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CRIME DE AMEAÇA
AMEAÇA ADEQUADA
PROVA
IN DUBIO PRO REO
Sumário
I. A ameaça que constitui o crime previsto e punido pelo artigo 153.º do Código Penal é a promessa de um mal e o mal prometido há-de constituir um crime. E são elementos constitutivos do crime de ameaça: (i) o anúncio de que o agente pretende infligir a outrem um mal futuro; (ii) dependente da sua vontade; (iii) que constitua crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor; e (iv) que esse anúncio seja adequado a provocar na pessoa a quem se dirige medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação. II. A ameaça adequada é que, de acordo com a experiência comum, é suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características da ameaçado e conhecidas do agente), independentemente de este ter ficado ou não intimidado. III. Não proporcionando a prova produzida em julgamento a possibilidade avaliar as circunstâncias em que o Arguido disse à Ofendida “não passa de amanhã, vou-te limpar o sebo a ti e à tua mãe” e “qualquer dia mato-te, a ti e à tua mãe” – porque a Ofendida recusou legitimamente a depor, porque o depoimento da mãe desta em nada contribuiu para o esclarecimento do aspeto em questão, e porque o Arguido afirmou estar embriagado quando proferiu tais palavras - , e não evidenciando a Ofendida qualquer temor do seu companheiro, com quem continua a viver maritalmente, não se vislumbra falha na análise da prova, e muito menos falha grosseira e ostensiva. IV. Acresce que, face à prova produzida, não restaria senão convocar o princípio in dubio pro reo, que constitui imposição dirigida ao Juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora
I. RELATÓRIO
No processo comum n.º 250/20.3SXLSB do Juízo de Competência Genérica de Coruche da Comarca de Santarém, o Ministério Público acusou
CLA, solteiro, (…),
pela prática, em autoria material,
- de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a) do Código Penal;
- de um crime de ameaça agravada, previsto e punível pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal;
- um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 86.º, n.º 1, al. e), com referência aos artigos 2.º n.º 1 alínea ap) e artigo 3.º, n.º 2 alínea 3), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.
Não foi apresentada contestação escrita.
Realizado o julgamento, perante Tribunal Singular, por sentença proferida e depositada a 24 de novembro de 2021, foi decidido:
«a) Absolver o arguido CLA, da prática de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º, n.ºs 1, alínea a) e 2, alínea a) do Código Penal, do qual vinha acusado e, em consequência, não se arbitra qualquer indemnização. b) Absolver o arguido CLA, da prática de um crime de ameaça agravado, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, do qual vinha acusado. c) Condenar o arguido CLA, pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1, al. e), com referência aos art.ºs 2.º n.º 1 al. ap) e 3.º, n.º 2 al. 3) todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros), o que perfaz o montante global de € 400,00 (quatrocentos euros). d) Declarar perdidos a favor do Estado os objetos apreendidos nos autos, determinando-se o seu envio à P.S.P. e) Condenar o arguido em 2 U.C.’s de taxa de justiça e a suportar os demais encargos decorrentes com o processo.»
Inconformado com tal decisão, o Ministério Público dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
«1. Nos presentes autos, por sentença proferida em 24-11-2021, o arguido foi absolvido da prática do crime de ameaça qualificada, previsto e punido pelo artigo 153.º, 155.º, n.º 1, alínea a) por referência ao art. 131.º do Código Penal, de que vem acusado. 2. Ora, não pode o Ministério Público conformar-se com tal decisão absolutória, porque a mesma enferma de erro notório na apreciação da prova. 3. O Tribunal fundamentou a absolvição do arguido dando como não provados os elementos subjetivos do tipo de ameaça qualificada (pontos y), z) e aa) da motivação de facto). 4. O dolo e a intenção prevista no tipo pertencem ao mundo interior do agente. Por isso, ou é revelado pelo arguido, sob a forma de confissão, como sucedeu nos presentes autos, quer em sede de audiência de julgamento, quer em sede de primeiro interrogatório judicial, ou tem de ser extraído dos factos objetivos – isto é, inferido através da consideração de determinado circunstancialismo objetivo com idoneidade suficiente para revelá-lo. 5. Acontece que, na perspetiva do Ministério Público, além da confissão, e tendo em consideração as máximas da experiência, os factos objetivos dados como provados na sentença impunham que se desse também como provado o elemento subjetivo compreendida no tipo de crime de ameaça qualificada imputado ao arguido. 6. Esta atitude interna, por seu lado, pode ser lida com o suporte de elementos externos e objetivos que a revelam e nos quais externamente se manifeste. 7. A ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente), independentemente, de este ficar ou não intimidado. 8. O crime de ameaça não exige a intenção do agente em concretizar a ameaça nem exige a ocorrência do dano, ou seja, a consumação do crime ameaçado. É, aliás este o entendimento maioritário na jurisprudência e na doutrina, que defendem que, desde a entrada em vigor do Código Penal de 95, o crime de ameaça deixou de ser um crime de resultado, para passar a ser um crime de perigo. 9. Como nota Taipa de Carvalho, a tutela penal da liberdade é, a um tempo, negativa e pluridimensional. «Negativa, na medida em que visa impedir as ações de terceiros que afetem a liberdade de decisão e de ação individual; pluridimensional, uma vez que assume as diversas manifestações da liberdade pessoal (liberdade de autodeterminação, de movimento, de ação, sexual) como autónomos objetos de proteção penal», neste sentido, entre muitos, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 22.09.2015, reator Exmo. Desembargador Fernando Pina, disponível in www.dgsi.pt 10. Incompreensivelmente, o Tribunal deu como não provada o conhecimento do arguido sobre a aptidão da sua conduta a perturbar a tranquilidade da vítima e a causar-lhe alarme e temor pela integridade física e pela vida. 11. Ora, segundo as regras de experiência comum e normal acontecer, socorrendo-nos aqui do critério do homem médio, é natural que o cidadão comum tome por idónea e credível o anúncio de morte, da vítima e da sua progenitora, a quem a vítima solicitava suporte perante situação de crise, ou, nas palavras de Nuno Brandão, quando vivenciada micro episódios de violência doméstica era à sua mãe a quem a vítima pedia socorro. 12. Desta feita, o arguido era sabedor que tal conduta seria idónea a aterrorizá-la e a causar-lhe alarme e temor pela integridade física e pela vida, agindo livre, voluntária e conscientemente e com a intenção de atemorizar AME. 13. Centrando o enfoque na perspetiva da vítima, o Ministério Público considera que os crimes de ameaças qualificadas consumaram -se, quando o arguido, detentor de arma, de resto, como o mesmo confirmou em sede de audiência de julgamento e primeiro interrogatório judicial; ao qual foram apreendidas munições; o qual fora condenado por detenção de arma proibida; proferiu as expressões parafraseadas que chegaram ao conhecimento da vítima, tendo esta, na sua sequência, aceitado o patrulhamento de proximidade por parte de órgão de polícia criminal territorialmente competente (ponto 6. dos factos provados); tendo a, então, magistrada titular do inquérito, inclusive, estabelecido contacto com a vítima em setembro de 2020 e ao aperceber-se da ocorrência de conflito entre a vítima e o arguido acionado as forças de segurança que se deslocaram ao domicílio do casal. A intenção de causar receio e atemorizar a vítima ressalta evidente dessa conduta objetiva, bem como da concomitante atitude da vítima. 14. A Mma. Juíza “a quo” considerou que seria necessário que essas afirmações qualquer dia mato-te, a ti e à tua mãe e não passas de amanhã, vou-te limpar o sebo a ti e à tua mãe, fossem proferidas de modo adequado a que o anúncio desse mal fosse visto em abstrato, por uma pessoa média como um anúncio credível, o que, no seu entendimento, não se verifica no caso dos autos. 15. O Ministério Público não se pode conformar com este entendimento, porque o mesmo contraria as regras da lógica e da experiência comum, por um lado, e por outro, não é compaginável com a reação da vítima, a saída de casa, a realização de denúncia por alegada prática de crime de violência doméstica, a aceitação de policiamento de proximidade para sua segurança e proteção (facto provado 6.). 16. Ou seja, dos factos dados como provados na sentença teria de se extrair a conclusão da verificação do elemento subjetivo típico do crime de ameaça qualificada, sendo que conclusão contrária ofende as regras da lógica, da experiência comum.
Nestes termos, julgado vossas Excelências o presente recurso totalmente procedente, dando como provados os factos elencados nos referidos pontos y, z) e aa) da sentença e em consequência (estando reunidos todos os elementos de facto e de direito que habilitam esse Tribunal Superior a decidir), revogando parcialmente a sentença recorrida e substituída por outra que condene o arguido pela prática, em autoria material, dos crimes de ameaça qualificada, p.e p. pelo art. 153.º, 155.º, n.º 1, alínea a) por referência ao art. 131.º do Código Penal, de que vem acusado, farão Vossas Excelências, como sempre Justiça!»
O recurso foi admitido.
Não houve resposta.
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Enviados os autos a este Tribunal da Relação, o Senhor Procurador Geral Adjunto, emitiu o seguinte parecer [transcrição]:
«(…) II – Considerando as questões suscitadas na fundada motivação de recurso da Magistrada do Ministério Público em funções no Juízo de Competência Genérica de Coruche, comarca de Santarém, manifestamos a nossa concordância com as perspetivas jurídicas e conclusões apresentadas, que apontam de forma clara e assertiva os motivos e fundamentos que evidenciam a pretensão recursiva, acompanhamos tal posição e aderimos à respetiva argumentação, também opinando no sentido da procedência do recurso, mostrando-se supérfluo o aditamento de qualquer outro comentário. Nesta conformidade somos de parecer que o recurso interposto pelo Ministério Público deve ser julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida nos termos avançados pelo Ministério Público na 1.ª Instância.»
Observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou.
Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[1]], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal.[[2]]
Posto isto, e vistas as conclusões dos recursos, a esta Instância são colocadas as questões (i) do erro notório na apreciação da prova e (ii) da condenação do Arguido pela prática de um crime de ameaça agravada.
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Na sentença recorrida foram considerados como provados os seguintes factos [transcrição]:
«1. CLA vive em condições análogas às dos cônjuges com AME há cerca de 27 anos, tendo fixado residência na Rua (…). 2. Fruto deste relacionamento nasceram três filhos, todos maiores, sendo que dois deles coabitam com o casal e, além destes, AME tem dois outros filhos, fruto de anterior casamento. 3. Em 3 de setembro de 2020 o arguido disse à ofendida: “A tua mãe é uma puta”; “Vais para casa da puta da tua mãe porque vais para a droga.”; “Sua puta, vais para casa da tua mãe, porque vais ter com o outro.”; “És uma puta, qualquer dia mato-te, a ti e à tua mãe. Andas com este e com aquele.” 4. No dia 13 de julho de 2020 ofendida e arguido acompanharam um dos filhos a uma consulta médica e, seguidamente, Ana Ferreira decidiu voltar para casa com o companheiro. 5. No dia 16 de julho de 2020, quando AME já se encontrava na companhia da PSP de Lisboa, o arguido telefonou-lhe e disse-lhe: “Não passas de amanhã, vou-te limpar o sebo a ti e à tua mãe.” 6. Em finais de julho de 2020 de 2020 foi determinada nos autos a realização de policiamento de proximidade para proteção daquela. 7. No dia 3 de setembro de 2020, pelas 19.44h, a magistrada então titular dos presentes autos, dada a falta de atualidade da informação decorrente desse policiamento, contactou telefonicamente AME. 8. No decurso desse contacto, que não chegou a durar um minuto, a dita magistrada identificou-se, perguntou a AME se o arguido estava por perto e se podia falar livremente, ao que esta respondeu afirmativamente. 9. Contudo, poucos segundos volvidos, depois de se ouvir uma voz a chamada desligou-se. 10. A mesma magistrada contactou o Posto da GNR de (…) às 19.46h, determinando que fosse enviada uma patrulha à residência do casal, o que veio a suceder. 11. No dia 3 de setembro de 2020 foi realizada busca à residência do arguido, vindo a ser encontrados e apreendidos ao arguido, por lhe pertencerem: - Onze cartuchos calibre 12 para arma da classe D. 12. CLA não é detentor de licença de uso e porte de arma da classe D, nem de detenção de arma no domicílio. 13. O arguido sabia ainda que não tinha título que o habilitasse a deter as munições que lhe foram apreendidas. 14. Agiu o arguido de modo livre, voluntária e conscientemente, conhecedor de que a detenção das munições supra descritas, nessas condições, era proibida e punida por lei. 15. Em todo o circunstancialismo narrado, CLA sabia que a sua conduta era legalmente punida, sendo capaz de a orientar de harmonia com esse conhecimento. 16. O arguido é reformado, auferindo cerca de € 350 por mês. 17. O arguido vive em casa própria com a companheira, beneficiária do Rendimento Social de Inserção. 18. O arguido tem dois filhos a seu cargo, com 19 e 20 anos, que estudam. 19. O arguido tem de habilitações literárias o 6º ano de escolaridade. 20. Do Certificado de Registo Criminal do arguido constam averbadas as seguintes condenações: a. No Processo Comum Singular nº 35/14.6T9CCH, do Tribunal de (…) por sentença datada de 07/10/2015, transitada em julgado em 06/11/2015, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, praticado em 2000, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 5, declarada extinta pelo cumprimento; b. No Processo Sumaríssimo nº 287/16.7GBCCH, do Tribunal de (…), por sentença datada de 11/01/2017, transitada em 11/01/2017, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, praticado em 15/07/2016, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 5,50 e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 4 meses, declarada extinta pelo cumprimento.»
Relativamente a factos não provados, consta da sentença que [transcrição]:
«Não resultaram provados, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos: a) Desde o início do relacionamento que o arguido se revelou uma pessoa controladora, possessiva, desconfiada, violenta e agressiva, violência e agressividade que se adensam quando ingere bebidas alcoólicas em excesso, o que, atualmente, faz com frequência diária. b) Há cerca de 26 anos, quando AME estava grávida da primeira filha do casal, o denunciado bateu-lhe pela primeira vez. c) Desde então, a violência física, sexual e verbal é uma constante, havendo recrudescido nos últimos meses. d) Com efeito, por ter animosidade para com a família da ofendida – os filhos do outro casamento, os netos e a mãe – CLA dirige-lhes impropérios, impede AME de se relacionar com eles e, por vezes, retém-na em casa, inviabilizando que visite sua mãe, residente em Lisboa. e) Por outro lado, CLA está constantemente a afirmar que a companheira mantém relacionamentos com terceiros e bate-lhe sempre que o seu ex-marido, emigrante, vem a Portugal, por ter ciúmes do mesmo. f) Em momentos de exaltação, CLA partiu três telemóveis de AME. g) O arguido obriga a vítima a dormir no chão e proíbe-a de ver televisão e aceder à internet. h) No que concerne o trato sexual, o arguido obriga AME a mantê-lo consigo contra a sua vontade. i) Em data concretamente não apurada de 2018, CLA, no decurso de mais uma altercação, na residência comum, encostou a faca que utiliza para matar porcos ao estômago da ofendida, enquanto anunciava que a matava. j) Em diversas datas concretamente não apuradas, CLA também anunciou que matava a companheira, desta feita, empunhando armas de fogo em disposição de ofender. k) Em data situada entre 12 e 15 de julho, AME chegou a casa e teve de pedir ao arguido autorização para tomar banho, que este lhe deu, condicionada, no entanto, ao uso de água fria, condição que a ofendida se viu forçada a aceitar. l) No dia 12 de julho de 2020, pelas 14 horas e 30 minutos, AME pediu ao companheiro que a levasse a casa da mãe, MAR, porque o autocarro em que pretendia deslocar-se estava demorado. m) O arguido foi buscá-la ao terminal rodoviário e disse-lhe: “Em vez de me chamares porque não vais na carreira para a casa da puta da tua mãe?”, nessa sequência, a ofendida saiu do carro e esperou pelo autocarro, onde se fez transportar até Lisboa, ali pernoitando em casa da mãe. n) Desde esse dia 13 até ao dia 15 de julho, o arguido obrigou a vítima a dormir no chão, bateu-lhe todos os dias e proibiu-a de sair de casa. o) No dia 15 de julho, uma vez mais na residência comum, estando o arguido, como habitualmente, ébrio, deu vários pontapés nas costas e socos na cabeça da ofendida. p) Nessa sequência, AME logrou sair de casa e foi para casa da mãe em Lisboa, tendo procurado assistência no Hospital de Santa Maria, no dia 16 de julho de 2020. q) De resto, já noutras ocasiões a ofendida recebera tratamento após as agressões perpetradas pelo arguido, contudo, sem nunca revelar a origem das lesões, sendo que nesta deslocação ao Hospital de Santa Maria o INEM chamou a PSP. r) Como consequência direta e necessária da conduta do arguido no dia 15 de julho, AME sofreu traumatismo craniano com perda de conhecimento, escoriações frontais, hematoma parietal direito e traumatismo lombar. s) Também recentemente, em telefonema dirigido à mãe de AME quando esta se encontrava em Lisboa, o arguido afirmou, “Se a sua filha não vier para casa, vou aí com a caçadeira, vem ela, vem tudo.”. t) A dita patrulha chegou ao local antes das 19.57h e ainda se deparado com vermelhidão nos braços e rosto de AME, porque o arguido acabara, na sequência do aludido contacto, de lhe aplicar o gesto vulgarmente apelidado de “mata-leão” e de lhe dar uma chapada na face. u) Em todo o circunstancialismo narrado, agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente, com intenção de molestar física e psiquicamente AME, que sabia ser sua companheira e mãe dos seus filhos e, por conseguinte, alguém a quem devia acrescidos deveres de respeito e cooperação. v) Ao espancar sua companheira, impedi-la de sair de casa, obrigá-la a dormir no chão, a tomar banho de água fria e a manter trato sexual contra a sua vontade, bem sabia o arguido que era cruel e desumano, que magoava AME, lhe causava incómodo intolerável e a tratava como se coisa fosse. w) Finalmente ao afirmar frequentemente que a ofendida tinha relacionamentos extraconjugais e ao dirigir-lhe os citados apodos, atuou ainda o arguido com intenção de a diminuir e achincalhar e bem sabendo que essa imputação era apta a transtorná-la psiquicamente e a atingi-la na sua honra, consideração e dignidade, o que igualmente sucedeu. x) Conhecia outrossim o arguido que ao atuar pelo modo descrito, no recesso da residência familiar, impedia que terceiros pudessem assistir ou intervir para proteger a ofendida. y) Por seu turno, ao proferir as citadas expressões, exprimindo a eventualidade de atentar contra a integridade física e contra a vida da mãe da ofendida, bem sabia o arguido que eram aptas a perturbar a sua tranquilidade e a causar-lhe alarme e temor pela integridade física e pela vida, o que sucedeu. z) Ao anunciar a AME que a matava, bem sabia CLA que tal conduta era idónea a aterrorizá-la e a causar-lhe alarme e temor pela integridade física e pela vida. aa) CLA agiu livre, voluntária e conscientemente e com a intenção de atemorizar MAR.»
A convicção do Tribunal recorrido, quanto à matéria de facto, encontra-se fundamentada nos seguintes termos [transcrição]:
«Para a formação da sua convicção, o tribunal atendeu à conjugação de toda a prova produzida orientada pelo princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127º do Código de Processo Penal, que estabelece que “Salvo quando a lei dispuser de modo diferente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”, fazendo ainda apelo às regras da lógica e da experiência comum. Para a formação da convicção do Tribunal foram essenciais as declarações do arguido, que admitiu a prática dos factos que resultaram como provados em 1. a 5.. Mais se atendeu ao depoimento da testemunha GOM, magistrada do Ministério Público, que efetuou um depoimento espontâneo e isento, e que mostrou conhecimento sobre os factos que resultaram provados em 6. a 10.. O Tribunal atendeu também à análise crítica dos documentos de fls. 125 a 134 e 265 para a formação da convicção quanto aos factos provados em 11. e 12.. Os factos provados em 13. a 15., relativos ao elemento subjetivo, porque insuscetíveis de prova direta, dada a sua natureza, extraem-se dos factos objetivos provados que, tendo em conta as regras da experiência comum, e com base em presunção natural, permitem de forma segura inferir tal factualidade. Mais se atendeu às declarações do arguido para o apuramento das suas condições pessoais e económicas e Certificado de Registo Criminal junto aos autos.
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No que diz respeito aos factos não provados, nenhuma prova se produziu em audiência de julgamento que lograsse formar a convicção do Tribunal quanto à verificação dos mesmos. De facto, a ofendida AME e a testemunha CAR, filho do arguido e ofendida, validamente se recusaram a prestar depoimento. Acresce que a testemunha SIL não demonstrou ter conhecimento direto dos factos descritos na acusação, tendo apenas um conhecimento indireto por aquilo que a ofendida lhe relatou, pelo que, tratando-se de um depoimento indireto, e tendo a ofendida exercido do seu direito a não prestar depoimento, o mesmo não pode ser valorado. Por outro lado, muito do descrito na acusação não são factos concretos, mas meras conclusões. “Não se podem considerar como “factos” as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado, pois a aceitação dessas afirmações para efeitos penais inviabiliza o direito de defesa e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art.º 32.º da Constituição. Por isso, essas imputações genéricas não são “factos” suscetíveis de sustentar uma condenação penal.” (neste sentido vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 novembro de 2007, proferido no Processo n.º 07P3236, disponível em www.dgsi.pt.) “I- Num tipo de crime onde a reiteração e intensidade do agir humano está no centro da definição de um tipo penal muito amplo (maus-tratos, violência doméstica, tráfico de droga), a precisa e possível indicação e concretude dos factos necessários à integração no tipo é elemento essencial do julgamento. E é, na sequência, o cerne do direito de defesa. II - Se a alegação factual – em qualquer imputação penal - não pode ser facilitada pelo uso de fórmulas “vagas, imprecisas, nebulosas, difusas, obscuras”, neste tipo de crime a exigência é maior dada a amplitude do tipo penal. Por isso, será de ter por não escritas aquelas formas de imputação genérica.” (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 1 de outubro de 2013, proferido no processo n.º 948/11.7PBSTR.E1, disponível em www.dgsi.pt). No que diz respeito ao elemento subjetivo das expressões de ameaça dadas como provadas em 3. e 5. que o arguido admitiu ter dirigido à ofendida, o Tribunal deu os mesmos como não provados por ser impossível avaliar o tom com que tais palavras foram proferidas, não sendo viável afirmar que o foram de forma séria e firme. Para tal, seria imprescindível ouvir a ofendida – ora, esta recusou-se legitimamente a depor. Por outro lado, o arguido disse que se encontrava ébrio nessas ocasiões, a que acresce o facto de a ofendida não recear o arguido, e com este continuar a viver como casal. De referir ainda que a testemunha SIL, que estaria presente aquando do facto referido em 5., nada referiu quanto a ter ouvido tal expressão, ou seja, nada no telefonema que ocorreu a marcou de forma impactante para que recordasse ter ocorrido uma expressão com tal gravidade, razão pela qual, e pela conjugação de todos estes elementos, se deram tais factos como não provados. Por outro lado, a testemunha MAR, mãe da ofendida, embora tenha referido ter ouvido o arguido chamar puta e vaca à ofendida, não conseguiu concretizar tais situações temporalmente, e quanto aos demais factos não demonstrou conhecimento sobre os mesmos, o que se compreende atendendo à sua avançada idade. Assim, face à apreciação global da prova produzida e a ausência de qualquer prova documental que os sustente, este ficou com sérias dúvidas de que os factos descritos na acusação tenham ocorrido, dúvidas essas que foram resolvidas a favor do arguido, ao abrigo do princípio “in dubio pro reo”, dando-se, assim, tais factos como não provados.»
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Conhecendo.
(i)Os factos provados O erro notório na apreciação da prova Os vícios prevenidos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal
Insurge-se o Recorrente contra a factualidade considerada como não provada nas alíneas y), z) e aa).
Porque, considerando os elementos constitutivos do crime de ameaça, que o Arguido confessou o que consta dos pontos 3 e 5 da factualidade considerada como provada e que pertence ao mundo interior do agente o dolo e a intenção prevista no tipo, a referida confissão e as máximas da experiência impunham se dessem como provados os sobreditos factos que assim não foram considerados.
Entende, por isso, que a sentença enferma de erro notório na apreciação da prova.
Dispõe o artigo 410.º do Código de Processo Penal, reportando-se aos fundamentos do recurso: «1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida. 2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável entre a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. 3 – O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso à matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.»
Tais vícios, de enumeração taxativa, terão de ser evidentes e passíveis de deteção através do mero exame do texto da decisão recorrida [sem possibilidade de recurso a outros elementos constantes do processo], por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Interessa-nos o erro notório na apreciação da prova.[[3]]
Que constitui «falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável. Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o Tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.»[[4]]
Não pode incluir-se no erro notório na apreciação da prova a sindicância que os recorrentes possam pretender efetuar à forma como o Tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência – valoração que aquele Tribunal é livre de fazer, ao abrigo do disposto no artigo 127.º do Código Penal.
Está em causa a prática de um crime de ameaça.
Dispõe-se no n.º 1 do artigo 153.º do Código Penal que «Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.»
A ameaça que constitui o crime previsto e punido pelo artigo 153.º do Código Penal é a promessa de um mal e o mal prometido há-de constituir um crime.
Dito de outra forma, a ameaça que constitui o crime previsto e punido pelo artigo 153.º do Código Penal é a promessa de cometer um crime.
Como acentua Taipa de Carvalho, perante o tipo em causa, a tutela penal da liberdade é, a um tempo, negativa e pluridimensional. «Negativa, na medida em que visa impedir as ações de terceiros que afetem a liberdade de decisão e de ação individual; pluridimensional, uma vez que assume as diversas manifestações da liberdade pessoal (liberdade de autodeterminação, de movimento, de ação, sexual) como autónomos objetos de proteção penal».
De acordo com Miguez Garcia «o bem jurídico protegido nos crimes contra a liberdade pessoal não é, pura e simplesmente, a liberdade, mas a liberdade de decidir e de atuar: liberdade de decisão (formação) e de realização da vontade. No crime de ameaça a proteção materializa-se também no sentimento de segurança: a ameaça é um crime de perigo contra a paz interior.»
São elementos constitutivos do crime de ameaça (i) o anúncio de que o agente pretende infligir a outrem um mal futuro, (ii) dependente da sua vontade, (iii) que constitua crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor e (iv) que esse anúncio seja adequado a provocar na pessoa a quem se dirige medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
Tratando-se de um crime de perigo concreto e não de um crime de resultado, o crime de ameaça apenas supõe que a promessa da prática de um crime seja adequada a provocar medo ou inquietação, não exigindo a prova de que o resultado se tenha verificado no concreto ameaçado
Resta lembrar estar fixada jurisprudência no sentido de que «A ameaça de prática de qualquer um dos crimes previstos no n.º 1 do artigo 153.º do Código Penal, quando punível com pena de prisão superior a três anos, integra o crime de ameaça agravado da alínea a) do n.º 1 do artigo 155.º do mesmo diploma legal».[[5]]
Como bem diz o Ministério Público, no seu recurso, «a ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características da ameaçado e conhecidas do agente), independentemente de este ter ficado ou não intimidado.»
E partilhando deste entendimento, a Senhora Juíza que elaborou a sentença, ao justificar a factualidade que considerou como não provada, esclareceu que da prova produzida não era possível avaliar o tom com que o Arguido disse à AME “não passa de amanhã, vou-te limpar o sebo a ti e à tua mãe” e “qualquer dia mato-te, a ti e à tua mãe”.
Porque a AME recusou legitimamente a depor. Porque o depoimento de sua mãe, MAR, em nada contribuiu para o esclarecimento do aspeto em questão. E porque o Arguido afirmou estar embriagado quando proferiu tais palavras.
Ao que acresce que a AME não evidenciou qualquer temor do seu companheiro, com quem continua a viver maritalmente.
Neste contexto, que o Recorrente não questiona, nem sequer refere, a avaliação da prova produzida em julgamento não merece reparo. Não se vislumbrando falha na análise da prova, e muito menos falha grosseira e ostensiva.
Pelo que não ocorre erro notório na apreciação da prova.
Resta realçar, como se faz na 1.ª Instância, que, face à prova produzida, não restaria senão convocar o princípio in dubio pro reo.
Tenha-se presente que função da prova reside na demonstração da existência de um facto – de que existiu e de que forma existiu.
Mas nem sempre é possível efetuar essa demostração, porque «a certeza não está sempre ao alcance da inteligência humana, nem os meios de que se serve a justiça, os meios de prova, facultam, em todos os casos a possibilidade de a obter.» [[6]]
O princípio in dubio pro reo, sendo o correlato processual do princípio da presunção de inocência do arguido – constitucionalmente consagrado no artigo 32.º, n.º 2 –, constitui princípio relativo à prova, decorrendo do mesmo que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do Tribunal.
Dito de outra forma, o princípio in dubio pro reo constitui imposição dirigida ao Juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.
A dúvida que justifica a decisão pro reo «pode definir-se como um “(…) estado psicológico de incerteza dependente do inexato conhecimento da realidade objetiva ou subjetiva.”»[[7]]
E essa dúvida tem que ser insanável – no sentido de inultrapassável –, razoável – no sentido de ser dúvida que impede a convicção do Tribunal porque existe outra ou outras possibilidades alternativas com a prova produzida; porque é conciliável com a verdade contrária – e objetivável – ou motivável, no sentido de que não é uma mera intuição ou puro pressentimento ou palpite, mas, pelo contrário, uma dúvida argumentada, que se justifica objetivamente.
E perante a prova produzida – que já acima se deixou referida – não poderia nunca o Tribunal decidir contra o Arguido.
Por fim, impõe-se deixar expresso que do exame da sentença recorrida – do respetivo texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum e sem recurso a quaisquer elementos externos ou exteriores ao mesmo – não se deteta a existência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410.º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Efetivamente, não ocorre qualquer falha na avaliação da prova feita pelo Tribunal “a quo”, sendo o texto da decisão em crise revelador de coerência e de respeito pelas regras da experiência comum e da prova produzida.
E do texto da decisão recorrida decorre, ainda, que os factos nele considerados como provados constituem suporte bastante para a decisão a que se chegou e que nele não se deteta incompatibilidade entre os factos provados e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Também não se verifica a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada – artigo 410.º, nº 3, do Código de Processo Penal.
Assim sendo, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida pela 1ª Instância sobre a matéria de facto.
E o recurso, neste segmento, improcede.
(ii)Da condenação do Arguido pela prática de um crime de ameaça agravada
A questão acabada de enunciar pressuponha alteração factual que não ocorreu.
Nestas circunstâncias, o seu conhecimento é inútil.
III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, manter, na íntegra, a sentença recorrida.
Sem custas, por o Ministério Público delas estar isento.
û
Évora, 2022 junho 7
Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz
Renato Amorim Damas Barroso
Gilberto da Cunha – Presidente da Secção
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[1] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.
[2] Neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em www.dgsi.pt [que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria].
[3] A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada constitui «lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, ocorrendo quando se conclui que com os factos considerados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato que é preciso preencher.
Porventura melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o Tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.
Ou, como vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, só existe tal insuficiência quando se faz a “formulação incorreta de um juízo” em que “a conclusão extravasa as premissas” ou quando há “omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão”.»
A contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão ocorre quando se deteta «incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente».
Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 7ª Edição – 2008, Editora Reis dos Livros, página 72 e seguintes.
[4] Simas Santos e Leal-Henriques, obra citada, página 77.
[5] Acórdão Uniformizador n.º 7/2013, de 20 de fevereiro de 2013, publicado no Diário da República n.º 56, Série I, de 20 de março de 2013
[6] Cavaleiro de Ferreira, in Curso de Processo Penal, Volume. II, 1981, página 303.
[7] Cruz Bucho, in “Notas Sobre o Princípio In Dubio Pro Reo” – Comunicação apresentada em 6 de maio de 1998, numa sessão de direito judiciário subordinada ao tema “A produção e valoração de prova”, editada pelo Centro de Estudos Judiciários.