PROCURAÇÃO
INTERPRETAÇÃO
DESCONTO BANCÁRIO
Sumário

I – Constituindo a procuração um negócio jurídico formal, deve observar-se na sua interpretação a regra especial do art. 238º, nº 1, do C.Civil, o que significa que não pode prevalecer, na interpretação desse acto, um sentido que não tenha um mínimo de correspondência com o seu texto..
II – O desconto bancário, paradigmático do contrato de crédito, na prática portuguesa tende a ser assimilado a um mútuo especial.
III – A expressão “contrair qualquer empréstimo ou crédito” aposta na procuração, mesmo na esfera do conhecimento de um leigo, é tão esclarecedora quanto ao limite dos poderes de representação conferidos (cf. art. 262º, nº 1 do C.Civil), mormente quando complementada com “assinando tudo quanto se torne necessário ao bom desempenho do presente mandato”, que não se vislumbra como se pode entender que in casu, o representante tenha agido em abuso de representação.
IV – Assim, nos poderes conferidos ao procurador, mormente ao permitir “contrair qualquer empréstimo ou crédito”, enquanto formulação genérica, inclui-se o de assinar o contrato de desconto bancário.

Texto Integral

                  







                                                                                         Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                1 – RELATÓRIO

A..., com os demais sinais identificadores constantes dos autos, por apenso à execução ordinária, para pagamento de quantia certa que lhe move “BANCO ..., S.A.” veio deduzir embargos de executado.

Para tanto, a embargante arguiu a prescrição da ação cambiária, invocou a nulidade e falsidade do título, argumentou não ter sido interpelada para pagar qualquer dívida perante o exequente e impugnou os factos alegados pelo exequente no requerimento executivo.

O exequente contestou os embargos, conforme melhor se colhe do teor do respetivo articulado, que aqui se reproduz por brevidade de exposição, tendo junto aos autos a procuração outorgada pela embargante a favor de J... e o contrato de desconto bancário subjacente à emissão da letra dada à execução.

Em resposta à matéria vertida na contestação, a embargante alegou que não se recorda de ter emitido a aludida procuração uma vez que há cerca de 16 anos atrás era dependente de substâncias estupefacientes, tendo-a outorgado sem consciência ou vontade para o ato praticado, sustentando ainda que, a ser válida, a procuração não concedia poderes para sacar ou aceitar livranças ou letras.

Realizou-se a audiência prévia, conforme espelha a respetiva ata, onde foi proferido saneador que julgou improcedente a arguida exceção de prescrição, tendo-se fixado o objeto do litígio e os temas da prova.

Realizou-se a audiência final com observância das formalidades legais, como da respetiva ata consta.

Na sentença entendeu-se, em síntese, que se impunha a conclusão de que a procuração conferida pela Embargante, e ao abrigo da qual teve lugar o saque da letra, permitia efetivamente ao procurador que ao abrigo dela atuou tal fazer, mas já não permitia a este celebrar contrato de desconto bancário dessa letra, donde esse contrato de desconto era ineficaz em relação à Embargante, nos termos prescritos no artigo 268º, nº1 do C.Civil, assim procedendo os embargos, com a consequente extinção da execução, e ficando prejudicada a apreciação da terceira questão enunciada relativa à interpelação para o cumprimento, termos em que se concluiu com o seguinte concreto “dispositivo”:

«DECISÃO:

Pelo que se deixou exposto, decide-se julgar os embargos à execução procedentes e, em consequência, determina-se a extinção da execução em apenso.

Custas pelo Embargado.

Notifique e dê conhecimento ao Exmo. Sr. Agente de Execução a fim de, oportunamente, diligenciar pela extinção da execução.

Registe.».

Inconformado com essa sentença, apresentou o Exequente/Embargado recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

...

Termos em que deve o presente recurso ser admitido e a sentença recorrida ser revogada, decidindo-se em conformidade com o presente recurso, isto é, determinando-se que a execução prossiga os seus termos.

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detectar o seguinte:

                - incorreto julgamento de factos como “não provados”, pois que devia ser considerado “provado” o ponto de facto sob o ponto “i.” daquele elenco;

- desacerto da decisão de dar procedência aos embargos, extinguindo a execução, considerando que os poderes atribuídos pela procuração ajuizada não incluíam os de celebrar contratos de desconto bancário de letras.

                3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou, sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade. 

                Tendo presente esta circunstância, são os seguintes os factos que se consideraram provados no tribunal a quo:

«1. O exequente foi constituído por Deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal tomada em reunião extraordinária de 3/8/2014, nos termos do n.º 5 do art. 145º-G do RGICSF tendo adquirido a posição do BANCO ..., S.A. – SOCIEDADE ABERTA.

2. Ao exequente foi solicitado o desconto bancário da letra dada à execução, emitida em ... em 14.04.2003, com vencimento em 02.07.2003, no montante de €8.400,00, sacada e aceite por A..., constando como sacadora a ora embargante A..., conforme documento junto a fls. 26 dos autos principais, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

3. A operação de financiamento solicitada mereceu a aprovação do exequente, conforme documento junto a fls. 5 dos autos principais, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pelo que, em consequência, em 11/06/2003 o exequente colocou à disposição da embargante a importância correspondente ao valor aludido em 2., tendo o mesmo sido creditado na conta de Depósitos à Ordem Aberta sob o n.º ..., em que a executada/embargante é titular.

4. Em 16 de Fevereiro de 2001, no Cartório Notarial de ... , a embargante constituiu seu bastante procurador J... a quem conferiu plenos poderes para movimentar a conta n.º ... que possui no B..., agência de ... , podendo o mesmo movimentar a dita conta a débito ou a crédito, contrair qualquer empréstimo ou crédito, livranças ou letras comerciais junto do mesmo Banco, relacionado com a mesma conta, no montante, prazo, juros e condições que achar por convenientes, assinar cheques e recibos, requisições e cheques, pedir extractos da conta, assinando tudo quanto se torne necessário ao bom desempenho do presente mandato, tudo em conformidade com o teor do documento junto aos autos a fls. 37 verso e 38.

5. A assinatura aposta na letra, no local destinado ao sacador, acompanhada de “P/P” (por procuração), assim como na Proposta de Desconto aludida em 2 e 3., é de J...

6. A embargante foi dependente de substâncias estupefacientes e no ano de 2009 iniciou um tratamento regular com medicação para desintoxicação de estupefacientes com o acompanhamento de uma equipa multidisciplinar, sendo que, durante o tratamento, sofreu ainda algumas recaídas no consumo e só nos últimos 10 anos da sua vida conseguiu libertar-se, definitivamente, dessa dependência psicotrópica, devido aos tratamentos que fez de forma regular, conseguindo evitar, neste período, recaídas no consumo de drogas.»

                E os seguintes os factos que se consideraram não provados no tribunal a quo:

«i. Que a executada/embargante foi interpelada pelo exequente para regularizar a situação de incumprimento através do envio da carta junta a fs. 34 dos autos;

ii. Que, na data em que a procuração foi elaborada, a embargante encontrava-se num período de dependência de drogas, sem consciência das suas atitudes;

iii. Que a embargante não se recorde de se ter dirigido a um Cartório Notarial de ... , que não se recorde que lhe tivessem lido ou explicado o teor de qualquer documento, e que não se lembre de o ter assinado.

iv. Que na data em que a procuração foi elaborada a embargante encontrava-se na falta das suas capacidades para estar consciente do acto que estava a praticar.»

                3.2 – O Exequente/embargado/recorrente sustenta ter ocorrido incorreto julgamento de factos como “não provados”, pois que devia ser considerado “provado” o ponto de facto sob o ponto “i.” daquele elenco:

Sucede que quanto a este particular – da impugnação da decisão sobre a matéria de facto – é de proferir decisão de rejeição do recurso por incumprimento do ónus previsto no artigo 640º do n.C.P.Civil, na medida em que, tendo a prova sido gravada, não foi dado cumprimento pelo Exequente/embargado/recorrente ao que impõe o art. 640, nº1, al. b) e nº2, al.a) do n.C.P.Civil, mais concretamente, porque o recorrente não indica quais os concretos meios probatórios em causa, designadamente não indica, com exatidão, as passagens da gravação em que funda o seu recurso, acrescendo que não indica sequer qual o meio probatório, seja documental, seja testemunha, que permita ou imponha ao Tribunal alterar tal decisão.

Na verdade, o art. 640º, nº1 deste normativo impõe um ónus a cargo do Recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelecendo que:

1 — Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Acrescentando o nº2 deste artigo que

2 — No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

Verifica-se, contudo, que o Exequente/embargado/recorrente nas suas alegações de recurso apenas invoca linear e lapidarmente que devia ser alterada a decisão no particular em causa, sem aludir, por mais singelamente que fosse, a qual o meio de prova que tal permitia/impunha.

Ora se assim é, temos que não foi dado mínimo cumprimento ao disposto no art. 640º, nº1, al. b) e nº 2 do n.C.P.Civil, o que constitui um obstáculo à reapreciação da matéria de facto que foi objeto de impugnação enquanto suportada e tendo por referência a prova produzida, designadamente testemunhal.

Atente-se que ao referir-se a “concretos meios probatórios” a lei está a colocar a exigência de que se alegue o porquê da discordância, que se apontem as passagens precisas dos depoimentos que fundamentam a concreta divergência, que se explique em que é que os depoimentos contrariam, ou são insuficientes, para a conclusão factual do tribunal recorrido.

Exigência esta também imposta pelo princípio do contraditório, pela necessidade que a parte contrária tem de conhecer os argumentos concretos e devidamente delimitados do impugnante, para os poder contrariar…

O que implica, nos termos da norma mencionada, a imediata rejeição do mesmo, no que à impugnação da matéria de facto em causa se refere.

Na verdade, a sanção para o incumprimento dos citados ónus encontra-se muito clara e expressamente referida no nº1 do normativo em questão – o art. 640º do n.C.P.Civil! – a saber, sob pena de imediata rejeição do recurso.

Assim, porque não se mostra efetuado pelo Exequente/embargado/recorrente a indicação/especificação legalmente estabelecida, é desde logo de rejeitar e não proceder ao escrutínio da decisão de facto quanto ao ponto de facto em referência, não havendo assim lugar a qualquer reapreciação/alteração à matéria de facto fixada pelo tribunal a quo!

Em face do exposto, conclui-se que o Exequente/embargado/recorrente não deu cumprimento ao disposto na al. b) do nº1, e al.a) do nº2 do art. 640º do n.C.P.Civil, o que determina a rejeição do recurso no que à impugnação da matéria de facto respeita, de acordo com o que dispõe essa mesma norma, o que se determina.

                4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Desacerto da decisão de dar procedência aos embargos, extinguindo a execução, considerando que os poderes atribuídos pela procuração ajuizada não incluíam os de celebrar contratos de desconto bancário de letras:

Será correta a decisão do Tribunal a quo assente no entendimento de que o poder de propor a desconto os títulos de crédito emitidos (perspetivado como operação de financiamento comercial), constitui possibilidade que não decorreria do poder genérico de contrair empréstimos ou crédito, e daí que a procuração ajuizada não poderia deixar de incluir expressamente, nos poderes que estavam a ser concedidos ao mandatário, esse poder?

Em nosso entender – e releve-se o juízo antecipatório! – não pode de todo ser sancionado o entendimento perfilhado na decisão recorrida, na medida em que apreciou incorretamente a situação.

Aliás, salvo o devido respeito, essa interpretação nem parece ter atentado nos termos literais na sua globalidade da própria procuração em causa, e só se compreende como fruto de um equívoco ou deficiente compreensão sobre a dogmática das figuras jurídicas que relevam nessa tarefa interpretativa (desconto bancário e procuração/poderes representativos).

Senão vejamos.

Está em causa uma procuração, celebrada em 16 de Fevereiro de 2001, nos termos da qual, literalmente, para além do mais, ficou exarado que a outorgante (A...) constituiu seu bastante procurador J... a quem conferiu “plenos poderes para movimentar a conta n.º ... que possui no B..., agência de ... , podendo o mesmo movimentar a dita conta a débito ou a crédito, contrair qualquer empréstimo ou crédito, livranças ou letras comerciais junto do mesmo Banco, relacionado com a mesma conta, no montante, prazo, juros e condições que achar por convenientes, assinar cheques e recibos, requisições e cheques, pedir extractos da conta, assinando tudo quanto se torne necessário ao bom desempenho do presente mandato.” (sublinhados nossos).

Vejamos, agora, os normativos legais do C.Civil com relevância para a tarefa interpretativa a empreender, a saber,

«ARTIGO 262º

                        Procuração

1. Diz-se procuração o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos.

2. Salvo disposição legal em contrário, a procuração revestirá a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar.»

«ARTIGO 268º

     Representação sem poderes

1. O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado.

2. A ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração e tem eficácia retroactiva, sem prejuízo dos direitos de terceiro.

3. Considera-se negada a ratificação, se não for feita dentro do prazo que a outra parte fixar para o efeito.

4. Enquanto o negócio não for ratificado, tem a outra parte a faculdade de o revogar ou rejeitar, salvo se, no momento da conclusão, conhecia a falta de poderes do representante.»

«ARTIGO 269º

        Abuso de representação

O disposto no artigo anterior é aplicável ao caso de o representante ter abusado dos seus poderes, se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso.»

Consabidamente, a interpretação jurídica de uma declaração negocial consiste no apuramento do sentido jurídico-negocial de um comportamento, fornecendo os arts. 236º a 238º do mesmo C.Civil os termos e critérios mediante os quais tal interpretação deve fazer-se.

Ora, adota a nossa lei, como é sabido, uma posição objetivista (doutrina da impressão do destinatário – arts. 236º a 239º do C. Civil), mais concretamente, nos termos do nº1 do citado art. 236º, releva «o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde ele podia conhecer».[2]

No entanto, sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida [cf. nº 2 do mesmo artigo], sendo que, em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações – cf. art. 237º.

De referir que, no que toca aos negócios formais, o art. 238º do mesmo C.Civil instituiu um “pequeno subsistema interpretativo”[3], assim normativizado:

«ARTIGO 238º

         Negócios formais

1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.

2. Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.»

Sendo certo que a razão de ser deste subsistema repousa na tutela da aparência e da confiança que tenha sido ou venha a ser depositada por terceiros no sentido objetivo do negócio.[4]

Ora se assim é, confrontando agora os termos da procuração ajuizada, é certo que dela não consta, literal e expressamente, entre os poderes conferidos ao que nela figura como representante os de efetuar operações de desconto de títulos de crédito emitidos.

Todavia, não há dúvida que a par dos latos poderes conferidos para “contrair qualquer empréstimo ou crédito, livranças ou letras comerciais junto do mesmo Banco”, a procuração habilitava ainda o nela designado como representante a assinar “tudo quanto se torne necessário ao bom desempenho do presente mandato”.

Sendo certo que estavam em causa operações “no montante, prazo, juros e condições que achar por convenientes”…

Face ao assim declarado, temos dificuldade em secundar o entendimento perfilhado pela Exm.ª Juíza a quo quando interpreta o assim declarado no sentido de não se reportar a uma operação de financiamento comercial como o é contrato de desconto bancário.

Por outro lado, afigura-se que nada no texto da procuração indica que o procurador não tivesse poderes para contrair para a sua representada novas obrigações perante o Banco, com referência à “conta n.º ...”, resultando mesmo o contrário da concessão irrestrita de poderes de representação para “movimentar a dita conta a débito ou a crédito”, o que importa, s.m.j., a vinculação da representada a novas obrigações pecuniárias.

Dos termos da procuração destaca-se portanto a amplitude dos poderes conferidos ao procurador, começando pela atribuição de “plenos poderes para movimentar a conta n.º ...”, designadamente para “movimentar a dita conta a débito ou a crédito”, “contrair qualquer empréstimo ou crédito, livranças ou letras comerciais junto do mesmo Banco, relacionado com a mesma conta, no montante, prazo, juros e condições que achar por convenientes”, e globalmente “assinando tudo quanto se torne necessário ao bom desempenho do presente mandato”.

No assinalado contexto, afigura-se mais legítima a interpretação feita pelo Exequente/embargado/recorrente no sentido de considerar que nos poderes conferidos ao procurador, mormente ao permitir “contrair qualquer empréstimo ou crédito”, enquanto formulação genérica, se incluía o de assinar o contrato de desconto bancário.

Na verdade, não vislumbramos como questionar ou pôr em causa que efetuar operações de desconto de títulos de crédito emitidos corresponde a uma forma de contrair um empréstimo ou crédito.

Senão vejamos.

«O desconto bancário já terá sido o mais frequente e significativo contrato de crédito.(…)

O desconto bancário é o contrato pelo qual o banqueiro entrega, ao seu cliente, uma determinada quantia, em troca de um crédito, ainda não vencido, sobre um terceiro. O banqueiro deduz uma parcela correspondente ao juro e a extinção opera salvo boa cobrança. Normalmente, porém, o desconto funciona sobre títulos de crédito, isto é: o cliente cede ao banqueiro um título que incorpora o débito do terceiro.(…)

Na prática portuguesa, o desconto tende a ser assimilado a um mútuo especial. Na verdade, entre o beneficiário do desconto – o descontário – e o banco descontador, subsiste uma relação de empréstimo, que pode ser acionada (…)».[5]  

Salvo o devido respeito, esta interpretação e entendimento respeita plenamente o comando normativo constante do já citado art. 238º do C.Civil, segundo o qual, nos negócios formais, não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.

Com efeito, «Constituindo a procuração um negócio jurídico formal, deve observar-se na sua interpretação a regra especial do art. 238.º, n.º 1, do CC, o que significa que não pode prevalecer, na interpretação desse ato, um sentido que não tenha um mínimo de correspondência com o seu texto.»[6]

Dito de outra forma: a vontade declaratória resultante do texto da procuração afigura-se-nos clara, isto na medida em que nos parece perfeitamente insofismável a conclusão de que os poderes constantes da procuração ajuizada concediam ao representante poderes para a celebração duma proposta de desconto comercial de uma letra bancária emitida.

Atente-se que a expressão “contrair qualquer empréstimo ou crédito” aposta na procuração, mesmo na esfera do conhecimento de um leigo, é tão esclarecedora quanto ao limite dos poderes de representação conferidos (cf. art. 262º, nº 1 do C.Civil), mormente quando complementada com “assinando tudo quanto se torne necessário ao bom desempenho do presente mandato”, que não se vislumbra como se pode entender que in casu, o representante tenha agido em abuso de representação.

O que tudo serve para dizer que se conclui pelo desacerto da decisão recorrida que considerou procedente a exceção da atuação sem poderes de representação, donde, revogando-a, determina-se que a execução prossiga os seus termos.

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – Constituindo a procuração um negócio jurídico formal, deve observar-se na sua interpretação a regra especial do art. 238º, nº 1, do C.Civil, o que significa que não pode prevalecer, na interpretação desse ato, um sentido que não tenha um mínimo de correspondência com o seu texto..

II – O desconto bancário, paradigmático do contrato de crédito, na prática portuguesa tende a ser assimilado a um mútuo especial.

III – A expressão “contrair qualquer empréstimo ou crédito” aposta na procuração, mesmo na esfera do conhecimento de um leigo, é tão esclarecedora quanto ao limite dos poderes de representação conferidos (cf. art. 262º, nº 1 do C.Civil), mormente quando complementada com “assinando tudo quanto se torne necessário ao bom desempenho do presente mandato”, que não se vislumbra como se pode entender que in casu, o representante tenha agido em abuso de representação.

IVAssim, nos poderes conferidos ao procurador, mormente ao permitir “contrair qualquer empréstimo ou crédito”, enquanto formulação genérica, inclui-se o de assinar o contrato de desconto bancário. 

                6 – DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, conceder provimento ao recurso, revogando a decisão nele impugnada e determinando a sua substituição por outra que declara improcedentes os embargos, consequentemente prosseguindo a execução os seus termos.

Custas pela parte que deva suportar, em definitivo, as custas da execução.

 Coimbra, 15 de Dezembro de 2021

 Luís Filipe Cravo                                                                    Fernando Monteiro

                                                                     António Carvalho Martins





[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins
[2] Neste sentido, MOTA PINTO, in “Teoria Geral do Direito Civil”, Coimbra Editora, 3ª edição, a págs. 447-448.
[3] Na expressão de MENEZES CORDEIRO, in “Tratado de Direito Civil Português”, Parte Geral, Tomo I, a págs. 489.
[4]Assim PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, in “Teoria Geral do Direito Civil”, a págs 394 e segs.
[5] Citámos agora MENEZES CORDEIRO, in “Direito Bancário”, 5ª Edição Revista e Atualizada, Livª Almedina, 2014, a págs. 686-688.
[6] Cf. acórdão do STJ de 27.11.2019, proferido no proc. nº 598/11.8T2STC.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj, aliás, citado na decisão recorrida em sentido contrário ao preconizado supra.