RECURSO PER SALTUM
CONCURSO DE INFRAÇÕES
CONHECIMENTO SUPERVENIENTE
CÚMULO JURÍDICO
PENA ÚNICA
Sumário


I - A proporcionalidade que deve orientar a determinação da pena conjunta, deverá obter-se através da ponderação da gravidade dos crimes do concurso, as caraterísticas da personalidade do agente neles revelado e da dimensão da medida das penas parcelares no âmbito da respetiva moldura penal.
II - A individualização da pena única deve refletir a destrinça fundamental que importa estabelecer ao nível das consequências jurídicas em função de cada fenomenologia criminal.
III - Sempre que tiver de convocar-se o princípio da «justa medida», impõe-se fundamentar o procedimento que conduziu à obtenção do juízo da desproporcionalidade da pena conjunta e da dimensão do correspondente excesso -– art. 205.º, n.º 1, da CRP.

Texto Integral

O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção, em conferência, acorda: --

A - RELATÓRIO:

1. a condenação:

No Juízo Central Cível e Criminal ... – Juiz ..., por conhecimento superveniente de ter cometido um concurso de crimes, procedeu-se ao julgamento do arguido: -------------------

- AA, de 55 anos e os demais sinais dos autos, - ----------------------

para efetuar o cúmulo jurídico das penas parcelares que lhe foram aplicadas nos processos comuns:  -------------------------

- singular n.º 30/18....; e

- singular 12/19...., o vertente processo.

Por acórdão do Tribunal coletivo de 11 de janeiro de 2022, foi condenado na pena única de 7 anos de prisão.

2. o recurso:

O arguido, inconformado, recorre, diretamente, para o Supremo Tribunal de Justiça.

Remata a alegação com as seguintes conclusões (em síntese): ------

1. Condenou o Tribunal a quo o arguido, em cúmulo jurídico das penas de prisão, no presente processo e no processo nº 30/18...., na pena única de 7 (sete) anos de prisão.  

2. não foi feita a melhor interpretação e aplicação do disposto no artigo 71º, nº 1 do Código Penal, traduzindo-se a pena numa pena excessiva.

3. O acórdão em recurso valorou excessivamente os elementos de conduta do recorrente (grau de ilicitude, intensidade do dolo, gravidade do facto ilícito), bem como os seus antecedentes criminais, não ponderando devidamente as circunstâncias pessoais do arguido, nomeadamente, o seu contexto socio económico e familiar e a sua idade.

4. Entende, o Recorrente que, a pena que lhe deve ser aplicada não pode ser superior a 6 anos, pois considera que esta medida ainda permite respeitar e realizar as necessidades preventivas da comunidade.

5. Ao assim não decidir o Tribunal “a quo” fez errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 50º, nºs 1 e 2 e artigo 52º do C. Penal.

Peticiona a redução da pena única para 6 anos de prisão a qual, alega, “ainda permite respeitar e realizar as necessidades preventivas da comunidade”.

3. resposta do M.º P.º:

O Ministério Público na 1ª instância, respondeu. Pugnando pelo improvimento do recurso defende o acerto da dosimetria da pena conjunta.

4. parecer do M.º P.º:

O Digno Procurador-Geral Adjunto no Supremo Tribunal pronuncia-se pelo improvimento do recurso, argumentando (em síntese):

“Defende [o arguido] que o acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 50º nº1 e 2 e 52, ambos do Código Penal (CP).

Não se percebe o raciocínio do recorrente ao invocar a violação dos referidos artigos e ao mesmo tempo apelar para a fixação de uma pena que não permite a aplicação do estatuído nos mesmos. Isto é, pretende a suspensão da execução da pena e a aplicação de uma pena de 6 anos de prisão efectiva”.

“no Acórdão recorrido, foi valorada em devida conta a situação familiar e socio-económica do arguido, os factos praticados e a personalidade do mesmo, tudo em cumprimento do estatuído no artº 77ºnº1 do CPP. Atentou-se igualmente, nas repetidas condutas criminosas do recorrente, que manifesta uma tendência para a prática de crimes.”

“no caso, o acórdão recorrido, teve em conta as necessidades de prevenção geral e prevenção especial e procedeu à avaliação da personalidade do arguido e da globalidade dos factos por ele praticados.

O registo criminal do arguido é demonstrativo de uma propensão para a prática de atos criminosos e ainda que as anteriores condenações sofridas e as respetivas penas aplicadas não constituíram fatores suficientes para o afastar da criminalidade.

Foi tida na devida conta a personalidade do arguido, a sua conduta anterior e posterior aos factos puníveis entre outras. Foram valoradas todas as circunstâncias que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido, atendendo às razões da prevenção especial.

Nestes termos, e tendo ainda presente a moldura penal abstracta a considerar para a fixação da pena única, a qual se baliza entre o mínimo de 4 (quatro) anos de prisão, e o máximo de 8 (oito) anos de prisão, é nosso entendimento não ser excessiva a pena de 7 (sete) anos de prisão fixada.”

5. contraditório:

Cumprido o disposto no art. 417º n.º 2 do CPP, o recorrente nada veio dizer.


*


Colhidos os vistos, cumpre decidir.


A - OBJETO DO RECURSO:

O recorrente questiona a medida da pena conjunta.

B - FUNDAMENTAÇÃO:

1. os factos:

A instância recorrida julgou provados os seguintes dados e factos: -----

A) Nos presentes autos (12/19....), AA foi condenado por sentença de 05 de Maio de 2020, transitada em julgado em 17-02-2021, por factos praticados em 18 de Julho de 2019, na pena de 4 (quatro) anos de prisão efectiva pela prática de crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade.

Resultou então provado que o arguido AA é consumidor de produtos estupefacientes e, por ser consumidor habitual e ter frequentemente consigo produtos estupefacientes, o arguido procede à venda de produto estupefaciente, nomeadamente heroína, desde data não concretamente apurada.

Com o intuito de adquirir produto estupefaciente para consumir e revender, o arguido, no dia 17 de Julho de 2019, deslocou-se ao ....

Naquela data, o arguido adquiriu com o intuito de vender e consumir 19,446 gramas de heroína, com um grau de pureza de 10,3%, correspondente a 20 doses médias individuais.

O arguido, após adquirir o produto estupefaciente, ocultou a supramencionada quantidade de heroína, introduzindo-a, após subdividir a mesma em duas embalagens, no interior do seu ânus.

Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido tinha na sua posse uma nota com o valor de € 50,00, seis notas com o valor de € 20,00, três notas com o valor de € 10,00 e uma nota com o valor de € 5,00, todas emitidas pelo Banco Central Europeu e um telemóvel de marca ..., de cor ..., modelo desconhecido.

O arguido não era detentor ou titular de licença ou autorização que lhe permitisse adquirir, deter e/ou transportar a supramencionada substância.

O arguido conhecia as características do produto que adquiriu e que tinha na sua posse (heroína), estava consciente que se tratava de produto estupefaciente, e, por conseguinte, que a posse, venda, distribuição, compra, cedência, transporte, importação, exportação era proibida e punida por lei como crime.

O arguido actuou de forma livre, deliberada e consciente.

O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal e tinha capacidade para se autodeterminar de acordo com esse conhecimento.

B) Foi condenado como reincidente, por sentença de 26 de Novembro de 2019, transitada em julgado em 27 de Maio de 2021, no âmbito do processo comum singular nº. 30/18...., por factos praticados em 04 de Julho de 2018, na pena de 4 (quatro) anos de prisão efectiva, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade.

Resultou então provado que

No intuito de adquirir produto estupefaciente para revender, o arguido formulou o propósito de se deslocar da zona onde reside, ..., no veículo automóvel com a matrícula ..-..-ZA, até à zona da ..., ....

No dia 04/07/2018, pelas 20 horas e 45 minutos, na zona da ..., o arguido AA adquiriu, pelo valor de € 500, a indivíduos não concretamente identificados, 30,275 gramas de heroína, com um grau de pureza de 20,6%.

Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido AA tinha na sua posse uma nota com o valor de € 10 e uma nota com o valor de € 20, ambas emitidas pelo Banco Central Europeu.

O arguido não possuía qualquer autorização que lhe permitisse adquirir e deter aquelas substâncias.

O arguido conhecia as características dos produtos que adquirira e que tinha na sua posse, designadamente a sua natureza estupefaciente e sabia que a sua posse, aquisição ou venda a terceiros era proibida por lei.

O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária, deliberada e consciente.

O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei e tinha capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.

Quanto às condições pessoais do condenado, resulta destas decisões que:

O arguido é natural de uma zona rural do concelho ..., é o mais novo de uma fratria de dois elementos, integrando um agregado familiar de modesta condição sócio económica.

Frequentou o ensino até aos 13 anos de idade, altura em que completou o 5º. ano de escolaridade, tendo posteriormente abandonado os estudos, por falta de motivação.

Em contexto de reclusão, concluiu o 6º. ano de escolaridade, através do curso EFA, B2.

Iniciou o consumo de haxixe por volta dos 16 anos e o consumo de heroína e cocaína, por volta dos 22 anos, dos quais se tornou dependente e, que viria a determinar-lhe forte instabilidade pessoal, residencial e laboral, deslocando-se para o ... onde manteve ocupação laboral no ramo da restauração e construção civil e, posteriormente, na manutenção da refinaria de ... e, ainda, na empresa da ..., nas ..., na área da serralharia.

A instabilidade vivenciada manifestou-se num desajuste comportamental, sofrendo reclusões anteriores por práticas criminais de tráfico de estupefacientes, devido ao seu percurso atribulado e criminalmente censurável. Esteve ainda envolvido judicialmente num processo de resistência e coação a funcionário, com decisão judicial de suspensão da execução da pena de prisão, com regime de prova e multa, sujeito a injunções e regras de conduta, que não conseguiu concretizar.

Em termos afectivos, o arguido manteve uma união de facto durante cinco anos, com uma jovem portadora de idêntica problemática aditiva.

Desta união nasceram duas filhas, tendo a primogénita sido entregue aos cuidados de uma tia materna, à qual foi atribuído o exercício do poder paternal, entretanto falecida.

Quanto à filha mais nova, o arguido desconhece o seu paradeiro e o da ex-companheira, cuja ligação se desfez há vários anos.

O arguido efectuou diversas tentativas de desintoxicação na ... especializada na problemática aditiva, mas sem sucesso, mantendo o acompanhamento actualmente por este serviço.

No meio social onde se movimentava era referenciado como indivíduo consumidor de estupefacientes, mantendo convivência com outros indivíduos conotados com o tráfico/consumo de drogas.

Familiarmente é identificado como sujeito irresponsável, dado não ser capaz de elaborar projetos consistentes e assertivos de vida futura, não possuindo um temperamento difícil.

No decurso da prisão preventiva o arguido tem mantido comportamento adequado às normas institucionais e recebe visitas de familiares regulares, nomeadamente, da filha, irmã e sobrinha.

Apresenta um percurso vivencial marcado pela toxicodependência, facto que comprometeu o seu ajustamento comportamental, enquanto processo responsável pela instabilidade pessoal, laboral e económica que tem experienciado, bem como, pelos diversos contactos anteriores com o sistema de justiça.

Não obstante os tratamentos a que foi sujeito na área das dependências, não encarou os tratamentos com firmeza e empenho, por forma a afastar-se de enquadramentos sociais geradores de risco.

A irresponsabilidade e irreflexão do arguido traduziram-se, ao longo da sua vida, pela inexistência de racionalismo das suas escolhas pessoais, na ausência de projectos vivenciais consistentes e não envolvimento em acções pró-ativas, o que não lhe permitiu alcançar objetivos de estabilidade pessoal duradoura, tendentes a uma reinserção socio-laboral estável.

Da informação prestada pelo EP a fls. 676 resulta que o condenado inicialmente apresentou comportamento regular naquele estabelecimento, vindo posteriormente a ser-lhe instaurado procedimento disciplinar, em 20-09-2021, por posse de telemóvel, cujo desfecho ainda não é conhecido. Abandonou por vontade própria o programa de metadona em 12 de Julho de 2021.

Em audiência de cúmulo jurídico, o condenado afirmou manter-se abstinente do consumo de estupefacientes e/ou bebidas alcoólicas. Mais referiu que ainda não frequentou qualquer programa de formação profissional porque “não o inscreveram” (sic).

Para além destas condenações, resultam do CRC do condenado ainda as seguintes:

1 - Por acórdão do Tribunal Judicial ..., de Janeiro de 2002, transitado em julgado, a 02/07/2002, pela prática, a 16/01/2000, de um crime de tráfico de estupefacientes para consumo, na forma tentada, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução, por 5 anos, declarada extinta a suspensão da execução da pena, a 10/09/2007;

2 - Por sentença do Tribunal Judicial ..., de 23/01/2002, transitada em julgado, a 08/02/2002, pela prática, a 04/08/2001, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 60 dias de multa, declarada extinta, por pagamento, a 16/05/2002;

3 - Por sentença do Tribunal Judicial ..., de 19/06/2002, transitada em julgado, a 04/07/2002, pela prática, a 18/06/2002, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 120 dias de multa, declarada extinta, por pagamento, a 08/06/2004;

4 - Por sentença do Tribunal Judicial ..., de 09/12/2004, transitada em julgado, a 07/01/2005, pela prática, a 25/05/2004, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 60 dias de multa, declarada extinta, por pagamento, a 27/09/2006;

5 - Por sentença do Tribunal Judicial ..., de 22/01/2009, transitada em julgado, a 23/02/2009, pela prática, a 04/05/2008, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário e um crime de injúria agravado, na pena de 6 meses de prisão, substituído por 180 dias de multa e de 120 dias de multa, respectivamente e, na pena única de 220 dias de multa, convertida em prisão subsidiária e suspensa, a 07/01/2010 e, declarada extinta, a suspensão da prisão subsidiária, a 05/01/2012;

6 - Por acórdão do Tribunal Judicial ..., de 14/02/2014, transitado em julgado a 18/03/2014, pela prática, a 18/02/2013, de um crime de tráfico de estupefacientes e um crime de detenção de arma proibida, nas penas de 4 anos e 6 meses de prisão e de 1 ano de prisão e, na pena única de 5 anos de prisão, declarada extinta, por cumprimento, a 21/02/2018.

2. o direito:

a) da pena única:

i. fatores a considerar:

O cúmulo jurídico de penas rege-se pelo disposto no art. 77º (“Regras da punição do concurso), n.º 2, do Código Penal, que estabelece: 2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.

O legislador instituiu, assim, um regime especial para a determinação da medida da pena conjunta do concurso de crimes, com a indicação do iter a seguir pelo juiz na respetiva quantificação.

Um concurso de crimes, por opção de política criminal, é punido com uma pena única, obtida através da ponderação dos factos cometidos e da personalidade do agente. Doutrina e jurisprudência coincidem em que, nos termos da lei, na fixação do quantum da pena conjunta a aplicar ao concurso de crimes essencial é o grau da gravidade dos factos e as tendências da personalidade que o agente neles revela.

Ainda assim, não raramente, recorrentes exasperando na parametrização daqueles vetores pretendem que a punição do concurso de crimes ignore a condenação por cada crime e as penas parcelares aplicadas, acabando a pugnar por um sistema de pena unitária. Neste, a totalidade dos factos cometidos, formam uma só entidade, como se fosse um único crime para efeitos punitivos. Não existe, em regra, decisão judicial intermédia a fixar a consequência jurídica de cada crime do concurso. A pena unitária não está condicionada ou balizada por penas parcelares, inexistentes, em regra.

Não é assim no sistema da pena conjunta adotado pelo nosso legislador. O que realmente o distingue daquele não é, propriamente, o resultado final, traduzido, em ambos numa só pena para sancionar o concurso de crimes. Traço distintivo marcante é que ali a pena é realmente única e determina-se numa só operação, através da consideração unitária do conjunto dos crimes do concurso como comportamento global unificado na mesma entidade punitiva. Enquanto aqui os crimes do concurso são primeiramente tratados na sua singularidade punitiva, determinando-se-lhes uma pena própria. Seguidamente, a totalidade das penas ditas parcelares fundem-se numa pena conjunta, determinada pelo critério especial acima apontado. Aqui, a avaliação do comportamento global assenta na ponderação conjugada do número e da gravidade dos crimes e das penas parcelares englobadas, da concreta medida destas, da sua relação de grandeza com a moldura penal do concurso e da interconexão que se deve estabelecer entre os crimes do concurso e as propensões da personalidade do agente revelada no cometimento dos factos.

Na escolha e determinação da medida da pena única importa sinalizar as circunstâncias que estão subjacentes ao concurso de crimes e a interconexão entre os mesmos de modo a esboçar a sua compreensão à face da personalidade do agente, destrinçando assim se o mesmo tem propensão para o crime, ou se na realidade, estamos perante um conjunto de eventos criminosos episódicos e assim aferir in concreto a necessidade de prevenção geral e especial.

Sustentando-se que “do que se trata agora é de ver os factos em relação uns com os outros, de modo a detetar a possível conexão e o tipo de conexão que intercede entre eles (“conexão autoris causa”), tendo em vista a totalidade da atuação do arguido como unidade de sentido” punitivo e “a «culpa pelos factos em relação»”.

“Por conseguinte, a medida da pena do concurso de crimes tem de ser determinada em função desses fatores específicos, que traduzem a um outro nível a culpa do agente e as necessidades de prevenção que o caso suscita”[1]. 3

Não podendo considerar-se circunstâncias que façam parte de cada um dos tipos de ilícito do concurso (proibição da dupla valoração –art. 71º n.º 2 do Código Penal), nem tampouco aquelas que já tenham sido determinantes na fixação de cada pena parcelar.

A doutrina maioritária[2] e a jurisprudência[3]3 defendem nada obstar a que a pena única se determina pela ponderação conjunta de fatores do critério geral (enunciados no art. 71º) e do critério especial (fornecido pelo art. 77º n.º 1).

ii. fator de compressão mitigado:

Constatando assinalável diversidade na determinação da pena conjunta, geradora de incerteza jurídica, desigualdade na determinação das consequências jurídicas do concurso de crimes, e fonte de onde brota, a jusante, considerável litigância recursória, desenhou-se neste Tribunal uma corrente jurisprudencial que, na sua veste mais recente, sustenta que a fixação da medida da pena única deve resultar da adição à pena parcelar mais grave, que fixa o limiar inferior da moldura penal do concurso de crimes, uma fração das restantes penas parcelares englobadas, sendo a partir deste valor, consideradas as especificidades do caso. Atendendo à regra ínsita no art. 77º nº 1 do Código Penal e para determinar a fração, toma em consideração principalmente o tipo de criminalidade e a dimensão das penas parcelares cumuladas e, complementarmente, a personalidade do arguido que os factos revelam.

A. Lourenço Martins, estudando a jurisprudência deste Supremo Tribunal sobre a medida da pena, defende a adição de uma proporção das penas parcelares que oscila, conforme as circunstâncias de facto e a personalidade do agente e por via de regra, entre 1/3 (um terço) e 1/5 (um quinto). Acrescenta: se bem que a corrente, que se poderia designar-se do «factor percentual de compressão», possa relutar a um julgador cioso do poder discricionário (aqui, aliás, mais vinculado que discricionário), desde que o seu uso não se faça como ponto de partida, mas como aferidor ou mecanismo de controlo, não nos parece que deva, sem mais, ser rejeitada. Representa um esforço de racionalização num caminho eriçado de espinhos, desde que afastada uma qualquer «arbitrariedade matemática» ou uma menor exigência de reflexão sobre os dados. O direito, como ciência prática e não especulativa nunca atingirá a certeza das matemáticas ou das ciências da natureza, mas a jurisprudência deve abrir-se ao permanente aperfeiçoamento, que há-de ser encontrado na pena conjunta.

Sustenta-se no Ac. de 27/01/2016 deste Supremo Tribunal que “não repugna que a convocação dos critérios de determinação da pena conjunta tenha como coadjuvante, e não mais do que isso, a definição dum espaço dentro do qual as mesmas funcionam.

Na verdade, como se referiu, a certeza e segurança jurídica podem estar em causa quando existe uma grande margem de amplitude na pena a aplicar, conduzindo a uma indeterminação. Recorrendo ao princípio da proporcionalidade não se pode aplicar uma pena maior do que aquela que merece a gravidade da conduta nem a que é exigida para tutela do bem jurídico.

Para evitar aquela vacuidade admite-se o apelo a que, na formulação da pena conjunta e na ponderação da imagem global dos crimes imputados e da personalidade, se considere que, conforme uma personalidade mais, ou menos, gravemente desconforme com o Direito, o tribunal determine a pena única somando à pena concreta mais grave entre metade e um quinto de cada uma das penas concretas aplicadas aos outros crimes em concurso (Confrontar Juiz Conselheiro Carmona da Mota em intervenção no STJ no dia 3 de Junho de 2009 no colóquio subordinado ao tema "Direito Penal e Processo Penal", igualmente Paulo Pinto de Albuquerque Comentários ao Código Penal anotação ao artigo 77).

A utilização de tal critério na individualização da pena conjunta está relacionada com uma destrinça fundamental que importa estabelecer ao nível das consequências jurídicas em função de cada fenomenologia criminal. Na operação de cálculo do fator de compressão importa considerar a necessidade de um tratamento diferente para a criminalidade em função da sua definição legal, designadamente de acordo com a sua consideração como bagatelar, como média ou como grave, de tal modo que, como referia Carmona da Mota, a “representação” das parcelares que deve acrescer à pena mais grave se possa saldar por uma fração cada vez mais alta, conforme a gravidade do tipo de criminalidade. Na verdade, não é raro ver um tratamento uniforme, destituído de qualquer opção valorativa do bem jurídico, - que pode assumir uma diferença substantiva abissal impondo a destrinça clara da resposta entre a ofensa de bens jurídicos mais ou menos fundamentais para preservação de valores vitais e pessoais indisponíveis e a ofensa de bens jurídicos de outra índole e entidade jurídico-criminal.

Este é o entendimento prevalente, que nos casos de elevada pluralidade de crimes em concurso pode ainda ser temperado através da intervenção do princípio da proporcionalidade, implícito no critério que vem de citar-se. Designadamente convocando a interpretação de que “na formação da pena única, quanto maior é o somatório das penas parcelares, maior é o fator de compressão que incide sobre as penas que se vão somar à mais elevada, pois, se assim não fosse, muito facilmente se atingiria a pena máxima em casos em que a mesma não se justifica perante a gravidade dos factos”, de modo a impedir que o agente do concurso de crimes resulte condenado numa pena conjunta inadequada à gravidade dos crimes e que muito dificultaria a sua reintegração na comunidade dos homens e das mulheres respeitadores/as dos bens jurídicos fundamentais.

Consequentemente, o denominado «fator de compressão», deve funcionar como aferidor do rigor e da justeza do cúmulo jurídico de penas, devendo adotar frações ou logaritmos diferenciados em função da fenomenologia dos crimes do concurso, mas que no âmbito do mesmo tipo de crime devem ser idênticos, podendo variar ligeiramente em função da personalidade do arguido revelada pelos factos e do modo de execução dos crimes. Somente um tal rigor na determinação da pena conjunta permitira garantir a justiça relativa e a igualdade de tratamento dos condenados. Sem um critério aferidor como o proposto, a pena conjunta aparecerá em cada caso como um produto da “arte” do Juiz, naturalmente moldada, - como qualquer artista do seu tempo - pelas próprias conceções jurídico-criminais (se não mesmo pelas suas idiossincrasias filosóficas e de política criminal). Esse, como qualquer outro método e procedimento desligado de um sistema de avaliação dotado de alguma objetividade, haverá sempre de gerar um resultado mais ou menos discutível e, no nível acima, poderá ser sempre suscetível de uma qualquer intervenção corretiva, tanto para mais como para menos, conforme a demanda do sujeito processual recorrente.

Consequentemente, na determinação da pena conjunta a aplicar a um concurso de infrações, a ponderação dos factos no seu conjunto, mais apropriadamente, dos crimes e das penas parcelares (em maior ou menor grandeza fracional) deve adequar-se ao tipo de criminalidade com enfase agravante quando concorrem crimes graves contra as pessoas, ou, gradativamente, em casos de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente violenta e de criminalidade altamente organizada - art. 1º al.ªs i) a m) do CPP.

E “paralelamente, à apreciação da personalidade do agente interessa, sobretudo, ver se nos encontramos perante uma certa tendência, que no limite se identificará com uma carreira criminosa, ou se aquilo que se evidencia é uma mera pluriocasionalidade”.

O “comportamento global”, com o sentido assinalado, que preside ao cúmulo jurídico e à aplicação da pena única, evidencia, por norma, uma personalidade mais ou menos intensamente desconforme ao modo de ser suposto pela ordem jurídico-criminal. À luz das regras da experiência, a violação, pelo agente, de vários bens jurídicos de igual importância, através da mesma ou de condutas imediatamente seguidas, exprime, geralmente, pluriocasionalidade criminosa. A reiteração espaçada de idênticas ou de diferentes condutas delituosas, à mesma luz, poderá evidenciar uma tendência, persistente vontade em delinquir, ou mesmo uma carreira criminosa.

Sem perder de vista que “até ao máximo consentido pela culpa, é a medida exigida pela tutela dos bens jurídicos … que vai determinar a medida da pena”. “O respeito por aquele limite é penhor bastante da constitucionalidade da solução preconizada face ao disposto nos arts. 1º, 13º -1 e 25º -1. da CRP”[4]4.


iii. princípio da proporcionalidade da pena:


A proporcionalidade e a proibição do excesso são princípios com assento na Constituição da República – art. 18º n.º 2 – e, por isso, de aplicação direta na sua vertente subjetiva.

“O princípio da proporcionalidade (também chamado princípio da proibição do excesso) desdobra-se em três subprincípios: (a) princípio da adequação (também designado princípio da idoneidade), isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); (b) princípio da exigibilidade (também chamado princípio da necessidade ou da indispensabilidade), ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias /ornarem-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias; (c) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se em «justa medida», impedindo a adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas em relação aos fins obtidos”.

Princípios que têm essencialmente uma dimensão objetiva, impondo-se ao legislador, balizando a sua margem de discricionariedade na conformação de restrições aos direitos fundamentais e, consequentemente, projetando-se na determinação da individualização das consequências jurídicas para a violação dos tipos de ilícito.

O Código Penal, compilação nuclear das restrições mais compressivas do direito à liberdade pessoal, tem também e necessariamente, sobretudo a partir da reforma de 1995, como princípios retores a necessidade, a proporcionalidade e a adequação da pena aplicada à violação de bens jurídico-criminalmente tutelados.

Compete ao legislador escolher os bens jurídicos que entende serem dignos de tutela penal, também a pena abstratamente aplicável com que pode ser sancionada a sua violação e bem assim a moldura penal do concurso de crimes. Nesta dimensão, a proporcionalidade é, em princípio, uma questão de política criminal. Aos tribunais comuns corresponde, no quadro constitucional, a aplicação da lei penal aos factos concretos. Entendendo um tribunal que a pena cominada pelo legislador para um determinado tipo de crime ofende os princípios da necessidade, da proporcionalidade ou da adequação, pode (deve) julgá-la inconstitucional, mas a decisão final e vinculativa sempre caberá ao Tribunal Constitucional.

É também ao legislador que compete escolher as finalidades das penas e os critérios da sua quantificação concreta. Critérios de construção da medida da pena que devem ser interpretados e aplicados em correspondência com o programa político-criminal assumido sobre as finalidades da punição.

No recurso em apreciação, não se discute a proporcionalidade ou adequação da moldura penal abstrata do concurso de crimes. Nem tampouco das penas parcelares. Questiona-se a proporcionalidade da pena única de prisão concretamente aplicada.

“O modelo do CP é de prevenção: a pena é determinada pela necessidade de protecção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto”[5].

Assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena.

O legislador estabeleceu os critérios -no artigo 71.º do Código Penal (e para a pena do concurso também nos arts. 77º e 78º)- “que têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente”.

Dentro da moldura penal, o limite mínimo inultrapassável da dosimetria da pena concreta é dado pela necessidade de tutela dos bens jurídicos violados ou, na expressão de J. Figueiredo Dias, “do quantum da pena imprescindível, também no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias”[6]. E o limite máximo pela medida da culpa - nulla poena sine culpa. A prevenção especial de socialização pode, sem interferir naqueles limites, fazer oscilar o quantum da pena no sentido de se aproximar de um dos limites.

A pena concreta que se comporte nestes limites é uma pena necessária, imposta em defesa do ordenamento jurídico-criminal. Pena única em medida inferior colocaria em causa “a crença da comunidade na validade das normas violadas e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais”.

Comportando-se nos estritos limites da culpa, que é a salvaguarda ética e da dignidade humana do agente, será uma pena proporcional.

É uma pena em medida ótima se satisfizer as exigências de prevenção geral positiva e ao mesmo tempo assegurar a reintegração social do agente habilitando-o a respeitar os bens jurídicos criminalmente tutelados (sem, todavia, lhe impor a interiorização de um determinado modelo ou ordem de valores).

As exigências de prevenção geral podem variar em função do tipo de crime e variam as necessidades de prevenção especial de socialização em razão das circunstâncias do concreto agente e da personalidade que revela no cometimento dos factos.

Sustenta-se no Acórdão de 30/11/2016, deste Supremo Tribunal,[7] que: “a medida da pena unitária a atribuir em sede de cúmulo jurídico reveste-se de uma especificidade própria.

Por um lado, está-se perante uma nova moldura penal, mais ampla, abrangente, com maior latitude da atribuída a cada um dos crimes.

Por outro, tem lugar, porque se trata de uma nova pena, final, de síntese (…)”.

A proporcionalidade e a proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, deverá obter-se através da ponderação da gravidade dos crimes do concurso (enquanto unidade de sentido jurídico), as caraterísticas da personalidade do agente neles revelado (no conjunto dos factos ou na atividade delituosa) e a dimensão da medida das penas parcelares e da pena conjunta no ordenamento punitivo.

“A pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção – dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares – à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes”.

Assim, “se a pena parcelar é uma entre muitas outras semelhantes, o peso relativo do crime que traduz é diminuto em relação ao ilícito global, e portanto, só uma fracção menor dessa pena parcelar deverá contar para a pena conjunta”.

“É aqui que deve continuar a aflorar uma abordagem diferente da pequena e média criminalidade, face à grande criminalidade, para efeitos de determinação da pena conjunta, e que se traduzirá, na prática, no acrescentamento à parcelar mais grave de uma fracção menor das outras”.

Se a aplicação de qualquer pena deve ser orientada pelo princípio da proporcionalidade (à gravidade do crime, ao grau e intensidade da culpa e às necessidades de reintegração do agente), essa orientação deve ser especialmente ponderada quando se determina o quantum da pena conjunta. Tanto porque a moldura penal resultante da soma das penas aplicadas a cada um dos crimes do concurso pode assumir amplitude enorme e/ou atingir molduras com limiar superior muito elevado, não raro, iguais ao máximo de pena consentida, quanto porque os crimes englobados no concurso podem incluir-se apenas na pequena criminalidade, “uma das manifestações típicas das sociedades modernas”, tratando-se de uma realidade distinta da criminalidade grave, quanto à sua explicação criminológica, ao grau de danosidade social e ao alarme coletivo que provoca. Por isso, não poderá deixar de ser diferente, numa e na outra, não só a espécie como também a medida concreta da reação formal. O legislador deixou claramente expressa a vontade de conferir tratamento distinto àquelas fenomenologias criminais.

Por outro lado, “a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da adequação e proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido, de forma uniforme e reiterada, que «no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de fatores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efetuada»[8].

No Ac. nº 632/2008, do Tribunal Constitucional, pode ler-se: “Como se escreveu no Acórdão n.º 187/2001 (ainda em desenvolvimento do Acórdão n.º 634/93):

«O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios:

- Princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos);

- Princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato);

- Princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).»

A esta definição geral dos três subprincípios (em que se desdobra analiticamente o princípio da proporcionalidade) devem por agora ser acrescentadas, apenas, três precisões. A primeira diz respeito ao conteúdo exato a conferir ao terceiro teste enunciado, comummente designado pela jurisprudência e pela doutrina por proporcionalidade em sentido estrito ou critério da justa medida. O que aqui se mede, na verdade, é a relação concretamente existente entre a carga coativa decorrente da medida adotada e o peso específico do ganho de interesse público que com tal medida se visa alcançar. Ou, como se disse, ainda, no Acórdão n.º 187/2001, «[t]rata-se [...] de exigir que a intervenção, nos seus efeitos restritivos ou lesivos, se encontre numa relação 'calibrada' - de justa medida - com os fins prosseguidos, o que exige uma ponderação, graduação e correspondência dos efeitos e das medidas possíveis».

Sempre que tiver de convocar-se o princípio da «justa medida», impõe-se fundamentar o procedimento que conduziu à obtenção do juízo da desproporcionalidade da pena conjunta e da dimensão do correspondente excesso, enunciando o procedimento comparativo efetuado, demonstrar as razões convincentes e o suporte normativo que podem justificar a intervenção corretiva e respetiva amplitude – art. 205º n.º 1 da Constituição da República.

Intervenção corretiva necessariamente limitada pela evidência de que, em muitas situações, as variáveis a ponderar se repetem ou apresentam grande similitude. Justificando-se somente perante uma análise da jurisprudência tirada em situações idênticas ou próximas daquela que estiver em julgamento no caso concreto, habilitante da formulação de um juízo onde a justa medida da pena se afirme com mais objetividade e nitidez e se possam medir e descartar diferenciações de tratamento com casos similares.

b) no caso:

i. pretensão do recorrente:


O arguido reclama a redução da pena única, alegando que “não pode ser superior a 6 anos” de prisão, que, afirma, satisfaz adequadamente as finalidades da sua reinserção social.

ii. a decisão recorrida:

O Tribunal a quo, na determinação da pena única, ademais de mencionar o regime legal e a moldura penal do concurso, - com o limite mínimo 4 anos de prisão e como limitar máximo 8 anos de prisão – ponderou a “homogeneidade das condutas ilícitas do condenado”, porque “ambos os crimes em concurso se relacionam com o mesmo tipo de crime: tráfico de produtos estupefacientes de menor gravidade.

- Conjugadas essas condenações com as demais anteriormente sofridas pelo condenado, é manifesto que estamos perante uma personalidade que revela tendência criminosa (em particular no âmbito do tráfico de produtos estupefacientes) e não apenas alguém que num determinado contexto, isolado ou delimitado num curto espaço de tempo, cometeu crimes. De realçar que cometeu os crimes em concurso pouco tempo depois de ter cumprido pena de 5 anos de prisão efectiva pela prática dos crimes de tráfico de estupefacientes e detenção de arma proibida.

- Ao nível da culpa, o condenado agiu sempre com dolo directo e intenso.

- Quanto às suas condições pessoais, importa recordar alguns aspectos esclarecedores:

«(…) Apresenta um percurso vivencial marcado pela toxicodependência, facto que comprometeu o seu ajustamento comportamental, enquanto processo responsável pela instabilidade pessoal, laboral e económica que tem experienciado, bem como, pelos diversos contactos anteriores com o sistema de justiça.

Não obstante os tratamentos a que foi sujeito na área das dependências, não encarou os tratamentos com firmeza e empenho, por forma a afastar-se de enquadramentos sociais geradores de risco.

A irresponsabilidade e irreflexão do arguido traduziram-se, ao longo da sua vida, pela inexistência de racionalismo das suas escolhas pessoais, na ausência de projectos vivenciais consistentes e não envolvimento em acções pró-ativas, o que não lhe permitiu alcançar objetivos de estabilidade pessoal duradoura, tendentes a uma reinserção socio-laboral estável.»

Ou seja, estamos perante alguém que não tem feito qualquer esforço de integração social, acabando sempre por colocar em primeiro lugar a satisfação que lhe é proporcionada pelo consumo de substâncias aditivas.

Donde, consideramos que a pena única a aplicar deverá situar-se num patamar médio-superior por referência aos limites mínimo e máximo atrás referidos.

iii. aplicação dos critérios:

No caso, a moldura do concurso de crimes cometido pelo arguido tem o limiar mínimo em 4 anos de prisão (a mais elevada das penas parcelares) e o máximo em 8 anos de prisão – art. 77º n.º 2 do Cód. Penal.

O concurso de infrações por que o arguido vem condenado nos autos é constituído por dois (2) crimes de tráfico de menor gravidade.  

O crime de tráfico é definido como criminalidade altamente organizada – cfr. art. 1º alínea m) do CPP.

O legislador entende que essa fenomenologia criminal provoca grave danosidade social e forte alarme coletivo, demandando uma resposta jurídica e judicial clarificadora e contundente.

O tráfico de estupefacientes põe em causa pilares essenciais da sociedade entre eles a ordem pública e a segurança dos cidadãos. Concita uma necessidade ingente de combate permanente.

Do preambulo da Convenção de 1961 consta que “a toxicomania é um flagelo para o indivíduo e constitui um perigo económico e social para a humanidade”.

O tráfico de “drogas” representa não só uma grave ameaça para a saúde e bem-estar dos indivíduos, provocando efeitos nocivos nas bases económicas, culturais e políticas da sociedade, como também se interrelaciona com outras atividades criminosas organizadas conexas que minam as bases de uma economia legítima e ameaçam a estabilidade, a segurança e a soberania dos Estados. É, muitas vezes uma atividade criminosa internacional, dirigia por organizações criminosas transnacionais que visam obter avultados lucros ilícitos e que diretamente ou no branqueamento, acabam invadindo, contaminando e corrompendo as estruturas do Estado cuja eliminação exige uma atenção permanente e a maior prioridade – Convenção de 1991.

O crime de tráfico é uma das infrações catalogadas no artigo 83.º do TFUE (ex-artigo 31.º TUE) como “criminalidade particularmente grave com dimensão transfronteiriça” que há “especial necessidade de combater, assente em bases comuns”.

É, pois, um tipo de ilícito em que se fazem sentir prementes necessidade de proteção dos bens jurídicos tutelados, isto é, de prevenção geral de integração. É uma atividade que reúne a quase universal postura de punição e perseguição, como refletem diversas Convenções e Instrumentos internacionais visando a sua repressão. O sentimento jurídico da comunidade apela ao combate incessante e sem tréguas do tráfico de estupefacientes, pela sua elevada frequência, por corromper, por vezes irreparavelmente, a saúde mental e física dos próprios consumidores, com implicações graves ao nível dos serviços de saúde pública e de assistência social, degradar a dignidade humana dos consumo-dependentes, propiciar a propagação de doenças infetocontagiosas graves ou incuráveis (hepatite, SIDA, tuberculose, doenças sexualmente transmissíveis), destruir a sua vivência socialmente útil e laboralmente responsável, arruinar o sossego e harmonia das respetivas famílias e, muitas vezes, também o património, fomentar fortemente a criminalidade associada (furto, roubo, recetação, lenocínio, etc.).

As exigências de prevenção geral positiva do denominado “ilícito global” são, assim, elevadas em razão da fenomenologia dos crimes do concurso. A prevenção e combate ao tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas é um designo universal, no qual os Estados gastam consideráveis recursos financeiros e humanos, demandando firme reafirmação da vigência dos bens jurídicos violados e da validade e eficácia da respetiva proteção penal.

Apresentando-se elevado o grau de culpa porque o arguido agiu sempre com dolo direto e intenso, bem ciente da censurabilidade das suas condutas.

As necessidades de prevenção especial são prementes, conforme comprova a história criminal registada do arguido e a sua vivência em sociedade certificada nos factos provados. As sucessivas condenações revelaram-se ineficazes para prevenir a reiteração criminosa. Cumpriu penas de prisão que não se revelaram minimamente eficazes para prevenir a “reincidência”. Evidencia o seu histórico criminal e o seu apego aos estupefacientes que não tem conseguido conseguiu cumprir com o programa da pena suspensa com regime de prova nem com os tratamentos de “desintoxicação”.

Do seu histórico criminal registado constam, além de outras, também duas condenações por crime de tráfico de menor gravidade, a última das quais em pena efetiva de prisão, que cumpriu até 21.07.2018.

Apesar de 5 meses depois estar a “reincidir” no mesmo tipo de crime e também assim um ano mais adiante, somente foi condenado por reincidência no processo nº. 30/18.....

As penas aplicadas anteriormente e a prisão cumprida não se revelaram admonição suficiente para prevenir a reiteração criminosa.

As necessidades de ressocialização são patenteadas pelos factos provados atinentes às suas condições sociais, económicas e à personalidade.

Da facticidade assente resulta que o arguido tem vivenciado “forte instabilidade pessoal, residencial e laboral”, com “desajuste comportamental”. “Familiarmente é identificado como sujeito irresponsável, dado não ser capaz de elaborar projetos consistentes e assertivos de vida futura”. “A irresponsabilidade e irreflexão do arguido traduziram-se, ao longo da sua vida, pela inexistência de racionalismo das suas escolhas pessoais, na ausência de projectos vivenciais consistentes e não envolvimento em acções pró-ativas, o que não lhe permitiu alcançar objetivos de estabilidade pessoal duradoura, tendentes a uma reinserção socio-laboral estável.”

Quanto à proporcionalidade nota-se que a pena de prisão aplicada ao arguido por cada crime do concurso se situou ligeiramente acima do terço superior da respetiva moldura penal.

Segundo o critério aferidor acima enunciado constata-se que a pena única aplicada resultou da adição à pena que estabelece a moldura mínima do concurso – 4 anos de prisão -, de três quartas partes (3/4) da outra pena parcelar englobada.

Contudo, a gravidade do “comportamento global” não justifica aproveitamento com essa dimensão.

Desde logo nota-se que o Tribunal a quo entendeu que a pena conjunta deve “situar-se num patamar médio-superior por referência aos limites mínimo e máximo” da moldura penal do concurso. O referido patamar médio está, no caso, em 6 anos de prisão. É também para aí que aponta o recorrente.

Atentando nas circunstâncias da globalidade dos factos que integram os dois crimes do concurso, sobressai que, em um foram apreendidas ao arguido 19,446 gramas de heroína, que dariam para 20 doses individuais e que, no outro se lhe apreenderam 30,275 gramas de heroína, qualquer delas com relativamente baixo grau de pureza. Sem perder de vista que as quantidades terão sido valoradas, decisivamente, por cada um dos tribunais para se decidir pela condenação do arguido pelo crime de tráfico de menor gravidade, constata-se que se não se individualizou qualquer venda. Isto é, não se identificaram compradores a quem o arguido tenha fornecido, cedido ou vendido estupefacientes.

Consta também dos factos provados que o arguido “é consumidor de produtos estupefacientes e, por ser consumidor habitual e ter frequentemente consigo” tais substâncias, procedeu “à venda de produto estupefaciente, nomeadamente heroína, desde data não concretamente apurada”. Que foi al ... adquirir os cerca de 20 gramas de heroína apreendida “para consumir e revender”.

Os dois crimes do concurso foram cometidos no período de aproximadamente um ano.

Se é inegável que o passado criminal do arguido e a frequência com que, após cumprir a pena de prisão por igual crime, logo “reincidiu” na mesma atividade criminosa, revelando personalidade com forte tendência para a prática deste tipo de crime, todavia, a gravidade menor do “comportamento global”, que determina a medida das exigências de prevenção geral positiva, mais não justifica que, cumulando-se juridicamente duas penas parcelares pela prática de crimes de tráfico de menor gravidade, cometidos nas concretas circunstâncias do caso, se aplique um “fator de compressão” do qual resulte o “aproveitamento” de entre um terço (1/3) e metade (1/2) da outra pena parcelar englobada no vertente cúmulo jurídico.

Sendo, ademais, certo que a reincidência no mesmo tipo de crime já foi valorada na quantificação de uma das penas parcelares e, consequentemente, não pode sopesar-se novamente, sob pena de violação da proibição da dupla valoração da mesma circunstância.

Neste conspecto, impõe-se, reduzir a pena conjunta aplicada nos autos ao arguido fixando-a em medida que considere, especialmente, a reiteração criminosa por que enveredou, menos de 5 meses após a sua restituição à liberdade, com isso, evidenciando o inexorável falhanço da anterior pena e respetiva medida para prevenir a reincidência em sentido lato e que um ano depois reiterava na mesma fenomenologia criminosa.

Assim, de conformidade com as circunstâncias e os critérios expostos, considerando a globalidade da facticidade, dos crimes e das penas parcelares englobadas e o que projetam da personalidade revelada no cometimento do concurso de infrações em apreço, tal como vem de realçar-se, sopesando necessariamente as circunstâncias que militam contra e a favor do mesmo e, sobretudo, o princípio da proporcionalidade, entende-se justo e adequado a satisfazer as finalidades da punição no caso concreto, fixar a pena única ligeiramente acima do terço inferior da moldura penal do concurso em apreço.

Assim, atendendo à petição do arguido, entende-se ser de condenar o arguido na pena única de 5 anos e 8 meses de prisão.

Procede, pois, a pretensão recursória do arguido.

D - DECISÃO:

Em conformidade com o exposto, o Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção criminal, decide: --------

a) conceder provimento ao recurso do arguido e, em conformidade, condená-lo na pena única de 5 anos e 8 meses de prisão.


*


Sem custas, por não serem devidas – art.º 513º n.º 1 do CPP.

*


Lisboa, 9 de março de 2022.


Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro relator)

Paulo Ferreira da Cunha (Juiz Conselheiro Adjunto)

______

[1] A. Rodrigues da Costa, O Cúmulo Jurídico na Doutrina e na Jurisprudência do STJ, revista Julgar n.º 21, 2013, pag. 175.
[2] Máxime: J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pag. 292.
[3] Máxime: Ac. STJ de 23-05-2018, 3ª sec, proc. 799/15.OJABRG.S1, www.dgsi.pt/jstj.
[4] J. Figueiredo Dias Ob. citada, pag. 241/242.
[5] Ac. STJ de 14/09/2016
[6] Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pag. 242
[7] Proc. 804/08.6PCCSC.L1.S1, www.dgsi.pt/Jstj.
[8] Acórdão de 30/11/2016, deste Supremo Tribunal