INSTRUÇÃO
CRIME DE DIFAMAÇÃO
DECLARAÇÕES DE TESTEMUNHA
IN DUBIO PRO REO
Sumário

1– O arguido ao depor como testemunha em sede de inquérito, está por isso, sujeito ao dever de falar a verdade, sob pena de incorrer na prática do crime de falso testemunho previsto no artigo 360° do Código Penal;

2– O arguido ao imputar nesse depoimento que prestou na qualidade de testemunha, os factos alegadamente difamatórios não podia deixar de representar que os recorrentes podiam-se sentir ofendidos na sua honra e consideração. Contudo, no caso em apreciação, o crime de difamação tem como particularidade crucial o facto de o arguido ter agido no cumprimento de um dever legal. Este facto condiciona a análise do tipo legal, com repercussões sobretudo ao nível do elemento subjectivo ou da intencionalidade, assim como ao nível da ilicitude da conduta;

3– De facto, o arguido prestou depoimento como testemunha por estar legalmente obrigado a fazê-lo, cumprindo assim um dever que lhe é imposto por lei (cfr. artigo 31°, n.° 2, al. c) do Código Penal), realizando um interesse legítimo e que radica no dever geral do cidadão de colaborar na administração da justiça. Ora, quem age no âmbito do cumprimento de um dever legal, estando obrigado a falar com verdade, mostra-se indiferente ao facto de as suas revelações poderem ou não atingir a honra e consideração do visado, pelo que, nestas circunstâncias está afastada a possibilidade do agente, ao imputar factos que em si são difamatórios, querer ferir ou atingir a honra e consideração do visado.Isto significa que está afastado quer o dolo em qualquer das modalidades previstas no artigo 14° do Código Penal, quer a ilicitude da sua conduta por agir no cumprimento de um dever legal.

4– Assim, depondo a testemunha no cumprimento de um dever legal, mesmo que os factos imputados à pessoa visada sejam em si difamatórios, não lhe pode ser imputado o crime de difamação. Situação diversa seria aquela em que a testemunha presta testemunho falso, com a consciência dessa falsidade, pois neste caso, incorreria na prática do crime de difamação, coisa que não se apurou “in casu”, pelo que fazendo uso aqui do principio in dubio pro reo, o arguido não poderá ser pronunciado pelo crime de difamação.

Texto Integral

Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.RELATÓRIO


I.1.Por decisão instrutória de 14 de Setembro de 2021 o tribunal de instrução criminal decidiu não pronunciar o arguido AA pela prática de dois crimes de difamação, ps. e ps. pelos artigos 180°, n.° 1, 183°, n.° 1, al. b), 184°, com referência à al. l), do n.° 2 do artigo 132°, todos do Código Penal imputados na acusação do Ministério Público.

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I.2.Recurso da decisão
Os assistentes BB e CC recorreram pedindo a revogação da decisão instrutória e a sua substituição por outra que pronuncie o arguido AA pelos factos e crimes imputados na acusação do Ministério Público, apresentando as seguintes conclusões:
1.A decisão instrutória recorrida determinou a não pronúncia do Arguido AA que vinha acusado, pelo Ministério Público, da prática de dois crimes de difamação agravada, previstos e punidos pelos artigos 180.°, n.° 183.°, n.° 1, alínea b), 184.°, com referência à alínea l) do n.° 2 do artigo 132.° e aos artigos 26.° e 30, n.° 1, todos do CP.
2.Entendeu a decisão recorrida que quando o Arguido, no contexto descrito nas motivações, em (iii), profere a afirmação "para eles, para a estatística não há problema, prendemos a mãe. Então prenderam a senhora." está apenas em causa uma opinião do Arguido que não se refere à honra e consideração de qualquer dos Assistentes.
3.Descrever-se um Inspector da Polícia Judiciária como alguém que perante um cidadão, que não é suspeito da prática de crime, o priva da sua liberdade sem outro fundamento que não seja o seu próprio interesse pessoal na "estatística", redunda na imputação de grave defeito de carácter e personalidade, geradora de ofensa à honra e consideração.

4.Partilhando o Arguido a qualidade profissional dos Assistentes, não poderia o mesmo desconhecer a carga ofensiva que tais afirmações comportavam, agravada pelo facto de terem sido proferidas no âmbito da sua inquirição como testemunha em processo-crime, perante Magistrado do Ministério Público.
5.Ao considerar a conduta assumida pelo Arguido como atípica, a decisão recorrida procedeu a uma errada interpretação do disposto no artigo 180.º, n.º 1 do CP, violando tal norma legal.
6.A decisão instrutória, ao colocar subsidiariamente a hipótese de a conduta, apesar de típica, ter sido praticada a coberto da realização de interesse legítimo, procedeu a uma errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 180.º, n.º 2 do CP, violando a citada norma legal, porquanto as afirmações proferidas pelo Arguido, além de se traduzirem em juízos de valor, nenhuma relação tem com o objecto do processo no âmbito do qual o Arguido depôs como testemunha.
7.Se a análise crítica dos depoimentos prestados pelas testemunhas DD e EE aconselharia, desde logo, uma grande prudência na sua apreciação e valoração, o confronto com os depoimentos prestados sobre a matéria em causa pelas demais testemunhas FF (a fls. 78), GG (fls. 80), HH (fls. 82) e II, Director da Unidade de Combate ao Cibercrime e à Criminalidade Tecnológica da Polícia Judiciária (fls. 197), impunha que a decisão recorrida não tivesse dado como indiciariamente provado que o Arguido tinha fundamento para, em boa fé, reputar as imputações feitas aos Assistentes como verdadeiras e que, em consequência pronunciasse o Arguido.
8.Contrariamente ao invocado pela decisão recorrida, o arguido não estava obrigado ao "dever de falar com verdade" com vista à realização da justiça, não se verificando, como tal, o interesse legítimo erradamente invocado pelo despacho de não pronúncia.
9.Ou seja, a decisão instrutória fez uma errada avaliação dos indícios probatórios e procedeu a uma errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 180.º, n.º 2 do CP, violando a citada norma legal.”

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I.3. Resposta do Ministério Público
O Ministério Público na resposta ao recurso, pronunciou-se pela improcedência do recurso, concluindo:
1-Os factos reportados pelo arguido e imputados aos assistentes e de que aquele foi acusado ainda que constituam factualidade típica do crime de difamação, não são punidos por se verificarem os pressupostos p. nas alíneas do n.º 2 do art° 180° do CP;
2-Em função da actividade profissional dos intervenientes, da prova decorrente dos depoimentos das testemunhas e bem assim do próprio arguido impunha-se dar como suficientemente indiciada a boa fé deste na veracidade das condutas e juízos de valor imputados aos assistentes e os interesses legítimos que se propunha exercer com tal imputação. - art° 150° n" 2 do CP;
3-O despacho recorrido não violou qualquer preceito legal, nomeadamente o art° 30So do Código de Processo Penal. “


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I.4.Parecer do Ministério Público
Nesta Relação o Ministério Público acompanhou a argumentação da resposta do Ministério Público em primeira instância, pronunciando-se pela improcedência do recurso.

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I.5.Resposta dos recorrentes
Foi cumprido o estabelecido no artigo 417°, n.° 2 do CPP, tendo os recorrentes apresentado resposta ao parecer do Ministério Público, reiterando o alegado no seu recurso.

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I.6.Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.

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II.Objecto do recurso
O objecto do recurso está limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, disponível em www.dgsi.pt).
São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso. Se ficam aquém a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões e se vão além também não devem ser consideradas porque são um resumo da motivação e esta é inexistente (neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336).
A única questão a decidir é a de saber se o tribunal de instrução criminal deveria ter proferido decisão instrutória de pronúncia por os factos indiciários serem susceptíveis de preencherem o tipo legal de crime de difamação.

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II.1.Decisão instrutória (que se transcreve totalmente)
I.-Declaro encerrada a instrução.
II.-O Ministério Público deduziu acusação contra AA (identificado a fls. 74), imputando-lhe a prática de 2 (dois) crimes de difamação agravada, previstos e punidos pelos artigos 180°, n.° 1, 183°, n.° 1, alínea b), 184°, com referência à alínea l) do n.° 2 do artigo 132° e aos artigos 26° e 30°, n.° 1, todos do Código Penal.
O arguido requereu a abertura de instrução, por não se conformar com a acusação formulada pelo Ministério Público, resumidamente, por entender que tinha fundamento para, em boa-fé, reputar os factos como verdadeiros.
Declarada aberta a instrução, realizou-se o debate instrutório.
III.-O tribunal é competente.
Inexistem nulidades, quaisquer excepções e questões prévias ou incidentais que cumpra conhecer.
IV.-A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação, ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art° 286, n°1 do Código de Processo Penal).
Não se apresenta como um novo inquérito, mas consubstancia, tão-só, um momento processual de comprovação da decisão de acusar ou não (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 1996, pgs. 454).
A acusação é deduzida se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado um crime e de quem foi o seu agente (art° 283, n°1 do Código de Processo Penal).
Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (art° 283, n°2 do citado diploma).
Posto isto, e realizadas as diligências instrutórias pertinentes, o juiz procede à análise crítica da prova produzida, a fim de comprovar judicialmente a decisão do Ministério Público.
Do teor da prova documental junta aos autos resulta ostensivo que a conduta objectiva descrita na acusação se encontra indiciada (o descrito depoimento do arguido, então como testemunha, no processo 21/18).
O depoimento do ora arguido, como testemunha, teve o concreto teor descrito na acusação, como resulta da transcrição efectuada e junta ao processo.
No entanto, tal como pretende o arguido, não é possível esconder a prova produzida que suporta a verificação, ainda que indiciária, dos fundamentos do arguido para sustentar, em boa-fé, tais factos.
Ainda que os ofendidos neguem os comportamentos que lhes são imputados, como também o arguido os sustenta, o que seria natural num quadro de conflituosidade deste tipo, e embora existam testemunhos que se resumem ao desconhecimento da realidade de tais factos (em favor, portanto, da versão acusatória), há uma clara nota de indiciação dos fundamentos do arguido para a sua versão, suportada nas testemunhas EE, DD e mesmo XX (que não quis sustentar directamente a realidade afirmada pelo arguido, mas que cujo depoimento é compatível com o fundamento invocado pelo arguido).
Em particular, a discordância afirmada quanto a diligências de busca e suposta detenção efectuadas em certo processo crime (não referido na acusação), manifestamente está em causa uma opinião do arguido, que não se refere à honra e consideração de qualquer dos assistentes, mas a uma discordância quanto ao melhor caminho processual escolhido nesses autos.
Mesmo que se supusesse tal relevância típica, a posição do arguido constitui a sua posição e foi feita com a obrigação de responder com verdade perante outro processo de inquérito, portanto, com vista à realização de interesses legítimos.
De acordo com o disposto no art. 180.°, n.°2, do Código Penal, “a conduta não é punível quando:
a)-A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b)-O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira”.
Em termos indiciários não cabe aqui ter por demonstrados os factos afirmados pelo ora arguido, mas simplesmente reconhecer que existe prova favorável à sua versão, tomada de boa-fé, como verdadeira, tendo sido comunicada por interesse legítimo, com vista à realização da justiça, onde tinha o dever de falar com verdade.
Por isso, os factos indiciados em conjugação com estes dois requisitos implicam a não punibilidade da conduta do arguido.
Por isso, indiciariamente a prova existente nos autos leva-nos a concluir pela não pronúncia do arguido.
V.Pelo exposto, não pronuncio, AA (identificado a fls. 74), pela prática de 2 (dois) crimes de difamação agravada, previstos e punidos pelos artigos 180°, n.° 1, 183°, n.° 1, alínea b), 184°, com referência à alínea l) do n.° 2 do artigo 132° e aos artigos 26° e 30°, n.° 1, todos do Código Penal.”

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II.2.Despacho de acusação
Os recorrentes, arguido e M° P° não questionam os seguintes factos indiciários descritos na acusação:
1°-O arguido AA detém a categoria de Inspector da Polícia Judiciária, tendo exercido as suas funções, no período compreendido entre 02.01.2017 e 01.10.2017, na 2` brigada da Secção Central de Investigação dos Meios de Pagamento Electrónicos (SCIMPE) da Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e à Criminalidade Tecnológica (UNC3T).
2°-O assistente BB detém a categoria de Inspector-Chefe da Polícia Judiciária, tendo exercido funções como Coordenador da Secção Central de Investigação dos Meios de Pagamento Electrónicos (SCIMPE) da Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e à Criminalidade Tecnológica (UNC3T), no período compreendido entre 02.01.2017 e 17.12.2017, sendo, por isso, superior hierárquico do arguido NC... .
3°-O assistente CC detém a categoria de Inspector da Polícia Judiciária, tendo exercido funções como Chefe da 2` brigada da Secção Central de Investigação dos Meios de Pagamento Electrónicos (SCIMPE) da Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e à Criminalidade Tecnológica (UNC3T), no período compreendido entre 01.02.2017 e 19.12.2017, sendo, por isso, imediato superior hierárquico do arguido NC... .
4°-No período em que o arguido AA integrou a 2` brigada da Secção Central de Investigação dos Meios de Pagamento Electrónicos (SCIMPE), também ali estava colocada a Inspectora DD.
5°-No dia 2 de Janeiro de 2018, a Inspectora DD apresentou queixa contra os ora assistentes BB e CC, que originou a abertura do Inquérito com o n° 21/18.7T9LSB, que pendeu na 4º Secção do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa.
6°-No dia 9 de Maio de 2018, pelas 14 horas e 20 minutos, nas instalações do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, sitas na Avenida ... ... ..., n° ..., ... ..., o arguido AA prestou depoimento perante a magistrada do Ministério Público titular do Inquérito identificado em 5°, na qualidade de testemunha e após ter prestado o juramento legal de responder com verdade às perguntas que lhe fossem feitas.
7°-No depoimento então prestado o arguido AA, na qualidade de testemunha, reportando-se ao assistente BB, afirmou:
“(...) não era, raro era o dia em que o Inspector-Chefe entrava na nossa sala, e dirigia-se à Inspectora DD, em tom menos próprio (...) em tom agressivo, ruborizado, que (...) aproximava-se demasiado, quanto a mim, violando a esfera próxima da colega, quase que se colocava (...) num, num tal limite de espaço que parecia que a ia agredir, a falar num tom colérico (...);
(...) porque era visível que o individuo estava embriagado, portanto era visível. Regra de experiência comum de qualquer pessoa, era visível que o individuo, particularmente depois do almoço estava embriagado, portanto ficava ruborizado, exalava um hálito a álcool que qualquer pessoa a uma curta distância, 2, 3 metros se apercebia, a forma de falar e, depois, eu acho que, lá está, (...) a falta de discernimento e o tolhimento que causava o excesso de álcool, não sei se ele, com a idade que tem, não sei se ele bebia, 3, 4, 5 copos para se colocar naquela situação (...)”
8°-Nas circunstâncias de tempo e lugar acima referidas, na qualidade de testemunha, o arguido AA prestou ainda as seguintes declarações, reportando-se ao assistente CC:
“punha-se a ter conversas como se (...) dando conta de pessoas, de testemunhas que ele havia inquirido, em que por terem determinados tipos de atributos físicos, que fazia isto, fazia aquilo, (...) era uma coisa por demais.”
9°-Nas mesmas circunstâncias, a ali testemunha e aqui arguido, referindo-se a ambos os assistentes, afirmou:
“(...) trabalhar com aquele tipo de gente não era propriamente aquilo que me fez concorrer à Polícia Judiciária, e eu não me identifico nem com aquele tipo de pessoas, nem com aquele tipo de comportamentos (...) por exemplo, íamos fazer buscas, naquele registo em que a entrega é feita naquela morada, nem sequer se confirma se (...) a mercadoria obtida de forma (...)foi efectivamente recepcionada naquela morada, portanto, pede-se busca para a morada, chega-se lá, as pessoas não têm nada a ver com aquilo. Naquele caso em concreto, tinham a ver, mas quem tinha feito a encomenda, era somente um pequeno pormenor, era alguém que era imputável, um menor de 16 anos, portanto o rapaz, quando eu comecei a falar com ele tinha 15 anos, e para eles, para a estatística não há problema, prendemos a mãe. Então prenderam a senhora.””

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II.3.Apreciação do recurso

Em primeiro lugar importa ressaltar as finalidades da fase de instrução.
Como sabemos e resulta do artigo 286° do Código de Processo Penal “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Nela pretende-se apurar a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança (artigo 308°, n.° 1 do Código de Processo Penal).
Indícios suficientes serão aqueles dos quais resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (artigo 283° n° 2, aplicável ex vi artigo 308° n° 2, ambos do Código de Processo Penal).
O significado normativo, por constituir um conceito aberto do conjunto de significantes “indícios suficientes” não é objecto de compreensão, interpretação e aplicação uniforme pela doutrina e pelos tribunais.
Entendemos que o juiz de instrução deverá proferir despacho de pronúncia quando considerar que os indícios disponíveis, avaliados em função do seu valor probatório no momento e de uma previsão prudente sobre a sua evolução dinâmica em julgamento, conduzem a uma conclusão racionalmente fundada em elementos objectiváveis de que é mais provável que o arguido venha a ser condenado do que absolvido e de que se justifica, no plano da proporcionalidade, comprimir o direito à presunção de inocência em nome da protecção do direito à realização da justiça e da protecção dos valores com tutela penal – cfr. quanto à disparidade de entendimentos o referido conceito e construção da definição adoptada o acórdão do TRP, de 07.12.2016, disponível in www.dgsi.pt.
Em segundo lugar importar atentar nos elementos típicos do crime de difamação.
Nos termos do artigo 180°, n.° 1 do Código Penal comete o crime de difamação “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra e consideração, ou reproduzir uma tal
imputação ou juízo”.
Por sua vez, o n.º 2 do mesmo preceito legal preceitua que:
A conduta não é punível quando:
a)- A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b)- O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira”.

O elemento objectivo do tipo, desde logo, exige a imputação de um facto (dado real da experiência) ou a formulação de um juízo de valor (categórico ou dubitativo) ofensivos da honra e consideração de outrem ou a reprodução daquela imputação ou juízo.
Como se pode ler no acórdão do TRL de 16.07.2008 o conceito de honra “encerra o conjunto de valores éticos que cada pessoa humana tem, como o carácter, lealdade, a seriedade e rectidão, ou seja, a dignidade subjectiva ou património pessoa e interno de cada um”. O conceito de consideração encerra a dignidade objectiva ou o património que cada um granjeou ao longo da sua vida, traduzido no merecimento que cada um tem no meio social, ou seja, o seu bom nome, a confiança, a estima e reputação de que goza” (disponível em ww.dgsi.pt).
E, conforme consignado no acórdão do TRP de 20.04.2016, “a ofensa à honra e consideração não pode ser perspectivada em termos estritamente subjetivos, ou seja, não basta que alguém se sinta atingido na sua honra – na perspectiva interior/exterior – para que a ofensa exista. Para concluir se uma expressão é ou não ofensiva da honra e consideração, é necessário enquadrá-la no contexto em que foi proferida, o meio a que pertencem ofendido/arguido, as relações entre eles, entre outros aspectos” e, ainda (cit. acórdão do TRP de 11.11.2105, ambos consultáveis em www.dgsi), que “ a protecção penal conferida à honra só encontra justificação nos casos em que objectivamente as expressões que são proferidas não têm outro sentido que não seja o de ofender, que inequívoca e em primeira linha visam gratuitamente ferir, achincalhar, rebaixar a honra e o bom nome de alguém.”

O elemento subjectivo do tipo exige que o agente actue com uma vontade livremente determinada de praticar o acto com a consciência de que as expressões ou os factos imputados são ofensivos da honra e consideração alheias, ou pelo menos que são aptos a causar ofensa e que, nessa actuação, tivesse consciência da ilicitude. Para a consumação do crime de difamação, basta assim o dolo genérico em qualquer das modalidades definidas no artigo 14° do Código Penal.

Estamos, pois, perante um crime de perigo, não sendo exigível um dano ou lesão efectiva da honra ou consideração de outrem, bastando à sua consumação o perigo de que esse dano possa verificar-se.

Regressando ao caso concreto, desde logo cumprirá dizer que o arguido prestou declarações na qualidade de testemunha no âmbito do processo-crime 21/18.7T9LSB, que teve origem numa queixa apresentada por AF....., na qual a mesma imputava aos recorrentes comportamentos de assédio laboral.

Nesse processo o arguido quando prestou depoimento como testemunha em sede de inquérito imputou aos assistentes factos relacionados com as suas capacidades, apetências e competências profissionais e que os mesmos são susceptíveis de ofender a honra e consideração profissionais dos recorrentes.

Porém, tal comportamento tem contextualização histórica de natureza judicial e puramente formal.

Com efeito, no âmbito do referido processo judicial de natureza penal movido por uma outra inspectora da Policia Judiciária (DD) contra os oras assistentes (inspectores da Policia Judiciária) o ora arguido (inspector da Policia Judiciária) depôs como testemunha em sede de inquérito – e por isso, com dever de falar a verdade (artigo 132° do Código do Processo Penal), sob pena de incorrer na prática do crime de falso testemunho previsto no artigo 360° do Código Penal.

Não podemos olvidar que o arguido ao imputar os factos acima transcritos não podia deixar de representar que os recorrentes podiam-se sentir ofendidos na sua honra e consideração. Contudo, no caso em apreciação, o crime de difamação tem como particularidade crucial o facto de o arguido ter agido no cumprimento de um dever legal. Este facto condiciona a análise do tipo legal, com repercussões sobretudo ao nível do elemento subjectivo ou da intencionalidade, assim como ao nível da ilicitude da conduta.


De facto, o arguido prestou depoimento como testemunha por estar legalmente obrigado a fazê-lo, cumprindo assim um dever que lhe é imposto por lei (cfr. artigo 31°, n.° 2, al. c) do Código Penal), realizando um interesse legítimo e que radica no dever geral do cidadão de colaborar na administração da justiça.

Ora, quem age no âmbito do cumprimento de um dever legal, estando obrigado a falar com verdade, mostra-se indiferente ao facto de as suas revelações poderem ou não atingir a honra e consideração do visado, pelo que, nestas circunstâncias está afastada a possibilidade do agente, ao imputar factos que em si são difamatórios, querer ferir ou atingir a honra e consideração do visado.

Isto significa que está afastado quer o dolo em qualquer das modalidades previstas no artigo 14° do Código Penal, quer a ilicitude da sua conduta por agir no cumprimento de um dever legal.

Portanto, depondo a testemunha no cumprimento de um dever legal, mesmo que os factos imputados à pessoa visada sejam em si difamatórios, não lhe pode ser imputado o crime de difamação.

Situação diversa será aquela em que a testemunha presta testemunho falso, com a consciência dessa falsidade, pois neste caso, incorrerá na prática do crime de difamação (veja-se, neste sentido, o referido acórdão do TRL de 16.07.2008 e que aqui seguimos de perto).

Vertendo ao caso concreto, importa saber se nos autos há indícios suficientes que permitam concluir com um grau de probabilidade preponderante que o arguido ao depor como testemunha e imputar os factos acima descritos aos recorrentes mentiu e agiu com consciência de ter faltado à verdade.

Na acusação imputa-se ao arguido o propósito de pôr em causa a honorabilidade, seriedade, dignidade e o bom nome pessoal e profissional dos recorrentes com a imputação dos factos que sabia não corresponderem à verdade e que a sua conduta era punida e proibida por lei.

A existência de indícios suficientes que o arguido imputou factos falsos aos recorrentes, sabendo que os mesmos não correspondiam à verdade terá que ser aferida dos elementos probatórios carreados para os autos pelo Ministério Público em sede de inquérito.


Conforme já assinalamos, o arguido agiu no cumprimento de um dever, o dever de prestar depoimento enquanto testemunha e de falar com verdade. E, nessa posição, no âmbito dos presentes autos não cabe ao arguido a prova da veracidade das suas afirmações, mas sim ao Ministério Público que, na fase de inquérito, estava incumbido de recolher prova bastante com vista a demonstrar que o arguido imputou factos falsos aos recorrentes e que agiu com consciência de ter faltado à verdade (veja-se, neste sentido, o citado acórdão do TRL de 16.07.2008).

No caso em apreciação, os factos imputados pelo arguido aos recorrentes não podem ser entendidos, percebidos, compreendidos, como comportamento gratuito: o arguido aquando da prestação do seu depoimento como testemunha relatou de forma objectiva factos que alegadamente terá presenciado durante o exercício das suas funções.

Note-se que o arguido nessa diligência ocorrida no dia 09.05.2018 no âmbito do referido processo-crime 21/18.7T9LSB limitou-se a responder na qualidade de testemunha às perguntas que lhe foram colocadas pela magistrada do M.P. (cfr. auto de inquirição de fls. 10 a 36), circunscrevendo-se aos factos por si alegadamente presenciados e que estão relacionados com comportamentos alegadamente adoptados pelos recorrentes no exercício da sua profissão e que, na esteira da queixa apresentada pela denunciante DD, a terem ocorrido, corroborariam quer o tipo de personalidade dos recorrentes aferida dos factos denunciados pela queixosa DD, quer a natureza de comportamentos adoptados pelos recorrentes no âmbito da sua profissão imputados pela denunciante na queixa por si apresentada contra os mesmos (veja-se a queixa-crime junta com o requerimento de interposição de recurso).

Assim, entendemos que não se pode afirmar inequivocamente (ao contrário do alegado pelos recorrentes) que os factos imputados pelo arguido aos recorrentes não têm nenhuma relação com o objecto do processo no âmbito do qual o arguido depôs como testemunha.

Acresce que, conforme consta da decisão recorrida “tal como pretende o arguido, não é possível esconder a prova produzida que suporta a verificação, ainda que indiciária, dos fundamentos do arguido para sustentar, em boa-fé, tais factos.
Ainda que os ofendidos neguem os comportamentos que lhes são imputados, como também o arguido os  sustenta, o que seria natural num quadro de conflituosidade deste tipo, e embora existam testemunhos que se resumem ao desconhecimento da realidade de tais factos (em favor, portanto, da versão acusatória), há uma clara nota de indiciação dos fundamentos do arguido para a sua versão, suportada nas testemunhas EE, DD e mesmo XX (que não quis sustentar directamente a realidade afirmada pelo arguido, mas que cujo depoimento é compatível com o fundamento invocado pelo arguido)” (sublinhado nosso).

Ora, os elementos probatórios constantes nos autos e referidos na decisão recorrida (declarações do arguido, declarações dos assistentes e depoimentos das testemunhas) não permitem concluir que o depoimento do arguido seja verídico, mas também não permitem a conclusão contrária, pelo que, ao abrigo do disposto do principio in dúbio pro reo teremos que concluir pela inexistência de indícios suficientes de que o arguido ao imputar os factos aos recorrentes tivesse agido com dolo, inexistindo igualmente indícios da ilicitude da conduta do arguido, ou seja, inexistem indícios suficientes de que o arguido tenha prestado um depoimento falso.

Assim, não estão suficientemente indiciados os factos necessários para o preenchimento do elemento subjectivo do crime de difamação imputado ao arguido.

Isto significa que, ao contrário do que se entendeu na decisão recorrida, no caso presente não estamos perante a situação prevista no artigo 180°, n.° 2 do Código Penal, uma vez que, para que a mesma ocorra é necessário que a conduta do agente preencha todos os elementos constitutivos do tipo de crime (o que, como vimos, não acontece neste caso), tendo o agente o ónus de provar a veracidade da imputação para que a sua conduta não seja punível.

Nestes termos, os indícios recolhidos em sede de inquérito e constantes da acusação do Ministério Público não são susceptíveis de constituírem crime, motivo pelo qual se confirma a decisão instrutória de não pronúncia, embora com fundamentos diversos.
Improcede, pois, o recurso interposto.

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III.DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida, embora com diferente fundamentação.
Custas pelos recorrentes, fixando a taxa de justiça individual em 3 UCS (artigo 515°, n° 1, b) e n.° 2 do Código Penal, e artigo 8°, n° 9, do RCP, com referência à Tabela III).

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Lisboa, 16.12.2021



(Maria do Rosário da Silva Martins)
(Lígia Maria da Nova Araújo Sá Trovão)