo requerente, sem prejuízo do apoio judiciário.
Valor da causa: o indicado pelo requerente.
Registe e notifique.

O Autor veio interpor recurso de tal despacho, tendo na sequência da respectiva motivação apresentado as seguintes conclusões:

1 - Não existe falta de legitimidade activa.
2 – O Requerente/Recorrente alega a sua responsabilidade legal pelas dívidas da Requerida, ex vi do estatuído nos art. 23º e 24º, nº 1, da Lei Geral Tributária
4 – Logo, estão cumpridas as exigências legais do n.°1, do art.º 20.° do CIRE.
5 – Assim, não tem qualquer razão o MM juiz a quo, que quando muito, devia ter proferido Despacho de Aperfeiçoamento nos termos do art.º 508.°, n.º 1, al. b), do C.P.C., norma jurídica violada.
6 – Mais ainda, não interpretou correctamente, os factos alegados, não os aplicando ao aludido normativo do CIRE.
7 - A sentença recorrida violou o disposto nos arts. 1° , 3º , 6º , 9°, 11°, 17°, 18°, 19°, 20º, 24° do CIRE, e 23º e 24º da LGT.

Proferido despacho a admitir o recurso, pela Sra. Juíza foi de seguida proferido despacho a determinar o cumprimento do disposto no art. 641º nº7 do CPC na pessoa da sócia da requerida BB, a qual veio a ser citada para o efeito.

Foram dispensados os vistos ao abrigo do art. 657º nº4 do CPC.
Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), há apenas uma questão a tratar: saber se o Autor, como sócio e gerente da sociedade requerida, pode requerer a sua insolvência.

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II – Fundamentação

Vamos ao tratamento da questão enunciada.
Como se vê do alegado na petição inicial e do que se questiona no recurso, está em causa apurar se o autor, sócio e gerente da sociedade por quotas requerida, tem legitimidade para requerer a declaração da insolvência desta, por via da sua consideração como pessoa legalmente responsável pelas dívidas da mesma.
Vejamos então.
Como se prevê no art. 20º nº1 do CIRE, “[a] declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, (…)”, sendo que, por outro lado, os responsáveis legais pelas dívidas do devedor estão definidos no art. 6º nº2 do mesmo diploma como “as pessoas que, nos termos da lei, respondem pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas do insolvente, ainda que a título subsidiário”.
Como, explicitando esta última asserção, referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, no seu “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, pág. 104, em anotação ao art. 6º, “É, porém, essencial que estejamos sempre em presença de uma responsabilidade ilimitada, o que se traduz na concertação de dois vectores fundamentais: um é a não dependência dos montantes das dívidas ou da sua natureza ou fonte; outro é o da afectação da totalidade das forças do património do responsável no pagamento. (…) O pensamento legislativo pode, porém, exprimir-se da seguinte forma: são responsáveis legais todos aqueles, mas só aqueles, que estão sujeitos a pagar a generalidade das dívidas do insolvente por determinação da lei, que é sempre e unicamente a fonte da responsabilidade” (sublinhados nossos).
Como se refere no acórdão da Relação de Coimbra de 29/1/2019 (proc. nº2705/18.0T8LRA.C1, relator Barateiro Martins, disponível em www.dgsi.pt), integram a previsão daquele art. 6º nº2 os “sócios de responsabilidade ilimitada” – sendo estes, precisamos nós por referência aos preceitos legais onde está expressamente prevista tal responsabilidade, os sócios de sociedades em nome colectivo (art. 175º nº1 do CSC), os sócios comanditados de sociedades em comandita (arts. 465º nº1, 2ª parte e 175º nº1 do CSC), os sócios de sociedades comerciais sem personalidade jurídica (por via da previsão dos arts. 38º nº1, 39º nº1 e 40º nº1 do CSC, atinentes a negócios realizados em nome da sociedade no período compreendido entre a sua constituição e o seu registo definitivo, pois só com este, como decorre do art. 5º do CSC, a sociedade adquire personalidade jurídica) e os sócios de sociedades civis (art. 997º nº1 do C.Civil) – bem como os membros de responsabilidade ilimitada de entidades não societárias.
Ora, considerando que, nas sociedades por quotas, como é o caso da requerida, só o património social é que responde para com os credores pelas dívidas da sociedade (art. 197º nº3 do CSC), é óbvio de concluir que o requerente, como sócio e ainda que gerente da mesma, não é pessoa que responda pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas da sociedade, ainda que a título subsidiário.
Efectivamente, não obstante nos arts. 23º e 24º da Lei Geral Tributária (Dec.Lei 398/98 de 17/12) se preveja a responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes por dívidas da sociedade, cumpre precisar que tais preceitos se referem a dívidas tributárias cuja frustração de pagamento pela sociedade seja imputável a conduta do administrador ou gerente (como bem se vê do referido sob as alíneas a) e b) do nº1 do art. 24º).
Aliás, aqueles arts. 23º e 24º da Lei Geral Tributária acabam por ser uma espécie de concretização, para efeitos tributários, da responsabilidade dos gerentes ou administradores para com os credores sociais prevista no art. 78º nº1 do CSC, na qual tal responsabilidade é também circunscrita às situações de inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção de tais credores por parte daquelas pessoas.
São portanto casos especiais de possível responsabilização do administrador ou gerente uma vez verificados os circunstancialismos concretamente exigidos naqueles preceitos e não se integram numa qualquer responsabilidade geral e ilimitada por quaisquer dívidas da sociedade, que, como vimos, é a que está em causa por via da previsão do corpo do art. 20º do CIRE em conjugação com o disposto no art. 6º nº2 do mesmo diploma.
Perante o que se vem de analisar, é de concluir que o requerente, enquanto sócio e gerente da sociedade por quotas requerida, não preenche o conceito de responsável legal pelas dívidas de tal sociedade nos termos definidos pela conjugação daqueles preceitos do CIRE, do que decorre a sua ilegitimidade para, por si próprio, pedir a declaração de insolvência da referida sociedade.
Como tal, porque a ilegitimidade do requerente é uma excepção dilatória de conhecimento oficioso (arts. 577º e) e 578º do CPC e art. 17º nº1 do CIRE) e, no caso, como previsto no art. 27º nº1 a) do CIRE, leva ao indeferimento liminar do pedido de declaração de insolvência, há que confirmar a decisão recorrida.

Improcede pois o recurso.
As respectivas custas ficam a cargo do recorrente, porque nele decaiu (art. 527º nºs 1 e 2 do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):
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III – Decisão
Por tudo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso, mantendo-se decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
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23/5/2022
Mendes Coelho
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim