ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
PROPORCIONALIDADE
DANOS
INDEMNIZAÇÃO
Sumário

I - Quando lesante e lesado tenham contribuído, por atuação por negligência inconsciente de ambos, para a produção do acidente e para os danos dele resultantes, a quota parte da responsabilidade haverá de fixar-se em razão da gravidade relativa do ato culposo de cada interveniente. O qual, por sua vez, tem de obter-se através da ponderação da perigosidade imanente às proibições ou restrições de circulação vial que cada um violou, ou, em outro registo, da gravidade dos factos que essas regras pretendem evitar.
II - No caso dos autos, as contra-ordenações cometidas pelo peão são de longe menos graves – vejam-se as coimas aplicáveis a cada uma das infrações – e em menor número do que as cometidas pelo condutor do veículo automóvel.
III - Certo que o peão não deve atravessar a estrada sem se certificar de que não circulam veículos na via, nem pode fazê-lo na diagonal e, existindo passadeira a menos de 50 metros, seria por ali que deveria fazê-lo.
IV - Mas a existência de passadeira nas proximidades não legitima o atropelamento, tratando-se no caso de pessoa duplamente vulnerável: peão e criança.
V - Tendo avistado o peão na berma, atravessando a hemi-faixa contrária, de dia, em reta com visibilidade, numa zona em que existem casas que deitam diretamente para a estrada e onde há uma passadeira para peões, cabia ao condutor do veículo automóvel, não só observar o limite de velocidade para as localidades (até 50 Kms/hora), como regular a velocidade atendendo à presença do peão na berma e às caraterísticas habitacionais do local.
VI - Sendo assim, considerando a gravidade das culpas exposta na natureza e número de contra-ordenações violadas de parte a parte e o maior contributo objetivo do carro para os danos, consideramos mais ajustado fixar a medida de contribuição em 70% para o automóvel e 30% para o peão.

Texto Integral

Proc.º 686/18.0T8MCN.P1

Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
AUTORA: X..., S.A, com sede na Av. ..., ..., Lisboa.
REUS: AA e BB, por si e em representação do filho, CC, com domicílio na Rua ..., ..., Marco de Canaveses.
Por via da presente ação declarativa, pretende a A. obter dos RR. o pagamento da quantia de €5.170, 05, acrescida de juros de mora desde 15.2.2017 e até integral pagamento.
Para tanto, alegou ter celebrado seguro facultativo relativo a veículo automóvel que foi interveniente em acidente de viação causado pelo terceiro R., então menor de 14 anos, o qual atravessou a via num local onde lhe não era permitido, por existir passadeira para peões a menos de 50 metros, tendo embatido no automóvel segurado, causando-lhe danos materiais os quais a A. já pagou.

Contestaram os RR. afirmando ter o sinistro ocorrido porque o condutor do veículo circulava dentro da localidade a uma velocidade superior a 80 kms/hora, razão pela qual formulam pedido reconvencional, uma vez que o menor sofreu lesões físicas que determinaram um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 3%, reclamando a este respeito €17.001,00; pelo dano não patrimonial, a quantia de €13.000,00.

A A. ofereceu réplica, impugnando o pedido reconvencional.

Realizado julgamento veio a ser proferida sentença, datada de 21.10.2021, a qual culminou com a seguinte decisão:
a) Julgou parcialmente procedente, por parcialmente provada a presente ação e, em consequência, condenou os Réus AA e BB, por si e em representação de CC, menor à data dos factos, no pagamento à Autora X..., S.A. da quantia de 2.585,03€ (dois mil, quinhentos e oitenta e cinco euros e três cêntimos), correspondente a 50% dos danos patrimoniais invocados, acrescidos de juros de mora desde 15 de fevereiro de 2017 e até integral e efetivo pagamento.
b) Julgou parcialmente procedente, por parcialmente provada a reconvenção e, em consequência, condenou a Reconvinda X..., S.A. no pagamento aos Reconvintes AA e BB, por si e em representação de CC da quantia de 4.000,00€ (quatro mil euros), correspondente a 50% dos danos não patrimoniais invocados, acrescidos de juros de mora até integral e efetivo pagamento.
c) Absolveu as partes do demais peticionado.

Foram aí dados como provados os seguintes factos:
1) A Autora exerce, devidamente autorizada, a indústria de seguros em diversos ramos.
2) No exercício da sua atividade, a Autora celebrou acordo com DD seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, o qual, continha entre outras, a cobertura facultativa “Choque, Colisão, Capotamento”, titulado pela apólice n.º ..., relativo ao veículo de matrícula ..-BX-.. (doravante apenas designado por “veículo BX”).
3) No dia 17 de julho de 2015, pelas 16h30m, na Rua ..., em ..., concelho de Marco de Canaveses, distrito do Porto, o veículo BX, seguro na ora Autora, era conduzido por DD.
4) O referido local insere-se numa localidade, detendo uma faixa de rodagem para cada sentido de marcha, cujo limite máximo de velocidade é 50 km/h.
5) É uma reta com extensão concretamente não apurada e 5,65 m. de largura.
6) Com habitações do lado da via à direita, no sentido .../....
7) O piso é asfaltado e encontra-se em bom estado de conservação.
8) Nas circunstâncias de modo e lugar supra referidas, o veículo BX circulava na Rua ..., no sentido .../....
9) O condutor do veículo BX circulava com atenção ao trânsito.
10) CC nasceu em .../.../2001.
11) CC, sem que os progenitores, AA e BB, se apercebessem, havia saído de casa com n.º de polícia ... e atravessado a via com o objetivo de colocar o lixo no contentor afeto à sua recolha, sito a cerca de 20 m. da referida casa.
12) O referido contentor encontrava-se, à data referida em 3), colocado na berma, considerando o sentido .../....
13) Após colocar o lixo no contentor, CC, imprudente e alheado ao tráfego existente, atravessou a faixa de rodagem da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do veículo BX, diagonalmente em relação à via, em passo de corrida, perto do mencionado n.º de polícia ....
14) No local onde CC atravessou inexiste passadeira para peões, apesar de CC saber que, a menos de 50 metros, existe uma passadeira de travessia de peões.
15) CC, já próximo da berma/passeio, veio a ser atropelado pelo veículo BX, caindo sobre o para-brisas.
16) Apesar do condutor do veículo BX ter visto CC a colocar o lixo no contentor.
17) CC foi projetado a cerca de 30 m. do concreto local do atropelamento, onde se ficou imobilizado o veículo BX, e meio metro do limite da via.
18) Em consequência do sinistro, CC sofreu fratura do colo do úmero direito, e foi submetido a tratamento cirúrgico a 18.07.2015 para redução da fratura.
19) Após a cirurgia foi-lhe diagnosticado um quadro de “trombocitopenia”, tendo sido transferido para o Hospital ....
20) A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 04.10.2015, tendo em conta a data da alta clínica, o tipo de lesões resultantes e o tipo de tratamentos efetuados.
21) CC apresentou défice funcional temporário total (anteriormente designado por incapacidade temporária geral total e correspondendo aos períodos de internamento e/ou de repouso absoluto), que se terá situado entre 15.07.2015 e 25.07.2015, ou seja, num período de 10 dias.
22) CC apresentou défice funcional temporário parcial (anteriormente designado por incapacidade temporária geral parcial, correspondendo ao período que se iniciou logo que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização desses atos, ainda que com limitações), que se terá situado entre 26.07.2015 e 04.10.2015, ou seja, num período de 71 dias.
23) CC apresentou quantum doloris (correspondente à valoração do sofrimento físico e psíquico vivenciado pela vítima durante o período de danos temporários, isto é, entre a data do evento e a cura ou consolidação das lesões), fixável no grau 4 numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta as lesões resultantes, o período de recuperação funcional, o tipo de traumatismo e os tratamentos efetuados.
24) CC apresenta défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 3 pontos.
25) CC apresenta dano estético permanente (correspondente à repercussão das sequelas, numa perspetiva estática e dinâmica, envolvendo uma avaliação personalizada da afetação da imagem da vítima quer em relação a si próprio, quer perante os outros), fixável no grau 3, numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta as cicatrizes.
26) Em consequência do sinistro, o veículo BX sofreu danos na dianteira da viatura, com forte incidência no para-brisas, tejadilho e capot, cuja reparação ascende à quantia de 4.760,30€.
27) A Autora procedeu à reparação desses danos, despendendo a quantia de 4.760,30€ liquidados à “J..., S.A.”, a título de reparação do veículo BX; 167,05€ liquidados à “E... S.A.”, a título de despesas com o aluguer de uma viatura de substituição; 154,98€ liquidados à “K... S.A.”, a título de despesas com o aluguer de uma viatura de substituição; 45,90€ liquidados à “L... Unipessoal Lda.”, a título de despesas de investigação; 41,82€ liquidados à “R... Unipessoal Lda.”, a título de despesas de peritagem ao veículo seguro; totalizando a quantia global de 5.170,05€.
28) A Autora solicitou aos Réus, no dia 15 de fevereiro de 2017, o pagamento da quantia supra referida.
29) No entanto, os Réus não assumiram qualquer pagamento.

Foram considerados Factos Não Provados os seguintes:
a) No descrito em 8), o veículo BX seguia uma velocidade nunca superior a 40 km/h.
b) O condutor do veículo BX, escassos segundos antes de embater, circulava distraído e a velocidade superior a 80 km/h.
c) CC iniciou o atravessamento da via com a devida atenção à circulação automóvel.
d) O condutor do veículo BX fez tudo o que estava ao seu alcance para evitar a colisão.

Desta decisão recorrem os RR. visando a sua absolvição da totalidade do pedido da A, e a condenação da reconvinda na totalidade do pedido reconvencional.
Para tanto, alinhou argumentos que assim sintetizou em conclusões:
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Contra-alegou a A. apresentando as seguintes conclusões:
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Os autos correram vistos.

Objeto do recurso:
- Da alteração da matéria de facto impugnada;
- Da medida da contribuição de cada interveniente para o sinistro;
- Dos valores devidos a título indemnizatório.

FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentos de facto
Analisemos o pretendido pelos recorrentes quanto a darem-se como provados os factos b) e c)[1] e como não provados os factos 9 e 13[2], sendo que neste último caso os recorrentes não concordam com a referência a “imprudente e alheado ao tráfego existente”. Pretendem, ainda, se adite um facto novo, relativo à velocidade (excessiva) a que circularia o BX.
Iniciando a ponderação pelo facto provado n.º 13 e não provado da al. c):
Em primeiro lugar há que considerar que a referência à conduta do peão como sendo imprudente é simplesmente conclusiva e não deve constar da matéria de facto. O que importa dar como provado é o facto ou factos donde resulta a conclusão sobre a imprudência do peão e, no caso, acrescentou-se que o “peão estava alheado ao tráfego existente”, o que significa que não atentou nos automóveis que circulavam na estrada antes de iniciar o atravessamento da mesma e, por isso, não efetuou tal atravessamento com a devida atenção à circulação automóvel.
Neste capítulo – ressalvada a referência conclusiva a “imprudente”, tudo o mais é de manter em 13 provado e c) não provado.
Não concordamos com os recorrentes quando se apoiam única e exclusivamente nas declarações do peão CC. É que este era uma criança de 14 anos aquando do sinistro, tendo decorrido seis anos até ser inquirido em tribunal e o certo é que dois/três dias após o sinistro foi ouvido sobre o mesmo pelo agente da GNR que efetuou a participação e nessa altura afirmou o que ficou consignado na mesma: “Que apenas se recorda que saiu de casa para levar o lixo ao contentor e que quando regressava ter-se-á dado a colisão, da qual não se recorda como e em que circunstâncias aconteceu” (fls. 21).
Aliás, mesmo em audiência, afirmou expressamente CC que “pouco se lembra do que aconteceu”.
Sendo assim, parece-nos evidente não se ter o mesmo certificado da aproximação de um carro provindo de baixo (sentido ...-...) e de outro provindo de cima (sentido inverso). É que este último provinha de lá com certeza, tanto que atropelou o peão quando este atravessava a estrada em passo de correria, tratando-se de uma reta com boa visibilidade e extensão, como se vê das fotografias colhidas na inspeção ao local e como resulta do depoimento do agente da GNR, EE. O próprio condutor do BX, DD, também viu o peão na berma, junto ao contentor, o que significa que este último também o podia ver, não colhendo faltas de visibilidade do peão para cima.
Por outra parte, a testemunha equidistante que foi a única que presenciou o sinistro, sendo sido objetivo no seu depoimento, FF, viu o jovem antes do atropelamento, correndo, na diagonal, desde casa até ao contentor do lixo e depois fazendo o trajeto contrário, asseverando expressamente que o peão não olhou para cima.
Por estes motivos, com exceção da referência a “imprudente” no ponto 13, mantém-se integralmente a redação deste e, bem assim, a da al. c) não provada.
Quanto ao ponto 9, afigura-se-nos assistir razão aos recorrentes.
Com efeito, nada dos autos ou do julgamento nos permite concluir que o condutor do BX circulava com atenção ao trânsito.
Antes de entrarmos na questão da velocidade a que seguiria, vemos que o atropelamento se dá já depois do condutor do BX ter visto o peão na berma sita à sua esquerda e de este ter cruzado já a hemifaixa da sua esquerda, vindo a colhê-lo no ponto indicado por uma estrela no croqui de fls. 22 (referido à GNR pelo condutor do BX e pela testemunha FF). Assim sendo, tratando-se de reta extensa e com boa visibilidade (recorde-se o testemunho do agente da GNR), não se compreende que o BX não tenha diminuído a velocidade e não tenha deixado rasto de travagem (nem sabemos sequer se travou posto que o testemunho da mãe do menor, BB, emotivo e naturalmente preocupado com o estado de saúde do filho prostrado no chão, não mereceu credibilidade quando diz ter ouvido travagem).
Sendo assim, não temos condições para afirmar com segurança que o condutor do BX circulava com atenção ao trânsito.
O ponto 9 dos factos provados é, por isso, eliminado e passa a constar dos factos não provados.
Quanto à al. b) não provada, afigura-se-nos não ter ficado demonstrada com certeza absoluta qual a velocidade a que seguia o BX, nomeadamente se a 80 kms/hora.
São incompreensíveis os cálculos que a este respeito se deixaram consignados nas alegações de recurso.
Na verdade, não se compreende a distância de 136 metros que se diz nas alegações ser aquela a que se encontrava o BX quando o peão iniciou o atravessamento, sendo também meramente hipotético afirmar-se que demorou 6, 3 segundos a percorrer 14,08 m.
Logo não é por aqui que se calcula a velocidade do BX, menos ainda que se chegue a 80 Kms/hora.
Porém, concordamos, como na sentença recorrida, que o BX circularia a mais de 50 kms/hora, embora a velocidade não concretamente apurada.
Não obstante o discurso do condutor DD que declarou “pensar que seguia dentro dos limites de velocidade”, e, bem assim, o depoimento de FF, que afirmou que a velocidade do BX era como a sua, i.é, “normalíssima”, explicando depois que seguia a 30 ou 40 kms/hora e, mais tarde, admitindo que pudesse ser a 50 Km/hora, a verdade é que elementos objetivos da dinâmica do sinistro nos permitem concluir que o BX circulava a mais do que 50 Kms/hora.
Vejam-se os extensos danos causados no veículo BX – tejadilho, pára-brisas, capot, ótica, etc… - como descreveu o condutor EE e o perito GG, sendo ainda visível nas fotografias de fls. 250 e 25 a 29.
Depois, temos que considerar o facto provado 17 do qual resulta ter o peão sido projetado a cerca de 30 metros do local do atropelamento.
Quer isto dizer que, muito embora não saibamos qual a velocidade concreta a que seguia do BX e se o respetivo condutor ia distraído, sempre pode dar-se como provado o seguinte:
“O BX circulava a uma velocidade não concretamente apurada, mas superior a 50 Kms/hora”.
É, pois, de acrescentar este facto 30 à matéria de facto provada, mantendo não provado o ponto b), sem prejuízo do que agora se deixou demonstrado.
Assim, a matéria de facto provada e não provada é que a resultou apurada em primeira instância, com as alterações que agora introduzimos.
Fundamentos de direito
A sentença recorrida considerou ter o peão violado o disposto nos arts. 99.º e 101.º Código da Estrada na redação vigente ao tempo do sinistro, i.é, a que resulta da 17.ª versão, introduzida pela Lei n.º 72/2013, de 03/09.
Do primeiro daqueles normativos, com relevo para o caso resulta o seguinte:
1 – Os peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou, na sua falta pelas bermas.
2- Os peões podem, no entanto, transitar pela faixa de rodagem, com prudência, e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, nos seguintes casos:
a) Quando efetuem o seu atravessamento.
(…)
5- Quem infringir o disposto nos números anteriores é sancionado com coima de (euro) a 50 (euro).
Por seu turno, o art. 101.º dispõe:
1 - Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respetiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente.
(…)
3 – Os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 m, perpendicularmente ao eixo da via.
(…)
5- Quem infringir o disposto nos números anteriores é sancionado com coima de (euro) a (euro) 50.
Relativamente ao condutor do BX, a sentença considerou violados os arts. 24.º e 25.º do mesmo Código, que estatuem deste modo, respetivamente:
1 -O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às caraterísticas e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
(…)
3 – Quem infringir o disposto nos números anteriores é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600.
Por seu turno, o 25.º, n.º1, prevê que o condutor modere especialmente a velocidade “à aproximação de passagens assinaladas na faixa de rodagem para a travessia de peões e/ou velocípedes” (cfr. alínea a) do n.º1 do citado normativo legal); “nas localidades ou vias marginadas por edificações” [cfr. alínea c)], e mesmo “à aproximação de utilizadores vulneráveis” [cfr. alínea e)]. O número seguinte estatui: “Quem infringir o disposto no número anterior é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600”.
Utilizador vulnerável é, na definição legal, o peão, em particular, entre outros, as crianças (art. 1.º al. q) CE).
Tendo-se agora dado como provado que o BX circulava a mais de 50 Kms/hora, dentro de uma localidade, o mesmo infringiu ainda o disposto no art. 27.º que é sancionado no mínimo (porque ignoramos a velocidade concreta) com coima de 60 a 300 euros (n.º 2 al.a).
Quanto à velocidade do automóvel naquelas circunstâncias concretas, há ainda que ponderar o disposto no art. 103.º, n.º 2CE, segundo o qual, ao aproximar-se de uma passagem de peões ou de velocípedes, junto da qual a circulação de veículos não está regulada nem por sinalização luminosa nem por agente, o condutor deve reduzir a velocidade, sendo que a infração a esta norma é sancionada com coima de 120 a 600 euros (n.º 4).
A sentença concluiu ter existido concorrência de culpas na produção do evento e na medida de 50% para cada um dos intervenientes.
Fez, assim, aplicação do disposto no art. 570.º CC, normativo que abarca a dupla concorrência do facto culposo do lesado para a produção dos danos e para o agravamento dos danos.
Diz a este respeito Brandão Proença[3]”,Assente a eficiência etiológica das condutas culposas, e longe da consagração do «tudo ou nada», o tribunal, na imputação das consequências indemnizatórias e para poder concluir pela concessão, redução ou exclusão da indemnização, deverá ponderar a gravidade da culpa (v.g. em função das regras legais violadas) e ter em conta os efeitos que delas decorrem, pois nem sempre a culpa mais intensa provoca os danos mais extensos”, acrescentando que o tribunal tem legitimidade para tratar mais favoravelmente certos lesados vulneráveis (peões, crianças, idosos…), o que está de acordo com as Diretivas europeias (ver, aliás, o art. 7.º, n.º 1, do DL 383/89, de 06/11), a jurisprudência do TJUE (como a do Ac. Ambrósio Lavrador, C-409/09, de 09.06.2011 (…)”.
Quer isto dizer que a ponderação da medida de contribuição para os danos depende da gravidade das culpas e das consequências que delas resultam.
Como se afirma no Ac. STJ, de 17.3.2021[4], os condutores não têm “salvo conduto para, nos 50 metros que antecedem a passadeira, poderem atropelar pessoa que esteja a atravessar a faixa de rodagem (…). Não só não existe, evidentemente, semelhante direito, como não é por se deparar com um peão a atravessar a faixa de rodagem a menos de 50 metros de uma passadeira que o condutor do automóvel pode eximir-se da responsabilidade pela produção do acidente e respetivo resultado, quando tenha adotado conduta culposa que contribua para o atropelamento e – como sucedeu –se revele determinante da gravidade do resultado. (…) Quando lesante e lesado tenham contribuído, por atuação por negligência inconsciente de ambos (…) para a produção do acidente e os danos dele resultantes, a quota parte da responsabilidade haverá de fixar-se em razão da gravidade relativa do ato culposo de cada interveniente. O qual, por sua vez, tem de obter-se através da ponderação da perigosidade imanente às proibições ou restrições de circulação vial que cada um violou, ou, em outro registo, da gravidade dos factos que essas regras pretendem evitar”
No caso dos autos, temos que as contra-ordenações cometidas pelo peão são de longe menos graves – vejam-se as coimas aplicáveis a cada uma das infrações – e em menor número do que as cometidas pelo condutor do veículo automóvel.
Certo que o peão não deve atravessar a estrada sem se certificar de que não circulam veículos na via, nem pode fazê-lo na diagonal e, existindo passadeira a menos de 50 metros, seria por ali que deveria fazê-lo.
Mas já referimos que a existência de passadeira nas proximidades não legitima o atropelamento, tratando-se no caso de pessoa duplamente vulnerável: peão e criança. Tendo avistado o peão na berma, atravessando a hemi-faixa contrária, de dia, em reta com visibilidade, numa zona em que existem casas que deitam diretamente para a estrada e onde há uma passadeira para peões, cabia ao condutor do veículo automóvel, não só observar o limite de velocidade para as localidades (até 50 Kms/hora), como regular a velocidade atendendo à presença do peão na berma e às caraterísticas habitacionais do local.
Como começamos por referir foram várias e graves as contra-ordenações praticadas pelo condutor do BX, sendo que os danos causados ao peão – de natureza física – foram mais graves do que os danos apenas materiais no veículo.
Sendo assim, considerando a gravidade das culpas exposta na natureza e número de contra-ordenações violadas de parte a parte e o maior contributo objetivo do carro para os danos, consideramos mais ajustado fixar a medida de contribuição em 70% para o automóvel e 30% para o peão.
As alegações recursivas pugnam ainda pela fixação de uma indemnização pelo dano biológico que a sentença obnubilou, mas que estava pedido em 24.º da reconvenção.
A determinação do dano patrimonial futuro, com base na afetação permanente e irreversível da capacidade funcional, com ou sem afetação total ou parcial da capacidade para o exercício da atividade habitual (com valores indemnizatórios reforçados neste último caso) foi objeto de acórdão uniformizador de jurisprudência (AUJ) proferido pelo STJ, a 28.3.2019 (Proc. 1120/12.4TBPLT.G1.S1)[5]. Nesse aresto consignaram-se os seguintes princípios que aqui renovamos:
- A indemnização deste dano passa pela determinação de um capital produtor um rendimento que se venha a extinguir no final do período provável de vida ativa do lesado, suscetível de lhe garantir, durante esta, as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganho.
- A utilização de fórmulas abstratas ou critérios, como elemento auxiliar, tornam mais justas, atuais e minimamente discrepantes, as indemnizações.
- O recurso aos juízos de equidade é defensável como complemento para ajustar o montante encontrado à solução do caso concreto.
Por nós, sempre aceitámos que valorização deste dano e os critérios de fixação da respetiva indemnização não dispensam um ponto de partida mais ou menos seguro e que consiste no apuramento dos rendimentos que o lesado recebe na sua ocupação normal ou previsível e determinar qual o período futuro de vida (que não apenas ativa) que ainda teria.
Tradicionalmente, os tribunais têm-se socorrido de diversos critérios para o cômputo da indemnização por danos derivados da redução ou extinção da capacidade de ganho[6].
Já se utilizou um critério de capitalização do salário, através da atribuição de um capital cujo rendimento, calculado com base na taxa média e líquida de juros dos depósitos a prazo, fosse equivalente ao rendimento perdido.
Também é vulgar elaborar-se um cálculo baseado em tabelas financeiras, método que assenta em duas condicionantes, uma relativa à esperança de vida do lesado (e não apenas à vida ativa como se acentua neste AUJ) e outra à taxa de juros líquida (que hoje não é superior a 1%, atenta a generalizada baixa das taxas de juro).
Por vezes utilizam-se regras do direito do trabalho usadas no cálculo das pensões por acidente de trabalho ou capital por remição.
Estes critérios não devem ser aplicados mecanicamente mas podem servir como orientação geral ou elemento operativo, no âmbito da tarefa da fixação da indemnização, sujeita à correção imposta pelos circunstancialismos da cada caso mas sempre tendo por pressuposto que a quantia a atribuir ao lesado o há-de ressarcir, durante a sua vida (a laboralmente útil e a posterior), da perda sofrida e mostrar-se esgotada no fim do período considerado.
Destarte, faremos, numa primeira fase, uma abordagem ao problema da fixação da indemnização relativa à perda da capacidade aquisitiva por meio de simples cálculo matemático (refira-se que a tendência em termos de direito comparado é a de fixar tão apriorística e rigorosamente quanto possível os elementos de cálculo deste tipo de indemnização, não só para possibilitar soluções de consenso extrajudicial mas também para evitar casos de injustiça relativa que resultam da diversidade de critérios que se adotam nos diferentes fóruns judiciários, tendência que, quanto a nós, será inteiramente de aplaudir de iure condendo).
Lançaremos mão da equação matemática já utilizada em arestos jurisprudenciais e que é a seguinte:
C = (1+ i)ⁿ – 1 x P
(1+I)ⁿ x i
Nesta equação C representa o capital a depositar logo no primeiro ano, P, a prestação a pagar anualmente e i, a taxa de juro que se fixa em 1% atenta a baixa das taxas de juro e n, o número de anos de vida que o sinistrado terá.
Consideraremos aqui uma esperança de vida de 78 anos[7] e apelamos ao salário mínimo nacional (smn) ao tempo da consolidação das lesões (outubro de 2015), uma vez que se tratava de menor, com 14 anos, que não exercia profissão remunerada, salário esse que era de €505,00.
O A. nasceu a 11.5.2001, contando à data da consolidação das lesões 14 anos de idade. Até aos 71 anos faltariam 57 anos.
O rendimento anual considerando o smn multiplicado por 14 meses seria de €7.070,00, sofrendo de um défice funcional permanente de 3%, o que equivale a uma perda anual de € 212, 10.
Assim, utilizando a fórmula que se propõe, teremos uma taxa de juro real líquida de 1% (1 + 0.01).

Logo, C= (1 + 0,1%)57- 1 x €212,10
(1 + 0.1%)57 x 0.1%

C= € 11.745,89
Face a este valor, admite-se ser de arredondar a indemnização a faixar a tal título para €11.800,00, da qual a A. pagará 70%, ou seja, €8.260,00.
Mercê do acidente, o lesado viu ainda atingidos outros bens, agora de natureza não patrimonial, uma vez que sofreu ofensas corporais extensas, dores físicas, prejuízos de ordem estética, diminuição da sua capacidade funcional e mesmo perda de capacidade aquisitiva, etc…
Sendo certo que nada apagará já as dores que sentiu (e continua a sentir) ou trará de volta a vitalidade e energia físicas perdidas não é menos verdade que estes danos, quer os que são diretamente biológicos, resultantes das alterações do estado morfológico em geral (as lesões, incapacitação funcional), quer os que respeitam à perturbação do estado de saúde do lesado, traduzida nas dores sentidas e incómodos resultantes dos internamentos, dos sofrimentos psíquicos inerentes, são danos graves merecedores de uma justa e significativa reparação, que se fixa num quantitativo unitário, de acordo com o disposto no art. 496.º, n.º1 e 3 Código Civil.
Apurou-se que o menor sofreu fratura do colo do úmero direito e foi submetido a tratamento cirúrgico a 18.07.2015 para redução da fratura. Após a cirurgia foi-lhe diagnosticado um quadro de “trombocitopenia”, tendo sido transferido para o Hospital ....
Apresentou défice funcional temporário total que se terá situado entre 15.07.2015 e 25.07.2015; apresentou défice funcional temporário parcial, correspondendo ao período que se iniciou logo que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização desses atos, ainda que com limitações), que se terá situado entre 26.07.2015 e 04.10.2015; apresentou quantum doloris de grau 4; apresenta défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 3 pontos, bem como dano estético permanente fixável no grau 3.
Considerando a regra geral que resulta dos arts. 496.º e 494.º Código Civil que se reconduzem, genericamente, à avaliação dos critérios de equidade, o que não dispensa a ponderação da orientação jurisprudencial em geral, que não é despicienda, a fim de evitar situações de injustiça relativa[8] , consideramos ajustada a quantia de €11.000,00, cabendo à reconvinda a compensação a este título de €7.700,00.
Aos valores acabados de fixar acrescem juros de mora legais a contar desta data porque agora actualizados[9].
Face à alteração das percentagens de co-responsabilidade de ambos os intervenientes, é ainda alterada a al. a) do dispositivo da sentença, cabendo aos RR. o pagamento à A. de 30% do valor €5.170,05, isto é, €1.551,01, com juros como fixado na sentença.

Dispositivo
Pelo exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, revogar a sentença recorrida, condenando os RR. AA e BB, por si e em representação do filho então menor, CC, a pagar à A. a quantia de €1.551,01, com juros de mora legais, vencidos desde 15.2.2017 e vincendos até integral pagamento.
No tocante à reconvenção, condena-se a reconvinda X ... a pagar aos reconvintes AA e BB, por si e em representação do filho então menor, CC, a quantia de €15.960,00, acrescida de juros legais de mora desde esta data e até integral pagamento.

Custas pelas partes na proporção do decaimento.

Porto , 4 de Maio de 2022
Fernanda Almeida
Maria José Simões
Abílio Costa
_________________________
[1] b) O condutor do veículo BX, escassos segundos antes de embater, circulava distraído e a velocidade superior a 80 km/h. c) CC iniciou o atravessamento da via com a devida atenção à circulação automóvel.
[2] 9) O condutor do veículo BX circulava com atenção ao trânsito. 13) Após colocar o lixo no contentor, CC, imprudente e alheado ao tráfego existente, atravessou a faixa de rodagem da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do veículo BX, diagonalmente em relação à via, em passo de corrida, perto do mencionado n.º de polícia ....
[3] Comentário ao Código Civil, Das Obrigações em Geral, Faculdade de Direito da Universidade Católica, p. 579-560.
[4] Proc. 417/16.9T9MAI.P1.S1, que fixou a medida de contribuição para os danos (morte do peão) em 80% para o veículo e 20% para o peão.
[5]Decisão que considera exactamente ser o dano biológico um dano abrangente de prejuízos alargados incidentes na esfera patrimonial do lesado, desde a perda do rendimento total ou parcial auferido no exercício da sua atividade profissional habitual até à frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer outras atividades ou tarefas de cariz económico, passando ainda pelos custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas atividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou o malogro do nível de rendimentos expetáveis.
[6] As tabelas de determinam o dano biológico constantes das Portarias 377/08, de 26.5, e 679/09, de 25.6, ficam aquém dos parâmetros jurisprudenciais, como é notado no AUJ.
[7] https://www.pordata.pt/Portugal/Esperan%c3%a7a+de+vida+%c3%a0+nascen%c3%a7a+total+e+por+sexo+(base+tri%c3%a9nio+a+partir+de+2001)-418-5193
[8] Para 6% de incapacidade em contexto semelhante ao dos autos, foi fixado valor de € 18.000, 00, no Ac. RP, de 27.9.2018, Proc. 903/15.8T8GDM.P1.
[9] Jurisprudência n.º 4/2002
Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação.
09.05.2002
Proc. n.º 1508/2001 – 1.ª Secção
José Augusto Sacadura Garcia Marques (relator)
DR 146 SÉRIE I-A, de 2002-06-27