JUNÇÃO DE DOCUMENTO
MOMENTO PROCESSUAL
DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA
Sumário

O depoimento de uma testemunha pode constituir ocorrência posterior que torna necessária, pela sua utilidade, a apresentação de um documento fora dos momentos previstos no art.º 423º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil (cf. respetivo nº 3), contanto que se refira a factos não essenciais e não previamente alegados.

Texto Integral

Proc. nº 10639/20.2T8PRT.- A.P1 (apelação)
Comarca do Porto – Juízo Central Cível do Porto – J4

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida


Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
Na ação declarativa com processo declarativo comum que B..., S.A., com sede na Rua ..., ..., ... ..., instaurou contra T... UNIPESSOAL, LIMITADA, com sede na Rua ..., ..., ... Lisboa, a A., em sede de audiência final, alegou, em requerimento escrito, que no decurso do depoimento da testemunha arrolada pela R., AA, ouvida na sessão realizada de 6 de janeiro de 2022, esta afirmou que o reembolso do financiamento concedido pela A. à R., no valor total de €150.000,00, para esta suportar as obras de adaptação do arrendado, nunca foi objeto de faturação autónoma por parte da B .... Considerou que tal afirmação não corresponde à verdade e ficou a dever-se a um equívoco, sendo indispensável desfazê-lo através dos documentos que a A. emitiu e a R. contabilizou.
Com esse requerimento, manifestou a intenção de que o tribunal admitisse os documentos que o acompanham “em virtude de a mesma se ter tornado necessária para esclarecer o equívoco em que a testemunha incorreu” e pediu ainda que se ordenasse a notificação da R. para informar os autos se contabilizou ou não as faturas indicadas no mesmo requerimento.
Depois da parte contrária se ter pronunciado no sentido do indeferimento daquela pretensão probatória da A., o tribunal proferiu despacho em que a negou, com os seguintes fundamentos, ipsis verbis:
Com respeito por opinião contrária não se vislumbra fundamento para a intervenção processual da A. nos moldes ora efectuados.
Os autos encontram-se na fase de audiência de julgamento, tendo já sido realizada uma sessão e encontrando-se outra agendada.
Resulta evidente que o requerimento apresentado pela A. é manifestamente extemporâneo. No seu requerimento a A. não vem apenas juntar os documentos mas aproveita justificar a junção tecendo um conjunto de considerações acerca da forma como decorreu a produção de prova (da testemunha que indica) e aquilo que, no seu entender, já se pode extrair da mesma, o que apenas deverá ocorrer em sede de alegações.
Aliás, quanto ao depoimento da testemunha, o mesmo será livremente apreciado pelo tribunal, sendo que caso a A. entenda que o depoimento da mesma, na parte que indica, não corresponde á verdade, terá oportunidade de o afirmar, no decurso da audiência de julgamento, no momento próprio para o efeito.
Quanto á junção dos documentos:
Também não descortinamos fundamento legal, nesta fase, para a junção de documentos, tendo em conta o motivo alegado, nem para ordenar a notificação da Ré para juntar mais documentos, ao princípio do disposto no artº 417º do CPC.
Dúvidas não restam de que a admissibilidade da junção deverá ser apreciada nos termos do n.º 3 do art.º 423º do CPC, pois a lei admite a junção de documentos aos autos para prova/contraprova dos factos alegados e não para prova dos depoimentos das testemunhas, a não ser que se esteja perante o mecanismo processual previstos no artº 521º do CPC, que não foi invocado nem utilizado pela parte.
Ora, neste contexto, para a junção dos documentos ao abrigo do referido normativo, incumbia á Autora alegar e provar que a sua apresentação não foi possível até ao momento temporal a que alude o n.º 2 do mesmo artigo ou que a sua apresentação só se tornou possível ao abrigo de ocorrência posterior, o que não é manifestamente o caso.
Por conseguinte, indefere-se a pretensão deduzida
Custas do incidente anómalo pela A. com taxa de justiça que se fixa em ½ UC (artigos 7º nºs 4 e 8 do RCP).»

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É com esta decisão que a A. mostra agora o seu inconformismo através de recurso que interpôs com as seguintes CONCLUSÕES:
«12.1. A junção aos autos dos documentos ordenados desentranhar através do despacho recorrido deveu-se a uma ocorrência posterior ao prazo previsto no n.º 2 do artigo 423 do CPC.
12.2. Tal ocorrência posterior foram as declarações da testemunha AA, ouvida na sessão de julgamento de 6 de janeiro de 2022, que acima parcialmente se transcreveram - ver secção 6 supra que aqui se dá por reproduzida.
12.3. Em nenhum documento nem em nenhuma passagem dos articulados apresentados nos autos, a “T...” tinha invocado a justificação apresentada pela testemunha para tentar fundamentar o não pagamento das prestações devidas para a amortização do empréstimo descrito, de forma sumária, nas secções 2 a 5 destas alegações que aqui se dão por reproduzidas.
12.4. A justificação dada pela testemunha é desmentida pelo teor dos documentos juntos com o requerimento apresentado em 10 de janeiro de 2022 com a referência citius 40948829 - ver secções 7 a 10 que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
12.5. Junção que apenas se tornou necessária tendo em conta o que foi afirmado por aquela testemunha na sessão de julgamento de 6 de janeiro de 2022 e que foi, por isso, legítima.
12.6. Decidindo como decidiu, o despacho recorrido violou o disposto no artigo 423.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.» (sic)
Pretende a recorrente que seja revogada a decisão recorrida e se determine agora a admissão dos documentos que juntou com o requerimento de 10.1.2022.
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A R. produzir contra-alegações que sintetizou assim:
«1. Bem andou o Tribunal a quo quando indeferiu o requerimento da Recorrente, bem como a junção dos documentos.
2. Conforme mencionado pela Recorrida quando teve a oportunidade de exercer o contraditório, o requerimento apresentado pela Recorrente e que foi indeferido, configura, apenas e só, alegações feitas fora de tempo e lugar,
3. No que se refere ao depoimento da testemunha AA que constituirá, para a Recorrente, o tal “facto posterior que justifica a apresentação do documento” não foi contraditado pela Recorrente.
4. E no recurso apresentado, em momento algum a Recorrente põe em causa a credibilidade da testemunha.
5. Ao contrário do que refere a Recorrente, em momento algum, ao longo do seu depoimento, a testemunha AA afirmou que as obras nunca foram objeto de faturação autónoma.
6. A testemunha disse e repetiu que o pagamento da renda e da referida mensalidade era feito na mesma ocasião e, quando foi suspenso o pagamento pelas razões já expostas, também não foi pago o valor respeitante a obras.
7. Se a testemunha AA não foi esclarecedora acerca dos valores (das obras) estarem ou não contabilizados na fatura mensal da renda, a verdade é que a Recorrente não foi mais esclarecida que a testemunha.
8. Ainda que a testemunha tivesse sido inexata – o que jamais se concede e apenas por mera cautela de patrocínio se pondera – tal jamais constituiria fundamento para a apresentação dos documentos por parte da Recorrente – neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 5984/18.0T8FNC-B.L1-7
9. Por outro lado, a Recorrente também não alegou e muito menos provou que a apresentação de tais documentos não foi possível até àquele momento ou que a sua apresentação só se tornou possível ao abrigo de ocorrência posterior
10. Por isso, inexistindo facto posterior que justifique a apresentação do requerimento e dos documentos bem como assim, inexistindo também facto posterior que o justifique, deverá ser integralmente mantida a decisão do Tribunal a quo e que decidiu pelo indeferimento do requerimento apresentado pela recorrente.»
Defendeu, desta forma, a improcedência da apelação.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II.
As questões a decidir --- exceção feita para o que for do conhecimento oficioso --- estão delimitadas pelas conclusões da apelação da A. (art.ºs 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), cumprindo-nos apreciar e decidir se devem ser admitidos os documentos apresentados pela A. em requerimento entregue na fase de produção de prova testemunhal, em audiência final.
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III.
No essencial, defende a A. recorrente que os documentos que apresentou com o seu requerimento de 10.1.2022 devem ser admitidos porque desmentem a justificação dada pela testemunha AA para o não pagamento das prestações devidas pela R. à A. relativamente à amortização do empréstimo de €150.000,00 que esta fez a seu favor com vista à realização de obras de adaptação do espaço locado.
A testemunha terá afirmado que o reembolso daquele financiamento nunca foi objeto de faturação autónoma por parte da A. Sendo tal afirmação devida a equívoco da testemunha, segundo a A., devem ser admitidos os documentos que juntou para prova de que houve efetivamente faturação autónoma processada pela A. que enviava também à R. os respetivos recibos. Aquelas faturas discriminavam as importâncias parcelares e não se confundem com as faturas das rendas.
Considera a recorrente que os documentos apresentados devem ser admitidos ao abrigo do art.º 423º, nº 3, última parte, do Código de Processo Civil[1], ou seja, por a sua apresentação se ter tornado necessária em virtude de ocorrência posterior, sendo essa ocorrência o depoimento da referida testemunha, tomado na sessão de audiência de 6.1.2022 (a 1ª sessão).
Vejamos.
O direito à prova, constitucionalmente consagrado no art.º 20° da Constituição da República --- princípio acolhido no art.º 413º, nº 1 ---, é uma componente do direito geral à proteção jurídica, de acesso aos tribunais e da tutela jurisdicional efetiva. Desse direito decorre, por um lado, o dever de o tribunal atender a todas as provas produzidas no processo, desde que lícitas, independentemente da sua proveniência, e, por outro, a possibilidade de utilização, pelas partes, em seu benefício, dos meios de prova que mais lhes convierem. A recusa de qualquer meio de prova deve ser fundamentada na lei ou em princípio jurídico, não podendo o tribunal fazê-lo de modo discricionário.
O nosso Direito processual tem como um dos seus objetivos principais que a solução judicial seja a que mais se ajuste à real situação que é objeto do litígio. Por isso, o critério fundamental de aferição da admissibilidade de documentos é a sua pertinência para a prova dos fundamentos da ação ou da defesa (art.º 423º, nº 1), ou seja, para a prova dos factos que integram a causa de pedir e as exceções invocada na ação.
Em todo o caso, o direito à prova não é absoluto; contém limitações de natureza intrínseca e extrínseca.
Não se suscitando qualquer dúvida sobre a licitude dos meios de prova que constituem documentos apresentado pela A. com o requerimento de 10.1.2022 Os documentos constituem fonte de prova real, não havendo dúvida quanto à sua admissibilidade como meio de prova. Neles se encontram registados factos que podem ser (ou não) relevantes para o processo, por via de uma intervenção humana intencional (art.º 362º do Código Civil). Tal como os outros meios de prova, têm por função a demonstração da realidade dos factos alegados pelas partes, ou melhor, a verdade dessa alegação (art.º 341º do Código Civil)., depois do decurso da 1ª sessão (6.1.2022) e antes da 2ª sessão, a questão resume-se a saber se o seu oferecimento foi tempestivo e oportuno.
Sobre o momento da apresentação de documentos no processo civil comum, dispõem sobretudo os art.ºs 423º, 425º, 552º, nº 2, 572º, al. d), 588º, nºs 1 e 5, e 651º.
A regra é os documentos serem apresentados com o articulado em que se aleguem os factos que os mesmos visam demonstrar (nº 1 do art.º 423º). Se os documentos não forem juntos com esse articulado, dispõe o nº 2 do mesmo artigo que podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, sendo a parte condenada em multa por essa apresentação tardia; porém, não ocorrerá a condenação se provar que os não pôde oferecer com o articulado. O nº 3 estabelece uma norma que, pela sua justeza, é de todo indeclinável: depois do momento temporal referido no nº 2 ainda poderão ser admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
O Código de Processo Civil de 2013 visou, com este regime temporal coartar uma tendência que se constituíra em autêntica estratégia processual traduzida no protelamento da junção de documentos para o decurso da audiência final e os efeitos adversos que daí advinham para um procedimento que se deseja célere e desobstruído, sem incidentes evitáveis[3]. A solução mais rígida que foi consagrada de impor a apresentação dos documentos com o articulado respetivo foi, no entanto, temperada pela permissão legal de as partes, mesmo quando podiam e deviam ter apresentado anteriormente os documentos, ainda o poderem fazer até 20 dias antes da data da realização da audiência final, mediante o pagamento de multa. Manifestamente, o legislador, numa solução de compromisso, quis garantir o direito à prova com o menor prejuízo processual possível, sobretudo na audiência, prevenindo designadamente o seu adiamento resultante da necessidade de cumprir o contraditório se nela fosse de admitir a apresentação de documentos que já anteriormente pudessem ter sido indicados. A antecedência de 20 dias na junção de documentos justifica-se assim como prazo suficiente para que a parte contrária exerça o contraditório quanto a esses novos meios de prova e o tribunal os admita sem necessidade de dar sem efeito a data designada para a audiência e de prejudicar o seu normal funcionamento.
Como se escreveu no acórdão desta Relação do Porto de 7.1.2019[4], “com a inovação do artigo 423.º, n.º 2 do CPC, decorrente da última reforma do processo civil, que impõe como limite para a junção de documentos o prazo de «20 dias antes da data em que se realize a audiência final», o legislador visou evitar surpresas no julgamento, decorrentes da junção inesperada de um qualquer documento, com consequências negativas traduzidas, nomeadamente, no arrastamento e no adiamento das audiências, obrigando as partes a uma maior lisura e cooperação processual na definição das suas estratégias probatórias”.
Atento o momento em que os documentos foram apresentados pela A. e a possibilidade que esta tinha de os ter apresentado em momento processual anterior, por serem pré-existentes, a questão a decidir depende essencialmente de saber se ocorreu algum facto posteriormente aos limites temporais previstos nos nºs 1 e 2 do art.º 423º que tenha tornado necessária a sua apresentação (parte final do nº 3 do mesmo artigo).
Para a recorrente, a ocorrência posterior que constitui a segunda ressalva daquele nº 3 é, no caso, o depoimento de uma determinada testemunha prestado na audiência final.
Esta ressalva está sobretudo destinada à prova ou contraprova de factos ocorridos após o termo do prazo previsto no nº 2 do mesmo art.º 423º e, segundo Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro[5], não se verifica --- não se torna necessária a apresentação de documentos em virtude de ocorrência posterior --- quando a testemunha alude a um facto, ainda que em sentido contrário ao pretendido pelo apresentante, quer se trate de um facto essencial já alegado, que de um facto puramente probatório, sendo que a ocorrência que torna necessária a apresentação deste meio de prova é a pretérita alegação desta matéria, cabendo então a situação no nº 1 do art.º 423º.
A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e L. Filipe Pires de Sousa professam entendimento, em larga medida, semelhante quando referem[6] que “o depoimento de testemunhas arroladas nos autos não constitui ocorrência posterior para efeitos de apresentação de documentos não juntos aos autos, com fundamento na parte final do nº 3 do art. 423 do Código de Processo Civil”. Acrescentam ali que “o conceito de “ocorrência posterior” que legitima a entrada de documentos no processo não respeitará, por certo, a factos que constituam fundamento da ação ou da defesa (factos essenciais, na letra do art. 5º), pois tais factos já hão de ter sido alegados nos articulados oportunamente apresentados ou, pelo menos, por ocasião da dedução de articulado de aperfeiçoamento (art. 590º, nº 4). Tão pouco respeita a factos supervenientes, pois a alegação desses factos deve ser acompanhada dos respetivos documentos, sendo esse o meio da sua entrada nos autos (art. 588º, nº 5). Portanto, no plano dos factos, a ocorrência posterior dirá somente respeito a factos instrumentais ou a facto relativo a pressupostos processuais (…)”[7]. Na perspetiva destes autores, o próprio facto instrumental --- e não a sua notícia, designadamente através de depoimento testemunhal --- enquanto ocorrência relevante para efeito do nº 3, tem que ser posterior aos limites temporais previstos nos nºs 1 e 2 do art.º 423º.
Não tem sido exatamente este o entendimento que, pelo menos, a jurisprudência mais recente tem produzido. Segundo esta, um depoimento testemunhal ou um depoimento de parte, por ex., produzidos em audiência, podem constituiu uma “ocorrência posterior” justificativa da apresentação e admissão de documentos naquela mesma sede, contanto que não se trate de factos essenciais da ação ou de exceção, a seu tempo invocados, já que, com a respetiva alegação, deverão ser entregues também os documentos destinados a fazer a sua prova.
No acórdão da Relação de Lisboa de 25.9.2018[8] consignou-se: “A ocorrência posterior deve ser relacionada com a dinâmica do desenvolvimento do próprio processo, designadamente tendo em vista a dialéctica que se desenvolve durante o processo de produção de prova no julgamento da causa (relativamente a alterações factuais exteriores ao processo a forma adequada de as tornar relevantes é a dedução de articulado superveniente, não se levantando aí qualquer problemática quanto à possibilidade de com esse articulado se apresentarem os correspondentes documentos). E nesse conspecto haverá de ter em conta o regime legal relativamente ao apuramento dos factos relevantes.
Para além do ónus de alegação dos factos essenciais, o tribunal pode atender aos factos instrumentais e complementares ou concretizadores que resultem da discussão a causa (art.º 5º, nº 2), sendo perante a revelação destes factos (e não daqueloutros), na produção de prova em audiência que poderá surgir a necessidade de confirmação ou contradição dos mesmos mediante prova documental. E, como se refere ainda naquele acórdão da Relação de Lisboa, a essa situação de necessidade/utilidade na apreciação do documento se reportará, na generalidade dos casos, o conceito de ocorrência posterior.
Portanto, a ocorrência posterior a que se refere o nº 3 não é um facto principal ou essencial --- estes entram na causa através da alegação nos articulados normais, em articulado superveniente ou ainda em articulado de um incidente, como o da habilitação do sucessor no direito litigioso (art.ºs 351º e 356º); situações abrangidas pela norma do nº 1 do art.º 423º --- mas factos instrumentais e complementares ou concretizadores relevantes para a demonstração dos factos essenciais ou nucleares ou de facto que interesse à verificação dos pressupostos processuais. Note-se que estes factos nem sequer têm que ser alegados, bastando que resultem da instrução a causa (art.º 5º, nº 2, al.s a) e b), do Código de Processo Civil).
Assim, o depoimento de uma testemunha pode constituir ocorrência posterior que torna necessária, pela sua utilidade, a apresentação de um documento fora dos momentos previstos no art.º 423º, n.º 1 e 2, desde que no seu depoimento invoque factos que sejam novos no processo e não possam ser qualificados como factos essenciais ou principais[9] e exista um elemento de novidade, mormente por se prefigurar, em resultado da instrução, nova factualidade instrumental idónea a suportar presunções judiciais, complementar ou concretizadora de factos essenciais (integrantes da causa de pedir ou de exceções oportunamente deduzidas). Os factos instrumentais, indiciários ou probatórios, serão assim o campo natural de aplicação da norma da 2ª parte do artigo 423º, n.º 3.[10]
Assim sendo, e acompanhando aquela jurisprudência, temos para nós que o depoimento de uma testemunha pode constituir ocorrência posterior que torna necessária a apresentação de um ou mais documentos fora dos momentos previstos no artigo 423º, n.ºs 1 e 2, desde que no seu depoimento invoque factos relevantes que sejam novos no processo e não devam ser qualificados como factos essenciais.
De resto, resulta do preâmbulo da Lei n.º 41/2013, que aprovou o atual Código de Processo Civil, que uma das principais finalidades do legislador foi evitar que formalismos processuais impeçam a descoberta da verdade material e, por isso, as normas que fixam preclusões processuais têm de ser interpretadas em consonância com o princípio da prevalência do mérito, evitando que formalismos processuais obstem à descoberta da verdade.
Terá a A. alegado e provado, com o requerimento de 10.1.2022, os referidos pressupostos da aplicação da 2ª parte do nº 3 do art.º 423º ?
O seu fundamento há de de ser apreciado segundo um critério objetivo e de acordo com o padrão de normal diligência, a diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias do caso.[11]
Das passagens da gravação transcritas no corpo das alegações de recurso, parece resultar (há imprecisões e deficiências de gravação) que a testemunha AA confunde a documentação relativa ao pagamento do valor do financiamento para a realização das obras de adaptação do espaço locado com a documentação do pagamento do valor das rendas, sendo este periódico e aquele em prestações. Refere que a documentação que a A. emitia não fazia distinção (ou não especificava) entre o valor da renda e o valor das obras; o documento é o mesmo; o pagamento era globalmente indicado.
Alega a A. que foram emitidas várias faturas à T..., apenas relativas ao pagamento, a prestações, do financiamento das obras realizadas, faturas essa enviadas à R. acompanhadas das faturas pagas pela A. aos empreiteiros. E, à medida que a R. foi efetuando os respetivos pagamentos, a A. foi emitindo os recibos que também enviou à demandada e que apresentou, juntamente com aquelas faturas com o requerimento de 10.1.2022, onde afirmou que «só por equívoco pode ter sido afirmado pela testemunha, AA, que as “faturas não discriminavam as importâncias parcelares” e que eram “misturadas nas faturas das rendas”».
É esse alegado equívoco que a A. visa desfazer, com a junção daqueles documentos na fase da audiência final, após o depoimento daquela testemunha e por causa dele.
O reembolso do valor das obras realizadas pela A. a pedido e no interesse da R. é matéria alegada na petição inicial, onde se descreve a relação negocial entre eles havida relativamente às obras, designadamente valores, obrigações de as realizar e de as pagar, com as suas condicionantes --- o que constitui matéria essencial, tendo em vista um dos pedidos da ação (o pedido A, relativo ao reembolso do valor das obras) --- a que acrescem, de forma discriminada, um pedido de pagamento de rendas, um pedido de pagamento de despesas de condomínio e um pedido de pagamento de juros de mora, além das custas processuais.
Mas não consta, nem tinha que constar da petição inicial, por não ser matéria de facto essencial que, por isso, devesse integrar a causa de pedir, qualquer alusão ao modo como foi processada a documentação, nomeadamente a faturação, se de forma autónoma ou de forma globalizada com o pagamento periódico das rendas.
Trata-se de matéria instrumental probatória, não alegada nos articulados da ação, cujo esclarecimento pode contribuir, indiretamente, para a prova de matéria de facto essencial. É matéria nova, surgida, de modo surpreendente para a A., no depoimento, em audiência, de uma testemunha indicada pela R. e que justifica por isso a possibilidade desta última a poder contrariar, fazendo a contraprova do invocado. É defesa apenas suscitada em audiência, assistindo à apelante o direito de reagir a um novo circunstancialismo que fundamenta a defesa da R.
É também do interesse do tribunal o apuramento de valores de modo discriminado e correto, entre os vários fundamentos e pedidos da ação.
A admissão de documentos é baseada num juízo de prognose abstrato, enquanto a motivação da decisão de facto é sustentada numa avaliação concreta da pertinência de determinado dado probatório para a formação da convicção do julgador. Aquilo que importa nesse juízo de prognose é que os elementos juntos tenham potencial relevância para prova de factos objeto do litígio.[12]
A junção dos documentos pode contribuir para o esclarecimento daqueles factos instrumentais probatórios, eliminação do alegado equívoco e, indiretamente, para boa decisão da causa. É, assim, uma junção de documentos com a utilidade necessária a contrariar a afirmação da testemunha. Tal junção não ofende eventuais interesses processuais das partes e a mesma está ainda abrangida pelo alcance dos temas da prova e das questões a decidir. Não se nos afigura impertinente nem dilatória em face dos temas da prova, do pedido e da causa de pedir em discussão na lide.
Como se refere no citado acórdão da Relação de Lisboa de 25.9.2018, “segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a garantia de processo equitativo (‘fair trial’) coloca o tribunal sob o dever de levar a cabo um exame aprofundado dos pedidos, fundamentos e provas aduzidos pelas partes; e se se reconhece uma larga margem de apreciação aos legisladores e tribunais nacionais para estabelecerem as regras de admissibilidade e apreciação das provas, não se deixa de afirmar que as restrições à apresentação de provas não podem ser arbitrárias ou desproporcionadas, antes têm de ser consistentes com a exigência de julgamento equitativo e que sempre se deve exigir que o procedimento na sua globalidade, incluindo os aspectos relativos à admissibilidade das provas, seja equitativo. E nesse sentido haverá de interpretar-se, também, o disposto no art. 20º, nº 4, da Constituição da República por força do disposto no art.º 16º, nº 2, do mesmo diploma.”.
A situação não se confunde com a contradita (art.º 521º), já que não está em causa abalar a credibilidade do depoimento da referida testemunha, mas contrariar afirmações por ela efetuadas, exercendo o contraditório relativamente às mesmas, e assim contribuir para o apuramento da verdade relativamente a factos instrumentais surgido apenas na prestação do depoimento.
À R. será concedida a possibilidade de exercer o contraditório sobre os documentos apesentados pela A. e que agora são admitidos.
A apelação deve ser julgada procedente.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, de 24.1.2022, deferindo-se a junção dos documentos apresentados pela A. com o requerimento de 10.1.2022.
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As custas da apelação são suportadas pela recorrida, por ter decaído no recurso (art.º 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), levando-se em conta a taxa de justiça paga.
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Porto, 4 de maio de 2022
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Diploma legal a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[2] Os documentos constituem fonte de prova real, não havendo dúvida quanto à sua admissibilidade como meio de prova. Neles se encontram registados factos que podem ser (ou não) relevantes para o processo, por via de uma intervenção humana intencional (art.º 362º do Código Civil). Tal como os outros meios de prova, têm por função a demonstração da realidade dos factos alegados pelas partes, ou melhor, a verdade dessa alegação (art.º 341º do Código Civil).
[3] Se o conseguiu ou não, ou em que medida, é outra questão que não importa aqui escalpelizar.
[4] Proc. 3741/17.0T8MTS-A.P1, in www.dgsi.pt.
[5] Primeiras Notas ao Código de Processo Civil, Vol. I, Almedina, 2014, 2ª edição, pág. 370.
[6] Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Almedina, 2019, pág. 501.
[7] No mesmo sentido, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, 3ª edição, Vol. 2º, pág. 241.
[8] Proc. 744/11.1TBFUN-D.L1-1, in www.dgsi.pt.
[9] Acórdão da Relação de Lisboa de 26.9.2019, proc. 27/18.6T8ALQ-A.L1-6, in www.dgsi.pt.
[10] Acórdão da Relação de Lisboa de 6.12.2017, in www.dgsi.pt, citando outra jurisprudência.
[11] Acórdãos da Relação de Coimbra de 18.11.2104, da Relação de Guimarães de 23.5.2019, in www.dgsi.pt.
[12] Neste sentido, acórdão da Relação de Évora de 18.1.2021, proc. 2130/17.0T8EVR-B.E1, in www.sgsi.pt.