COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
UNIÃO DE FACTO
JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES
Sumário

É da competência do juízo local cível e não do juízo de família e menores a competência para o conhecimento de uma providência cautelar de restituição provisória da posse de uma cadela, com o fim de permitir repartir entre Requerente e Requerida a guarda do animal, que é compropriedade de ambos, por ter sido adquirida pelos dois quando viveram em união de facto, já finda.

Texto Integral


Recorrente …………………..AA


*

I. Relatório

a) O presente recurso é dirigido ao despacho que declarou o tribunal recorrido incompetente em razão da matéria para conhecer do presente procedimento cautelar para restituição de posse de uma cadela.

O procedimento que está a ser seguido é o da restituição provisória de posse.

O artigo 378.º do Código de Processo Civil determina «Se o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordena a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador».

Por esta razão, não se procedeu à citação da Requerida (cfr. artigo 641.º, n.º 7 do CPC).

b) O Recorrente alega que viveu em união de facto com a Requerida; que adquiriram em conjunto uma cadela; que se separaram; que acordaram na repartição semanal da guarda e cuidados do animal, mas que recentemente a Requerida deixou de cumprir o acordo e mantém o animal consigo, impedindo o Requerente de ter a cadela consigo, como vinha sucedendo, e daí o pedido dirigido ao tribunal com vista a restaurar a situação resultante do indicado acordo ou outra que satisfaça os interesses em presença.

O vetor argumentativo do tribunal centrou-se na ideia de que «…não obstante a competência para este interesse, no caso de união de facto, não estar especialmente regulado, somos de entender que é de enquadramento parafamiliar, em tudo semelhante ao casamento/divórcio que admite a figura, não se vislumbrando diferença no caso em apreço, só por ser união de facto dissolvida – cfr. artigo 1793º-A do Código Civil: “Os animais de companhia são confiados a um ou a ambos os cônjuges, considerando, nomeadamente, os interesses de cada um dos cônjuges e dos filhos do casal e também o bem-estar do animal”», desde que «…a união entre donos ou detentores do animal de companhia se revista do mínimo de estabilidade…»

c) É desta decisão, como se disse, que vem interposto recurso por parte do Requerente, cujas conclusões são as seguintes:

«1.ª O recurso interposto versa sobre despacho que julgou materialmente incompetente o juízo local cível a favor do juízo de família e menores;

2.º Em causa está um procedimento cautelar especificado de restituição provisória de posse de um animal de estimação (canídeo), compropriedade do requerente e da requerida e que após acordo sobre o modo da sua guarda e confiança esta veio inviabilizar, nos termos melhor descritos no requerimento inicial, animal esse que fora adquirido por ambos no decurso da vivência em comum durante cerca de 6 meses;

3.º À cessação dessa vivência não podem ser aplicadas por analogia as normas atinentes à dissolução do casamento, nem as regras próprias das responsabilidades parentais para com as crianças, próprias do direito da família e das crianças;

4.º A própria lei (art.º 201.º-D do CC aditado pelo referido regime jurídico) não deixa de aplicar aos animais as disposições relativas às coisas, desde que não incompatíveis com a sua natureza, como não são os direitos de compropriedade e posse em que o requerente e requerida acordaram em relação ao canídeo, em ordem, aliás, à salvaguarda do sem bem-estar e é assim que a providência de restituição provisória de posse requerida, a que se seguirá a subsequente acção possessória, caso se não atenda à inversão do contencioso, se afigura a adequada para regular o conflito, em termos de urgência e face ao perigo de quebra das relações de afecto com (e entre) o animal;

5.º Esses meios processuais manifestamente não encontram guarida no elenco de competências do juízo de família e menores definidas no art.º 122.º da LOSJ (Lei n.º 62/2013 de 26.08), v. g., nas alíneas a) e b) do seu n.º 1 para onde, a nosso ver incorrectamente, remeteu a decisão recorrida, antes a competência para o procedimento respectivo (e posterior acção possessória) compete residualmente ao juiz local cível, nos termos do art.º 130.º, n.º 1, da mesma lei orgânica, no caso ao Juízo Local Cível do Tribunal Judicial de Castelo Branco.

Face ao exposto, deve ser proferido douto acórdão, revogatório do despacho recorrido e este ser substituído por decisão que, considerando competente o Juízo Local Cível de Castelo Branco – Juiz 3 ordene o prosseguimento dos regulares termos do procedimento cautelar em causa, com o que será feita JUSTIÇA.»

II. Objeto do recurso.

Pedindo-se a restituição da posse de uma cadela, com o fim permitir repartir entre Requerente e Requerida a guarda do animal, que é compropriedade de ambos, por ter sido adquirida pelos dois quando viveram em união de facto, já finda, o recurso coloca a questão de saber se é o tribunal de família e menores o materialmente competente para conhecer do caso ou, ao invés, o tribunal cível local.

III. Fundamentação

a) Matéria alegada na petição

Embora já resulte do antes exposto, indica-se a seguir, sucintamente, a matéria de facto alegada necessária para compreender a situação.

Requerente e Requerida viveram em união de fato desde junho de 2019 até finais de dezembro desse ano, tendo neste último mês adquirido uma cadela, chamada «BB», a qual passou também a coabitar na mesma casa com ambos fazendo parte da sua vida diária.

Finda a vivência em união de facto, acordaram que a cadela passava a ser cuidado pelos dois, sendo a sua posse repartida entre eles, em semanas alternadas.

No passado dia 19 de dezembro de 2021, a Requerida deixou de cumprir o acordado e passou a recusar a sua entrega ao Requerente e desde essa data tem estado privado da companhia do animal e inclusive de a ver, existindo o risco de serem quebrados os laços afetivos existentes entre ambos, o que está a causar sofrimento emocional ao Requerente e ao animal.

b) Apreciação da questão objeto do recurso

Adiantando já a decisão, afigura-se que o tribunal competente é o juízo cível local, pelas razões que a seguir se indicam, mas que se resumem dizendo que o legislador tem dado proteção à união de facto em normas avulsas e dedicou um diploma a esta matéria, a Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, exigindo, no entanto, para os efeitos previstos nesta lei, uma duração da união de facto pelo período mínimo de 2 anos.

No intuito de proteger a união de facto, o legislador não equiparou, no entanto, a união de facto ao casamento, nem poderia fazê-lo, porquanto não pode tratar quem não se quis casar como se fosse casado.

Porém, em alguns aspetos, o legislador adotou fundamentalmente as mesmas medidas que prevê para o casamento, como, em sede de direito civil, no caso da transmissão do direito ao arrendamento ou da atribuição da casa de morada de família.

No que respeita aos aspetos processuais civis relativos ao exercício dos direitos substantivos constantes dessas normas dispersas por vários diplomas e na mencionada Lei 7/2001, previu que os tribunais de família julgassem os processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto - al. b), do n.º 1, do artigo 122.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

É que, se o legislador tivesse tido outro entendimento, tê-lo-ia manifestado, prevendo por exemplo na referida norma uma redação com este alcance: «1. Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar: (…) g) Outras ações relativas ao estado civil das pessoas, família e união de facto», suprimindo, claro está, o que atualmente consta da respetiva al. b), do seu n.º 1.

Mas não previu.

Por conseguinte, atendendo à postura manifestada pelo legislador, no que respeita à proteção da união de facto, afigura-se que o juiz não deve alargar a competência dos tribunais de família para além do que consta na citada norma da Lei da Organização do Sistema Judiciário, ou seja, em matéria cível o tribunal de família só deve intervir, em regra, quando o pedido pede para a sua apreciação a abertura de um processo de jurisdição voluntária.

A questão, porém, não é consensual.

Indicam-se a seguir duas decisões dos Tribunas da Relação que mostram a divergência.

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30 de junho de 2020, no processo n.º 23445/19.8T8LSB.L1-7 (José Capacete):

«(…) 3. O conceito de família não é estanque, antes se mostrando recetivo a fenómenos que pela sua evidência social mereçam o seu abrigo.

4. A união de facto atingiu uma proeminência tal que a sua aceitação social como entidade familiar não pode já ser posta em causa, sobretudo a partir do momento em que, nos termos do n.º 1 do art. 36.º da CRP, passou a beneficiar de proteção constitucional, devendo, por isso, ser considerada uma relação familiar, apesar de não constar do elenco das fontes jurídico-familiares do art. 1576.º, do Código Civil.

5. Por conseguinte, os Juízos de Família e Menores são os materialmente competentes para a preparação e julgamento de uma ação em que é pedido o reconhecimento da união de facto». 

Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24 de setembro de 2020, no processo n.º 1016/20.6T8VCT.G1 (Rosália Cunha):

« (…) VI - O arrolamento de bens instaurado como preliminar de ação a instaurar contra a requerida para o reconhecimento da compropriedade dos bens após a cessação da união de facto que o requerente considera que integram o património comum pertencente a si e à requerida, e que estão em perigo de dissipação, ocultação ou extravio, não é dependente da existência da ação judicial de declaração da dissolução da união de facto instaurada no Juízo de Família e Menores nem a procedência dessa ação é condição para uma posterior ação de liquidação do património comum. Ao invés, tal arrolamento depende de ação que tem de ser instaurada ao abrigo do direito comum das relações obrigacionais e reais com vista ao reconhecimento da compropriedade dos bens.

VII - Sendo o procedimento cautelar de arrolamento dependente da ação de reconhecimento da compropriedade dos bens, a qual é uma ação declarativa de processo comum, e tendo valor superior a € 50 000, o mesmo enquadra-se na competência do Juízo Central Cível, nos termos do art. 117º, nº 1, al. c), da LOSJ» (ambos acessíveis em www.dgsi.pt).

Vejamos então.

 (I) A questão colocada nos autos vem enquadrada juridicamente como de restituição de posse sobre um animal, no caso uma cadela.

A união de facto entre Requerente e Requerida, presentemente dissolvida, é invocada como a realidade jurídica mais abrangente no âmbito da qual surgiu a posse e o diferendo entre ambos como compossuidores e comproprietários do animal.

Tendo perdido o contato com a cadela, porque, no dizer do Requerente, a Requerida o impede, este instaurou o presente procedimento cautelar de restituição provisória de posse.

A esta providência corresponda a ação de restituição da posse prevista no artigo 1278.º do Código Civil, a qual exige a existência de esbulho, isto é, privação da posse, privação que ocorreu no caso, tendo em conta o que é alegado.

A questão que desde já se coloca consiste em saber se, face ao pedido de restituição provisória da posse, a união de facto alegada tem alguma relevância para efeitos de designação do tribunal materialmente competente, porquanto é face ao seu pedido que a questão da competência material do tribunal tem de ser decidida.

Ora, neste aspeto afigura-se claro que os tribunais de família não têm competência material para julgar ações possessórias e respetivos procedimentos cautelares.

Faz-se esta afirmação porque tal competência em matéria de ações possessórias não está consagrada no artigo 122.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário), que mais abaixo será transcrito.

Poderá argumentar-se, porém, que face ao disposto no artigo 376.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, o tribunal não está adstrito a seguir a providência concretamente instaurada e, sendo assim, poderá neste caso vir a convolar a providência requerida para um procedimento cautelar comum em relação ao qual já não se pode argumentar com a clara incompetência material do tribunal de família e menores.

Cumpre, por isso, passar a analisar o caso tendo em consideração esta última perspetiva.

 (II) Como já se referiu, quando há bens em compropriedade, constituída no decurso da união de facto, que entretanto foi dissolvida, pode ocorrer a necessidade de intervenção do tribunal devido à falta de acordo dos comproprietários relativamente à utilização da coisa (cfr. artigo 1407.º do Código Civil sobre a administração da coisa).

Qual a relevância da união de facto, durante 6 meses, para a atribuição da competência ao tribunal de família e menores para decidir o caso dos autos, cujo pedido consiste na restituição provisória de posse da cadela?

Vejamos as atribuições do tribunal de família e menores.

O artigo 122.º de Lei da Organização do Sistema Judiciário fixa a competência material dos juízos de família e menores, nestes termos:

«1. Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar:

a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;

b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum;

c) Ações de separação de pessoas e bens e de divórcio;

d) Ações de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil;

e) Ações intentadas com base no artigo 1647.º e no n.º 2 do artigo 1648.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966;

f) Ações e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges;

g) Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.

2 - Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.»

Face a este artigo, a situação dos autos poderá ser enquadrada ou na al. b) ou na al. g) do n.º 1, não se afigurando que se possa inserir em qualquer outra das situações aí previstas.

(III) Quanto à previsão da alínea b).

Recapitulando, nessa alínea diz-se que o tribunal de família e menores é competente para julgar os «Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum.»

Analisando o que vem regulado nos processos de jurisdição voluntária dos artigos 986.º a 1047.º do Código de Processo Civil verifica-se que não estão previstos expressamente «Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum.»

O único processo de jurisdição voluntária previsto neste momento para aplicação à união de facto respeita à atribuição da casa de morada de família, quando comum ou própria de um dos cônjuges, nos termos previstos no artigo 1793.º do Código Civil, prevendo o n.º 3 deste artigo, expressamente o processo de jurisdição voluntária: «O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária».

Esse processo de jurisdição voluntária encontra-se regulado no artigo 990.º do Código de Processo Civil.

E o artigo 4.º da Lei 7/2001, relativo à proteção da casa de morada da família diz que «O disposto nos artigos 1105.º e 1793.º do Código Civil é aplicável, com as necessárias adaptações, em caso de rutura da união de facto.»

A Lei n.º 8/2017, de 03 de Março, aditou ao Código Civil o artigo 1793.º-A (Animais de companhia) com esta redação: «Os animais de companhia são confiados a um ou a ambos os cônjuges, considerando, nomeadamente, os interesses de cada um dos cônjuges e dos filhos do casal e também o bem-estar do animal» e isentou ainda estes animais de penhora, introduzindo essa isenção no artigo 736.º do Código de Processo Civil, nada quanto à sujeição ao processo de jurisdição voluntária das questões surgidas a respeito dos animais de companhia  após a rotura da união de facto.

Verifica-se, pois, que neste momento não existe qualquer processo «… de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum» que possa ser aplicado a caso dos autos (poderão ser criados no futuro ex novo ou por remissão para processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges).

E daí que se encontre excluída a intervenção do tribunal de família e menores com base na al. b), do n.º 1, do artigo 122.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

(IV) Quanto à previsão da alínea g).

Refere-se nesta alínea que os tribunais de família e menores são competentes para julgar «Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.»

É de afastar liminarmente a hipótese «estado civil das pessoas», porquanto a união de facto não institui um novo estado civil diverso dos existentes: solteiro, casado, divorciado ou viúvo.

Na decisão sob recurso invoca-se a natureza parafamiliar das relações jurídicas resultantes da união de facto e sua dissolução semelhante ao casamento e sua dissolução por divórcio, suscitando ambos os casos situações semelhantes no que respeita, por exemplo, ao destino dos animais de companhia, os quais «… são confiados a um ou a ambos os cônjuges, considerando, nomeadamente, os interesses de cada um dos cônjuges e dos filhos do casal e também o bem-estar do animal» - artigo 1793º-A do Código Civil.

Considerou-se na decisão recorrida que dada esta semelhança deverá aplicar-se à regulação das responsabilidades dos donos ou detentores dos animais de companhia os termos previstos em contexto matrimonial, não sendo de exigir os dois anos de vivência em comum previstos na Lei n.º 7/2001, porquanto este lapso de tempo está fixado tendo em consideração os direitos previstos nesta lei alguns dos quais  com relevante repercussão monetária sobre o orçamento de estado (Neste sentido invocou-se Augusta Palma - Os animais de companhia na jurisdição da Família e das Crianças” – Ebook CEJ).

Apesar da valia desta argumentação, afigura-se que não deve ser feita uma tal equiparação porque ela alarga a aplicação das normas do direito de família à união de facto, para além dos casos que o legislador teve em vista, sem que se vejam razões suficientes para isso.

Com efeito, a união de facto não gera relações de família [Neste sentido, Diogo Leite de Campos/Mónica Martinez de Campos. Lições de Direito da Família, 4.ª edição. Coimbra, Almedina, 2018, pág. 26].

Como referem também Francisco Pereira Coelho/Guilherme Oliveira, «Em face do art. 1576.º do CCiv, que apenas considera relações de família as que resultam das “fontes” que estão aí mencionadas, temos entendido que a união de facto não é uma relação de família para a generalidade dos efeitos. Dizemos assim porque a questão da qualificação da união de facto como relação de família não deve ser enfatizada. Assim, ao lado da noção restrita e técnica de família, que apenas compreende o cônjuge e os parentes, afins, adoptante se adoptados, o direito português regista ainda noções mais amplas e menos técnicas de família, válidas em certos domínios ou para determinados fins. Assim, o direito da segurança social acolhe o conceito de “agregado familiar”, de que faz parte a pessoa ligada por união de facto com o beneficiário. Uma noção ampla de familiares que abranja a união de facto, parece dever aceitar-se igualmente no direito da locação, que tem vindo a dar à relação significativa relevância jurídica (…).

E termos práticos, a questão da qualificação da união de facto como relação de família assume relevância para saber se a lei que atribua um direito, imponha uma obrigação ou confira legitimidade para certa acção aos “familiares” de determinada pessoa compreende não só o cônjuge e os parentes, afins, adoptantes e adoptados, mas também quem vivia em união de facto com ela. Em princípio a resposta é negativa, pois a união de facto não é relação de família para a generalidade dos efeitos; mas há que saber se não estaremos num daqueles domínios em que, excepcionalmente, ela merece essa qualificação» - Curso de Direito da Família, Vol. I, 4.ª edição. Coimbra Editora, 2008, pág. 59/60.

Por outro lado, não é adequado, salvo em alguns casos contados, sujeitar os unidos de facto às regras de direito, substantivas ou processuais, previstas para o casamento, pois eles ao entrarem em união de facto não quiseram assumir o casamento e, respeitando a vontade dos unidos de facto não deve ser a lei ou o tribunal a tratá-los como se fossem casados.

Como refere Jorge Duarte Pinheiro, entre outros, «…O direito de não casar impede que se trate uma pessoa que não contraiu matrimónio como se estivesse casada» - Direito da Família Contemporâneo, Coimbra, Almedina, 2017, 5.ª edição, reimpressão, pág. 557. No mesmo sentido Francisco Pereira Coelho/Guilherme Oliveira, ob. cit. pág. 58.

Cumpre, por conseguinte, fazer uma aplicação cautelosa das normas de direito de família à união de facto, sem prejuízo, como refere este autor da «…aplicação analógica à união de facto de algumas normas próprias da união conjugal» - Ob. Cit. pág. 557 [O Autor dá como exemplo a aplicação do disposto  na al. b), do n.º 1, do artigo 1691.º do Código Civil, relativamente à comunicabilidade das dívidas contraídas para ocorrer aos encargos normais da vida familiar, justificando-se esta aplicação analógica com a proteção da confiança de terceiros que podem ter dificuldade em discernir quando estão perante pessoas casadas ou em união de facto – Ob. Cit. pág. 558]

Esta posição justifica-se porque, ao contrário do casamento, a união de facto é uma realidade informal, descomprometida, que não gera deveres para os seus membros; não dá origem a um estado civil novo, pelo que esta realidade deverá repercutir-se como tal nas normas legais, isto é, minimamente.

Nas palavras de Rita Lobo Xavier «… a opção do legislador ordinário tem sido sempre contrária à formalização da união de facto, o que torna difícil a demonstração dos factos exigidos pela lei para a sua relevância jurídica, diversamente do que ocorre em outros ordenamentos jurídicos. Assim, a relevância jurídica da união de facto depende da sua invocação, em cada caso, pelos interessados. Também foi referido que os membros da união de facto não assumem qualquer compromisso jurídico duradouro, cada um deles podendo romper a relação quando quiser, unilateralmente e sem formalidades. Por isso, o regime legal da união de facto não importa um estado civil diferente, e não integra cada um dos membros na família do outro, uma vez que não gera relações de afinidade.» - O “estatuto privado” dos membros da união de facto. Revista Jurídica Luso-Brasileira, Ano 2 (2016), nº 1, pág. 1508.

Como refere Rossana Martingo Cruz «O deserto na regulamentação legal dos efeitos patrimoniais dos unidos de facto faz com que não existam disposições referentes à administração dos bens. Apesar da inaplicabilidade da comunhão conjugal patrimonial, os unidos de facto podem ser comproprietários de certos bens» - União de Facto versus Casamento - Questões pessoais e patrimoniais. Coimbra, Gestlegal, 2019, pág. 488

Esta autora aponta algumas vias possíveis para resolver as questões que possam surgir entre os interessados no que concerne à administração e disposição dos bens dos unidos de facto.

Uma delas consiste na aplicação singela das normas gerais do direito das obrigações e dos direitos reais, pelo que «Existindo compropriedade serão as regras gerais desta aplicáveis; não existindo, cada um dos unidos de facto administrará os seus bens (sem prejuízo da possibilidade de conferir mandato a outrem – que poderá ser o outro unido de facto ou um qualquer terceiro)» - Ob. Cit., pág. 488.

Outra será a aplicação das regras do casamento com as devidas adaptações, por aplicação analógica [A autora entende que não poderá «…aplicar-se analogicamente o regime do casamento à união de facto, por não existir propriamente uma lacuna a preencher, mas sim uma opção legislativa de não regular determinados aspectos da união de facto» - Ob. Cit., pág. 489, nota 1425]

Outra ainda seria uma norma remissiva na Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, como ocorre aí quanto à proteção da casa de morada de família (cfr. artigo 4.º).

Ou ainda, através da estipulação de um regime próprio para a união de facto no que concerne à administração e disposição dos bens.

Continuando a olhar para a doutrina, Guilherme Oliveira refere que «O regime jurídico da união de facto continua a não conter normas sobre o registo da união, invalidades da constituição, regime de bens, administração de património, ilegitimidades de disposição, responsabilidade por dívidas para além da pequena regra referida, proibição de contratos, regulação de participação em sociedades, extinção para além do artigo 8.º da Lei n.º 7/2001, e efeitos sucessórios.

A distância do regime da união de facto para o regime do casamento, com ou sem o art. 5.º-A do Decreto de 2009, continua, portanto, abissal» - Notas sobre a Lei n.º 2372010, de 30 de agosto (Alteração à Lei das Uniões de Facto), in Lex Familiae, n.º 14 (2010), pág. 153.

Sobre a união de facto, Diogo Leite de Campos/Mónica Martinez de Campos também referem que «Os seus efeitos de caráter patrimonial estão previstos nos artigos 3.º a 6.º da Lei 7/2001. De entre eles destacamos a proteção da casa de morada de família, “inter vivos” e “mortis causa”; a aplicação do regime jurídico do IRS nas mesmas condições aplicáveis aos sujeitos passivos casados e não separados de pessoas e bens; a aplicação do regime jurídico aplicável às pessoas casadas em matéria de férias, etc. Contudo, o legislador não consagrou um mínimo de comunhão patrimonial no âmbito da união de facto, apesar das suas semelhanças como casamento celebrado no regime da separação de bens. A opção pela união de facto pode até residir, precisamente, na liberdade de organização pessoal e patrimonial dos unidos de facto e na inexistência de um regime patrimonial legal» - Ob. Cit., pág. 26.

Acrescentam ainda estes Autores que «os únicos efeitos jurídicos a retirar da união de facto serão os previstos na lei, nomeadamente a tutela da colaboração económica entre os concubinos (na medida em que esta realmente exista) e a proteção dos filhos nascidos dessa união, imputando-os a ambos os concubinos. Ou seja: retirar-se-ão efeitos jurídicos “naturais”, dessa relação “natural”» - Ob. Cit. pág. 30

Conclui-se, face ao que vem sendo exposto, que não sendo a união de facto fonte de relações familiares e não tendo os unidos de facto querido o casamento e a sujeição ao respetivo regime jurídico, os tribunais não devem sujeitá-los às normas substantivas e processuais previstas para o casamento, argumentando com a analogia entre ambas as situações, salvo se existirem fortes razões que apontem nesse sentido.

A intervenção dos tribunais de família, no que respeita à união de facto, está fixada na alínea b) do n.º 1 do artigo 122.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, ou seja, está prevista apenas para os casos em que a lei prevê a resolução do litígio entre unidos de facto através de «Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto …»

Com efeito, se o legislador tivesse querido equiparar em geral a união de facto à família para efeitos de atribuição de competência material aos tribunais de família e menores tê-lo-ia feito, mas não o fez além das situações enquadradas na al. b), no n.º 1, do mencionado artigo 122.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

Bastava o legislador ter determinado neste artigo 122.º algo como: «1. Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar: (…) g) Outras ações relativas ao estado civil das pessoas, família e união de facto», suprimindo, claro está, o que atualmente consta da respetiva al. b), do seu n.º 1.

Por conseguinte, se o legislador não procedeu a essa equiparação genérica, não deve ser o tribunal a fazê-la.

Mas admite-se, face à riqueza das situações que a vida quotidiana engendra que, excecionalmente, se posa invocar a mencionada al. g) do artigo 122.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

 (V) O n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, define a união de facto como «…a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos».

Ou seja, esta lei protege a união de facto desde que ela tenha a duração mínima de 2 anos.

Este período, como refere Jorge Duarte Pinheiro «…não é elemento caraterizador da união de facto e sim da união de facto protegida» - Ob. Cit. pág. 547.

Mas este lapso de tempo mostra que não é qualquer união de facto que desencadeia a proteção da lei.

No caso dos autos, por exemplo, a união só durou 6 meses, não sendo protegida pela indicada lei, circunstância esta que também desabona a aplicação ao caso das normas previstas para o direito da família.

(VI) Invoca-se ainda na decisão recorrida a Lei n.º 8/2017, de 03 de março, que estabeleceu o estatuto jurídico dos animais não-humanos, a qual introduziu no Código Civil o artigo 1793.º-A já acima citado, nos termos do qual em caso de divórcio, os animais de companhia são confiados a um ou a ambos os cônjuges, considerando, nomeadamente, os interesses de cada um dos cônjuges e dos filhos do casal e também o bem-estar do animal.

A questão suscitada não contende com relações de família e não difere no essencial de qualquer outra situação em que alguém vem pedir ao tribunal a regulação da guarda de um animal que se encontra em compropriedade e os respetivos comproprietários não estão de acordo acerca do modo como esse bem deve ser administrado.

Vejamos dois exemplos:

Dois caçadores, pai e filho, que vivem na mesma casa, adquirem um cão de caça em compropriedade. Decorrido um ano o filho vai viver noutra habitação e ocorre depois um desentendimento entre ambos, semelhante ao que é alegado pelo aqui Requerente. Temos uma situação idêntica à dos autos.

O mesmo se passará se dois estudantes adquirem em conjunto um cão ou um gato e findo o curso académico cada um regressa à terra natal e divergem quanto ao modo como há de ser regulada entre eles a guarda do animal.

Nestes casos não se solicitaria a intervenção do tribunal de família e menores, apesar de no primeiro caso existirem laços de parentesco, pois tratar-se-ia apenas de resolver um conflito inerente ao exercício do direito de compropriedade sobre um animal.

Quando há bens em compropriedade pode ocorrer a necessidade de intervenção do tribunal devido à falta de acordo dos comproprietários relativamente à utilização da coisa.

O artigo 1407.º do Código Civil, sobre a administração da coisa, que, por sua vez remete para o disposto no artigo 985.º do mesmo código, mostra como resolver este tipo de situações.

No plano processual, o artigo 1002.º do Código de Processo Civil regula o modo de obter o suprimento da deliberação da maioria legal dos comproprietários.

O caso dos autos, no que respeita à ação principal, podia ser enquadrado neste processo de jurisdição voluntária, pois trata-se de definir o modo como a guarda da cadela há de ser repartida entre ambos os comproprietários.

Por conseguinte, não se mostra que seja necessária a intervenção de um tribunal de competência especializada, no caso um tribunal de família e menores, para julgar uma questão como a dos autos, porque a proteção dos animais de companhia também é conseguida, com a mesma eficácia, pela intervenção de qualquer outro tribunal, designadamente pelo juízo local cível.

(VII) Pode ainda argumentar-se em geral (sem atender ao caso particular dos autos) que os tribunais de competência especializada são em menor número que os tribunais de competência genérica, o que implica que, em regra, estes últimos estejam geograficamente mais longe do local onde ocorrem os factos e habitam as pessoas, obrigando estas a maiores deslocações quando ocorrem os julgamentos.

Esta razão de ordem prática tem também a sua influência nos casos em que é duvidosa a questão a competência, não se devendo optar em tais casos pela solução que é mais penosa economicamente para as partes.

(VIII) Concluindo, a questão colocada nos autos não contende com relações de família e não se distingue de modo relevante de outras situações em que alguém pede em tribunal a regulação do uso de coisas ou animais objeto de compropriedade

Tendo-se concluído que a questão não é da competência dos tribunais de família e menores, cabe então a mesma ao juízo local cível, nos termos do artigo 130.º, n.º 1, da LOSJ, o qual dispõe que «Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada.»

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente, revoga-se a decisão recorrida e declara-se que o juízo local cível é o competente para prosseguir com os autos.

Custas pelo vencido no final.


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Coimbra,…