SERVIDÃO DE VISTAS
FRESTA
ABERTURA IRREGULAR
Sumário

I – A “abertura” com 1.07 de largura e 32 centímetros de altura, dotada de duas barras de ferro, com um intervalo de 10cm entre si, em todo o comprimento da referida abertura, é de classificar como uma janela gradada que, não obedecendo às características impostas pelos arts. 1363º e 1364º do Código Civil, configura uma abertura irregular.
II - A abertura de frestas sem as características indicadas na lei pode originar a aquisição, por usucapião, de uma servidão predial, consistente em ter o seu detentor o direito a mantê-las abertas em condições irregulares, sem que o vizinho o possa compelir a torná-las com as dimensões legais, mas não adquire o direito de servidão de vistas que impeça o vizinho de as tapar com a construção que leve a cabo do seu prédio.

Texto Integral


Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

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            1 – RELATÓRIO

AA, casada, titular do cartão de cidadão n.º ..., contribuinte fiscal n.º ... e marido BB, casado, titular do cartão de cidadão n.º ... ZX 3, contribuinte fiscal n.º ..., residentes na Rua ..., ..., ..., ... intentaram a presente ação declarativa em processo comum contra CC, viúva, titular do número de identificação fiscal ...28, residente no ..., n.º 1, ..., ..., ..., DD, divorciado, titular do número de identificação fiscal ...92, residente na Urbanização ..., ..., ..., ..., ..., ... e EE, casada, titular do número de identificação fiscal ...01 e marido FF, titular do número de identificação fiscal ...98, residentes na Rua ..., ..., ..., ..., peticionando a condenação dos Réus:

i. A reconhecerem a existência de uma servidão de vistas (na modalidade de luz, arejamento e escoamento de gases), concretizada pela janela existente na cozinha do rés-do-chão do prédio dos Autores (com 1,07 metros de largura e 0,32 metros de altura, com início a 1,92 metros do solo), constituída por contrato ou, subsidiariamente, por usucapião, a onerar o prédio dos réus a que corresponde o artigo matricial urbano ...57 da freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...85 daquela freguesia ..., a favor do prédio dos autores com o artigo matricial urbano ...58 da mesma freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...41 da referida freguesia ...;

ii. A demolirem o telheiro que construíram no pátio do seu prédio, retirando todos os materiais que ali colocaram de forma adjacente à parede do prédio dos autores e colocando esta no estado em que a mesma se encontrava antes da construção de tal telheiro;

iii. A absterem-se da prática de qualquer ato que obstrua ou dificulte a fruição, pelos autores, da servidão.

iv. No pagamento das custas do presente processo.

Alegam para tanto, e em síntese, que, em 1992, obtido o consentimento expresso da 1.ª Ré, foi aberta uma janela na parede nascente do rés-do-chão do prédio dos AA., a deitar diretamente para o pátio interior do prédio dos RR., no local onde se situa a cozinha, por forma a dotar este compartimento – o qual se tratava de uma divisão interior - de luz natural, permitindo igualmente o seu arejamento e o escoamento dos gases resultantes do uso do fogão e da confeção das refeições.

Acrescentam os AA. que, desde aquele ano, de forma ininterrupta e à vista de toda a gente, utilizaram aquela abertura por forma a dotar a cozinha de luz natural, arejando-a e fazendo o escoamento dos fumos, cheiros e gases resultantes do uso do fogão para o exterior da habitação.

Mais alegam que, no final do ano de 2020, os RR. procederam à construção de um telheiro no referido pátio interior do seu prédio, sendo que tal obra, adjacente ao prédio dos AA. e sem respeitar a distância de 1,50m, tapa a abertura feita na parede nascente do prédio destes, impedindo-os de gozar das utilidades conferidas por aquela.

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Regularmente citados, os RR. apresentaram contestação, deduzindo, por um lado, exceção de ilegitimidade passiva relativamente ao 3.º Réu e, por outro lado, aceitando a generalidade da matéria de facto articulada na petição inicial, tendo pugnado, porém, pela improcedência da ação, em consequência de, no seu entender, não se aplicar, in casu, o disposto no artigo 1360.º, do Código Civil.

Na sustentação da posição assumida, alegam os RR. que a abertura feita na parede do rés-do-chão do prédio dos AA. trata-se de uma fresta irregular, porquanto as medidas alvitradas pelos AA. não permitem a qualificação como janela, na medida em que não é possível, através da referida abertura, projetar o corpo nem usufruir de vistas, ao que acresce o facto de tal abertura não possuir parapeito.

Por outro lado, alegam os RR. que a referida abertura é composta por dois varões/barras de ferro, com um intervalo de cerca de 10 cm entre si, o que conduz à não aplicação, no caso em apreço, do disposto no artigo 1360.º, do Código Civil, pela previsão expressa vertida no artigo 1364.º, daquele diploma legal.

Os RR. deduziram ainda pedido de condenação dos AA. em quantia não inferior a €5.000,00 (cinco mil euros), por litigância de má fé.

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Foi proferido despacho saneador – cf. ref.ª ...17, de 07.09.2021 -, no qual se conheceu da exceção de ilegitimidade passiva deduzida pelos RR., sendo a mesma julgada improcedente.

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Realizou-se audiência de discussão e julgamento, com observância de todo o formalismo legal, como se alcança das respetivas atas.      

Na sentença, considerou-se, em suma, que face à factualidade apurada, importava concluir que no caso se estava perante frestas ou janelas gradadas que não obedeciam às caraterísticas impostas pelos artigos 1363º e 1364º do C.Civil, donde, concordando com a jurisprudência maioritária, mais concretamente quanto ao aspeto de que tais aberturas não poderiam conduzir, sem mais, à aquisição de uma servidão de vistas, nos termos do artigo 1362.º, do Código Civil («pois o artigo 1360.º, n.º 1 apenas se refere ao conceito de janelas, o qual, in casu, se encontra arredado»), sustentou-se o entendimento de que se encontrava constituída a favor do prédio dos AA. uma servidão atípica, de ar e luz, por usucapião (através da abertura rasgada na parede do rés do chão do lado nascente do prédio dos AA., com 1,07m de largura, 0,32m de comprimento e 1,92m de altura a contar do solo), importando condenar os RR. a demolirem o telheiro por si construído e a remover todos e quaisquer obstáculos que tapem essa mesma abertura ou impeçam a entrada de ar e luz através da mesma, o que se traduziu no seguinte concreto dispositivo:

«DECISÃO

Em face do exposto, julga-se a ação parcialmente procedente e, em consequência, decide-se:

i. Condenar os Réus CC, DD, EE e marido, FF, a reconhecerem a existência de uma servidão atípica (de luz e ar), concretizada pela abertura existente na cozinha do rés do chão do prédio dos Autores (com 1,07 metros de largura e 0,32 metros de altura e com início a 1,92 metros do solo), a onerar o prédio a que corresponde o artigo matricial urbano ...57 da freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...85 daquela freguesia ..., a favor do prédio com o artigo matricial urbano ...58 da mesma freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...41 da referida freguesia ..., propriedade dos Autores AA e BB.

ii. Condenar os Réus CC, DD, EE e marido, FF a demolirem o telheiro que construíram no pátio do prédio a que corresponde o artigo matricial urbano ...57 da freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...85 daquela freguesia ..., retirando todos os materiais que ali colocaram de forma adjacente à parede do prédio dos autores e colocando esta no estado em se encontrava antes da construção do referido telheiro.

iii. Condenar os Réus CC, DD, EE e marido, FF a absterem-se de da prática de qualquer ato que obstrua ou dificulte a fruição, pelos autores, da servidão atípica constituída a favor do seu prédio.

iv. Absolver os Réus do pedido de reconhecimento da existência de uma servidão de vistas a onerar o prédio a que corresponde o artigo matricial urbano ...57 da freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...85 daquela freguesia ....

v. Absolver os Autores do pedido de litigância de má fé.

vi. Condenar os Réus nas custas do processo.

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Registe e notifique.».

                                                           *

            Inconformados com essa sentença, apresentaram os RR. recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

«1. Os Recorridos peticionaram o reconhecimento pelos Recorrentes da existência de uma servidão de vistas (na modalidade de luz, arejamento e escoamento de gases).

3. O Tribunal a quo condenou os Recorrentes a reconhecerem a existência de uma servidão atípica (de luz e ar).

4. O Tribunal a quo condenou os Recorrentes em objecto diverso do pedido, violando os limites da condenação, definidos no artigo 609º do CPC, bem como o princípio do dispositivo, que impõe que a decisão se contenha, quer em substância, quer em quantidade no âmbito do pedido formulado.

5. O Tribunal procede à qualificação jurídica que considere adequada, mas dentro da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito jurídico que se pretende obter com a acção, em respeito à teoria da substanciação, que determina que o Tribunal fica vinculado ao pedido dos Autores.

6. A condenação em objecto diverso do pedido viola o princípio da estabilidade da instância, consagrado no artigo 260º do CPC, visto que os Recorridos substantivaram a sua pretensão no reconhecimento da existência de uma servidão de vistas e não no reconhecimento de uma servidão atípica.

7. Os efeitos jurídicos decorrentes da existência de uma servidão de vistas ou de uma servidão atípica são distintos, pelo que a defesa dos Recorrentes seria necessariamente diferente, caso o pedido dos Recorridos tivesse sido o de reconhecimento de uma servidão de vistas atípica, pelo que a impossibilidade de os Recorrente terem apresentado defesa quanto a essa matéria, coarta de forma ostensiva o seu direito de defesa, violando o disposto no artigo 20º nos 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa.

8. A decisão do Tribunal a quo constitui uma decisão surpresa, atentatória do princípio do contraditório, consagrado no artigo 3º, nº 3 do CPC.

9. A sentença recorrida é nula, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea e) do CPC e inconstitucional por violação do artigo 20º nos 2 e 4 da Constituição da República Portuguesa.

10. O Mestre Henrique Mesquita explicou a diferença que existe entre janelas, frestas regulares e frestas irregulares, posição seguida há largos anos e de forma unânime pela jurisprudência, e que a sentença sub judice segue inicialmente.

11. O Mestre esclareceu que as frestas que não obedeçam às dimensões e características previstas na lei, são frestas, mas irregulares, posição também acolhida pelo Tribunal a quo, que parece qualificar a abertura objecto dos presentes autos como fresta irregular.

12. A doutrina criada pelo Mestre Henrique Mesquita afirma inequivocamente que as frestas irregulares não podem conduzir à aquisição de servidão de vistas, mas sim de uma servidão predial, após o decurso do prazo de usucapião, cujo conteúdo se atém ao direito do proprietário que abriu as frestas de manter tais

aberturas em condições irregulares.

13. O direito do proprietário que abriu as frestas irregulares não obsta a que o proprietário vizinho possa construir mesmo junto à linha divisória, ainda que tape as frestas, visto que a proibição de construir junto à linha apenas é estabelecida pela lei em relação à servidão de vistas regulada no artigo 1362º do CC, em cujo campo de aplicação se não incluem as frestas.

14. Contudo, a decisão em crise considera que a abertura objecto da presente acção tem um parapeito, que é definível como a parede ou outro tipo de protecção que se ergue na altura do peito ou pouco mais abaixo, nomeadamente, à borda das janelas, varandas, terraços, pontes, ou a peça de pedra, granito, madeira ou outro material que integra a parte inferior de uma janela e serve para apoiar quem nela se debruça.

15. Sopesando a definição de parapeito com as fotografias juntas como documentos nº ... da Petição Inicial e nº 2 da Contestação e chamando à colação as regras da experiência comum, outra conclusão não seria possível, a não ser que a abertura não tem parapeito.

16. O Tribunal a quo valorou as declarações prestadas pela Autora e os depoimentos das suas filhas enquanto testemunhas, em detrimento da prova documental.

17. Face ao aduzido, deve o facto C) não provado ser qualificado como facto provado.

18. A sentença em crise, seguindo a doutrina do Mestre do Henrique Mesquita concorda que a zona não aedificandi apenas se estabelece em relação à servidão de vistas, regulada no artigo 1362º, que não se aplica às aberturas irregulares e, como tal, não pode ser reconhecida a existência da servidão de vistas peticionada pelos Recorridos.

19. Todavia, em violação do artigo 9º do Código Civil, que disciplina a unidade do sistema jurídico, a sentença em crise contrariamente a tudo o que seria expectável, decide reconhecer uma servidão atípica, chamando à colação o regime geral das servidões, vertido nos artigos 1543.º a 1575.º do Código Civil.

20. A “tese” seguida na sentença tem de soçobrar porquanto:

• O Código Civil encontrou uma solução para as janelas abertas em violação do artigo 1360º e plasmou tal solução no artigo 1362º;

• O legislador optou relativamente às frestas regulares por não lhe conferir tal protecção conforme dispõe no artigo 1363º;

• A M. Juiz a quo pretende conferir às frestas irregulares protecção idêntica à das janelas;

• A doutrina entende que a servidão que se constitui implica que seja constituído o direito de manter as aberturas em condições irregulares, mas nada existe na lei que crie a referida restrição non aedificandi.

21. O entendimento vertido na decisão em crise faria com que as pessoas aproveitassem a tolerância dos vizinhos, abrindo somente frestas irregulares com o intuito de se evadiram das malhas do artigo 1363º do Código Civil, tendo como consequência imediata um aumento da litigiosidade entre vizinhos.

22. Ainda que nos termos do artigo 1568º do Código Civil esteja estipulado que o proprietário do prédio serviente não pode estorvar o uso da servidão, com a constituição da referida servidão atípica de luz e ar constituída por usucapião que a sentença reconhece existir, a mesma não constitui, nem pode porque seria

contra legem, uma proibição non aedificandi, porquanto já resulta da lei um ius aedificandi nos termos do artigo 1363º do Código Civil aplicável às frestas (ainda que irregulares).

23. O Tribunal a quo não se pronuncia na sentença sobre uma das questões referidas na contestação e que se prende com o facto de a abertura em causa ser gradada, ainda que com uma dimensão diversa quanto à secção e malha daquela que está prevista no artigo 1364º do CC.

24. De acordo com o Mestre Henrique Mesquita, aplicam-se às janelas gradadas cuja secção e/ou malha sejam irregulares os mesmos argumentos que se aplicam às frestas ou aberturas irregulares.

25. Tendo decidido diferentemente o douto aresto violou o disposto nos artigos 609º, 615º, 5º, 260º e 3º do Código de Processo Civil, artigo 20º da Constituição da República Portuguesa e artigos 9º, 1360º, 1362º, 1363º, 1364º e 1568º do Código Civil.

TERMOS EM QUE:

Deve o recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogar-se a douta sentença, substituindo-se por outra que absolva os Recorrentes de reconhecer a constituição de servidão atípica, bem como dos efeitos daí decorrentes.

Vossas Excelências, porém, farão a costumada e esperada

JUSTIÇA»

                                                                       *

            Apresentaram os AA. as suas contra-alegações, em cuja parte final contemplaram uma “ampliação do objeto do recurso”, sendo que finalizaram no sentido de «Nestes termos e nos mais de direito, deve o recurso interposto ser julgado improcedente, confirmando-se integralmente a sentença recorrida, assim fazendo, V.ªs Ex.ªs, a costumada

JUSTIÇA».

                                                                       *

            Os RR./recorrentes apresentaram um articulado de “resposta”, cujo teor e “conclusões” aqui se dão por reproduzidos.

                                                                       *

            Antes de determinar a subida do recurso, a Exma. Juíza a quo proferiu um despacho a indeferir a nulidade arguida.

                                                                       *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso[2], cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelos RR./Recorrentes nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

            - que a condenação dos RR. a reconhecer a existência de uma servidão atípica, integra a nulidade prevista no artigo 615º, nº 1 da alínea e) do n.C.P.Civil;

            - que a condenação dos RR. a reconhecer a existência de uma servidão atípica, constitui a designada decisão surpresa, atentatória do princípio do contraditório, consagrado no artigo 3º, nº 3 do n.C.P.Civil e no artigo 20º, nos 1 e 4 da CRP;

- incorreta valoração da prova produzida, que levou ao incorreto julgamento do facto “c.” qualificado como “não provado”, o qual deve ser considerado “provado”;

- incorreto julgamento de direito, porquanto nada existiria na lei que crie a restrição non aedificandi que na sentença foi declarada em consequência do reconhecimento da existência de uma servidão atípica (de luz e ar).

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado/fixado pelo tribunal a quo, ao que se segue a enunciação do que foi considerado “não provado”, obviamente sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade. 

            Tendo presente esta circunstância, são os seguintes os factos que se consideraram “provados” no tribunal a quo:

«1. Em 03.01.1994, no Cartório Notarial ..., a cargo da Notária GG, foi outorgada escritura de justificação notarial, na qual foi reconhecida a aquisição do direito de propriedade, por usucapião, do prédio urbano sito na Rua ..., em ..., ..., constituído por casa de habitação composta de  ... com duas divisões e  ... com quatro divisões, inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., concelho ..., sob o artigo n.º ...58, a favor de AA e BB.

2. O prédio urbano identificado em 1. encontra-se descrito na Conservatória ..., sob o n.º ...41, da freguesia ..., a favor de AA e BB, desde 27.01.1994.

3. Em 21.11.2011, no Cartório Notarial ..., a cargo da Notária HH, foi outorgada escritura de habilitação de herdeiros, na qual foram reconhecidos como únicos herdeiros de II, falecido em 07.10.2011 no estado de casado em primeiras e únicas núpcias com CC, os aqui Réus, CC, DD e EE.

4. O prédio urbano sito na Rua ..., em ..., ..., constituído por casa de habitação de  ...,  ... e pátio, encontra-se inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., concelho ..., sob o artigo n.º ...57 e descrito na Conservatória ..., sob o n.º ...85, por dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária, a favor de CC, DD e EE, desde 02.12.2011.

5. Os prédios identificados em 1. e 4. são contíguos entre si, não existindo, entre eles, qualquer faixa de terreno.

6. A parede que delimita a nascente o prédio identificado em 1 confronta com o prédio identificado em 4, deitando diretamente para um pátio interior existente neste último.

7. Em 1992, a pedido da filha dos Autores, a Ré CC e II permitiram que na parede identificada em 6 fosse rasgada uma abertura, a fim de dotar a cozinha sita no rés do chão do prédio dos Autores de luz natural, permitindo o seu arejamento e o escoamento de gases resultantes do uso do fogão e da confeção de refeições.

8. Nesse ano, foi rasgada uma abertura na referida parede com as seguintes medidas:

8.1. 1,07m (um metro e sete centímetros) de largura;

8.2. 0,32m (trinta e dois centímetros) de altura;

8.3. 1,92m (um metro e noventa e dois centímetros) contados a partir do solo.

9. A cozinha onde foi rasgada esta abertura era uma divisão interior, que apenas confronta com o exterior - com o pátio sito no prédio dos Réus - por esse lado.

10. A abertura é dotada de um sistema de bandeira, com as dobradiças colocadas na sua base e oscilando verticalmente para dentro numa folha única.

11. Os Autores colocaram duas barras de ferro, com um intervalo de 10cm entre si, em todo o comprimento da referida abertura.

12. A abertura rasgada na parede do prédio identificado em 1 não permite desfrutar de vistas dos lados, para cima ou para baixo.

13. A referida abertura não permite a projeção da parte superior do corpo humano.

14. A abertura feita na cozinha sita no rés do chão do prédio identificado em 1 permitiu que esta ficasse exposta à luz natural, permitindo dotar tal divisão da ventilação necessária à renovação do ar e à exaustão de gases provenientes da confeção de refeições.

15. Durante mais de vinte e oito anos, de forma ininterrupta, à vista de todos, sem oposição de ninguém, os Autores utilizaram a referida abertura por forma a usufruírem de luz natural na cozinha sita no rés do chão do prédio identificado em 1, por aquela fazendo o arejamento da divisão e escoando os fumos, cheiros e gases resultantes do uso do fogão.

16. Em 2020, os Réus construíram no pátio do prédio identificado em 4, um telheiro, em telha cerâmica e com pilares e vigamento de madeira, em sentido perpendicular ao da parede do lado nascente do prédio identificado em 1.

17. O telheiro encontra-se encostado à parede do lado nascente do prédio dos Autores, distando da abertura aí feita menos de um metro e cinquenta centímetros.

18. O referido telheiro cobriu o espaço livre do lado exterior da abertura feita na parede do lado nascente do prédio identificado em 1, que anteriormente se encontrava a céu aberto.

19. Em consequência da construção do telheiro, a cozinha do rés do chão do prédio dos Autores perdeu luminosidade natural, passando a ser um local escuro.

20. Em consequência da construção do telheiro, os gases oriundos do funcionamento do fogão deixaram de escoar para o exterior, acumulando odores no interior da cozinha sita no rés do chão do prédio dos Autores.

21. Em consequência da construção do telheiro, os Autores vêem-se privados da renovação do ar naquela cozinha.»

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E o seguinte o consignado em termos de factos “não provados” pelo tribunal a quo:

«a. Os Autores adquiriram o prédio urbano sito na Rua ..., em ..., ..., constituído por casa de habitação composta de  ... com duas divisões e  ... com quatro divisões, inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., concelho ..., sob o artigo n.º ...58, em 1970, por contrato de compra e venda celebrado com os anteriores proprietários.

b. As medidas da abertura rasgada na parede do prédio dos Autores são as seguintes:

i. Altura: 0,36m

ii. Largura na totalidade 1,012m

iii. Largura até à parede: 0,75m

iv. Largura após a parede: 0,20m

v. Parede a meio: 0,17m

vi. Distância do solo (do interior do pátio dos Réus): 2,09m

c. A abertura em causa não possui parapeito onde uma pessoa possa apoiar-se ou debruçar-se para descansar.»

                                                                       *

3.2 – A primeira ordem de questões que com precedência lógica importa solucionar é a que se traduz na alegada nulidade da sentença.

Com efeito, sustentam os RR./recorrentes nas respetivas alegações recursivas que a condenação, operada na sentença recorrida, dos RR. a reconhecer a existência de uma servidão atípica, integra a nulidade prevista no artigo 615º, nº 1 da alínea e) do n.C.P.Civil

Vejamos.

Consabidamente, nos termos da al.e) do nº1, do art. 615º do n.C.P.Civil, a sentença será nula quando o juiz extravase os pedidos das partes, isto é, seja a sentença condenatória, seja absolutória, não pode pronunciar-se sobre mais do que o que foi pedido ou sobre coisa diversa daquela que foi pedida, isto como decorrência do comando de que o objeto da sentença deve coincidir com o objeto do processo, não podendo o juiz ficar aquém nem ir além do que lhe foi pedido.[3]

Sendo que estão neste particular em causa os limites da sentença, segundo a regra de que não pode ter lugar pronúncia ultra petitum.

Ora, atento o que está concretamente invocado – estava formulado um pedido de reconhecimento da existência de uma servidão de vistas, mas veio a ser proferida decisão no sentido do reconhecimento de uma servidão atípica –, será então que na sentença recorrida teve lugar o conhecimento em objeto diverso do pedido (al.e) do nº1 do art. 615º do n.C.P.Civil)?

Cremos bem que não.

Em nosso entender nem teve lugar o conhecimento de questão de que não podia tomar conhecimento (excesso de pronúncia) nem em objeto diverso do pedido (2ª parte da al.d) e al.e) do nº1 do art. 615º do n.C.P.Civil, respetivamente).

Na verdade, foi formulado pelos AA. na ação um pedido um pedido de reconhecimento da existência de uma servidão de vistas (mais concretamente na modalidade de luz, arejamento e escoamento de gases), e veio a ser proferida condenação dos RR. a “reconhecerem a existência de uma servidão atípica (de luz e ar)” e, concomitantemente, no sentido de absolver os mesmos do pedido de reconhecimento da existência de uma servidão de vistas a onerar o prédio em causa.

Ora, quanto a nós, o pedido formulado correspondia à alegação de uma situação de violação de um direito de servidão predial por parte dos RR., donde o pedido de condenação dos RR. no seu reconhecimento e respeito (abstendo-se de doravante o violar), enquanto manifestação daquela situação jurídica subjetiva (ou facto jurídico) de direito material, já constituída enquanto tal, pelo que, a condenação que foi proferida, se não deixou de corresponder a uma convolação, não deixou de ser feita no âmbito do efeito prático-jurídico pretendido pelos AA., ainda que traduzida numa espécie de atenuação ou redução qualitativa do objeto material do pedido.[4]

Na verdade, da servidão na modalidade de luz, arejamento e escoamento de gases, foi reconhecida a servidão de luz e ar, pelo que, independentemente da qualificação dogmática que a esta ultima mereça, a saber, como servidão atípica, não deixou de constituir o reconhecimento – em menor dimensão/grau, é certo! – do efeito prático-jurídico em concreto pretendido pelos AA..

Tendo sido isso que ocorreu.

De referir que, s.m.j., até estava claramente em causa na ação proposta não a normal servidão de vistas (para ver), não a típica servidão de vistas, mas uma servidão de vistas atípica, em que a utilidade proporcionada não eram propriamente as vistas mas sim a entrada de luz e ar naturais…

Termos em que improcede claramente esta via de argumentação aduzida pelos RR./recorrentes como fundamento para a procedência do recurso.

                                                           *

3.3 – Mas será que a referenciada condenação dos RR. a reconhecer a existência de uma servidão atípica, constitui a designada decisão surpresa, atentatória do princípio do contraditório, consagrado no artigo 3º, nº 3 do n.C.P.Civil e no artigo 20º, nos 1 e 4 da CRP?

Esta é a seguinte questão que importa solucionar – e que se traduz na alegada nulidade por prolação de decisão surpresa [art. 3º do n.C.P.Civil]

Sustentam enfaticamente os RR. ora recorrentes que «(…) toda a defesa dos Réus assentou no pedido de reconhecimento da existência de uma servidão de vistas e não de uma servidão atípica. Se ab initio o pedido fosse o do reconhecimento de uma servidão atípica, os meios de defesa dos Réus seriam distintos, designadamente os probatórios. Assim, não podem restar dúvidas de que esta “chicana” processual coartou a possibilidade de defesa dos Réus.».

Que dizer?

Que, salvo o devido respeito, não lhes assiste qualquer razão.

Senão vejamos.

Em nosso entender está apenas em causa a aplicação aos factos de regras jurídicas distintas daquelas que os réus sustentavam ser as aplicáveis.

Como, a este propósito já foi doutamente sublinhado, hoje em dia, estamos perante «uma noção mais lata de contrariedade, com origem na garantia constitucional do “rechtliches Gehör” germânico, entendida como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontram em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou de ser assim a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo».[5]

Do que deriva que, «o juiz deve dar a conhecer às partes e com elas discutir as possibilidades de solução do pleito, quer no plano da apreciação da prova, quer no do direito a aplicar, prevenindo assim as “decisões surpresa”», sendo certo que «O entendimento amplo da regra do contraditório, afirmado pelo n.º 3 do artigo 3.º, não limita obviamente a liberdade subsuntiva ou de qualificação jurídica dos factos pelo juiz – tarefa em que continua a não estar sujeito às alegações das partes relativas à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (…); trata-se apenas e tão somente, de, previamente, ao exercício de tal “liberdade subsuntiva” do julgador, dever este facultar às partes a dedução das razões que considerem pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de excepções dilatórias, com que elas não tinham razoavelmente podido contar».[6]

Sucede que, no caso vertente, estava em causa o plano das questões de direito, mais concretamente a opção pela exata caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico.

Ora se assim é, importa não olvidar que «Esta vertente do princípio tem fundamentalmente aplicação às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado, pois as que estejam na disponibilidade exclusiva das partes, tal como as que sejam oficiosamente cognoscíveis mas na realidade tenham sido levantadas por uma das partes, são naturalmente objeto de discussão antes da decisão (…)»[7]

Sendo certo que, como bem aduziram neste particular os AA./recorridos nas suas contra-alegações, «Os autores alegaram os factos e o direito que entendiam aplicável e formularam um pedido: o de lhes ser reconhecido (e não impedido) o direito a usufruírem do arejamento e da luz natural que lhes era proporcionado por uma abertura na parede de sua casa, deitando directamente para um prédio dos réus. Estes, tendo bem entendido o pedido formulado, defenderam que aos autores não assistia tal direito (de não serem impedidos de fruir aquelas utilidades; o mesmo é dizer, de pedir a demolição do telheiro por eles, réus, construído), dando nota das regras jurídicas que entendiam sustentar essa sua posição, tendo então tido oportunidade para tecer todas as considerações jurídicas que entendessem, sob os mais diversos prismas que a questão de direito pudesse revestir. Aos réus não foi, obviamente, coarctada qualquer possibilidade de defesa.»

Nesta linha de entendimento, o reconhecimento/procedência do direito de servidão que teve lugar na sentença, não é situação que não devesse ser perspetivada pelas partes, nomeadamente usando da diligência devida!

Dito de outra forma: não se vislumbra que os RR./recorrentes tenham estado coartados no exercício do contraditório [antes tendo podido apresentar a sua defesa e tecer as considerações jurídicas que bem entendessem, sob todos os prismas que a questão de direito pudesse revestir], nem que a sentença de mérito que deu procedência (parcial) à ação, possa configurar a produção de uma decisão surpresa.

Igualmente não lhes foi negado o acesso ao direito ou aos tribunais, nem lhes foi impedido o acesso a um processo equitativo…

Assim sendo e brevitatis causa, improcede claramente esta questão recursiva.

                                                           *

3.4 – Os RR./recorrentes sustentam uma incorreta valoração da prova produzida, que levou ao incorreto julgamento do facto “c.” qualificado como “não provado”, o qual deve ser considerado “provado”.

Esta é efetivamente a subsequente questão a que importa dar solução.

Vejamos relativamente a este aspeto factual o respetivo teor literal e o sentido em que se pretende a alteração.

Está consignado como “não provado”

«c. A abertura em causa não possui parapeito onde uma pessoa possa apoiar-se ou debruçar-se para descansar.»

Pretendem os RR./recorrentes que passe a figurar como “provado” um tal ponto de facto, na medida em que, tendo em conta a definição de “parapeito” constante do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa[8], «os documentos juntos aos autos sob os nos 6 da Petição Inicial e 2 da Contestação, que devem ser valorados de acordo com as regras da experiência comum, entendemos, salvo melhor opinião, que não é possível considerar que aquela abertura tem um parapeito e isso é uma evidência, ÓBVIO PARA QUALQUER PESSOA QUE VEJA AS IMAGENS.»

Esta posição surge em natural contraponto e divergência com a justificação constante da “motivação” da sentença recorrida quanto a este particular, a saber, «No que respeita ao ponto c. da matéria de facto não provada, a Autora e as testemunhas ouvidas a este respeito afirmaram o contrário, i.e., que a abertura tem um parapeito.»

Que dizer?

Que salvo o devido respeito, esta pretensão dos RR./recorrentes só se compreende como fruto de um qualquer equívoco ou deficiente compreensão.

Na verdade, são os próprios documentos a que os mesmos se reportam, isto é, as fotografias constante de fls. 17 vº e 34 (ditos docs. 6 da p.i. e 2 da contestação, respetivamente), a evidenciar que o dito “janelo”/“abertura”, por se encontrar colocada de forma justaposta à face interior da parede respetiva da casa dos RR., no que à sua face exterior diz respeito, deixou livre um ressalto da parede respetiva, com configuração plana, constituindo uma superfície apta a servir de prateleira ou parapeito (no seu significado corrente).

Foi isso mesmo que seguramente a Autora e as testemunhas tiveram presente e quiseram aludir nos seus depoimentos.

Isso independentemente de por se tratar de uma “janela”/“abertura” gradada, com as dimensões que efetivamente tem [de 1,07m (um metro e sete centímetros) de largura e 0,32m (trinta e dois centímetros) de altura – cf. factos “provados” sob “8.1.” e “8.2.”], e colocada à altura de 1,92m (um metro e noventa e dois centímetros) contados a partir do solo [cf. facto “provado” sob “8.3.”], não tem a utilidade ou sequer aptidão de poder servir/ser destinada, em concreto, às funções de prateleira ou parapeito.

Sucede que não é por isso que deixa de se poder considerar que lá existe uma prateleira ou parapeito – no que à face exterior da parede diz respeito!

Donde se sancionar plenamente os meios de prova documentais e testemunhais credibilizados pela decisão recorrida, na interpretação e valoração que deles foi feita, que o mesmo é dizer, bem andou, assim, a Exma. Juíza de 1ª instância em integrar o factualismo constante do ponto “c.”.no elenco dos factos “não provados”, opção esta que, por tais razões, se entende manter nos seus precisos termos.

Dito de outro modo: por não se constatar qualquer erro de julgamento neste particular, conclui-se, sem necessidade de maiores considerações, pela improcedência desta pretensão dos RR./recorrentes.

                                                                       *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre agora entrar na apreciação da última questão igualmente supra enunciada, esta já diretamente reportada ao mérito da sentença, na vertente da fundamentação de direito da mesma, a saber, o do incorreto julgamento de direito porquanto nada existiria na lei que crie a restrição non aedificandi que na sentença foi declarada em consequência do reconhecimento da existência de uma servidão atípica) (de luz e ar):

Cremos ser útil antes de afrontar diretamente esta questão, assentar em alguns dos pressupostos da mesma, pois que, depois de tal operado, a resposta à dita questão se constituirá como linear e inabalável.

Senão vejamos.

O primeiro desses pressupostos é o de que o “janelo”/“abertura” gradada em causa não constitui uma “janela” para efeitos jurídicos desta temática, mais propriamente face ao disposto nos arts. 1360º a 1364º do C.Civil.

Na verdade, merece-nos inteiro acolhimento o que foi aduzido na sentença recorrida a esse respeito, mais concretamente o seguinte:

«(…)

 O Código Civil não define o que se deva entender por janela, fresta, seteira ou óculo de luz e ar, pelo que tem cabido à doutrina e à jurisprudência o papel de definir os contornos do conceito de janela, por contraposição aos outros vocábulos.

Note-se, contudo, que para a maioria da jurisprudência, seguindo os ensinamentos M. Henrique Mesquita – in Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 128, em anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03.04.91, p. 149 -, são juridicamente possíveis, relativamente às aberturas qualificáveis como janelas ou frestas, três categorias distintas:

i. Janelas;

ii. Frestas que não excedam as dimensões legais e situadas à altura fixada na lei (artigo 1363.º, n.º 2, do Código Civil) - frestas regulares;

iii. Frestas com dimensões superiores às legais ou situadas a uma altura inferior à fixada na lei (artigo 1363.º, n.º 2, do Código Civil) - frestas irregulares.

No domínio do Código de Seabra, o entendimento prevalecente era o de que devia considerar-se janela a abertura onde coubesse uma cabeça humana – cf., neste sentido, Santos Justo, Direitos Reais, Coimbra Editora, 2007, p. 244.

Atualmente, a jurisprudência afastou parcialmente este critério, adotando o entendimento de que as janelas se distinguem das frestas não só pelas suas dimensões, mas também pelo fim a que umas e outras se destinam – cf., neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11.10.2017, processo n.º 107/15.0T8MBR.C1.

Deste modo, a maioria da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de há cerca de sessenta anos para cá, seguindo a tese de M. Henrique Mesquita, tem entendido que «as frestas são aberturas estreitas, cuja única função é permitir a entrada de ar e luz, sendo as janelas aberturas mais amplas, através das quais pode projetar-se a parte superior do corpo humano, e que dispõem de um parapeito onde as pessoas podem apoiar-se ou debruçar-se e desfrutar comodamente as vistas que proporcionam, olhando quer em frente, quer para os lados, quer para cima ou para baixo» - cf., entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17.04.1964, processo n.º 059967, de 03.04.2003, processo n.º 03B3498, de 22.04.2004, processo n.º 04B652, de 26.02.2004, processo n.º 03B3498, de 20.05.2004, processo n.º 04B1297, de 01.04.2008, processo n.º 07A3114, de 15.05.2008, processo n.º 08B1368, de 26.06.2008, processo n.º 08B1716, de 14.10.2021, 11570/19.0T8PRT.P1.S1.

Daqui resulta que o conceito janela, para efeitos do citado artigo 1360.º, n.º 1 do Código Civil, se terá de reconduzir a aberturas mais amplas do que as frestas, por forma a permitir não só a entrada de luz e ar, mas também a devassa sobre o prédio vizinho, adequando-se, deste modo, o conceito de janela à dupla finalidade da restrição estabelecida naquele normativo legal: evitar que o prédio vizinho seja facilmente objeto da indiscrição de estranhos e impedir que ele seja facilmente devassado – neste sentido, entre outros, cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20.11.2008, processo n.º 8157/08-2.»

 Aliás, sustentando-se um entendimento com algum paralelismo, já em data anterior havia sido doutamente sustentado que janela era a abertura feita na parede, acima do nível do solo, a fim de dar luz e ar às divisões interiores do edifício, e, ao mesmo tempo, permitir que os respetivos moradores espreitem e até se debrucem para o exterior e, em caso de absoluta necessidade, por aquela abertura saiam ou entrem, embora com o auxílio de escada ou corda; já as frestas, seteiras e óculos, deveriam ser tão pequenos que por eles não passasse, uma cabeça a não ser que tenham grades de ferro que lhes diminuíssem os espaço; tais aberturas seriam só para luz e não para vista exterior, devendo evitar-se que, por meio ardiloso, se aproveitem delas como se fossem janelas.[9]

Mas atentemos, antes de mais, no quadro legal aplicável a estas situações constante do Código Civil, a saber:

«Artigo 1363º

        (Frestas, seteiras ou óculos para luz e ar)

1. Não se consideram abrangidos pelas restrições da lei as frestas, seteiras ou óculos para a luz e ar, podendo o vizinho levantar a todo o tempo a sua casa ou contramuro, ainda que vede tais aberturas.

2. As frestas, seteiras ou óculos para a luz e ar devem, todavia, situar-se pelo menos a um metro e oitenta centímetros de altura, a contar do solo ou do sobrado, e não devem ter, numa das suas dimensões, mais de quinze centímetros; a altura de um metro e oitenta centímetros; a altura de um metro e oitenta centímetros respeita a ambos os lados da parede ou muro onde essas aberturas se encontram.»

«Artigo 1364º

                                                                   (Janelas gradadas)

É aplicável o disposto no nº1 do artigo antecedente às aberturas, quaisquer que sejam as suas dimensões, igualmente situadas a mais de um metro e oitenta sentimentos do solo ou do sobrado, com grades fixas de ferro ou outro metal, de secção não inferior a um centímetro quadrado e cuja malha não seja superior a cinco centímetros.»

Na verdade, a regra geral nesta matéria, contida no artigo 1360º do mesmo C.Civil[10], é a de que o proprietário não pode abrir portas ou janelas viradas para o prédio vizinho, sem que deixe entre estas e o limite do prédio vizinho uma distância de um metro e meio (proibição extensiva a varandas e terraços com beirados a altura inferior a um metro e meio).

Sendo que os artigos 1363º e 1364º do C.Civil vêm consagrar duas exceções a tal proibição: se não respeitar a distância de um metro e meio relativamente ao prédio vizinho, o proprietário poderá ainda abrir óculos ou seteiras ou janelas gradadas, desde que possuam as caraterísticas aí definidas.

Assente isto, parece-nos então incontornável que a “abertura” dos presentes autos com as dimensões que efetivamente tem [de 1,07m (um metro e sete centímetros) de largura e 0,32m (trinta e dois centímetros) de altura – cf. factos “provados” sob “8.1.”e “8.2.”], e dotada de duas barras de ferro, com um intervalo de 10cm entre si, em todo o comprimento da referida abertura [cf. facto “provado” sob “11.”] pode e deve ser classificada como uma fresta, ou melhor, como uma janela gradada que, não obedecendo às caraterísticas impostas pelos arts. 1363º e 1364º do C.Civil, configura então uma abertura irregular, relativamente à qual o proprietário vizinho tinha o direito de exigir que fosse modificada e posta em conformidade com a lei.

Acontece que a “abertura” ocorreu e se prolongou como tal desde o ano de 1992 [tendo sido fruto de pedido da filha dos Autores à ora 1ª Ré e ao então marido desta – cf. facto “provado” sob “7.”], pelo que legitimamente se questionava nos autos se por via de tal, isto é, por força da inércia dos RR. tinha sido constituída uma “servidão de vistas” a favor do prédio dos AA..

Com efeito, dispõe pela seguinte forma o atinente normativo do mesmo Código Civil:

                                               «Artigo 1362º

            (Servidão de Vistas)

1. A existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, em contravenção do disposto na lei, pode importar, nos termos gerais, a constituição da servidão de vistas por usucapião.

2. Constituída a servidão de vistas, por usucapião ou outro título, ao proprietário vizinho só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras mencionadas no nº1 um espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão das obras.»

Relativamente a esta questão, e não obstante as diferentes respostas que ela tem encontrado na doutrina e jurisprudência – também elas elencadas na sentença recorrida e em termos que aqui se dão por reproduzidos – a jurisprudência dominante designadamente ao nível do nosso mais alto Tribunal[11], na linha do entendimento defendido pelo Prof. Henrique Mesquita, vai atualmente no sentido de que às ditas aberturas irregulares não se lhes pode aplicar o regime que o artigo 1362º do C.Civil prevê para as “janelas” e demais obras nele mencionadas (relativamente às quais o decurso do tempo necessário à usucapião poderá importar a constituição de uma servidão de vistas).

Sendo certo que o referido Insigne Mestre forneceu a seguinte justificação para o entendimento por si defendido:

«A cada passo são abertas, em paredes construídas a menos de metro meio da linha divisória, fretas que, sem assumirem a configuração de uma janela, medem mais de 15 cm ou se situam a uma altura inferior à fixada na lei.

E a experiência mostra, também, que os proprietários confinantes têm tendência a não reagir contra estas pequenas violações da lei, quer porque não lhes causam dano apreciável, quer porque uma atitude de intransigência criaria necessariamente um clima de hostilidade nas relações de vizinhança, que o comum das pessoas procura evitar.

Se se generalizasse, porém o entendimento de que a existência de frestas em condições diferentes das fixadas na lei pode conduzir à aquisição, por via possessória, de uma servidão de vistas, com o efeito mencionado, relativamente às janelas e outras obras, no nº2 do artigo 1362º (imposição aos donos dos prédios servientes, de uma zona ou espaço non aedificandi), os proprietários confinantes sentiriam necessidade de reagir imediatamente contra toda a violação do regime legal, por mais insignificante que ela fosse»[12].

Temos então que quanto a estas frestas ou janelas irregulares, ao proprietário vizinho assiste o direito de exigir que sejam modificadas e postas em conformidade com a lei.

Porém, se o vizinho afetado pelas frestas irregulares não reagir contra o abuso cometido, a situação possessória que delas resulta dará origem, logo que decorra o prazo da usucapião, a uma servidão predial.[13]

A esta luz, constituída a servidão, o proprietário vizinho deixa de ter o direito, que antes lhe cabia, de exigir, através de uma ação negatória, que as frestas sejam modificadas e harmonizadas com a lei, sendo que o proprietário que abriu as frestas adquire, por seu turno, o direito, de que não dispunha até então, de manter tais aberturas em condições irregulares.

Contudo, salvo o devido respeito, da constituição desta servidão nenhum outro efeito resulta ou pode resultar.

Isto porque a restrição em causa é baseada na possibilidade de devassamento, o qual na circunstância não existia.

Na verdade, como a este propósito igualmente sublinhou o já citado Prof. Henrique Mesquita, «Concretamente, o proprietário vizinho não perde o direito de construir mesmo junto à linha divisória, ainda que tape as frestas, porque a restrição que cria uma zona non aedificandi, não permitindo edificar no espaço de um metro e meio, medido a partir dos limites do prédio, só é estabelecido pela lei em relação à servidão de vistas regulada no artigo 1362º, em cujo campo de aplicação não se incluem as frestas.»[14].

Donde, na situação ajuizada, a manutenção da janela gradada irregular, com tais caraterísticas, pelo prazo da usucapião nunca poderia levar à constituição de uma servidão de vistas – só a manutenção de uma determinada situação que permita o gozo das utilidades correspondentes ao conteúdo de uma servidão de vistas, poderá levar à constituição da mesma por usucapião.

E aqui nasce a nossa divergência com a sentença recorrida.

Posto que, decorrido o tempo necessário à usucapião, o proprietário vizinho perderá, quando muito, a faculdade de se insurgir contra tal janela gradada, mas não ficará sujeito à obrigatoriedade de respeitar a distância de um metro e meio relativamente a qualquer construção que levante em frente à mesma.

Com efeito, a imposição de manter uma distância de um metro e meio entre o edifício ou construção que venha a ser levantado em frente em frente a “janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes”, só se encontra prevista pelo nº2 do artigo 1362º do C.Civil, como consequência da constituição de uma servidão de vistas, mas não por efeito da constituição de uma servidão atípica [como ocorreu na sentença recorrida].

Dito de outra forma: a abertura de frestas sem as características indicadas na lei – dimensões um pouco superiores e dotadas com grades fixas de ferro com distanciamento entre si superior ao prescrito na lei – pode originar a aquisição, por usucapião, de uma servidão predial, consistente em ter o seu detentor o direito a mantê-las abertas em condições irregulares, sem que o vizinho o possa compelir a torná-las com as dimensões legais, mas não adquire o direito de servidão de vistas que impeça o vizinho de as tapar com a construção que leve a cabo do seu prédio, pois o art. 1362º citado apenas impede a referida construção em situação de servidão de vistas e não da servidão predial atípica acima referida [que foi a acolhida na sentença recorrida].[15]

Isto é, e como paradigmaticamente já foi sustentado em douto aresto, «o proprietário que abre frestas em desconformidade com a lei fica, após o decurso do prazo da usucapião, exatamente na mesma situação jurídica que resulta da abertura de frestas regulares: o vizinho não pode reagir contra a violação cometida, exigindo que as frestas sejam modificadas ou tapadas, mas mantém o direito de, a todo o tempo, construir no seu prédio, ainda que vede ou inutilize tais aberturas.»[16]

Procede assim o recurso, importando revogar o dispositivo da sentença recorrida quanto aos pontos i), ii), iii) e iv), e substitui-lo por outro que nessa parte, julgando improcedente a ação, absolve os RR. ora recorrentes de reconhecer a constituição de servidão de vistas ou atípica a favor do prédio dos AA., com o sentido de existir uma restrição non aedificandi por parte daqueles, e com os efeitos de tal decorrentes para os mesmos.

                                                           ¨¨

De referir que esta conclusão não fica obstaculizada pela eventual consideração de constituir um abuso de direito a atuação dos RR..

Esta questão vai ser apreciada oficiosamente, por assim dever ser, isto é, não obstante se ter em momento anterior decidido não se conhecer da ampliação do objeto do recurso enunciada pelos AA./recorridos nas suas contra-alegações em que a mesma estava suscitada.

Contudo vamos fazê-lo com a brevidade que, s.m.j., a mesma merece na circunstância.

Com efeito, manifestamente em nosso entender, o tapamento da janela gradada irregular em causa não constituiu um abuso de direito por parte dos RR./recorridos.

Não se olvida que a pretensão dos RR. de manutenção do telheiro por si construído, objetivamente impede os AA. da fruição das utilidades de que vinham beneficiando com e através da janela gradada irregular em causa, sendo certo que havia sido a 1ª Ré e falecido marido que em momento anterior haviam concedido o direito aos RR. de procederem a uma tal abertura.

Sucede que os RR./recorrentes, tendo em conta o entendimento supra perfilhado, estão a exercitar o seu direito de construir até à estrema.

Com efeito, dispõe o art. 334º do C. Civil, que «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».

Sucede que o excesso cometido tem de ser manifesto e para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes têm de ponderar-se as conceções ético-jurídicas dominantes na comunidade envolvente. Quanto ao fim social e económico do direito, há que buscar os juízos de valor positivamente consagrados na lei.

Na verdade, «Se para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade, a consideração do fim económico ou social do direito apela de preferência para juízos de valor positivamente consagrados na própria lei».“[17]

De entre as diversas tipologias de atos abusivos a que em causa se pode equacionar insere-se, como já foi doutamente classificado «na última categoria de comportamentos abusivos, constituída pelo desequilíbrio no exercício de posições jurídicas. Três sub-hipóteses podem ser consideradas: - o exercício danoso inútil (…) – o dolo agit qui petit quod statim redditurus est: é contrário à boa fé exigir o que de seguida se deva restituir (…) – a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem: tal desproporcionalidade, ultrapassados certos limites é abusiva».[18]

Ora se assim é, face ao quadro factual dos autos, importa concluir que não foi alegado nem resulta (dos factos positivamente “provados”) que exista desproporção (significativa) entre a vantagem que os RR. retiram da construção/telheiro que agora efetuaram e a desvantagem para os autores de ficarem sem luz e arejamento direto no seu compartimento.

Sem embargo do vindo de dizer, temos ainda que sustentaram oportunamente os AA./recorridos para este efeito que «É que os réus, ao construírem agora o telheiro (e ao recusarem-se a demoli-lo), sabendo que ele impede a fruição, pelos autores, das utilidades a que ele próprios, réus, lhes atribuíram o direito, estão a entrar em contradição com essa sua anterior actuação. Com aquele expressa autorização os autores criaram, de forma legítima, a expectativa de que o direito que lhes estava então a ser atribuído se prolongaria no tempo, podendo eles sempre beneficiar do arejamento e da luz natural proporcionados à sua cozinha pela abertura na parede autorizada pelos réus. Mas afinal, contudo, os réus vêm dar o “dito por não dito” e retiram aos autores o que anteriormente lhe haviam dado.»

Será assim?

Temos presente que o venire aparece ligado fundamentalmente à proteção da confiança, no sentido de que um comportamento não pode ser contraditado quando tenha suscitado a confiança dos sujeitos envolvidos.

Consabidamente são quatro os pressupostos da proteção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”:

1. Uma situação de confiança, traduzida na boa fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);

2. Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;

3. Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do, factum proprium, de tal modo que a destruição dessa atividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;

4. Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela proteção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.[19]

Ora, ainda que se tivesse o comportamento dos RR. por contraditório, sempre faltaria (desde logo, por não alegado) o investimento na confiança, isto é, que movidos pela confiança na inação dos RR., eles AA. tenham orientado a sua vida em conformidade, tenham tomado medidas ou adotado programas de ação com base nessa confiança.

Acresce que, como bem aduziram os RR./recorrentes na sua “resposta”, «Não será porque existiu tolerância na abertura da janela por parte dos Réus, que tal signifique que estes tivessem abandonado o seu ius aedificandi, e muito menos que estivessem de má fé quando construíram o telheiro e churrasqueira que lhes permite usufruir do seu pátio»…

Sendo certo que em reforço dessa linha de argumentação, se pode ainda aduzir o seguinte:

«Para que integre um abuso de direito, a desproporção entre as vantagens auferidas pelo titular do direito e os prejuízos causados a terceiro terá de ultrapassar os limites contidos na intenção normativa subjacente ao direito invocado.»[20]

Termos em que, e sem necessidade de maiores considerações, não vislumbramos que o instituto do abuso do direito possa obstar à procedência do recurso para que supra já se apontou.

                                                           *

(…).

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, julgar procedente o recurso, revogando o dispositivo da sentença recorrida quanto aos pontos i), ii), iii) e iv), e substituindo-o por outro que nessa parte, julgando improcedente a ação, absolve os RR. ora recorrentes de reconhecer a constituição de servidão de vistas ou atípica a favor do prédio dos AA., com o sentido de existir uma restrição non aedificandi por parte daqueles, e com os efeitos de tal decorrentes para os mesmos.  

            Custas em ambas as instâncias pelos AA./recorridos.

                                                                                   Coimbra, 26 de Abril de 2022  

                                                     Luís Filipe Cravo

                                                   Fernando Monteiro

                                                   Carlos Moreira (vencido)

Voto de vencido.

«Salvo sempre o devido respeito, a posição que fez vencimento nem se mostra curial do ponto de vista da exegese da lei estrita, nem, sequer, respeita princípios estruturantes do direito, quais válvulas de segurança do sistema, como seja o do abuso de direito, e assim, consecutindo uma solução meridianamente injusta.

Destarte, confirmaria a sentença por três motivos.

Primeiro.

Foi concedida, por usucapião, uma servidão atípica de ar e luz, que no projeto se aceita.

Ora se para simples servidão de vistas, a lei -artº 1362º nº2 - exige que a construção deixe 1,5 metros livres, para a servidão de ar e luz - porque é muito mais relevante, já que necessária, dadas as sua finalidades: ar e luz, do que a servidão de meras e hedonistas, vistas - , tal restrição, por maioria de razão - argumento a fortiori - tem de existir.

Logo, o artº 1362º nº2 deve aplicar-se, analogicamente e por igualdade ou até, como disse, por maioria de razão.

E, consequentemente, o telheiro não podia ser construído.

Segundo.

Há abuso de direito na construção do telheiro.

Efetivamente, provou-se:

- que a abertura foi efetivada há quase trinta anos, sendo que neste largo lapso de tempo os réus permitiram-na, ou, pelo menos, a ela não se opuseram - ponto 15 dos factos provados.

- em consequência da construção do telheiro a cozinha passou a ser um lugar escuro, os gases do fogão deixaram de escoar, passou a haver acumulação de odores e não há renovação do ar - pontos 19 a 21.

- não se provou que o telheiro cumpra alguma função essencial e imprescindível ou, até, necessária, para os réus.

Assim, parece-me claro que o exercício do direito dos réus, manifestado na construção do telheiro, excede manifestamente os limites da boa fé e/ou do seu fim económico e social - artº 334º do CC.

Destarte, o telheiro não podia ser construído.

Terceiro.

Mesmo que se entenda que aos réus assistia o direito de construir o telheiro, urge atentar que aos autores também foi atribuído, pela concessão da servidão atípica de ar a luz, o direito de manterem a abertura para as aludidas finalidades de ar e luz.

Estamos, pois, perante uma colisão de direitos, devendo ceder o direito com menor relevância e dignidade.

Obviamente que, atento o enorme lapso de tempo de fruição das utilidades da "fresta", as provadas consequências nefastas para uma divisão, ademais de vivência essencial da casa, como é a cozinha, oriundas da construção do telheiro, e a não prova que este tenha fulcrais utilidades para os réus, o direito destes à sua manutenção teria de ceder perante o maior e melhor direito dos autores à sua segurança, saúde e qualidade de vida que, com a construção do telheiro e as nefastas consequências que acarreta para a cozinha, no mínimo, colocam em crise.

Por conseguinte, mesmo que se admitisse o direito à construção do telheiro, ele deveria ser mandado demolir.»

Carlos António Moreira




[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carlos Moreira


[2] De referir que por despacho do Relator, no momento da admissão do recurso, já foi decidido que por falta de requisitos formais, mais concretamente pela falta de “conclusões”, «(…) não se conhece da ampliação do objeto do recurso enunciada pelos AA./recorridos nas suas contra-alegações».
[3] Cf., mais desenvolvidamente sobre a questão, LEBRE DE FREITAS / ISABEL ALEXANDRE, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 3ª ed., Livª Almedina, 2017, a págs. 714-715 e a págs.735-737.
[4] Neste sentido vide LOPES DO REGO, em “O princípio dispositivo e os poderes de convolação do juiz no momento da sentença”, in “Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas”, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, I, a págs. 792-803; o mesmo autor desenvolve a sua orientação e critério neste particular no acórdão do STJ de 2.03.2011, proferido no proc. nº 823/06.7TBLLE.E1.S1, quando expressa o seguinte entendimento constante do sumário de tal aresto: «3 - O que identifica decisivamente a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico.».
[5] Assim por LEBRE DE FREITAS, in “Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais”, Coimbra Editora, 1999,a págs. 96.
[6] Cf. LOPES DO REGO, in “Comentários ao Código de Processo Civil”, Vol. I, 2ª edição, Livª Almedina, 2004, a págs. 31 e 32, respetivamente.
[7] Citámos agora LEBRE DE FREITAS / ISABEL ALEXANDRE, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1º, 3ª ed., Coimbra Editora, 2014, a págs. 9. 

[8] Em cujo Tomo V, Círculo de Leitores, página 2760, consta que pode ser “(…) 2 (1875) CONSTR parede ou outro tipo de protecção que se ergue na altura do peito ou pouco mais abaixo, à borda das janelas, varandas, terraços, pontes, etc. 3 CONSTR peça de pedra, granito, madeira etc. que integra a parte inferior de uma janela e serve para apoiar quem nela se debruça (…)”.
[9] Assim por CUNHA GONÇALVES, in “Tratado de Direito Civil”, Vol. XII, Coimbra Editora – 1938, a págs.73-84.
[10] Cujo teor literal, para o que releva, é o seguinte:
                  «Artigo 1360º
                                                    (Abertura de janelas, portas, varandas e obras semelhantes)
1. O titular do direito real não pode abrir portas ou janelas viradas para o prédio vizinho sem deixar entre estas e o limite daquele uma distancia de, pelo menos um metro e meio.
2. Igual restrição é aplicável às varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, quando sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela.
(…).»

 
[11] Cf., inter alia, os acórdãos do STJ de 26.02.2004 (proferido no proc. nº 03B34989) e de 01.04.2008 (proferido no proc. nº 07A3114), ambos acessíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[12] Cf. Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 128 (1996), anotação ao Acórdão do STJ de 03-03-2001, a págs. 151.
[13] O nosso Código Civil consagra o princípio da atipicidade do conteúdo das servidões no artigo 1543º.
[14] Cf. obra e local citados na precedente nota [13], ora a págs. 153.
[15] Cf., neste mesmo sentido, os acórdãos do TRC de 03.03.2015 (proferido no proc. nº 335/13.2TBAGN.C1) e de 11.10.2017, proferido no proc. nº 107/15.0T8MBR.C1, ambos igualmente acessíveis em www.dgsi.pt/jtrc.
[16] Trata-se do acórdão do STJ de 19-09-2002, proferido no proc. nº 02B2406, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[17] Vide ANTUNES VARELA, in “Das Obrigações em geral”, 6ª ed., vol. I, a págs. 516.
[18] Trata-se de MENEZES CORDEIRO, in “Tratado de Direito Civil Português”, Parte Geral I, Tomo I, 2ª Edição, 2000, a págs. 265.
[19] Neste sentido ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, em “Contrato Promessa – art. 410º, nº3, do CC – Abuso de Direito – Inalegabilidade Formal”, in ROA, nº 58, Vol. II, Julho 1998, a págs. 964.
[20] Assim foi doutamente sublinhado no acórdão do TRC de 11.10.2017, já supra citado na precedente nota [16].