LEGITIMIDADE
INTERESSE EM AGIR
INTERROGATÓRIO DO DENUNCIADO
CONSTITUIÇÃO COMO ARGUIDO
OMISSÃO DE FORMALIDADES
NULIDADE SANÁVEL
IRREGULARIDADE
Sumário

I - Não tem interesse em agir, logo, carece de legitimidade para dela recorrer, o arguido contra quem a decisão não foi proferida, pois que não lhe impôs desvantagem alguma, nem lhe determinou a frustração de uma expectativa ou de um interesse legítimo.
II - Posto que não tenha sido notificado da acusação particular, o arguido requereu a abertura de instrução, mas nem nessa peça processual, nem posteriormente, até ao recurso ora intentado, suscitou a preterição das formalidades legais decorrentes da falta da sua constituição como arguido, da falta de interrogatório nessa qualidade ou da omissão da notificação da acusação particular.
III - Assim sendo, não tendo agido tempestivamente, tem o mesmo de se conformar com o estado atual do processo, dado que as nulidades e a irregularidade enfocadas, previstas, na devida ordem, nos artigos 120.°, n° 2, alínea d), e 123.°, estão definitivamente sanadas, por não terem sido arguidas nos momentos próprios, as nulidades, até ao encerramento do debate instrutório, e a irregularidade, até ao 3,° dia após ter requerido a abertura de instrução.
IV - A qualificação do vício resultante da falta de interrogatório como arguido no inquérito de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, como nulidade relativa, prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP, não é incompatível com a disciplina contida no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da república Portuguesa.

Texto Integral

Proc. n.º1160/15.1T9OER-D.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Instrução Criminal do Porto – Juiz 1


Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto


I. Relatório
No âmbito de instrução foi proferido o seguinte despacho:
“Ref.ª 426993475, de 3. IX: visto.

*
Analisados os autos, verifica-se que, com efeito, o cidadão AA não foi constituído arguido, nem no inquérito, nem no decurso da instrução.
De facto, o assistente BB participou criminalmente contra a S..., S.A. e contra a F..., S.A., bem como contra desconhecidos (fl.s 4/9 dos autos); na sequência de notificação do M. Público (a fim de serem identificados os autores e responsáveis pela publicação das imagens alteradas e manipuladas e informarem se o Diretor da Publicação, Subdiretores, Diretores Adjuntos ou os seus substitutos tiveram prévio conhecimento da publicação, alteração e manipulação em causa e não se opuseram à sua divulgação: fl.s 47) é que aquelas pessoas colectivas indicaram os demais arguidos – salvo justamente o referido AA – como sendo as pessoas em causa (fl.s 53/55 e 56).
Os autos de inquérito prosseguiram então, nomeadamente com o interrogatório desses cidadãos, entretanto constituídos como arguidos.
Sucede que o assistente, notificado para o efeito pelo M. Público (fl.s 335), deduziu acusação particular contra as referidas sociedades comerciais, contra os arguidos CC, DD, EE, FF, GG e HH e, ainda, contra o referido AA (identificado nessa acusação como sendo o CEO Editorial da S..., S.A.: fl.s 341/350), sendo certo que o M. Público, nesse despacho, não refere o nome do cidadão em causa, mas apenas o das outras referidas pessoas físicas (fl.s 335).
O M. Público, por seu turno e nos termos do art.º 285.º, n.º 4 do C. Pr. Penal, declarou acompanhar essa acusação particular, contra os referidos CC, DD, EE, FF, GG e HH, isto é, não incluiu expressamente o referido AA nesse despacho de acompanhamento (nem tão pouco da S..., S.A. e da F..., S.A.).
Notificados os ditos arguidos dessa acusação particular (à excepção novamente do cidadão AA), vieram todos os arguidos requerer a abertura da instrução (fl.s 392/400 e 405/447), incluindo agora o dito AA; certo é que nem nessa peça processual, nem posteriormente, foi suscitada por quem quer que fosse a questão de aquele cidadão não ter sido constituído arguido nem interrogado, nessa qualidade, no inquérito.
Vale dizer que qualquer invalidade daí resultante se acha sanada, pois que mesmo que tal invalidade fosse havida como nulidade (e não o é, pois que a invocada al. d) do art.º 119.º do C. Pr. Penal apenas ocorre no caso de total falta de inquérito ou de instrução e já não pela circunstância de alguém não ter tido intervenção em qualquer dessas fases preliminares), a mesma não foi arguida pelo interessado o qual, pelo contrário, figura justamente como requerente da instrução…
Ora, constituindo mera irregularidade a falta de constituição do referido AA como arguido (art.ºs 118.º, n.ºs 1 e 2 e 119.º, ambos do C. Pr. Penal), não está vedado repará-la oficiosamente nos termos do art.º 123.º, n.º 2 do C. Pr. Penal.
No caso em apreço, considerando que o dito AA interveio na instrução, requerendo-a e praticando outros actos posteriormente à decisão instrutória (nomeadamente em sede de recurso), não se vislumbra que a circunstância de não ter sido constituído como arguido na ocasião própria tenha de algum modo cerceado, dificultado ou impossibilitado o exercício dos respectivos direitos de defesa.
Por isso, não se antevê a necessidade de declarar anulado ou de mandar repetir qualquer acto – de inquérito ou de instrução – a fim de assegurar a regularidade dos presentes autos; basta tão só ordenar que, transitado que seja o presente despacho, se proceda à constituição daquele AA como arguido, com a prestação do respectivo termo de identidade e residência, ficando a partir daí os autos em condições de prosseguirem para julgamento.
Notifique e, depois, aguardem os autos neste Juízo de Instrução Criminal do Porto pelo trânsito em julgado do presente despacho.”

2. O despacho foi proferido na sequência de um outro proferido pelo Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia-J3 com o seguinte teor “ A decisão instrutória de fls. 1463 e seguintes pronuncia AA, nunca constituído arguido nem como tal ouvido nos autos 8 o que poderá consubstanciar nulidade insanável nos termos do disposto no artigo 119º, alínea d) do C.P.P.
Assim, com urgência, remeta os autos novamente ao T.I.C., solicitando-se ao ilustre Colega que proferiu aa referida decisão que esclareça se assim é, ou seja, se este arguida foi efectivamente pronunciado.”

Este despacho não foi notificado ao M.P.
*
Inconformado com assim decidido pelo juiz de instrução, vieram AA, CC e DD, interpor recurso desta decisão e requerer a final a revogação da decisão recorrida com reconhecimento de nulidade insanável e consequente repetição de todos os atos de inquérito acompanhada da constituição do primeiro como arguido, apresentando em abono da sua posição as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«CONCLUSÕES:
A. Apenas por meio da aquisição da qualidade de Arguido é assegurado ao cidadão o exercício de direitos e de deveres processuais;
B. Através da constituição de Arguido, pretende-se clarificar e delimitar, no âmbito da acusação, a incidência do inquérito sobre a suspeição da prática de um crime por pessoa determinada e, por outro, fixar direitos e deveres processuais que essa qualidade comporta;
C. A atribuição do estatuto de Arguido visa garantir a este uma posição especial, como sujeito processual, podendo este intervir ativamente no processo, direito de que o Recorrente AA não pôde usufruir, tendo sido visado nos autos por acusação particular, acompanhada pelo Ministério Público, e, mais, resultando do disposto nos artigos 35.º, n.º 1 e 71.º, n.º 3.º da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido, tratar-se de pessoa determinada relativamente à qual existia suspeita fundada da prática de crime, de acordo também com o disposto no artigo 58.º, n.º 1, alínea a) do CPP;
D. Esta posição especial garante ao Arguido alguns direitos com dignidade constitucional como o direito a garantias de defesa, o direito à presunção de inocência, o direito a escolher um defensor que o assista em todos os atos processuais, entre outros, de acordo com o disposto nos artigos 61.º e 62.º do CPP, articulados com os n.º 1, 2 e 3 do artigo 32.º da CRP;
E. A partir do momento em que o Recorrente AA não foi constituído como Arguido, ficaram preteridos os seus direitos fundamentais consagrados na CRP;
F. A violação de direitos basilares da ordem jurídica portuguesa não pode ser considerada uma mera irregularidade, estando-se claramente perante uma nulidade insanável, de acordo com o disposto na alínea d), do artigo 119.º do CPP;
G. O cidadão e Recorrente AA não pôde exercer o seu direito de defesa durante a fase de inquérito, pelo que relativamente a este, essencialmente, não existiu fase de inquérito, uma vez que não lhe foi permitido intervir nessa fase do processo, quando tal deveria ter sucedido, de acordo com o disposto na alínea g), do artigo 61.º do CPP, e, ainda, nos termos dos dispositivos legais invocados na conclusão C. supra;
H. Verifica-se nos autos a total falta de inquérito relativamente ao cidadão e Recorrente AA, e, consequente, uma nulidade insanável, de acordo com a já mencionada alínea d), do artigo 119.º do CPP, o que tudo implica a nulidade de toda a fase de inquérito, o que, por conseguinte, deve levar à repetição da mesma, de molde a que o cidadão e Recorrente AA possa exercer de forma efetiva os seus direitos constitucionalmente garantidos, nomeadamente, o direito de defesa, expresso no artigo 32.º da CRP;
I. Ao interpretar e concluir em sentido diverso ao das conclusões supra, o tribunal a quo interpretou e aplicou erroneamente ao caso dos autos, no despacho recorrido, o disposto nos artigos 35.º, n.º 1 e 71.º, n.º 3.º da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido; artigos 58.º, n.º 1, alínea a), 61.º, alínea g), 62.º e 119.º, alínea d) do CPP; e, por fim, artigo 32.º, n.ºs 1, 2 e 3 da CRP.
TERMOS EM QUE,
Requerem os ora Recorrentes, nos termos e com os fundamentos supra expendidos:
1) Se dignem Vs. Exas julgar procedente o presente recurso;
E, em consequência,
2) Deverá o despacho recorrido ser integralmente revogado, substituindo-se o mesmo por outra decisão que reconheça e declare a falta de constituição de Arguido do cidadão e Recorrente AA como uma nulidade insanável, por falta de inquérito, ao abrigo do disposto na alínea d), do artigo 119.º do CPP e, como consequência, ordene a repetição de todos os atos da fase de inquérito, acompanhada da devida constituição como Arguido,
O que se requer com todas as consequências legais.»
*
O assistente BB respondeu ao recurso, considerando que o mesmo não merece provimento e que a decisão recorrida deve ser mantida, concluindo:
“V - CONCLUSÕES
1 - No âmbito do despacho de 13 de setembro de 2021, o M mº Juiz de Instrução considerou que não se verifica a nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea d), do CPP, pela circunstância de, na fase de inquérito, AA não ter sido constituído como arguido nem interrogado nessa qualidade.
2 - Inconformados com o antedito Despacho, os arguidos, AA, CC e DD, vieram dele interpor recurso, que desfecharam com 9 conclusões, delimitadoras do seu objeto (descritas nesta resposta).
QUESTÃO PRÉVIA - FALTA DE LEGITIMIDADE e de INTERESSE EM AGIR, POR PARTE DAS ARGUIDAS CC e DD
3 - Atendendo ao teor do despacho exarado, que versa sobre a preterição de formalidades legais respeitantes exclusivamente ao arguido AA, e ao adjetivado no artigo 40Iº, nº1, alínea b), e 2, as arguidas CC e DD, não têm legitimidade para recorrer nem interesse em agir para o efeito (neste tópico, foram desenvolvidas algumas considerações teórico-jurídicas atinentes à legitimidade e ao interesse em agir, que aqui se dão por reproduzidas)
4 - Com efeito, a decisão em causa não foi proferida contra as referenciadas arguidas, mas apenas contra o arguido AA; por tal motivo, as arguidas não têm aqui a defender nenhum direito afetado pela decisão - deve, por isso, ser alterado o despacho que admitiu o recurso por elas interposto, atestando a sua ilegitimidade para o efeito.
5 - Por outro turno, uma vez que o despacho que conferiu legitimidade às arguidas para o recurso é meramente tabelar, limitando-se a declará-la em termos genéricos, mas sem apreciar e sem se pronunciar diretamente sobre o respetivo fundamento, ele não tem a potencialidade de operar a formação de caso julgado formal sobre essa questão, podendo a ilegitimidade ser posteriormente suscitada perante o tribunal, que poderá livremente alterar a decisão anteriormente proferida - é, por conseguinte, o que ora se requer é, por conseguinte, o que ora se requer ao tribunal a quo, devendo a ilegitimidade ser declarada por ocasião do despacho a proferir ao abrigo do artigo 414º nº4.
SUBSIDIARIAMENTE
G - Caso o tribunal a quo assim não proceda, por entender que lhe está agora vedada tal possibilidade ou por perspetivar que as arguidas têm legitimidade, deve, então, o tribunal ad quem decretar a ilegitimidade ora obtemperada,
DENSIFICAÇÃO DA RESPOSTA
7 - D despacho exarado mostra-se plenamente acertado, pois que consolida uma aplicação do direito totalmente apropositada - não merece, ipso facto, nenhum reparo.
8 - Na situação em pauta, não ocorre a pretextada nulidade insanável, decorrente da falta de inquérito relativamente ao arguido AA, porquanto foram realizados diversos atos de inquérito, a conglobar, sem ressalva, todos os 7 arguidos que se mostram pronunciados.
9 - A constituição de arguido e o interrogatório de arguido, sendo possível a atinente notificação, constituem atos legalmente obrigatórios, a praticar na fase de inquérito. Porém, a sua omissão não se intermistura com a falta ou ausência de inquérito - trata-se, antes, de uma incidência que transverbera uma insuficiência do inquérito, determinante da nulidade, dependente de arguição, prevista no artigo 120º, n° 2, alínea d) - veja-se ainda, a este propósito, o Acórdão n. s 1/2006 do Supremo Tribunal de Justiça.
10 - A falta de efetiva notificação da acusação particular ao arguido AA concretiza-se numa irregularidade, que impõe a aplicação do regime tipificado no artigo 123º, n.º 1
11-O arguido AA, embora não tenha sido notificado da acusação particular, requereu a abertura de instrução, juntamente com todos os demais arguidos. Todavia, nem nessa peça processual nem posteriormente, até ao recurso ora intentado (sendo ainda certo que ele ainda interveio na contextura do recurso da decisão instrutória), o arguido AA suscitou a preterição de alguma das supraditas formalidades legais: a falta de constituição de arguido; a falta de interrogatório como arguido; ou a omissão da notificação da acusação particular.
12 - Não tendo agido tempestivamente, sibi imputet - tem o arguido de se conformar com o estado atual do processo, dado que as nulidades e a irregularidade enfocadas (previstas, na devida ordem, nos artigos 120º, nº 2, alínea d), e 123º) estão definitivamente sanadas, por não terem sido arguidas nos momentos próprios: as nulidades, até ao encerramento do debate instrutório; a irregularidade, até ao 3º dia após o arguido ter requerida a abertura de instrução.
13 - A regularização do processado basta-se agora com a constituição formal de arguido por parte de AA e com a sua prestação de termo de identidade e residência.
14- D tribunal a quo, adversamente ao pretendido pelo arguido, não violou o disposto nos seguintes artigos: 35º, nº1, e 71º, nº 3, da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido; 58º nº 1, alínea a), 61º, alínea g), 62º e 119º, alínea d), todos do CPP; e 32º, nº 1, 2 e 3, da CRP.
Nestes termas e nos demais de Direito, deve o recurso ser julgado improcedente e confirmar-se e decisão recorrida,
Na oportunidade do despacho a que se reporta o artigo 414º, nº 4, o tribunal a quo deve pronunciar-se, nos termos pugnados, sobre a suscitada questão prévia da falta de legitimidade e de interesse em agir por parte das arguidas CC e DD, na envoltura do recurso interposto.
Dessa forma, será feita a costumada justiça.”
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O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, considerando que o mesmo não merece provimento e que a decisão recorrida deve ser mantida, concluindo:
EM CONCLUSÕES:
1ª) Os arguidos AA, DD e CC interpuseram recurso do despacho do MMº Juiz de fls. 1532 a 1534, que decidiu que a falta do interrogatório do arguido AA na fase de inquérito não constitui a nulidade insanável do art° 119° al-d) do CPP.
2ª) Igualmente, o Mº Pº considera que efetivamente a omissão dessa diligência na fase de inquérito, não é suscetível de integrar a referida nulidade, mas tão somente, a nulidade sanável, prevista no art° 120° n°2 al-d), do CPP, porquanto, a nulidade prevista no art° 119° al-d) do CPP - a falta de inquérito - se reporta a situações em que inexiste de todo a promoção do processo por parte do Mº Pº.
3ª) E não apenas, à omissão de uma diligência obrigatória, como é o caso do interrogatório de arguido na fase de inquérito, que antes integra a definição de “insuficiência do inquérito” e a nulidade prevista no art° 120° n°2 al-d) do CPP.
4ª) E sendo esta nulidade sanável, pela sua arguição até ao encerramento do debate instrutório, cfr. art° 120 n°3 al-c) do CPP.
5ª) Não tendo sido a mesma arguida, encontra-se sanada.
6ª) Assim, mantendo-se o despacho do MM 0 Juiz que considerou que a referida nulidade - falta de interrogatório de um dos arguidos na fase de inquérito - não integra o elenco das nulidades insanáveis, do artº 119.º al-d) do CPP.
7ª) E consequentemente, julgando totalmente improcedente o recurso interposto pelos arguidos.
8ª) Farão, V a s EX a s Justiça!

Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer onde se defende a posição sufragada pelo M.P a quo e no que diz respeito à falta de legitimidade a posição sufragada pelo assistente.
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Notificados nos termos do art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, os recorrentes nada disseram.
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II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que o recorrente suscita são:
- Legitimidade e interesse em agir de parte das recorrentes.
- Nulidade insanável por eventual ausência de inquérito por um dos suspeitos não ter sido constituído arguido no processo.
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QUESTÃO PRÉVIA - FALTA DE LEGITIMIDADE e de INTERESSE EM AGIR, POR PARTE DAS ARGUIDAS CC e DD
Atendendo ao teor do despacho exarado, que versa sobre a preterição de formalidades legais respeitantes exclusivamente ao arguido AA, suscita-se, desde imediato, em relação às arguidas CC e DD, a exceção da respetiva ilegitimidade para recorrerem e a questão da sua falta de interesse em agir.
Seguimos de perto, a este respeito a argumentação apresentada pelo assistente por se mostrar pertinente, completa e correta.
O artigo 401º1 do Código de Processo Penal, titulado Legitimidade e interesse em agir, preceitua:
"1 - Têm legitimidade para recorrer: [...]
b) O arguido e o assistente, de decisões contra eles proferidas;
2 - Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir."
A legitimidade "é uma posição de um sujeito processual relativamente a determinada decisão proferida em processo penai que justifica que ele possa impugnar ta! decisão através de recurso".
A legitimidade para recorrer constitui um pressuposto processual que não concerne a uma qualidade dos sujeitos processuais, a apreciar em abstrato, mas representa, antes, uma posição destes relativamente ao processo em concreto, que justifica poderem eles, mediante recurso, controverter a decisão judicial.
Na esfera do processo penal, o arguido tem a correspondente legitimidade para o recurso adstringida, de acordo com a impostação legal, às decisões contra ele proferidas. E consideram- se proferidas contra ele "todas as decisões que o afetem desfavoravelmente, assim como as proferidas contra as pretensões que formule no processo."[2]
"Depois, importa notar que o CPP, ao lado da legitimidade do recorrente, alinha como condição para o conhecimento do recurso, o seu interesse em agir (art. 401.°, n° 2: "Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir").
Não nos diz aquele diploma legal o que se deve entender por "interesse em agir", mas de tal já se ocuparam a Jurisprudência e a Doutrina.
Dentro desse entendimento, que se acompanha, para que o recorrente tenha interesse em agir é necessário que vise qualquer efeito útil que não possa alcançar sem lançar mão do recurso.
«(2) O interesse processual ou interesse em agir é definido, em termos de processo civil, como a necessidade do processo para o demandante em virtude de o seu direito estar carecido de tutela judicial. Há um interesse do demandante não já no objecto do processo (legitimidade) mas no próprio processo. (3) Em termos de recurso em processo penal tem interesse em agir quem tiver necessidade deste meio de impugnação para defender um seu direito» (Ac. do STJ de 7.12.99, proc. n.° 1081/99, Acs STJ VII, 3, 229).
«O interesse em agir é a necessidade concreta de recorrer à intervenção judicial, à acção, ao processo» (Acs. do STJ de 29-03-2000, Acs STJ VIII, 1, 234, de 9-1-02, Acs STJ X, 1,160, de 20-3-02, proc. n.º 468/02-3 e de 11-10-01, proc. n° 2130/01-5)
«(Como fluí explicitamente da lei (art.º 401.º, do CPP), dois dos requisitos de que depende a admissão de um recurso penal são a "legitimidade" e o "interesse em agir" de quem lança mão de tal expediente. (2) A "legitimidade" consubstancia-se na posição de um sujeito processual face a determinada decisão proferida no processo, justificativa da possibilidade de a impugnar através de um dos recursos tipificados na lei. Ou seja: diz-se parte legitima aquela que pode, segundo o Código, recorrer de uma determinada decisão judicial. Trata- se, portanto, aqui, de uma posição subjectiva perante o processo, que é avaliada "a priori". (3) Outra coisa diferente é o "interesse em agir", que consiste na necessidade de apelo aos tribunais para acautelamento de um direito ameaçado que precisa de tuteia e só por essa via se logra obtê-la. Portanto, o interesse em agir radica na utilidade e imprescindibilidade do recurso aos meios judiciários para assegurar um direito em perigo.
Trata-se, portanto, de uma posição objectiva perante o processo, que é ajuizada "a posteriori" (Ac. do STJ de 18-10-00, proc. n.° 2116/00-3)
«Enquanto pressuposto processual, o interesse em agir (também conhecido por interesse processual) consiste na necessidade de usar o processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção. o recorrente tem interesse processual quando a situação de carência em que se encontra necessita da intervenção dos tribunais» (Ac. dos STJ de 16-05-2002, proc. n.° 1672/02-5, subscrito pelos aqui Relator e 1.° adjunto
No mesmo sentido se pronunciaram igualmente Simas Santos e Leal Henriques (Código de Processo Penal Anotado, 2." volume, 2000, 682): «Não basta ter legitimidade para se recorrer de qualquer decisão; necessário se torna também possuir interesse em agir, (...) que se reconduz ao interesse em recorrer ao processo, porque o direito do requerente está necessitado de tutela; não se trata, porém, de uma necessidade estrita nem sequer de um interesse vago, mas de qualquer coisa intermédia: um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, e que, assim, torna legítimo o recurso à arma judiciária; à jurisprudência é deixada a função de avaliar a existência ou inexistência de interesse em agir, a apreciação da legitimidade objectiva é confiada ao intérprete que terá que verificar a medida em que o acto ou procedimento são impugnados em sentido favorável à função que o recorrente desempenha no processo; a necessidade deste requisito é imposta pela consideração de que o tempo e a actividade dos tribunais só devem ser tomadas quando os direitos careçam efectivamente de tutela, para defesa da própria utilidade dessa actividade, e de que é injusto que, sem mais, possa solicitar tutela jurisdicional» (no mesmo sentido o Ac. do STJ de 03-10-2002, proc. n.º 1532/02-5, em que o aqui Relator foi 2.º adjunto)"[3].
Assentes as precedentes considerações, impende agora aferir se as arguidas CC e DD têm legitimidade para recorrer do despacha proferido, pelo Mmº Juiz, no dia 13/03/2021, e se têm interesse em agir para o efeito.
Em face da materialidade relatada, a decisão ad quem não foi proferida contra as referenciadas arguidas - com efeito, tal decisão concerne unicamente ao arguido AA; por tal motivo, as arguidas não têm aqui a defender nenhum direito afetado pela decisão.
Dita de outra forma: dado que a decisão não lhes impôs desvantagem alguma nem lhes determinou a frustração de uma expectativa ou de um interesse legítima, as arguidas não têm aqui nenhum interesse juridicamente protegido, não lhes assistindo, por isso, a possibilidade de recurso.
Nesse conspecto, verifica-se, então, que o texto da alínea b) do nº1 do artigo 401º já envolve igualmente o interesse em agir, ao postular, para além da qualidade de arguido, que a decisão seja proferida contra ele, que lhe ocasione prejuízo ou defraude ou neutralize uma expectativa ou interesse legítimos. O arguido tem interesse em pugnar pela modificação de uma decisão que seja contrária às suas expectações[4].
Ora, as arguidas não têm aqui nenhum direito em perigo ou ameaçado, de forma direta ou reflexa, que careça de tutela; não têm nenhum interesse concreto, juridicamente relevante, que requisite a intervenção dos tribunais - daí que o recurso não vise um efeito útil.
Assim sendo, sem necessidade de maiores reflexões e uma vez que as arguidas, CC e DD, não têm legitimidade para o recurso em pauta, nem interesse em agir, não se admite o recurso por eles interposto, atestando a sua ilegitimidade para o efeito.
Da invocada nulidade.
O artigo 118ºnº1, dispõe que "a violação ou inobservância das disposições da lei do processo só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei."
No perímetro das nulidades, são insanáveis, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais, as que surgem fixadas no artigo 119º - tais nulidades devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento.
Dentre elas, diante da invocação feita pelos recorrentes, sobreleva aqui a adjetivada na alínea d) do aludido artigo 119º: "A falta de inquérito [...], nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade"
De outro lado, as nulidades diversas das indicadas no artigo 119º concretizam-se em nulidades dependentes de arguição e têm o respetivo regime previsto no artigo 120º.
Para o que ora prevalece, aí se estabelece:
"1 -Qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte.
2- Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais: [...]
d) A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios [...].
3- As nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas: [...]
c) Tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito [...]"
Compete registar que o artigo 1l8º, n º 2, estatui que "nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular."

As irregularidades têm o correspondente regime determinado no artigo 123º, cuja redação é a seguinte:
"1 - Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do ato a que se refere e dos subsequentes que possa afetar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato, ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado.
2 - Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando puder afetar o valor do ato praticado."
Portanto:
O artigo 118.º, n.º 1, do CPP, estabelece que “a violação ou a inobservância das disposições da lei de processo só determinam a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”, acrescentando o n.º 2 deste artigo que “nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular”. Esta norma consagra o princípio da tipicidade ou da legalidade em matéria de nulidades, do qual resulta que só algumas das violações das normas processuais é que têm como consequência a nulidade do respetivo ato.
No que respeita às nulidades, o Código de Processo Penal distingue as nulidades insanáveis (ou absolutas), a que se refere o artigo 119.º, e as nulidades dependentes de arguição (ou nulidades relativas), a que se referem os artigos 120.º e 121.º
O referido artigo 119.º do CPP qualifica como nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, as situações tipificadas nas suas alíneas a) a f), “além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais”.
Por sua vez, e de acordo com o n.º 1, do artigo 120.º, do CPP, “qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte”.
Assim, ao contrário das nulidades ditas insanáveis, as restantes nulidades ficam sanadas se os interessados renunciarem expressamente à sua arguição, tiverem aceite expressamente os efeitos do ato ou se tiverem prevalecido de faculdade a cujo exercício o ato anulável se dirigia (cfr. artigo 121.º, n.º 1, do CPP).
Acresce que também não é possível conhecer oficiosamente das nulidades ditas relativas, mas apenas mediante suscitação de quem tem interesse na observância da disposição processual violada ou omitida, pelo que, se o interessado não proceder à sua arguição dentro do prazo legalmente fixado, o vício tem-se por sanado.
De acordo com o disposto no n.º 3, do artigo 120.º, do CPP, as nulidades relativas têm de ser arguidas nos seguintes prazos: tratando-se de nulidade de ato a que o interessado assista, antes que o ato esteja terminado [alínea a)]; tratando-se da nulidade referida na alínea b) do número anterior, até cinco dias após a notificação do despacho que designar dia para a audiência [alínea b)]; tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito [alínea c)]; e logo no início da audiência nas formas de processo especiais [alínea d)].
No que respeita aos efeitos da declaração de nulidade, o artigo 122.º, n.º 1, do CPP, estabelece que “as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar”, sendo que, nos termos do n.º 2 deste artigo “a declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição”, dispondo-se no n.º 3 que “ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela”.

Delineada a antedita tessitura jurídica, na situação em pauta não ocorre a pretextada nulidade insanável, decorrente da falta de inquérito relativamente ao arguido AA.
A previsão legal justapõe-se a uma inexistência/omissão total, de facto ou de direito, dessa fase processual.
A finalidade do inquérito consubstancia-se em apurar se existe crime e quem é o seu autor; assim, se não for evidente a falta de tipicidade dos factos denunciados, o Ministério Público deve desenvolver atividade investigatória direcionada ao sobredito escopo. Nessa pressuposição, se não o fizer, verifica-se, então, a nulidade insanável de falta de inquérito (Na doutrina - Fernando Gama Lobo Código de Processo penal Anotado 2017, 2ª edição Almedina, pág. 200; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código Processo à luz da Constituição da república e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª ed. Universidade católica ed., 2008, pág. 304; Henriques Gaspar, em anotação ao Código Processo Penal Comentado (obra coletiva), Almedina, 204 pág. 389; e João Conde Correia, em anotação ao comentário Judiciário do Código de Processo Penal (obra coletiva), Tomo I, Almedina 2019, pp. 1239-1240, pág. 67a 10); e
jurisprudência-Ac STJ de 11/07/2007, da Relação do Porto de 09/05/2007, in dgsi. da Relação de Lisboa de 02.02.11 publicado na C.J., 2011, Tomo II, pág. 157.)

Ora, na situação sub examine, foram realizados diversos atos de inquérito, a conglobar, sem ressalva, todos os 7 arguidos que se mostram pronunciados; ou seja: o inquérito foi efetuado e ampliou-se a todos os arguidos, incluindo o recorrente AA,
Sucede apenas, como único elemento diferenciativo, que, reversamente aos demais arguidos, o arguido AA, no contexto do inquérito, não foi formalmente constituído como tal e não foi submetido a interrogatório nessa qualidade.
Porém, tal preterição de formalidades legais, à vista do aduzido, não corporifica, de nenhuma forma, a nulidade insanável emergente da falta de inquérito.

A constituição de arguido e o interrogatório de arguido, sendo possível a atinente notificação, constituem, na verdade, atos legalmente obrigatórios, a praticar na fase de inquérito - cf. os artigos 58º,n º 1, 59.° e 272º, nº1.
A constituição de arguido é relevante em sede de processo criminal já que é a partir dela que o arguido passa a ser titular de todos os direitos de defesa que a lei lhe conferiu.
A constituição de arguido e o interrogatório deste, nessa qualidade, na fase de inquérito, cumprem uma função material de garantia de defesa: por um lado, porque a atribuição do estatuto de arguido investe o suspeito num conjunto de direitos e deveres de natureza processual (elencados no artigo 61.º, do CPP), transformando o mero suspeito ou imputado em sujeito processual e, por outro, porque a realização do interrogatório previsto no artigo 272.º, n.º 1, do CPP, permite que o arguido seja confrontado com os factos relativamente aos quais está a ser apurada a sua eventual responsabilidade criminal, podendo sobre os mesmos exercer o seu direito de defesa, sendo que o resultado de tal interrogatório poderá ter efeitos na decisão final de inquérito.
Daí que o legislador preveja que a constituição de arguido tenha lugar logo que o arguido preste declarações pela primeira vez no processo, quando lhe tenha que ser aplicada uma medida de coação, quando for detido ou quando for levantado um auto de notícia e este lhe seja comunicado (art. 58° do Cód. proc.Penal).

Sucede que o legislador também prevê expressamente que o suspeito assume a qualidade de arguido ao prescrever que assume a qualidade de arguido todo aquele contra quem for deduzida acusação ou requerida instrução (art. 57°, n° 1, do Cód. Proc. Penal).
Por força deste artigo o arguido é intraprocessualmente e ope legis, aquele que for sujeito passivo destes atos.
Mas uma coisa é a qualidade de arguido e outra a constituição de arguido, que exige, logo que possível a sua formalização com todos os direitos e deveres inerentes-art. 61º do CPP.
Ora, sendo a acusação proferida no fim do inquérito, decorre deste preceito que é legalmente admissível a existência de um inquérito e a dedução de uma acusação sem que o suspeito da prática do ilícito seja formalmente constituído arguido, o que só por si afasta qualquer hipótese de fazer equiparar a falta de constituição de arguido à falta de inquérito.

Por último há ainda que considerar o disposto no nº 5 do citado art. 58° CPP que prescreve que a tomada de declarações do arguido sem que este tenha sido como tal constituído implica que as suas declarações não possam ser contra si utilizadas como prova.
Ora se a falta de constituição como arguido equivalesse a uma nulidade insanável, por ser equiparada à falta de inquérito, este preceito não teria qualquer sentido já que a nulidade acarretaria necessariamente a invalidade dos atos dela dependentes como seria, no caso, a tomada de declarações.

Em suma, não se pode equiparar a falta de constituição de arguido à falta de inquérito.

Porém, a sua omissão não se intermistura com a falta ou ausência de inquérito - trata-se, antes, em face da sua obrigatoriedade legal, de uma incidência que reverbera uma insuficiência de inquérito, determinante da nulidade, dependente de arguição, prevista no artigo 120º, nº 2, alínea d). Neste sentido jurisprudência diversa deque tal omissão integra tão somente a nulidade do artº 120º nº2 al-d), tal como ocorre no Acórdão do Pleno das Secções Criminais do STJ de 23 de novembro de 2005 ou no Acórdão do TRP de 08/03/2017 no processo nº. 97/12.0GAVFR, ou no Acórdão do TRC de 06/11/2003 no processo n° 310/12.4T3AND ou no Acórdão do TRG de 12/07/2016 no processo n° 679/14.6GCBRGE.
De resto, a esse propósito e com essa exata orientação, o Supremo Tribunal de Justiça, na envolvência do Acórdão nº I/2006, fixou a seguinte Jurisprudência: "A falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120.°, n° 2, alínea d), do Código de Processo Penal"[5].
Pelo tocante ao momento e prazo de arguição da retrocitada nulidade, sendo certo que, no caso em tela, houve lugar à fase de instrução, aplica-se o comando prevenido no artigo 120º, nº 3, alínea c), que estatui o seguinte:
"3 - As nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas: [...]
c) Tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório [...]"

Por derradeiro, a falta de efetiva notificação da acusação particular ao arguido AA concretiza-se numa irregularidade, porquanto se trata de uma violação ou inobservância de uma norma processual - cf. o artigo 277º, nº 3, aqui aplicável ex vi artigo 283º, nº5 -, que a lei não comina com nulidade, insanável ou sanável, no elenco, respetivamente, dos artigos 119º e 120º nº 2, ou de qualquer outra disposição legal.
Nesse quadrante, torna-se, então, cogente a aplicação do regime tipificado no artigo 123º nº1, ou seja: a irregularidade, para determinar a invalidade do ato a que se refere, no particularismo da presente situação, devia ter sido arguida pelo interessado nos três dias subsequentes à sua intervenção em algum ato praticado no processo.
Ora, arguido AA, posto que não tenha, de facto, sido notificado da acusação particular, requereu a abertura de instrução, juntamente com todos os demais arguidos. Todavia, nem nessa peça processual nem posteriormente, até ao recurso ora intentado (sendo ainda certo que ele ainda interveio na contextura do recurso da decisão instrutória), o arguido AA suscitou a preterição de alguma das supraditas formalidades legais: a falta de constituição de arguido; a falta de interrogatório como arguido: ou a omissão da notificação da acusação particular.
Não tendo agido tempestivamente, nos preditos termos, sibi imputet- tem o arguido de se conformar com o estado atual do processo, dado que as nulidades e a irregularidade enfocadas (previstas, na devida ordem, nos artigos 120.º, n.º 2, alínea d), e 123.º) estão definitivamente sanadas, por não terem sido arguidas nos momentos próprios as nulidades, até ao encerramento do debate instrutório; a irregularidade, até ao 3,° dia após o arguido ter requerido a abertura de instrução.
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, pág. 516, da 4.ª Edição Revista, da Coimbra Editora), em anotação ao artigo 32.º da Constituição, “A fórmula do n.º 1 é, sobretudo, uma expressão condensada de todas as normas restantes deste artigo, que todas elas são, em última análise, garantias de defesa. Todavia, este preceito introdutório serve também de cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal. Em «todas as garantias de defesa» engloba indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação.”
O Tribunal Constitucional tem-se pronunciado, por várias vezes, sobre o âmbito deste preceito. Assim, no Acórdão n.º 61/88 (em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol., pág. 621), podemos encontrar uma síntese do conteúdo genérico do direito de defesa do arguido:
“[...]
No artigo 32.º, n.º 1, da Constituição dispõe-se que «o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa». Esta cláusula constitucional apresenta-se com um cunho «reassuntivo» e «residual» - relativamente às concretizações que já recebe nos números seguintes desse mesmo artigo – e, na sua «abertura», acaba por revestir-se, também ela, de um carácter acentuadamente «programático». Mas, na medida em que se apela para um núcleo essencial deste, não deixa a mesma cláusula constitucional de conter «um eminente conteúdo normativo imediato a que se pode recorrer directamente, em caso limite, para inconstitucionalizar certos preceitos da lei ordinária» (cf. Figueiredo Dias, A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os Tribunais, p. 51, e o Acórdão n.º 164 da Comissão Constitucional, Apêndice ao Diário da República, de 31 de Dezembro de 1979).
A ideia geral que pode formular-se a este respeito - a ideia geral, em suma, por onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações (judiciais) do princípio da defesa, para além das consignadas nos n.ºs 2 e seguintes do artigo 32.º - será a de que o processo criminal há-de configurar-se como um due process of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável das possibilidades de defesa do arguido (assim, basicamente, cfr. Acórdão n.º 337/86, deste Tribunal, no Diário da República, 1.ª série, de 30 de Dezembro de 1986)”.
Do que antecede decorre que a resposta à questão de constitucionalidade sub judicio prende-se com saber se a qualificação do vício decorrente da falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, como nulidade (sanável) prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP, com a consequente imposição ao arguido de suscitar tal vício no prazo previsto no art. 120.º, n.º 3, alínea c), do CPP, se traduz numa diminuição inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável, das garantias de defesa.
Apesar da dedução de acusação ser apenas uma fase intermédia do processo penal, em que a entidade incumbida da investigação do caso emite um juízo de forte suspeita sobre a prática de um crime, esse juízo, além de delimitar o objeto do processo, é suscetível de causar ao arguido danos morais muito graves, mais não seja o decorrente da publicidade que lhe é inerente, pelo que importa que, previamente à tomada dessa decisão, ele seja ouvido sobre os factos que lhe possam vir a ser imputados. É inegável, pois, que a falta de audição prévia do arguido, nos casos em que ela se revele possível, sobre os factos que lhe são imputados em acusação contra ele dirigida, atenta contra os seus direitos de defesa, uma vez que lhe retira o direito de apresentar a sua versão dos factos em investigação, de se pronunciar sobre as provas já recolhidas e de apresentar outras provas, ficando, assim, impossibilitado de influir na decisão de dedução de acusação. Perante tão irrefragável violação dos direitos de defesa do arguido, o sistema processual penal não pode permanecer indiferente, sendo-lhe exigível a previsão de um mecanismo de reação dotado da eficácia necessária a que o exercício do referido direito de audiência seja assegurado.
Na interpretação sustentada pela decisão recorrida, esses casos de omissão do interrogatório como arguido previamente à dedução da acusação, constituirão uma nulidade que deve ser invocada pelo interessado até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até 5 dias, após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito, ou seja, neste caso, da dedução da acusação. Ultrapassados estes prazos, a omissão ocorrida encontra-se sanada, deixando de ter qualquer relevância a falta cometida.
Estamos, pois, perante a previsão duma nulidade sanável pela falta de arguição pelo interessado num determinado prazo após o seu conhecimento.
A qualificação de algumas nulidades como sanáveis e dependentes de arguição, nos termos acima expostos, justifica-se, em grande medida, por evidentes razões de celeridade e economia processuais. Não pode deixar de se ter presente o dano que sempre resulta da invalidação de um ato processual, o qual normalmente se comunica aos atos subsequentes, tornando inútil toda uma atividade já desenvolvida. O princípio da conservação dos atos imperfeitos aconselha a que, relativamente a determinadas situações desconformes com o modelo legal, em que a ponderação dos interesses em jogo o permita, se atribua precariamente ao ato inválido os mesmos efeitos que o ato válido, aguardando que essa invalidade possa ser sanada, nomeadamente pelo decurso de um prazo para o interessado a arguir (vide sobre a relevância destes interesses pragmáticos na definição do regime da nulidade dos atos processuais, Manuel Cavaleiro de Ferreira, em Curso de Processo Penal, vol. I, pág. 257 e seg., da ed. de 1981, Germano Marques da Silva, em Curso de Processo Penal, II vol., pág. 88-89, 4.ª ed., da Editorial Verbo, e João Conde Correia, em Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais penais, pág. 125-126, da ed. de 1999, da Coimbra Editora). Tal solução destina-se também a evitar que o interessado em vez de arguir a nulidade imediatamente após o seu conhecimento, guarde essa possibilidade para momento mais oportuno na sua estratégia processual, numa conduta reprovável, que teria como consequência a inutilização de todo o processado entretanto desenvolvido, muitas vezes no fim de uma prolongada tramitação que dificilmente poderia ser refeita.
Este regime das consequências da prática de um ato nulo, por ação ou omissão, dotado de mecanismos de destruição atenuados, adapta-se sobretudo a situações de gravidade média em que foram sobretudo afetados interesses jurídico-processuais particulares.
E é precisamente nesse âmbito que se situa o vício em questão, uma vez que o mesmo se repercute numa decisão que, apesar de dotada das implicações relevantes acima indicadas, não deixa de ser uma decisão intermédia, de cariz provisório, relativamente ao objetivo principal do processo penal, e tem como resultado a violação predominante dos interesses de defesa do arguido, apesar de se poder dizer que o interesse público da descoberta da verdade material também é posto em causa. Daí que se revele suficiente que o regime da nulidade que sanciona esse vício assegure que o arguido tenha uma efetiva possibilidade de o invocar num prazo razoável, não sendo necessário o recurso a um mecanismo destrutivo do processo, acionável a todo o tempo, por qualquer dos intervenientes processuais. A proteção dos direitos de defesa do arguido nesta situação não exige os custos que tal solução implicaria para a eficácia, celeridade e economia do processo penal, revelando-se o regime da nulidade previsto na interpretação sindicada proporcional ao vício sancionado.
Na verdade, a omissão em questão não pode passar despercebida a um acompanhamento diligente da tramitação processual a partir do momento em que o arguido foi notificado da acusação, dispondo este de um prazo razoável para invocar a referida nulidade (o prazo previsto no artigo 120.º, n.º 3, alínea c) do C.P.P), sendo esse ónus de fácil cumprimento, atenta a evidência para o arguido da falta cometida e a simplicidade da sua arguição.
Ora, conforme se refere no Acórdão n.º 429/95 deste Tribunal (in ATC, 31.º vol, pág. 707), “(…) no processo penal existem outros valores relevantes para além do direito da defesa à obtenção de uma sentença absolutória:
- o dever de diligência do arguido – e, muito em particular, do defensor que obrigatoriamente o deve assistir ao longo do processo (e da audiência) – que obviamente deverão de imediato reagir contra as nulidades ou irregularidades que considerem cometidas e entendam relevantes, na perspectiva de defesa, não podendo naturalmente escudar-se na sua própria negligência no acompanhamento das diligências ou audiências para intempestivamente vir reclamar o cumprimento da lei relativamente a que estiveram presentes e de que, agindo com a prudência normal, não puderam deixar de se aperceber;
- dever de boa fé processual, que naturalmente impedirá que possam - arguido e defensor - ser tentados a aproveitar-se de alguma omissão ou irregularidade porventura cometida ao longo dos actos processuais em que tiveram intervenção, guardando-a como um «trunfo» para, em fase ulterior do processo, se e quando tal lhes pareça conveniente, a suscitarem e obterem a destruição do processado.”
No caso concreto, o Recorrente, requereu a instrução, necessariamente se apercebeu da circunstância de, na fase de inquérito, não ter sido efetuado o seu interrogatório como arguido. Dispunha, por isso, desde logo, da possibilidade de exercer os direitos em que se concretiza o princípio constitucional das garantias de defesa, incluindo a arguição da nulidade decorrente da omissão da realização de tal ato de interrogatório. Contudo, deixou correr o tempo e só depois de esgotado tal prazo é que veio invocar tal nulidade, pelo que a não correção da omissão da sua não audição ficou a dever-se à sua inação e não a uma deficiência do regime processual penal nesta matéria.
Torna-se, assim, manifesto que a interpretação sindicada, ao qualificar o vício em causa nos autos como nulidade relativa, impondo ao interessado a sua arguição dentro de um prazo razoável para poder dar-se plena exequibilidade ao direito de defesa do arguido, não coloca em causa a garantia de tal direito de defesa. Ver Ac. Trib. Const. N º 53/111 de Fevereiro de 2011.
Nestes termos, não é de considerar incompatível com as normas constitucionais invocadas pelo Recorrente (o artigo 32.º, n.º 1 da Constituição), a qualificação do vício resultante da falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, como nulidade relativa, prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP.

Dessarte, em assonância com o destacado pelo Mº Juiz a quo, a regularização do processado basta-se/alcança-se agora com a constituição formal de arguido por parte de AA e com a sua prestação de termo de identidade e residência, encontrando-se a nulidade relativa sanada.
Na desinência do expendido, pode, pois, afirmar-se, com solidez, que o tribunal a quo, adversamente ao pretendido pelo arguido, não violou o disposto nos seguintes artigos; 35º, n º1, e 71º, n° 3, da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido; 58º, n º 1, alínea a), 61º, alínea g), 62º e 119º, alínea d), todos do CPP; e 32º, n º 1, 2 e 3 da CRP.

Finalmente última palavra para a invocava nulidade pelo facto do M.P. não ter sido notificado do despacho da Srª juiza de julgamento.
Atentando ao conteúdo do mesmo:
"A decisão instrutória de fls. 1463 e seguintes pronuncia AA, nunca constituído arguido nem como tal ouvido nos autos (o que poderá consubstanciar nulidade insanável, nos termos do disposto no artigo 119° al-d) do CPP. Assim, com urgência, remeta os autos novamente ao TIC, solicitando-se ao Ilustre Colega que proferiu a referida decisão que esclareça se assim é, ou seja, se este arguido foi efetivamente pronunciado".
Verifica-se, desde logo que o mesmo é de mero expediente insuscetível, pois, de recurso. A Srª juiza pediu apenas um esclarecimento e nada mais, pelo que não tinha que ser obrigatoriamente dado a conhecer ao M.P. a quo, pelo que improcede a alegada nulidade.

III. Decisão:

Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em:

- Considerar partes ilegítimas e com falta de interesse em agir para recorrer as arguidas CC e DD.
- Negar total provimento ao recurso interposto pelo recorrente AA e em confirmar a decisão recorrida, embora com outros fundamentos, estando a omissão de constituição de arguido sanada, deixando de ter qualquer relevância a falta cometida.

Custas pelos recorrentes, fixando-se em 04 UC a taxa de justiça devida (art. 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa).

Notifique e comunique à 1.ª Instância.

Sumário da responsabilidade do relator.
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Porto, 30 de Março de 2022
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relator, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas eletrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Paulo Costa
Francisco Marcolino
Nuno Pires Salpico
______________
[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do C.P.Penal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Cf. Pereira Madeira, em anotaçãoao Código Processo Penal Comentado (obra odetiva), Almedina, 2014 pp 1284-1285.
[3] Ver ac STJ de 17.02.05 in wwwdgsi.pt/jstj).
[4] Nessa esteira, com interesse, conf.: José Gonçalves da Costa, em obra cit. pág 412; e o Ac. STJ de 25/10/2018 in(www dgsi.pt/jstj).
[5]. Jurisprudência válida, com atualização resultante da alteração introduzida pela Lei 48/2007 de 29.08 aos artigos 58º, n º 1 e 272º, n.º 1. Vejas acs. da Relação do Porto in www DGSI: de 28/11/2012: "I - Conquanto a Lei 48/2007 mantenha a obrigatoriedade da constituição como arguido, no âmbito de um inquérito, restringe aquela obrigatoriedade aos casos em que haja "fundada suspeita" de uma pessoa ter praticado um crime. II - A conclusão do Acórdão de fixação de jurisprudência 1/2006 deve ser actualizada, face à nova redacção do preceito legal (art.° 272°, n.° 1 do CPP), no sentido em que se reporta a obrigatoriedade de constituição e interrogatório de arguido apenas aos casos de fundada suspeita da prática de um crime."de 09/12/2015): "I - Só quando exista fundada suspeita da prática de um crime é que é obrigatória a constituição de arguido e a sua falta na fase de inquérito constitui a nulidade prevista no art 120º 2 al. b) CPP."