MASSA INSOLVENTE
INVENTÁRIO
Sumário

Não sendo a massa insolvente interessada directa na partilha por óbito do cônjuge da insolvente, carece de legitimidade para requerer o inventário respectivo.

(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:


A massa insolvente de Maria P. propôs acção especial de inventário, para partilha da herança deixada por óbito de João P., mais resultando dos documentos juntos com o requerimento inicial que o inventariado faleceu em 3/12/2010, no estado de casado com Maria P., e que em 30/3/2017 foi declarada a insolvência desta.

A referida Maria P. foi nomeada para exercer o cargo de cabeça de casal, tendo prestado compromisso de honra do desempenho dessas funções e tendo ainda prestado declarações.

Após apresentação da relação de bens pela cabeça de casal, por despacho de 17/10/2021 foi ordenada a notificação das partes para, querendo, se pronunciarem sobre a legitimidade da massa insolvente requerente.

A massa insolvente requerente apresentou requerimento onde, em síntese, invoca que o inventário tem por objectivo apurar os bens da insolvente que daí advêm, para que revertam para a massa insolvente, e tendo presente que a insolvente está privada dos poderes de disposição dos seus bens, cabendo o seu exercício ao administrador da insolvência. Conclui, assim, pela sua legitimidade processual.

A cabeça de casal apresentou igualmente requerimento, onde invoca, em síntese, que a massa insolvente requerente não pode ser considerada interessada directa na partilha, assim concluindo pela verificação da excepção da ilegitimidade.

Seguidamente foi proferido despacho em 3/1/2022, com o seguinte dispositivo:
Termos em que julgo verificada a sobredita excepção dilatória de ilegitimidade e, consequentemente, absolvem-se a cabeça-de-casal e demais interessados da instância”.

A requerente recorre desta decisão final, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
A-Têm legitimidade processual para requerer a abertura de processo de inventário e para nele intervirem, como partes principais, em todos os actos e termos do processo, os interessados directos na partilha.
B-Os interessados directos na partilha serão os sujeitos que, sendo ou não herdeiros, vêem a sua esfera jurídica ser atingida, de forma imediata e necessária, pelo medo como se organiza e concretiza a partilha.
C-Não restam dúvidas que a Massa Insolvente de Maria P. e ora Recorrente tem interesse directo na partilha, pelo tem e deve ser qualificada como interessada nos termos da lei do processo de inventário.
D-Compete ao administrador da insolvência os poderes de carácter patrimonial que pertenciam ao insolvente, desde que do interesse da insolvência.
E-Estando os bens que integram o património a partilhar incluídos na massa insolvente, o administrador, enquanto representante do interesse do insolvente, tem interesse em requerer o processo de inventário.
F-Quer isto dizer que, o administrador, enquanto representante da Massa Insolvente tem legitimidade para requerer o processo de inventário de modo a prosseguir os propósitos da insolvência e os bens do credor.
G-No caso sub judice o facto da insolvente intervir nos autos como cabeça de casal não interfere com a legitimidade da massa insolvente.
H-A massa insolvente age em representação apenas para efeitos de relação de bens, determinação de valores dos bens da herança, forma de partilha de bens e bens a adjudicar.
I-Por fim, determinar que a massa insolvente não tem legitimidade para promover o processo de inventário constitui uma violação dos direitos e interesses dos credores, o que contraria toda a finalidade do processo de insolvência.
J-Ou seja, conferindo-se o direito à instauração do processo de inventário apenas aos herdeiros, no qual se incluem a pessoa insolvente, tal realidade significa que se nenhum dos herdeiros promover o dito processo de inventário, nunca os credores receberão qualquer valor ou bem decorrente da liquidação/partilha do quinhão hereditário pertencente à pessoa insolvente.
K-Isto porque, enquanto a herança não estiver partilhada, os herdeiros não têm direitos sobre bens certos e determinados, não dispõem de um direito real sobre bens em concreto e para além disso, também não possuem uma quota parte em cada um deles.
L-Mais se dirá que, a ser assim, tal circunstância ofende gritantemente todo o fim e escopo do processo de insolvência.
M-Daí que, inegavelmente, a ora Recorrente tem legitimidade processual para promover, como promoveu o processo de inventário.

A cabeça de casal apresentou alegação de resposta, aí pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, a única questão submetida a recurso prende-se com a determinação da legitimidade processual da massa insolvente requerente.
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A materialidade com relevo para o conhecimento do objecto do presente recurso é a que decorre das ocorrências e dinâmica processual expostas no relatório que antecede.
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No despacho recorrido ficou assim sustentada a falta de legitimidade processual da massa insolvente requerente:
Da leitura do disposto nas alíneas a) e b), do n.º 1, do artigo 1085.º do Código de Processo Civil resulta que (apenas) têm legitimidade para requerer a instauração de inventário, nele intervindo como parte principal, os interessados directos na partilha, os cônjuges meeiros e, em determinadas circunstâncias, o Ministério Público.
A propósito da definição do conceito indeterminado de “interessado directo na partilha”, referem Miguel Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pinheiro Torres que estes “… serão (…) os sujeitos que, sendo ou não herdeiros do de cujus, vêem a sua esfera jurídica ser atingida, de forma imediata e necessária, pelo modo como se organiza e concretiza a partilha do acervo hereditário.”
No caso sub judice, a interessada directa na partilha aberta por óbito de João P., a saber, Maria P., aqui cabeça de casal, foi, como já se referiu supra, declarada insolvente. Por conseguinte, como bem observam os autores acima mencionados , in casu, esta última “… não tem legitimidade para requerer (…) ou para ser requerido no processo de inventário, dado que (…) segundo o estabelecido no artigo 81.º, n.ºs 1 e 6 do CIRE, o insolvente perde os poderes de administração e de disposição do quinhão hereditário e são inoponíveis à massa insolvente quaisquer actos praticados pelo insolvente sobre esse quinhão.”
Com efeito, considerando a data do óbito do autor da herança (03.12.2010), constata-se que a insolvente foi chamada à sucessão antes de ser declarada a sua insolvência, o que apenas sucedeu em 30.03.2017. Donde, a partir desta última data, o respectivo quinhão hereditário passou a integrar a massa insolvente, perdendo aquela qualquer poder de disposição sobre o mesmo.
Porém, como foi decidido em douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, “… o que passou a estar integrado na massa insolvente foi o direito sobre uma quota-parte da insolvente no património da herança do falecido (…). Pelo facto de o quinhão hereditário da insolvente no património da herança do falecido (…) passar a estar integrado na massa insolvente, não faz desta interessada directa na partilha, de modo a ter legitimidade processual para requerer a abertura do processo de inventário. O que está integrado na massa insolvente é o quinhão hereditário que a insolvente possui na herança do falecido, e não a sua qualidade sucessória em relação à mesma. Interessada directa na partilha da herança do falecido seria a insolvente, por ser herdeira, e não a massa insolvente, pois, além de não ser sucessora do de cujus, não é directamente beneficiada pela partilha (não é um interessado directo). Ora, como a massa insolvente (…) não é interessada directa na partilha (…), não pode requerer a abertura do respectivo processo de inventário, pois não tem legitimidade para ser parte principal.”
Perfilhando idêntico entendimento, vide o recente acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no qual se pode ler que “… os direitos da massa insolvente recaem sobre o quinhão hereditário, não sobre o preenchimento do quinhão com determinados bens…”, não sendo, pois, “… a massa insolvente do herdeiro (…) interessada directa ou sequer indirecta na partilha da herança.”
Efectivamente, a finalidade inerente à apreensão do quinhão hereditário da insolvente para a respectiva massa prende-se com a possibilidade de vir a ser vendido na fase da liquidação do processo de insolvência, com subsequente reversão do produto da venda favor dos credores.
Conforme referido neste último acórdão, a satisfação dos correspondentes interesses não implica, pois, - contrariamente àqueloutros titulados pela herdeira insolvente - a concretização de tal quinhão hereditário em bens determinados através da partilha (o que, de resto, só serviria para retardar inutilmente a satisfação desses mesmos credores).
Face ao exposto, verificando-se ter sido o presente inventário requerido por quem não possui a qualidade de interessado directo na respectiva partilha, subsiste uma ilegitimidade que, enquanto excepção dilatória de conhecimento oficioso, conduz à absolvição da instância - assim, os artigos 577.º, alínea e) e 578.º do Código de Processo Civil, aplicáveis, in casu, ex vi do artigo 549.º do mesmo diploma legal”.

Na sua alegação de recurso a massa insolvente requerente não adianta qualquer argumento susceptível de contrariar a fundamentação em questão.

Com efeito, a massa insolvente requerente desde logo reconduz a sua argumentação à indistinção entre o património da insolvente e o património hereditário, entendendo que os bens que integram o património a partilhar integram, necessariamente, a massa insolvente.

Só que, como resulta claro da decisão recorrida, aquilo que integra a massa insolvente não são os bens (ou parte deles) que integram o acervo hereditário, mas tão só o direito da insolvente à herança. E como esse direito não incide sobre bens determinados, mas sobre uma quota parte indivisa de uma universalidade de relações jurídicas activas e passivas de carácter patrimonial, não extintas com o óbito do inventariado, logo se alcança que não se considera integrado na massa insolvente qualquer (inexistente) direito da insolvente a bens concretos da herança, mas apenas o quinhão hereditário da insolvente.

Ou seja, aquilo que pode (e deve) ser liquidado, no âmbito da insolvência, tendo em vista a satisfação dos credores da insolvência, é o direito a tal quinhão hereditário, já que só tal situação jurídica é susceptível de integrar a massa insolvente.

E se a insolvente perdeu os poderes de disposição sobre o seu património, aí se incluindo o direito a tal quinhão hereditário, ingressando este na massa insolvente, com vista a ser objecto de liquidação, para satisfação dos credores da insolvente, tal não significa que a massa insolvente passou a deter a qualidade de sucessora do inventariado, desde logo porque o carácter pessoal dessa vocação não se confunde com  a dimensão patrimonial do direito ao quinhão hereditário, continuando a residir aquela qualidade na pessoa da insolvente, tendo presente a sua qualidade de cônjuge sobrevivo.

Ora, como resulta da al. a) do nº 1 do art.º 1085º do Código de Processo Civil (e bem ainda da al. a) do nº 1 do art.º 4º do antecedente Regime Jurídico do Processo de Inventário), a legitimidade para requerer que se proceda a inventário e para nele intervir reside nos interessados directos na partilha. E como do art.º 2101º do Código Civil resulta que o direito a exigir a partilha assiste aos herdeiros e ao cônjuge meeiro, logo se alcança que titulares de um qualquer interesse indirecto ou reflexo na realização da partilha (como a massa insolvente requerente) não podem, desde logo, requerer que se proceda a inventário, por não deterem legitimidade para tanto.

Isso mesmo vem sendo afirmado jurisprudencialmente, como no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24/3/2022 (relatado por Raquel Baptista Tavares e disponível em www.dgsi.pt), no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 9/11/2021 (relatado por Freitas Neto, disponível em www.dgsi.pt e referido na decisão recorrida), ou no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 24/9/2020 (relatado por Nelson Borges Carneiro, disponível em www.dgsi.pt e igualmente referido na decisão recorrida).

E nem se diga que tal interpretação do disposto na al. a) do nº 1 do art.º 1085º do Código de Processo Civil é violadora dos direitos dos credores da insolvente, já que os mesmos estão devidamente salvaguardados com a apreensão do quinhão hereditário da insolvente e seu ingresso na massa insolvente, para aí ser objecto da liquidação, e sendo o produto dessa liquidação destinado à satisfação dos créditos respectivos, segundo as regras próprias do processo de insolvência.

Ou seja, não apresentando a massa insolvente requerente qualquer argumentação apta a contrariar o referido entendimento jurisprudencial, e não se vendo razão para não acompanhar o mesmo, nos termos acima explanados, logo se alcança que a decisão recorrida não merece qualquer censura, face à improcedência das conclusões do recurso da massa insolvente requerente.
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DECISÃO

Em face do exposto julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela massa insolvente requerente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.



Lisboa, 28 de Abril de 2022


António Moreira
Carlos Castelo Branco
Orlando Nascimento