ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DO JÚRI
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
HOMICÍDIO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
HOMICÍDIO PRIVILEGIADO
INEXIGIBILIDADE
CIRCUNSTÂNCIAS ATENUANTES
AGRAVANTES
PREMEDITAÇÃO
FRIEZA DE ÂNIMO
REFLEXÃO SOBRE OS MEIOS EMPREGADOS
MOTIVO FÚTIL
MOTIVO TORPE
PENA DE PRISÃO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA DUPLA VALORAÇÃO
CULPA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
REGIME PENAL ESPECIAL PARA JOVENS
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
PROFANAÇÃO DE CADÁVER
PENA ÚNICA
Sumário


I - Não é admissível recurso para o STJ do acórdão da Relação que, conhecendo do recurso interposto pelo arguido do acórdão condenatório, o julgou improcedente na parte em que impugnou a decisão que lhe aplicou a pena de 7 meses de prisão pela prática de um crime de profanação de cadáver, em concurso com um crime de homicídio qualificado.
II - O conhecimento dos recursos na parte em que são admissíveis implica que o STJ aprecie e decida, oficiosamente ou a pedido dos recorrentes, todas as questões de direito relacionadas com o objeto dos recursos, no âmbito da sua competência.
III - O crime de homicídio qualificado, p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos arts. 131.º e 132.º, do CP, constitui um tipo qualificado por um critério generalizador de especial censurabilidade ou perversidade, determinante de um especial tipo de culpa agravada, mediante uma cláusula geral concretizada na enumeração, não taxativa, dos exemplos-padrão enunciados no n.º 2 deste preceito, indiciadores daquele tipo de culpa, projetada no facto, cuja confirmação se deve obter, no caso concreto, pela ponderação, na sua globalidade, das circunstâncias do facto e da atitude do agente.
IV - O tempo que decorreu após o “anúncio” da intenção de matar a vítima, a elaboração do plano homicida e a combinação do encontro com a vítima, que ocorreu como previamente acordado, o facto de os arguidos terem estado com a vítima durante o dia e de, na sequência do plano previamente concebido, a vítima ter acompanhado os arguidos no veículo automóvel conduzido por um deles, depois das 20 horas desse dia, até ao local do crime, num caminho florestal, cometido com nove golpes violentos, no queixo e no pescoço da vítima, que lhe causaram a morte no local, permitem a conclusão de que os arguidos agiram com “frieza de ânimo” e com “premeditação”, no sentido de atuação “com reflexão sobre os meios empregados”, bem como, a de que se revela a persistência na intenção de matar por um período de tempo considerável, superior a vinte e quatro horas, mostrando-se, assim, preenchidas as três hipóteses normativas enumeradas na alínea j) do n.º 2 do art. 132.º, do CP
V - As circunstâncias de um dos dois arguidos ter desenvolvido uma “paixão obsessiva” pela mulher sobre a qual a vítima tinha “criado o rumor” de com ela manter “um relacionamento amoroso”, de este facto ter surgido como razão de conflito entre esse arguido e a vítima, de, por esse motivo, o arguido ter anunciado que a havia de matar, e de, por essas razões “passionais”, os arguidos terem posto termo à vida da vítima, opõem-se à conclusão de que os arguidos agiram por motivo fútil ou torpe, não se verificando, por conseguinte, a qualificativa do crime de homicídio prevista na alínea e) do n.º 2 do art. 132.º, do CP.
VI - Não sendo um motivo “fútil” ou “torpe”, no sentido que lhe é atribuído, a paixão, enquanto expressão de sentimentos profundos e obsessivos, pode conduzir a situações em que a motivação não pode valer como especial censurabilidade ou perversidade, por se ligar a um estado de afeto de particular intensidade, que deverá analisar-se na perspetiva de possível atenuação da culpa.
VII - Concluindo-se que os arguidos agiram com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados e com persistência na intenção de matar por mais de 24 horas, circunstâncias que se opõem à diminuição da culpa, que o motivo passional não se traduziu em perturbação profunda da consciência suscetível de fundar um juízo de inimputabilidade, e que os arguidos não agiram dominados por emoção violenta, relevante para o privilegiamento do homicídio (art. 133.º do CP), não se encontra fundamento para formulação de um juízo de atenuação da culpa.
VIII - Embora os “estados passionais” sejam suscetíveis de dar origem a reações muito diversas, nomeadamente a “emoções violentas”, habitualmente de curta duração (furor brevis), que podem dominar o agente do crime no momento da sua prática, e, como tal, devam ser consideradas na perspetiva do tipo de crime de homicídio privilegiado, é manifesto que a matéria de facto provada impõe conclusão oposta.
IX - Carece de fundamento a alegação de “erro na apreciação da culpa”, por os factos provados “apontarem no sentido” da “não premeditação do crime”, e, em consequência do “esvaziamento” da circunstância qualificativa do homicídio prevista na al. j) do n.º 2 do art. 132.º do CP, bem como de erro na qualificação jurídica dos factos provados que, na perspetiva do recorrente, se deveriam reconduzir aos tipos de crime de homicídio simples (art. 131.º do CP) ou de ofensa à integridade física grave agravada pelo resultado (art. 147.º do CP).
X - É na determinação da presença e na consideração, por via da culpa e da prevenção, dos fatores relativos ao facto e ao agente indicados no art. 71.º do CP, de enumeração não exaustiva, que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, neste caso a vida humana, concretizada na ação levada a efeito pelos arguidos pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar-se se a pena aplicada, dentro dos limites máximo e mínimo da pena abstratamente aplicável, respeita os critérios de adequação e proporcionalidade que devem pautar a sua aplicação.
XI - Nesta ponderação não podem levar-se em conta elementos de facto ou relativos à prova alegados e não constantes da matéria de facto provada, dada a limitação do recurso a matéria de direito, nem conferir-se relevância a elementos já considerados pelo legislador para a incriminação – bem jurídico protegido, gravidade abstrata do crime expressa na moldura penal e circunstâncias relevantes para a qualificação do homicídio –, sob pena de violação do princípio da proibição da dupla valoração.
XII - Com base nos factos provados, há que considerar, nomeadamente, enquanto fatores de agravação, relativamente a ambos os arguidos: o elevado grau de ilicitude do facto revelado na forma como foi preparado e posto em execução o projeto criminoso, e no modo de execução do crime, nomeadamente o uso e a forma como foi usado o objeto corto-contundente com que os arguidos desferiram pelo menos nove golpes violentos, em profundidade, no pescoço da vítima, como descrito na matéria de facto provada, que lhe causaram a morte; o dolo direto patente na intenção determinada e firme de tirar a vida; os sentimentos de paixão egoísta e de inimizade manifestados no cometimento, nos fins e nos motivos que determinaram o crime; a conduta posterior ao crime, que conduziu à prática de outro crime (de profanação de cadáver, por ateamento de fogo com utilização de produto acelerante).
XIII - Embora não se possa levar em conta o “motivo torpe ou fútil”, que as instâncias valoraram para a qualificação do homicídio, deverá, no entanto, considerar-se como fator de agravação geral, nos termos do art. 71.º, o concurso das três circunstâncias previstas na alínea j) do n.º 2 do art. 132.º, do CP – frieza de ânimo, reflexão sobre os meios empregados e persistência na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas – que, refletindo uma ampla ideia comum de “premeditação”, se devem autonomizar na previsão alternativa deste preceito; bastando a presença de uma delas para a qualificação, deverão as demais ser valoradas neste âmbito.
XIV - Tendo em conta estes fatores, as condições pessoais e a situação sócio-económica dos arguidos, não favoráveis à socialização, o percurso de vida do primeiro arguido, pai do segundo arguido, marcado pela vivência de longos períodos em estabelecimentos prisionais por virtude de condenações em nove processos, nomeadamente por um outro crime de homicídio, os antecedentes criminais, reveladores de falta de preparação para manter uma conduta lícita, o muito elevado grau de culpa e as também muito elevadas exigências de prevenção, não se encontra fundamento que justifique uma intervenção corretiva na determinação das penas, de 23 anos de prisão e de 10 anos de prisão, aplicadas pela prática do crime de homicídio qualificado.
XV - Tendo o segundo arguido beneficiado do regime de atenuação especial da pena, aplicado por via do regime penal dos jovens adultos (DL n.º 401/82, de 23-09), que constitui, nos termos do n.º 1 do art. 72.º do CP, um caso de atenuação especial da pena “expressamente previsto na lei”, não pode este beneficiar de nova atenuação especial com base na relação de dependência do primeiro arguido [art. 72.º, n.º 2, al. a)], circunstância tida em conta na aplicação daquele regime.
XVI - Também não se identifica fundamento para intervenção corretiva na determinação das penas únicas, de 24 anos de prisão e de 10 anos e 4 meses de prisão, aplicadas aos crimes em concurso, que refletem adequada ponderação na consideração conjunta dos factos e da personalidade dos arguidos neles manifestada, nos termos do art. 77.º, n.º 1, do CP.

Texto Integral


Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



I.  Relatório

1. Por acórdão proferido pelo tribunal do júri do Juízo Central Criminal ...... (Juiz ..), da comarca ....., foram os arguidos AA e BB, com a identificação dos autos, condenados:

- O arguido AA, pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1, e n.º 2, al. e) e al. j), do Código Penal, na pena de 23 anos de prisão, de um crime de profanação de cadáver p. e p. pelo artigo 254.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, de um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, al. e), da Lei das Armas e Munições (Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro), na pena de 6 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico destas penas, na pena única de 24 anos de prisão;

- O arguido BB, pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1, e n.º 2, al. e) e al. j) do Código Penal, na pena de 10 anos de prisão, de um crime de profanação de cadáver p. e p. pelo artigo 254.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 7 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 10 anos e 4 meses de prisão.

Os arguidos foram ainda condenados a pagarem, solidariamente, € 100.000,00 (cem mil euros) a CC, mãe do falecido DD.

2. Desta decisão, recorreram o Ministério Público e os arguidos para o Tribunal da Relação ….., o qual, por acórdão de 14 de julho de 2021, alterou, quanto às datas dos factos, os pontos 3 e 4 da matéria de facto provada, de modo a neles fazer constar “17/8/2019”, e negou provimento aos recursos.

3. Não concordando com o decidido no acórdão da Relação, dele vêm agora os arguidos interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando motivação de que extraem as seguintes conclusões (transcrição):

3.1. Conclusões do recurso do arguido AA:

«a. O acórdão errou na apreciação da culpa porque não aferiu a sua dimensão ao conjunto dos factos que deu como provados e como não provados.

b. Factos que, na sua globalidade apontam no sentido da não premeditação do crime.

c. E do esvaziamento da própria qualificativa do crime de homicídio.

d. Levando até a supor, num juízo de normalidade que se terá tratado de uma desavença momentânea entre arguido e vítima, ocorrida de modo inesperado e instantâneo, por motivo desconhecido.

e. O que deveria ter levado o tribunal a reconfigurar o ilícito em favor do arguido, para aquele de ofensa à integridade física grave, agravado pelo resultado.

f. Porque, da fundamentação do acórdão, num juízo racional e desprovido de afirmações e de conclusões impressionistas, é essa a causa mais provável do ocorrido.

g. Pois, do normal decorrer das coisas e da experiência, ninguém premedita um homicídio, deambulando durante todo o dia com a própria vítima, pelos mais variados locais e zonas de vários concelhos para empreender esse crime num local perto da zona de residência da vítima.

h. Pois tal seria, do ponto de vista médico legal um quadro de psicopatia, acompanhada de desvios neurológicos extremos que não foi possível apurar por omissão pericial requerida e sempre indeferida pelo tribunal.

i. A vacuidade e confusão na descrição dos factos é tal e tão evidente que deveriam favorecer o arguido na definição da culpa e sobretudo da sua densidade.

j. De que resulta que a medida da pena deverá ser reconduzida para um patamar próximo do mínimo legal, ainda que se mantenha o tipo do homicídio simples.

k. E a pena única reduzida para o limite próximo dos 16 anos de prisão.

l. Feriu o acórdão os arts. 97.º n.º 5; 127.º a contrário sensu; 163.º n.º 1; 374.º, 379.º n.º 1, al. c); 374.º n.º 2 in fine; 410.º n.ºs 1, 2, al. c) e 3; 412.º n.º 2 do CPP; 70.º; 71.º; 72.º nºs 1 e 2, als. a) e b); 131.º; e 132.º n.º 1 a contrário sensu do C. Penal.»

3.2. Conclusões do recurso do arguido BB:

«1. A sentença errou por desmesura da pena, aplicando 7 meses de prisão efetiva pelo crime de profanação de cadáver p. e p. nos termos do artigo 254 nº 1 al. a) da CP, sem que se compreenda por que razão não beneficiou da substituição de prisão por pena de multa.

2. Errou ainda, porque não ponderou todas as circunstâncias relevantes na atenuação especial da pena do crime de homicídio qualificado p. e p. nos termos dos artigos 131º e 132, nº 1 al. e) e j) do Cod. Penal, na pena parcelar de 10 anos de prisão, que é exagerada e, perante a lei nos termos do artigo 72º, nº 2, al. a) do C.P seria merecedora de ponderação quanto à sua redução, relativamente á atenuação realizada.

3. Feriu assim o acórdão os artigos 40.º, n.º 1; 70.º; 71.º e 72.º n.º 1 e 2, al. a) do Cód. Penal.»

4. Defendendo a improcedência dos recursos, responde o Ministério Público, pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação, dizendo (transcrição na parte relevante):

4.1. Quanto ao recurso do arguido AA:

«V – Como resulta do disposto no art.º 434.º do CPP, os poderes de cognição do STJ limitam-se exclusivamente ao reexame da matéria de direito, não podendo debruçar-se sobre a valoração a que as instâncias procederam sobre os meios de prova.

Analisando o teor das conclusões, a discordância que o recorrente manifesta relativamente à matéria de facto não pode de novo ser apreciada pelo STJ.

É sob essa perspetiva que o recorrente contesta a qualificação do crime pela “premeditação” e não sob o ponto de vista do direito.

Assim, a matéria de facto não é passível de modificação, mantendo-se incólume, tanto mais que da decisão sob recurso não emerge qualquer dos vícios a que alude o art.º 410.º do CPP.

De qualquer modo, a subsunção jurídica efetuada no acórdão recorrido, sancionando a decisão da 1.ª instância, mormente, no que respeita a verificação da qualificativa da al. j) do art.º 132.º, n.º 2, do CP não é passível de qualquer censura.

Questiona ainda o recorrente a medida da pena do homicídio e da pena única que propugna ser reduzida para 16 anos de prisão.

Como se disse, a incriminação pelo crime de homicídio qualificado deve manter-se. Relativamente à medida das mencionadas penas remete-se para a resposta do MP sobre tal matéria ao recurso interposto da 1.ª instância condensada nas conclusões 115 a 120 [cfr. 1999/2000], bem como às considerações tecidas no acórdão recorrido sobre tal matéria.

A pena do homicídio deve manter-se, bem como a pena única resultante das penas parcelares aplicadas aos três crimes em concurso.»

4.2. Quanto ao recurso do arguido BB:

«De acordo com as conclusões, o recorrente apenas questiona as penas aplicadas parcelarmente aos crimes em concurso.

Da escolha e medida da pena parcelar de 7 meses de prisão (…)

Dispõe o art.º 400.º, n.º 1, al. f) do CPP que “Não é admissível recurso … de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”, sendo que a al. b) do art.º 432º prescreve que “Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça… de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”.

Ou seja, sendo a decisão da Relação confirmatória da 1.ª instância, em pena que não ultrapassa 8 anos, dela não é possível recorrer para o STJ.

Assim, tendo o acórdão deste Tribunal da Relação ….., ora sob recurso, confirmado a decisão da 1ª instância – formando-se, “dupla conforme” de julgados – entende-se que não é admissível recurso do mesmo para o STJ, nos sobreditos termos dos arts. 400.º, n.º 1, alínea f) e 432.º, alínea b) do CPP, na parte em que conheceu do crime de profanação de cadáver, aplicando a pena de 7 meses de prisão e em todas as questões com ela relacionadas.

Posição que reflete a jurisprudência maioritária do STJ que se ilustra, designadamente, com o acórdão de 17.06.2015, proferido no processo 28/11.5TACVD.E1.S1 [disponível na página da dgsi].

Acresce que a decisão que admitiu «in totum» aqueles recursos não vincula o tribunal superior [art. 414º, nº 3 do CPP].

Pelo que o recurso não deve ser admitido relativamente à pena parcelar em que o recorrente foi condenado pelo crime de profanação de cadáver e, obviamente, não devem ser conhecidas as questões subjacentes a tais condenações (onde se inclui a questão da escolha da pena).

Da medida da pena parcelar do crime de homicídio qualificado (…)

Cremos que nenhuma censura merece o julgamento das instâncias nesta matéria.

Com efeito, para além de validar a decisão da 1.ª instância na aplicação do regime penal para jovens, a Relação pronunciou-se sobre o recurso do MP que entendia, mesmo no quadro da aplicação daquele regime (que também contestava) que aquele crime deveria ser punido numa pena nunca inferior a 13 anos de prisão. Pretensão que foi indeferida, em termos que acompanhamos e para os quais se remete.

Em suma, cremos que a pena de 10 anos de prisão pela prática do aludido crime de homicídio se deve manter por ajustada aos critérios legais que deve observar.

Termos em que, em conclusão, se entende que:

a) o recurso não deve ser admitido no que concerne às questões relacionadas com o crime de profanação de cadáver em que o recorrente foi condenado por a decisão impugnada ser, nessa parte, irrecorrível para o STJ [art.º 414.º, n.º 2 do CPP]; e

b) deve ser confirmada a pena parcelar de 10 anos pela prática do crime de homicídio e, consequentemente, mantida a pena única de 10 anos e 4 meses de prisão.»

5. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido parecer no sentido da rejeição parcial do recurso do arguido BB, na parte relativa à impugnação da pena a que foi condenado pela prática do crime de profanação de cadáver, e da improcedência dos recursos interpostos pelos arguidos AA e BB (este, com relação à parte sobrante), nos seguintes termos:

«6 – Questão prévia.

Da irrecorribilidade da decisão do Tribunal da Relação ….., no que se refere ao crime de profanação de cadáver (objecto do recurso interposto pelo arguido BB).

Na resposta que apresentou ao recurso interposto pelo arguido BB, refere o Senhor Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação ….., com toda a propriedade, que, tendo o acórdão ora objecto de recurso confirmado em toda a linha a decisão da 1ª instância (a única alteração ao aí decidido teve a ver com a referência ao mês e ao ano introduzida na redacção dos pontos 3 e 4 da matéria de facto provada, o que em nada releva para a questão em apreço), e preceituando o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do C.P.P. que não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos, não resulta ser admissível o recurso interposto para o S.T.J., na parte relativa ao crime de profanação de cadáver, porque condenado o arguido na pena de 7 meses de prisão, irrecorribilidade que abrange todas as questões que com esse ilícito se prendam.

É basta a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça que consagra tal entendimento.

Considere-se, a título meramente exemplificativo, o acórdão de 08-10-2014 (Processo n.º 81/14.0YFLSB.S1, 3ª Secção, Relator: Conselheiro Maia Costa, in www.stj.pt):

Conforme jurisprudência generalizada do STJ, a al. f) do n.º 1 do art. 400.º do CPP ao vedar o recurso para o STJ dos acórdãos condenatórios das Relações proferidos em recurso que confirmem a decisão de 1ª instância e apliquem pena não superior a 8 anos de prisão, impõe a irrecorribilidade, quando a pena conjunta é superior a 8 anos de prisão, das penas parcelares que não excedam essa medida.

Tendo havido “dupla conforme”, ou seja, tendo a Relação confirmado a decisão condenatória da 1ª instância e dado que todas as penas parcelares são inferiores a 8 anos, só a pena única ultrapassando essa medida, fica prejudicada a apreciação das questões colocadas pela recorrente sobre a qualificação do crime de tráfico de estupefacientes (de menor gravidade) e da não consumação (tentativa). No mesmo sentido, ainda os acórdãos de 02-12-2015 (Proc. n.º 5887/05.8TBALM.L1.S1 – 3.ª Secção, Relator: Conselheiro João Silva Miguel, in www.stj.pt), de 13-04-2016 (Processo n.º 294/14.4PAMTJ.L1.S1 – 3.ª Secção, Relator: Conselheiro Pires da Graça, in www.stj.pt), ou de 02-05-2018 (Processo n.º 51/15.0PJCSC.L1.S1, 3ª secção, Relator: Conselheiro Manuel Augusto de Matos, in www.stj.pt). E, já no corrente ano, o acórdão de 24-02-2021 (Processo nº 7447/08.2TDLSB.L1.S1, 3ª secção, Relator: Conselheiro Sénio Alves, in www.dgsi.pt). No seguimento de jurisprudência uniforme deste STJ, que acolhemos, a pena aplicada tanto é a pena parcelar, cominada para cada um dos crimes, como a pena única/conjunta, pelo que, aferindo-se a irrecorribilidade separadamente, por referência a cada uma destas situações, os segmentos dos acórdãos proferidos em recurso pelo tribunal da Relação, atinentes a crimes punidos com penas parcelares inferiores a 5 anos de prisão, são insuscetíveis de recurso para o STJ, nos termos do art. 432.º, n.º 1, b), do CPP.

Esta irrecorribilidade abrange, em geral, todas as questões processuais ou de substância que tenham sido objecto da decisão, nomeadamente, as questões relacionadas com a apreciação da prova, com a qualificação jurídica dos factos, concurso efectivo de crimes/crime continuado e com a determinação das penas parcelares. A não apreciação dessas questões elencadas pelo reclamante é, portanto, consequência directa da rejeição do recurso, quanto às penas parcelares. Pelo exposto, e nesta parte, deverá ser rejeitado, por inadmissível, o recurso interposto pelo arguido BB, a tanto não obstando o despacho que, sem restrição, o admitiu, já que tal decisão não vincula o tribunal superior, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 420.º, n.º 1, alínea b), e 414.º, n.º 2 e n.º 3, do C.P.P.

7) – Da intocabilidade da decisão recorrida, no que à matéria de facto se reporta.

Como também o destaca, mais uma vez com rigor e acerto, o senhor Procurador-Geral Adjunto subscritor da resposta ao recurso interposto pelo arguido AA, (…) os poderes de cognição do STJ limitam-se exclusivamente ao reexame da matéria de direito, não podendo debruçar-se sobre a valoração a que as instâncias procederam sobre os meios de prova.

Analisando o teor das conclusões, a discordância que o recorrente manifesta relativamente à matéria de facto não pode de novo ser apreciada pelo STJ.

É sob essa perspetiva que o recorrente contesta a qualificação do crime pela “premeditação” e não sob o ponto de vista do direito.

Assim, a matéria de facto não é passível de modificação, mantendo-se incólume, tanto mais que da decisão sob recurso não emerge qualquer dos vícios a que alude o art. 410º do CPP, é a conclusão que se impõe.

8) – Da medida das penas.

Resta, pois, por apreciar, a questão relativa à medida das penas a que os recorrentes foram condenados.

8.1 - A discordância do recorrente AA dirige-se tão só à pena aplicada pelo crime de homicídio, não lhe suscitando qualquer reparo a medida das penas a que foi também foi condenado pela prática dos crimes de profanação de cadáver, de 1 ano e 2 meses de prisão, e de detenção de arma proibida, 6 meses de prisão, as quais, de resto, sempre estariam subtraídas à apreciação deste Alto Tribunal pelas razões expostas em 6.

Por outro lado, no que tange ao crime de homicídio qualificado, o que o recorrente AA questiona não é propriamente a medida da pena, já que a divergência que manifesta com relação à decisão recorrida ancora-se na discussão da matéria de facto, como se refere na resposta do Ministério Público: é sob essa perspetiva que o recorrente contesta a qualificação do crime pela “premeditação” e não sob o ponto de vista do direito.

E assim, havendo que concluir, como aí, que a matéria de facto não é passível de modificação, mantendo-se incólume, e que não suscita reparo o acolhimento e consagração, no acórdão recorrido, da compreensão jurídica da 1ª instância, relativamente à verificação da qualificativa da alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, centrando o recorrente a sua defesa apenas no afastamento da forma agravada do tipo legal de crime em questão (se bem que sempre subsistisse a qualificativa da alínea e), do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, à qual não vem oposta a menor objecção), não aduzindo qualquer outra ordem de razões que justificasse a redução das penas - da pena parcelar, pelo crime de homicídio qualificado, e da pena única - não se alcança como se possa pretender que a medida da pena deva ser reconduzida para um patamar próximo do mínimo legal, ainda que se mantenha o tipo do homicídio simples, como se expõe na conclusão j., e a pena única reduzida para o limite próximo dos 16 anos de prisão, como se remata na conclusão k.

Da adequação e justeza das penas aplicadas se falará adiante.

8.2 - Já no que concerne ao recorrente BB, resultando prejudicada a discussão da matéria relativa à pena aplicada pelo crime de profanação de cadáver, apenas há que apreciar da adequação e justeza 1) da pena aplicada pelo crime de homicídio qualificado (a qual foi, como aquela outra, aliás, objecto de atenuação especial, mercê da utilização do regime aplicável em matéria penal aos jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos, consagrado no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro), e 2) da pena única a que foi condenado.

Assim,

8.3 - Das penas parcelares.

São as regras estabelecidas no artigo 71.º, n.º 1 e 2, do Código Penal, que conformam a actividade do julgador na determinação da medida concreta da pena, devendo atender-se à moldura abstracta da pena prevista na lei, ao grau de culpa evidenciado pelo agente (não podendo a pena ultrapassar a medida da culpa – cfr. artigo 40.º, n.º 2, do mesmo diploma), às exigências de prevenção geral e especial que, no caso, se fizerem sentir, e bem assim a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente.

8.3.1 - Recorrente AA.

Neste seu labor, adoptando a fundamentação da decisão da 1ª instância, o Tribunal a quo considerou que (…) a ilicitude dos factos é intensíssima nos crimes de homicídio e de profanação de cadáver e já relevante em relação à detenção de munições, traduzida essa ilicitude na amplitude com que os bens jurídicos tutelados foram violados.

E na continuação:

Que em relação ao homicídio verificam-se duas qualificativas pelo que uma delas é ponderada nesta sede, o que milita contra o arguido. Por outro lado, tem-se em linha de conta a forma como a profanação do cadáver ocorreu, a qual foi feita, inclusive, com recurso a combustível acelerante. Em relação às munições atenta-se no número das mesmas – 23 – e no facto das mesmas estarem em condições de serem deflagradas.

Que os motivos do homicídio foram já tidos em conta na qualificativa respectiva, pelo que não podem ser novamente valorados;

Teve presentes os sentimentos e o modo de execução dos factos, considerando-se, aqui, a frieza de ânimo com que os arguidos agiram;

Que ao nível das consequências os factos se repercutem na dor de uma mãe e de irmãos que viram o seu ente querido ser brutalmente assassinado; e

Que o arguido agiu sempre com dolo directo e numa intensidade de censura elevadíssima;

E, por fim, os seus antecedentes criminais, com destaque para a sua anterior condenação pela prática de um crime de homicídio, a revelar extremas necessidades de prevenção especial, e a sua inserção sócio-económica.

Não descurou o Tribunal a quo a objecção oposta pelo arguido à decisão proferida em 1ª instância.

Refere-se, a propósito, no acórdão recorrido: o arguido AA alega também que as penas parcelares e única “são desmesuradas” porque mesmo que os factos tivessem ocorrido “ sem as requeridas perícias sobre a personalidade e psiquiátrica é impossível a avaliação da culpa”, pelo que “mesmo atendendo-se aos elementos factuais de natureza objectiva, que a defesa contesta e impugnou como não provados, nunca a pena única globalmente considerada poderia, perante a escassez de outros elementos, ser superior a 14 anos de prisão.”, sem concretizar qual a medida em que deveriam ter sido fixadas as penas parcelares.

(…)

No caso concreto do crime de homicídio qualificado a moldura abstracta, oscila entre 12 a 25 anos de prisão.

O recorrente não aponta qual o critério de determinação da medida das penas que o tribunal teria violado ou quais as circunstâncias que não ponderou ou que tenha ponderado indevidamente.

E, de novo por reporte ao decidido na 1ª instância, concluiu: Assim dando por reproduzidos os critérios da determinação da medida da pena supra expostos e não se detectando algum erro lógico ou violação de critério legal na determinação da medida das penas aplicadas na decisão recorrida, as quais se revelam proporcionais às circunstâncias aí ponderadas, designadamente à culpa me ilicitudes muito elevadas e às fortes exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir, mantêm-se as mesmas (destaque meu), ou seja, teve por adequadas, necessárias e proporcionais as penas de 23 anos de prisão, pela prática do crime de homicídio qualificado, de 1 ano e 2 meses de prisão, pela prática do crime de profanação de cadáver, e de 6 meses de prisão, pela prática do crime de detenção proibida de munições, assim sancionando o comportamento do recorrente AA.

8.3.2 - Recorrente BB.

Seguindo uma idêntica ordem de considerandos, diferenciada no grau da intensidade de censura e na inexistência de antecedentes criminais, e relevando a necessidade de interiorização de condutas conforme a ordem jurídica e, por fim, em termos da sua inserção sócio-económica, a ausência total de actividade laboral, e viver a expensas da progenitora, foram as penas, especialmente atenuadas, de 10 anos de prisão, pela prática do crime de homicídio qualificado, e de 7 meses de prisão, pela prática do crime de profanação de cadáver, que o Tribunal de 1ª instância teve por adequadas, necessárias e proporcionais na condenação do recorrente BB, o que mereceu o mais completo acolhimento do Tribunal da Relação do …...

Na adopção da mesma metodologia, e lembrando que também este recorrente limita-se a invocar a desmesura das penas sem apontar qualquer circunstância concreta que não tivesse sido valorada ou o fosse indevidamente, remata o Tribunal a quo:

Assim e ponderando todas as circunstâncias enunciadas na decisão recorrida, para além da ausência de algum acto de contrição revelador da interiorização da conduta, tendo em conta que a actividade judicial de determinação da pena é, toda ela, juridicamente vinculada (artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal), pelo que, em sede de recurso, o procedimento, as operações e a aplicação dos princípios gerais de determinação da pena são susceptíveis de revista pelo tribunal superior quando “tiverem sido violadas regras de experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” – Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral, II - As Consequências Jurídicas do Crime, § 255, as penas parcelares aplicadas ao Arguido BB revela-se proporcionais e adequadas, não necessitando de intervenção correctiva (destaque meu).

Nenhuma censura suscita a decisão tomada, neste particular, relativamente a qualquer dos arguidos, entendendo-se ter sido feita uma análise cuidada e objectiva da situação vertente e serem correctas a ponderação e a valoração das circunstâncias que rodearam a prática dos factos, do grau da ilicitude e da culpa, bem como das exigências de prevenção geral e especial, havendo que concluir, como tal, que as penas aplicadas pelos crimes em perspectiva respeitam os parâmetros decorrentes dos critérios legais fixados nos artigos 40.º, 70.º e 71.º, do Código Penal, sendo justas, adequadas e proporcionais à gravidade dos factos e à perigosidade dos agentes, não se descortinando fundamento para que as mesmas sejam reduzidas.

8.4 - Das penas únicas.

Também no que diz respeito à medida da pena única, foram de igual modo correctas a análise e a ponderação dos parâmetros a considerar à luz dos princípios da adequação e proporcionalidade, em conformidade com o disposto nos artigos 40.º, 71.º e 77.º, do Código Penal.

Com efeito, e tal como vem sendo unanimemente afirmado pela jurisprudência e doutrina, a pena única é determinada, à semelhança das penas parcelares, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, a que acresce, como decorre do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal, um critério específico: “a consideração, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente”.

Assim,

8.4.1 - Recorrente AA.

Na observância agora dos ditames do artigo 77.º do Código Penal, na consideração, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente (n.º 1), e dos limites mínimo e máximo da pena aplicável (n.º 2), balizada, in casu, entre os 23 anos, correspondente à mais elevada das penas parcelares concretamente aplicadas, e os 24 anos e 8 meses de prisão, soma de todas as penas parcelares aplicadas, o Tribunal recorrido acolheu e manteve o entendimento da 1ª instância, assim condensado:

Quanto ao arguido AA, está em causa a prática de um crime de homicídio qualificado, de um crime de profanação de cadáver e de detenção ilegal de munições, que ocorreram num período perfeitamente delimitado no tempo.

A prática dos crimes de homicídio e de profanação de cadáver concretizou-se na aplicação de um plano bem delineado com preparação, escolha de local adequado, invenção de estória enganosa como engodo e motivada por uma futilidade, pela efabulação do arguido AA (ao que o arguido BB aderiu) e relativa a uma pretensão amorosa não correspondida.

A prática destes dois crimes visou o “retirar de cena”, o “eliminar” de DD, enquanto pessoa que poderia retirar o lugar que o arguido AA pretendia numa relação amorosa com a testemunha EE.

A detenção das munições, ainda que não tenha ligação com o homicídio e a profanação de cadáver, considerando a sua quantidade e aptidão a funcionar, revela, igualmente a personalidade do arguido no quanto está disposto a deter objectos com capacidade letal.

Daqui decorre, desde logo, que a gravidade global dos factos é intensíssima e a ilicitude pungente.

A personalidade do agente é retratada pelo que transparece do respectivo relatório social, sem se descurar que os factos revelam alguém obcecado, tenaz e de ideias fixas, sem ver os limites impostos pela sã convivência em sociedade servirem-lhe de limite à sua actuação.

Sejamos claros: o arguido matou DD porque este propalou ter tido um contacto amoroso com a testemunha EE…pessoa com a qual o arguido nenhuma relação amorosa tinha, nem podia legitimamente a ela aspirar atenta a manifestação expressa de EE nesse sentido.

Para além do mais, no que toca à autocrítica, ou seja, no juízo que faz sobre os crimes praticados o arguido não denota qualquer arrependimento.

No que às necessidades de prevenção geral concerne não pode este Tribunal escamotear que os crimes praticados geraram (e geram) grande alarme social: os factos são uma imagem de horror.

Atentando em toda a factualidade disponível não se pode afirmar que se está perante uma mera pluriocasionalidade, já que os factos apurados quanto aos antecedentes criminais do arguido fazem resvalar o juízo para além dessa plúrima actuação delituosa.

Tudo ponderado, num juízo de adequação, necessidade e proporcionalidade o Tribunal entende que a pena única se deve fixar nos 24 anos de prisão, pena que não se configura excessiva, face à moldura abstracta aplicável, ao conjunto dos factos e à gravidade dos mesmos, respondendo adequadamente às exigências de prevenção, geral e especial, que se verificam.

8.4.2 - Recorrente BB

Sobre este arguido, o Tribunal recorrido também acolheu e manteve o entendimento da 1ª instância, como segue:

Quanto ao arguido BB, igualmente está em causa a prática de um crime de homicídio qualificado e de um crime de profanação de cadáver, que ocorreram num período perfeitamente delimitado no tempo.

Como supra foi referido a prática dos crimes de homicídio e de profanação de cadáver concretizou-se na aplicação de um plano bem delineado com preparação, escolha de local adequado, invenção de estória enganosa como engodo e motivada por uma futilidade, pela efabulação do arguido AA (ao que o arguido BB aderiu) e relativa a uma pretensão amorosa não correspondida do arguido AA.

A prática destes dois crimes visou o “retirar de cena”, o “eliminar” de DD, enquanto pessoa que poderia retirar o lugar que o arguido AA pretendia numa relação amorosa com a testemunha EE.

Daqui decorre, desde logo, que a gravidade global dos factos é intensíssima e a ilicitude pungente.

A personalidade do agente é retratada pelo que transparece do respectivo relatório social, sem se descurar que os factos, quanto ao arguido BB revelam alguém que secundou o pai na sua pretensão homicida, deixando a claro uma personalidade que vê na lealdade filial algo forte o bastante para se permitir matar outrem, não obstante o motivo fútil.

A falta de arrependimento é, também, reveladora da inexistência de autocrítica, fazendo com que as necessidades de prevenção especial sejam elevadas.

No que às necessidades de prevenção geral concerne não pode este Tribunal escamotear que os crimes praticados geraram (e geram) grande alarme social: os factos são uma imagem de horror.

A circunstância do arguido BB ser primário e não lhe ser conhecida a prática de mais crimes, concatenada com a ausência de qualquer outra dimensão factual implicam que apenas se possa concluir por um pluriocasionalidade. Tudo ponderado, num juízo de adequação, necessidade e propororcionalidade o Tribunal entende que a pena única se deve fixar nos 10 anos e 4 meses de prisão”.

A pena aplicável, no que se refere ao arguido BB, tem como limite mínimo 10 anos de prisão, correspondente à pena mais elevada das concretamente aplicadas aos crimes em concurso, e, como limite máximo, a pena de 10 anos e 7 meses de prisão, soma das duas penas parcelares - artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal.

Também aqui, na determinação da pena única, e como flui do exposto, foi efectuada uma ponderação, em conjunto, dos factos e da personalidade do recorrente neles revelada.

Afigura-se, assim, que a pena única fixada - 10 anos e 7 meses de prisão - não é de modo algum excessiva, face à moldura abstracta aplicável, ao conjunto dos factos e à gravidade dos mesmos, respondendo adequadamente às exigências de prevenção, geral e especial, que se verificam.

9 – Nestes termos, e pelo que antecede, emite-se parecer no sentido de:

9.1 - dever ser rejeitado, por inadmissível, o recurso interposto pelo arguido BB, na parte relativa à impugnação da pena a que foi condenado pela prática do crime de profanação de cadáver;

9.2 - deverem ser julgados improcedentes os recursos interpostos pelos arguidos AA e BB (este, com relação à parte sobrante).»

6. Notificados os demais sujeitos processuais, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não foi apresentada resposta ao parecer do Ministério Público.

7. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso foi julgado em conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

8. O tribunal da Relação, incluindo a referência às datas dos factos nos pontos 3 e 4 da descrição dos factos provados (infra), deles fazendo constar “17/8/2019”, manteve inalterados os seguintes factos descritos no acórdão de 1.ª instância, que, com aquela modificação, assim se mostram fixados (transcrição):

8.1. Factos provados:

“1. O arguido AA é pai do arguido BB.

2. O arguido AA mantinha um conflito com DD, anunciando que havia de o matar, por este ter criado o rumor de que manteria um relacionamento amoroso com a EE, por quem aquele arguido desenvolvia uma paixão obsessiva.

3. Na sequência do plano encetado por ambos os arguidos, o arguido AA combinou com a vítima encontrar-se com a mesma no dia 17/8/2019 da parte da manhã, alegando para o efeito ter um trabalho para aquele, o que a vítima acedeu.

4. Após esse encontro, os arguidos estiveram com a vítima durante o dia 17/8/2019 e, na sequência do referido plano, em circunstâncias concretamente não apuradas, por depois das 20h, a vítima acompanhou os arguidos até ao caminho florestal adjacente ao entroncamento da Rua ...... com a Rua ........, em ....., .......

5. Para o efeito, os arguidos e a vítima deslocaram-se no veículo automóvel ... ........, com matrícula ..-..-IL, conduzido pelo arguido AA.

6. Uma vez chegados ao local, entre as 20h39m e as 20h51m, pelas sobreditas razões passionais, os arguidos AA e BB, munidos de um objecto corto-contundente de características não apuradas, desferiram pelo menos nove violentos golpes no queixo e pescoço de DD, provocando-lhe a morte no local.

7. De seguida, de comum acordo e em união de esforços, os arguidos cobriram o corpo de DD com alguns ramos de árvores, e com a ajuda de um produto acelerante, atearam-lhe fogo, provocando-lhe graves queimaduras que lhe destruíram parte dos membros inferiores bem como queimadura superficial da região genital e tronco.

8. Após sairiam do local levando o telemóvel de DD com o n.º ......121, da marca Samsung, modelo J500F Galaxy J5 (SM- J500FN), tendo posteriormente o arguido AA inserido o cartão micro SD, que retirara do aparelho da vítima, no seu telemóvel, da marca CAT, com os números ......613 e ......445.

9. Como consequência directa e necessária das descritas condutas adoptadas pelos arguidos, resultou a morte de DD, que foi devida lesões traumáticas cervicais, com secção das artérias carótidas comuns, veias jugulares internas, nervo vago esquerdo, laringe e lesão da medula cervical, lesões essas que terão resultado de traumatismo de natureza mista (corto – perfurante e corto-contundente), ou como tal actuando, tal como o que pode ter sido devido à acção de instrumento de gume afiado, cujos trajetos no corpo da vitima, definem-se: à lesão n.º 1 corresponde a um trajecto em profundidade que atravessa sucessivamente a pele, o tecido celular subcutâneo e planos musculares da face posterior do pescoço e termina a nível ósseo, condicionando a secção quase completa das articulações zigapofisárias de C3 e C4, sendo possível definir um trajecto de instrumento no corpo da vitima de inferior para superior, de posterior para anterior e da esquerda para a direita; às leões n.º 3 e 4, corresponde um único trajecto em profundidade que atravessa sucessivamente a pele, o tecido celular subcutâneo e da face anterior e lateral direita do pescoço, seccionando os planos vasculo-nervosos (artérias carótidas comuns, veias jugulares internas e nervo vago esquerdo) e via área (laringe) e termina a nível do esófago, sendo possível definir um trajecto do instrumento no corpo da vítima de inferior para superior, de anterior para posterior e da direita para a esquerda; as características das lesões traumáticas, nomeadamente a sua localização (face e pescoço), o seu numero (nove), o instrumento com que denotam ter sido produzidas (instrumento capaz de produzir lesões mistas – corto-perfurante e corto contundente), conjugadas com o exame do corpo no local () harmonizam-se com uma etiologia médico-legal.

10. No dia 1 de Outubro de 2019, o arguido AA tinha na sua residência situada na Rua ........, n.º …, R/c ...º, em ......, ........, entre outros:

a. Um sabre e respetiva bainha de cor verde, uma cartucheira com 23 cartuchos de calibre 12 Gauge, carregados com múltiplos projéteis, em bom estado de conservação e em condições de serem imediatamente disparadas em armas de fogo;

b. Um tapete de viatura de cor preta e dois encostos de cabeça de banco de viatura de cor cinzenta, retirados do veiculo de matrícula ..-..-IL;

c. Uma embalagem de limpa estofos Redex, usada;

d. Duas mocas/bastões e duas bengalas, em madeira com aplicações metálicas; e o telemóvel do arguido AA, da marca CAT;

f. Uma tira de papel branco com o manuscrito “EE” com o texto “por Deus o teu corpo estou a espetar para que não possas comer nem beber nem descansar enquanto comigo não vieres viver e por Deus de tudo te estou a espetar para sempre (…) 9 dias”;

g. Um envelope pequeno com a inscrição “foto sport” contendo no interior um papel dobrado e amarrado com uma fotografia tipo passe do arguido AA e de EE, voltadas uma para a outra.

11. No mesmo dia, na casa do arguido BB sita na Rua .........., Bloco .., entrada .., casa .., ....., ….., foi encontrado um par de botas de trabalho, contendo vestígios hemáticos e um silenciador de arma de fogo.

12. Ao golpearem o corpo de DD pelo menos nove vezes, os arguidos agiram com a intenção de lhe tirar a vida, bem sabendo que as suas acções eram adequadas a produesta pzir tal resultado, o que fizeram com frieza de ânimo, crueldade e em total desrespeito pela vida do ofendido, aproveitando-se da superioridade numérica e do uso de instrumento de agressão letal, o que tiveram em consideração quando antecipadamente planearam a prática dos factos descritos, revelando personalidades profundamente distanciadas dos valores aceites pela comunidade, que não pode deixar de lhes ser especialmente censurado.

13. Ao atearem fogo ao corpo de DD, agiram os arguidos com intenção de ocultar e fazer desaparecer o seu corpo, apesar de cientes de que não podiam ocultar o cadáver naquelas condições.

14. Os arguidos agiram em comunhão de esforços, da forma descrita, com a intenção de se apropriarem do telemóvel da vítima, bem sabendo que o mesmo não lhes pertencia e que agiam contra a vontade e sem autorização do seu legítimo proprietário, tudo em obediência ao plano que haviam previamente delineado.

15. O arguido AA sabia que não podia deter e guardar armas e munições cuja aquisição, posse e guarda não lhe era permitida, por não estar devidamente autorizado por autoridade competente e, não obstante, não se coibiu de o fazer.

16. Agiram os arguidos de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas pela lei penal.

Das contestações:

17. (…) Factos relativos às condições pessoais e económicas dos arguidos:

18. O arguido BB não tem antecedentes criminais.

19. O agregado familiar de origem de BB era constituído pela mãe, pelo pai, por um irmão germano e uma irmã uterina, com residência estabelecida num acampamento junto ao ...... (…..) até aos 6 anos do arguido. O pai teria família pré-constituída a residir em ........ e ter-se-á envolvido também com a tia do arguido, com a qual teve um filho. Desconhecendo-se os motivos concretos para a separação dos pais, ocorrida durante a primeira infância do arguido, o núcleo familiar já monoparental mudou-se para a atual habitação.

20. O pai foi mantendo contactos intermitentes com os filhos, apoiando-os ocasionalmente com géneros (e.g., roupa, calçado).

21. O percurso escolar de BB foi pautado por algumas irregularidades, associadas a fraca motivação para as aprendizagens formais e disrupção comportamental, com registo de duas retenções no 6.º e 7.º anos de escolaridade e subsequente encaminhamento para curso profissionalizante de 3.º ciclo, que terá concluído com 18 anos. Nesse âmbito, correu processo na Comissão de Proteção de Crianças e Jovens do ..... ......., de forma a minimizar os riscos de abandono escolar e de exclusão social.

22. Cumpridas as formalidades escolares, o arguido passou a ocupar o seu tempo com atividades lúdicas e recreativas informais no contexto familiar e comunitário, num registo de ociosidade entrecortado por períodos em que apoiava o pai na sua atividade laboral, na área da construção civil. Para cumprimento do acordo do protocolo do rendimento social de inserção (RSI), BB inscreveu-se no centro de emprego para efeitos de procura de primeiro emprego.

23. À data dos factos subjacentes aos presentes autos, e à semelhança da atualidade, BB residia com a mãe (FF, .. anos, desempregada) e o irmão (GG, .. anos, estudante), na morada que consta dos autos – trata-se de um apartamento camarário inserido em zona de configuração urbana conotada com problemáticas de exclusão social e delinquência.

24. Tendo já concluído a escolaridade, o arguido acompanhava o pai/coarguido sempre que este precisava da sua ajuda no trabalho, dedicando o restante tempo a actividades ociosas.

25. Com a prisão preventiva do pai à ordem dos presentes autos, o arguido regressou a uma situação de total inatividade, mantendo a inscrição ativa no centro de emprego. BB não identificou qualquer rendimento na atualidade, dependendo inteiramente do rendimento social de inserção de que a mãe é titular, no valor mensal de 310 euros, acrescido do abono de família do irmão (50 euros). A situação económica é avaliada pela fonte familiar como limitada, permitindo responder apenas às necessidades básicas mais elementares do agregado (alimentação, serviços domésticos e medicação).

26. BB não identificou problemas de saúde física ou mental nem consumos abusivos de álcool ou estupefacientes na sua história pessoal. A mãe do arguido teve um problema oncológico, nesta fase já sob controlo, mas em monitorização. Esta figura é analfabeta, apesar de ter frequentado vários cursos de alfabetização ao longo dos anos, apresentando por isso constrangimentos acrescidos à sua inserção laboral.

27. O irmão GG apresenta problemas graves de adaptação escolar, com absentismo e disrupção comportamental, estando a ser acompanhado em sede de processo de promoção e proteção.

28. A irmã uterina (HH, .. anos) constituirá, da rede de suporte familiar, a pessoa mais organizada e funcional, mas terá um tempo limitado para apoiar o arguido, tendo em consideração as suas próprias responsabilidades familiares/maternas.

29. Desconhecendo-se outros confrontos com o sistema de administração da justiça penal, BB indicia apreensão da ilicitude e desvalor de condutas similares às descritas nos autos, mostrando preocupação pelas eventuais consequências penais decorrentes do atual processo. Não se revendo minimamente nas dinâmicas descritas, o arguido verbaliza expetativa pelo arquivamento dos autos, não equacionando nesta fase outro desfecho judicial.

30. A situação jurídico-penal atual não tem causado, pelo menos para já, constrangimentos práticos à normal condução da sua vida diária.

31. AA foi condenado:

a. No processo n.º 209/92 da .. Vara Criminal do Círculo....., por acórdão de 27.1.1993, transitado em julgado, pela prática, em 27.41989 e 14.6.1989 de dois crimes de furto, nas penas de 22 meses e 24 meses de prisão;

b. No processo n.º 195/90 da ... Vara Criminal do Círculo....., por acórdão de 10.10.1990 pela prática, em 1.8.1989, de um crime de homicídio, um crime de roubo e um crime de introdução em habitação, nas penas de 14 anos, 9 anos e 3 meses de prisão, respectivamente;

c. No processo n.º 54/91 da .. Vara Criminal ....., por acórdão de 7.1.1991, pela prática em 15.4.1989 de um crime de furto qualificado, na pena de 3 anos de prisão;

d. No processo n.º 346/90 da ... Vara Criminal ....., por acórdão de 14.2.1994, pela prática, em 6.6.1989 de um crime de furto qualificado na pena de 2 anos e 6 meses de prisão;

e. No processo n.º 376/90 da ... Vara Criminal ....., por acórdão de 19.12.1991, pela prática em 30.1.1989 de um crime de furto qualificado e introdução em casa alheia, nas penas de 2 anos e 2 meses de prisão e 16 meses de prisão, respectivamente;

f. No processo n.º 136/91 da ... secção do .. Juízo Criminal ....., por sentença de 24.1.1995, pela prática em 30.1.1989 de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 3 meses de prisão;

g. No processo n.º 126/96 da ... Vara Criminal ..... por acórdão de 5.5.1997, pela prática em 1 e 2 de Junho de 1989, Maio e Junho de 1989 de três crimes de furto qualificado, nas penas de 22 meses de prisão, 22 meses de prisão e 1 ano de prisão, respectivamente.

h. No processo n.º 695/15....... do Juízo Local Criminal do ....., Juiz .., por decisão de 22.3.2017, transitada em julgado a 2.5.2017, pela prática em 4.12.2015 de um crime de ofensa á integridade física qualificada, na pena de 6 meses de prisão, substituída por 180 dias de multa, extinta pelo pagamento;

i. No processo n.º 51/17....... do Juízo Local Criminal ..........., Juiz .., por decisão de 14.5.2018, transitada em julgado a 13.6.2018, pela prática em 24.2.2017 de um crime de furto simples e de um crime de dano simples, na pena única de 170 dias de multa, extinta pelo pagamento;

32. AA é natural de ....... e descende de agregado familiar composto pelos progenitores e seis descendentes, núcleo que, aos 4 anos de idade do arguido emigrou para Angola, cidade ……. O progenitor era encarregado de uma fazenda e a progenitora assegurava os cuidados do lar e aos descendentes.

33. A dinâmica intrafamiliar era conflituosa entre os progenitores, devido ao estilo autoritário do pai.

34. O percurso escolar do arguido realizou-se em Angola, não tendo progredido além do 3º ano do ensino básico, que concluiu aos 10 anos de idade, altura em que, face ao processo de descolonização, o agregado regressou a Portugal e se fixou na aldeia ......., ........ Pouco tempo depois, o progenitor conseguiu arrendamento de um imóvel e terreno agrícola na freguesia de .....,  ….., para onde se mudaram e onde se dedicavam à agricultura e criação de gado.

35. A inserção laboral de AA ocorreu já em Portugal, após o abandono escolar, inicialmente no apoio ao progenitor na atividade agro-pecuária que aquele desenvolvia e, após os 14 anos de idade, na construção civil, para várias entidades patronais, com registo de instabilidade.

36. Neste contexto associou-se a grupo de pares com comportamentos transgressivos e que o terão levado aos posteriores contactos com o sistema de justiça penal.

37. Aos 22 anos de idade encetou união de facto, da qual resultaram dois descendentes, atualmente com 34 e 33 anos de idade. Este relacionamento terminou cerca de 3 anos depois, em 1999, altura em que o arguido cumpria a pena de 20 anos de prisão, aplicada em cúmulo jurídico pela autoria dos crimes de homicídio, roubo, introdução em casa alheia, furto qualificado e introdução em lugar vedado ao público.

38. Desta pena foram-lhe perdoados 2 anos e 6 meses de prisão e beneficiou de liberdade condicional.

39. Libertado em Dezembro de 1999, regressou ao seu agregado familiar de origem, entretanto realojado em bairro camarário ........, ..........., em diferentes fogos, mas no mesmo edifício, facilitando a proximidade e entreajuda entre todos os elementos. Neste contexto, AA chegou a residir com os seus dois descendentes, com os quais foi mantendo algum contacto posterior.

40. No ano de 2000 iniciou novo relacionamento afectivo, com FF, que conheceu em ............, no acampamento onde aquela vivia. O casal veio a contrair matrimónio, integrando o agregado uma filha daquela, de anterior relacionamento, à data com 3 anos de idade. Desta união resultaram mais 2 descendentes, agora com 19 e 15 anos de idade, sendo o mais velho BB, coarguido nos autos.

41. A relação conjugal terminou em 2008, estando o arguido divorciado.

42. AA manteve um breve relacionamento com uma irmã do cônjuge, II, facto a que atribui o divórcio, fruto do qual resultou um descendente atualmente com 10 anos de idade.

43. FF e II avaliam o arguido como um pai preocupado com os filhos e com as necessidades destes, mantendo-se presente e interessado no acompanhamento aos descendentes.

44. AA regista ainda mais dois períodos de reclusão, em 2004 e 2009, tendo cumprido as penas de 2 anos e 2 meses de prisão e 18 meses de prisão, respectivamente, pela autoria de crimes de furto qualificado e furto simples.

45. No domínio laboral, AA desempenhou atividade como vigilante de obras, contudo, face à ausência de habilitação legal para o efeito abandonou aquela função, voltando a dedicar-se à construção civil, de forma informal. Paralelamente e desde 2014 que vem sendo beneficiário do rendimento social de inserção, tendo frequentado um curso...........

46. À data a que reportam os factos, AA mantinha residência na morada dos autos, em ........, onde morava sozinho.

47. Ocupava um apartamento de tipologia .., inserida em empreendimento social de ........, ..........., e no mesmo edifício onde residiam também alguns irmãos.

48. Os progenitores eram já falecidos.

49. No domínio laboral, mantinha inserção informal na área da construção civil, em conjunto com o filho/coarguido BB, referindo obter rendimentos médios mensais na ordem dos 10.000€.

50. Auferia ainda rendimento social de inserção no valor de 143,30€.

51. O seu quotidiano centrava-se na ocupação laboral que mantinha, sendo o tempo livre ocupado num terreno sito em .........., onde se dedicava ao cultivo de produtos agrícolas e à criação de animais.

52. Este terreno terá sido já entregue ao respectivo senhorio, enquanto que os encargos com a renda da habitação, electricidade e água estão a ser presentemente assegurados pela irmã, JJ.

53. AA refere também convívios ocasionais em café da sua área de residência, onde interagia com pares de influência antissocial.

54. Naquele contexto sócio residencial, AA beneficia de boa imagem, sendo caracterizado como indivíduo educado e prestável. Os irmãos desconheciam o seu actual estilo de vida por permanecer grande parte do tempo em ................

55. AA apresenta um projecto de vida centrado na manutenção da sua atividade laboral na área da construção civil, fazendo planos de abrir empresa no mesmo ramo, em nome do seu filho e coarguido BB.

56. AA deu entrada no E.P.P. em 02/10/2019, à ordem dos presentes autos. Tem também pendente o processo nº 2268/19....... que corre termos no Juízo de Instrução Criminal ..... – Juiz .. e no qual está indiciado da prática dos crimes de homicídio qualificado, incêndio, furto e detenção de arma proibida.

57. Em meio prisional, o arguido tem-se apresentado em conformidade ao normativo vigente e não regista ocupação laboral.

58. AA já recebeu visitas do ex-cônjuge, embora esta não pretenda voltar a visitá-lo»

8.2. Factos não provados:

«Não se provou, com relevância para decisão a proferir, que:

59. O arguido BB no dia e hora em que a acusação refere como data provável do crime, estava em casa na companhia da Mãe.

60. Ao passo que o seu telemóvel tinha ficado esquecido após o almoço desse mesmo dia, no automóvel que o coarguido AA, habitualmente conduzia.

61. Quanto ao vestígio de sangue encontrado na bota de trabalho do arguido BB tal será pelo facto de ter a vítima trabalhado por várias vezes com o BB em diversas obras.

62. E ter viajado conjuntamente com ele na carrinha grande de trabalho do pai.»

Âmbito e objeto dos recursos

9. O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), quanto a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redacção da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro).

10. Resulta do acórdão recorrido que, nos recursos do acórdão da 1.ª instância, que interpuseram para o Tribunal da Relação, os arguidos suscitaram as seguintes questões, assim sistematizadas, e invocaram:

- Nulidade do acórdão por excesso de pronúncia nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP pela referência da fundamentação de direito à qualificativa da alínea h) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, uma vez que da decisão instrutória consta a não pronúncia por essa alínea h).  

- Nulidade por omissão de pronúncia sob as “condições” do local referentes à matéria provada sob os pontos 13 e 7 da matéria de facto provada.

- Nulidade do julgamento por reabertura ilegal da audiência após o encerramento da discussão, e nulidade insanável do acórdão, nos termos conjugados dos artigos 119.º, al. e), e 120.º, n.º 2, al. d), a contrario sensu, do CPP, que, por isso, entendem dever ser revogado.

- “Inconstitucionalidade- por violação do princípio da legalidade”.

- Nulidade do acórdão por omissão do exame crítico da prova, respeitante aos factos provados sob os pontos 4 e 5.

- Nulidade do acórdão por omissão de diligências periciais requeridas, consideradas essenciais para a descoberta da verdade, nomeadamente das “perícias sobre a personalidade e psiquiátrica e ainda a perícia da letra inscrita no bilhete encontrado e apreendido ao arguido”

- Erro notório na apreciação da prova relativamente aos pontos 4, 5, 7 e 13 da matéria de facto provada.

- Nulidade do acórdão por contradição insanável da fundamentação relativamente aos pontos, 4, 5, 7 e 13 da matéria de facto provada.

- Impugnação da matéria de facto provada sob os pontos 4, 5, 6 e 7 dos factos provados.

- Erro na apreciação da prova relativamente ao crime de profanação de cadáver.

- “Desmesura” nas penas aplicadas ao arguido AA, defendendo que nunca devendo a pena única deveria ser superior a 14 anos de prisão.

- “Desmesura” nas penas aplicadas ao Arguido BB, defendendo que nunca a pena única deveria ser superior a 8 anos de prisão.

O Tribunal da Relação apreciou especificada e detalhadamente todas as questões suscitadas nos recursos. Considerou que o lapso da incriminação pela alínea f) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal já se encontrava retificado, julgou improcedentes todas as arguições de erros, irregularidades, vícios e nulidades, incluindo nulidades processuais e do acórdão condenatório, vícios da decisão recorrida e erros de julgamento da matéria de facto, exceto quanto às datas constantes dos pontos 3 e 4 da matéria de facto provada, que, como já se referiu, alterou, e concluiu pela improcedência dos recursos.

11. No presente recurso, os arguidos vêm, em síntese, alegar:

O arguido AA:

(a) Erro “na apreciação da culpa”, pois que os factos provados “apontam no sentido” da “não premeditação do crime”, e, em consequência do “esvaziamento” desta circunstância qualificativa do homicídio”, “levando a supor que se terá tratado de uma desavença momentânea entre o arguido e a vítima, ocorrida de modo inesperado e instantâneo, por motivo desconhecido” [conclusões a) a d), g), h) e i)];

(b) Erro na qualificação jurídica dos factos, que, do seu ponto de vista, se reconduzem a crime “de ofensa à integridade física grave, agravado pelo resultado” ou a um crime de “homicídio simples” [conclusões e), f) e j)];

(c) Que, mantendo-se a condenação por crime de homicídio, deverá a pena ser reduzida para “um patamar próximo do mínimo legal”, por “homicídio simples” (conclusão j);

(d) Que a pena única deve ser reduzida “para limite próximo dos 16 anos de prisão” (conclusão k).

O arguido BB:

(e) Erro na determinação da pena de 7 meses de prisão aplicada pelo crime de profanação de cadáver, “sem que se compreenda por que razão não beneficiou da substituição de prisão por pena de multa” (conclusão 1);

(f) Erro na determinação da pena de 10 anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado, que considera “exagerada” e que deveria ser especialmente atenuada nos termos da al. a) do n.º 2 do artigo 72.º do Código Penal (atuação sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem depende ou a quem deve obediência) (conclusão 2);

Questão prévia – da inadmissibilidade parcial do recurso do arguido BB

12. A metodologia da decisão requer, por razões de precedência lógica (artigos 368.º, n.º 1, e 608.º do CPC ex vi artigo 4.º do CPP), que esta se inicie pela apreciação das questões suscitadas pelos sujeitos processuais, ou que o tribunal deva oficiosamente conhecer, susceptíveis de obstar ao conhecimento de mérito.

O Senhor Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação e o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal suscitam a questão da inadmissibilidade do recurso do arguido BB no que diz respeito às questões relativas ao crime de profanação de cadáver, a que foi aplicada a pena de sete meses de prisão, confirmada pelo acórdão do tribunal da Relação [supra, 11. (e)], tendo em conta o disposto no artigo 400º, n º 1, alínea f), do CPP.

Cumpre, pois, conhecer desta questão prévia.

13. Dispõe o artigo 400.º, n.º 1, al. f), do CPP que não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.

Nos termos da alínea e) do mesmo preceito, parte final, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, também não é admissível recurso de acórdãos proferidos pelas Relações que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos.

Por sua vez, o artigo 432.º do CPP, incluído no Capítulo sobre o «Recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça» estabelece que se recorre para este tribunal de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas Relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º.

Da conjugação destas disposições resulta que só é admissível recurso de acórdãos das Relações que apliquem penas superiores a 8 anos de prisão ou que apliquem penas superiores a 5 anos e não superiores a 8 anos em caso de não confirmação da decisão da 1.ª instância. Esta regra é aplicável quer se trate de penas singulares, aplicadas em caso de prática de um único crime, quer se trate de penas que, em caso de concurso de crimes, sejam aplicadas a cada um dos crimes em concurso (penas parcelares) ou de penas conjuntas aplicadas aos crimes em concurso (assim, nomeadamente, os acórdãos de 9.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1 e de 10.10.2018, Proc. 144/09.3JABRG.G1.S1, em www.dgsi.pt, e abundante jurisprudência neles citada)

14. Como se tem afirmado, este regime de recursos para o Supremo Tribunal de Justiça efectiva a garantia do duplo grau de jurisdição, traduzida no direito de reapreciação da questão por um tribunal superior, quer quanto a matéria de facto, quer quanto a matéria de direito, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, enquanto componente do direito de defesa em processo penal (cfr. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição revista, 2007, Vol. I, p. 516), reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam internacionalmente o Estado Português ao sistema internacional de protecção dos direitos fundamentais (artigos 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, das Nações Unidas, e 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, do Conselho da Europa).

Como tem sido repetido pelo Tribunal Constitucional (TC), em jurisprudência firme, o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição «não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição», isto é, de «um duplo grau de recurso», «em relação a quaisquer decisões condenatórias» (cfr., por todos, o acórdão de 9.10.2019 cit. e os acórdãos 64/2006, 659/2011 e 290/2014 do TC).

15. Garantido o duplo grau de jurisdição, os sujeitos processuais dispõem de duas vias possíveis de exercer o direito ao recurso. Querendo impugnar a decisão em matéria de facto e em matéria de direito ou arguir os vícios da decisão em matéria de facto a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP, devem usar a via de recurso para o tribunal da Relação (artigo 428.º do CPP), qualquer que seja a pena aplicada (como se tem sublinhado na jurisprudência constante deste Supremo Tribunal – por todos, o acórdão de 2.10.2014, no Proc. 87/12.3SGLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt). Porém, limitando o recurso a matéria de direito (artigo 403.º do CPP), a lei impõe-lhes caminhos distintos, consoante a pena aplicada, que define o critério de competência dos tribunais superiores: se a pena não exceder 5 anos de prisão, o conhecimento do recurso é da competência do tribunal da Relação (artigo 427.º do CPP); se for superior a 5 anos, tal competência pertence ao Supremo Tribunal de Justiça (artigos 432.º, n.º 1, al. c), e 434.º do CPP), o qual, em caso de concurso de crimes, pode conhecer de todas as questões de direito relativas à pena conjunta aplicada aos crimes em concurso e às penas aplicadas a cada um deles englobadas naquela pena única, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2017, DR I, de 23.6.2017).

Em caso de recurso para o tribunal da Relação, é ainda possível (como acima se referiu) o recurso da decisão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça, limitado a questões de direito [artigo 432.º, n.º 1, al. b), e 434.º do CPP], no caso de a pena aplicada ser superior a 5 anos e não superior a 8 anos e essa decisão não confirmar a decisão de 1.ª instância ou, em todos os casos, se a pena for superior a 8 anos de prisão (artigo 400.º, n.º 1, al. f), do CPP). Esta possibilidade de um segundo grau de recurso, justificada pela gravidade das penas, releva, porém, da liberdade do legislador (como tem sublinhado o TC – cfr. nomeadamente, o acórdão 64/2006), não limitando, antes reforçando, nesta dimensão, o direito ao recurso garantido pela Constituição (acórdãos de 10.10.2018 e de 9.10.2019, deste tribunal, cit.)

16. Do exposto, atento o que dispõe o artigo 400.º, n.º 1, alínea e), parte final, do CPP, resulta que não é admissível o recurso interposto pelo arguido BB na parte que respeita às questões suscitadas quanto à pena, de 7 meses de prisão, que lhe foi aplicada pela prática do crime de profanação de cadáver.

Nos termos do artigo 420.º, n.º 1, al. c), do CPP o recurso é rejeitado sempre que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do artigo 414.º, segundo o qual o recurso não é admitido quando a decisão for irrecorrível, sendo que a decisão que o admitiu não vincula este tribunal (n.º 3 do mesmo preceito).

Assim, impõe-se concluir pela rejeição do recurso nesta parte, prosseguindo o recurso para conhecimento das demais questões da competência deste tribunal (assento 10/92, DR I-A, de 6.8.1992: “Formuladas várias pretensões no recurso, podem algumas rejeitar-se em conferência, prosseguindo o recurso quanto às demais, em obediência ao princípio da cindibilidade”).

Do objeto e âmbito dos recursos

17. Em conformidade com o que vem de se expor, tendo em conta as conclusões dos recursos, há apenas que apreciar e decidir das questões de direito (artigo 432.º, n.º 1, al. b), e 434.º do CPP) relacionadas com as condenações pelo crime de homicídio qualificado, com a determinação das penas aplicadas pela sua prática e com a pena única aplicada ao arguido AA [artigos 399.º e 400.º, n.º 1, al. f), a contrario, do CPP].

Como tem sido afirmado na jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal, estando o tribunal, por razões de competência, impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, encontra-se também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que lhe digam respeito, tais como os vícios da decisão indicados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP e respetivas nulidades (artigo 379.º e 425.º, n.º 4), e de aspetos relacionadas com o julgamento dos crimes que constituem o seu objeto, aqui se incluindo as relacionadas a qualificação jurídica dos factos e com a determinação da pena correspondente ao tipo de crime realizado pela prática desses factos (assim, por todos, o acórdão de 9.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1, citado, e os acórdãos de 11.4.2012, Proc. 3989/07.5TDLSB.L1.S1, de 25.6.2015, Proc. 814/12.9JACBR.S1, e de 3.6.2015, Proc. 293/09.8PALGS.E3.S1, em www.dgsi.pt).  

O conhecimento dos recursos na parte em que são admissíveis implica que, no âmbito da sua competência, este tribunal aprecie e decida, oficiosamente ou a pedido dos recorrentes, todas as questões de direito relacionadas com o objecto e âmbito dos recursos, com vista à boa decisão destes.

18. A limitação do recurso ao reexame da matéria de direito não impede, como se disse, este tribunal de conhecer oficiosamente dos vícios da decisão recorrida a que se refere o n.º 2 do artigo 410.º do CPP – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova –, se eles resultarem do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência (supra, 9), e se a sua sanação se revelar necessária à boa aplicação do direito, como este Tribunal vem afirmando em jurisprudência constante [neste sentido, por todos, o acórdão de 15,12,2011, Proc. 17/09.0TELSB.L1.S1 (Raul Borges), e abundante jurisprudência nele citada, em www.dgsi.pt]. Trata-se, como se tem insistido, de vícios da decisão, de «lógica jurídica», de vícios lógicos do discurso decisório em matéria de facto que se revelam no texto da decisão e se evidenciam a partir dele, por si só ou em conjugação com as regras da experiência (assim, acórdão de 12-07.2018, Proc. 74/16.2JDLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt), não de erros de julgamento da matéria de facto, nomeadamente de apreciação das provas, cujo conhecimento se encontra subtraído a este Tribunal. Também não impede este tribunal de conhecer de nulidades do acórdão recorrido ou de nulidades não sanadas (idem, ibidem).

O Tribunal da Relação apreciou especificada e detalhadamente todas as questões suscitadas nos recursos (supra, 10).

Não se identifica qualquer vício da decisão recorrida – que é o acórdão da Relação e não o acórdão condenatório da 1.ª instância –, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP, que este tribunal deva conhecer, nomeadamente o de erro notório de apreciação da prova [alínea c) deste preceito], implicitamente invocado, mas não justificado, pelo recorrente AA por mera indicação da norma violada, mas que não pode constituir fundamento do recurso de acórdão da Relação, como anteriormente se explicitou.

Também não se identificam nulidades do acórdão recorrido. As nulidades invocadas pelo recorrente AA, nomeadamente as de falta de fundamentação, de exame crítico da prova e de omissão de pronúncia [artigos 374.º e 374.º, n.º 1, al. c), e n.º 2, do CPP, a que vêm aditados os artigos 97.º, n.º 5, e 163.º, n.º 1, do mesmo diploma], também por indicação das normas violadas, que se dirigem à apreciação da prova e ao julgamento da matéria de facto, dizem respeito a matérias cujo conhecimento é da competência do tribunal da Relação, que delas se pronunciou em definitivo.

Não se identifica ainda a subsistência de nulidades não sanadas que devam ser conhecidas (artigo 410.º, n.º 3, do CPP, invocado pelo recorrente AA).

Quanto à qualificação do homicídio como crime de homicídio qualificado pelas circunstâncias previstas nas alíneas e) e j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal

19. Os arguidos vêm condenados como autores de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. e) e j), do Código Penal.

Dispõe o artigo 132.º que:

«1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

2. É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: (…)

e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil; (…)

j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas; (…)».

20. Como se vê do acórdão recorrido, o arguido AA alegou, perante a Relação, que as penas são desmesuradas “porque mesmo que os factos tivessem ocorrido, sem as requeridas perícias sobre a personalidade e psiquiátrica é impossível a avaliação da culpa”, pelo que “mesmo atendendo-se aos elementos factuais de natureza objetiva, que a defesa contesta e impugnou como não provados, nunca a pena única globalmente considerada poderia, perante a escassez de outros elementos, ser superior a 14 anos de prisão, sem concretizar qual a medida em que deveriam ter sido fixadas as penas parcelares”. Não apontou, porém, “qual o critério de determinação da medida das penas que o tribunal teria violado ou quais as circunstâncias que não ponderou ou que tenha ponderado indevidamente”.

Por sua vez, perante a Relação, o arguido BB “limita-se a invocar a desmesura das penas sem apontar qualquer circunstância concreta que não tivesse sido valorada ou o fosse indevidamente”.

O que justifica a observação do Ministério Público, na resposta ao recurso e no seu parecer, de que “a discordância que o recorrente manifesta relativamente à matéria de facto não pode de novo ser apreciada pelo STJ”, pois que “é sob essa perspetiva que o recorrente contesta a qualificação do crime pela ‘premeditação’ e não sob o ponto de vista do direito”, sublinhando a “intocabilidade da decisão recorrida, no que à matéria de facto se reporta”, “ não podendo [este tribunal] debruçar-se sobre a valoração a que as instâncias procederam sobre os meios de prova” (supra, 4 e 5).

21. Como se refere no acórdão recorrido, “os recorrentes apenas questionaram a qualificação do homicídio em sede de motivação da matéria de facto, por omissão de diligência necessária para a descoberta da verdade”.

O tribunal da Relação apreciou a questão nos seguintes termos:

Improcedentes que foram as nulidades, vícios e impugnação efectuadas, pelos recorrentes, sem prejuízo da alteração efectuada à matéria de facto, que no mais se mantém, a qual permite a subsunção jurídica efectuada no acórdão, designadamente no que concerne à verificação da qualificativa do homicídio, prevista na alínea j) do art.º 132.º n.º 2 do CP que os recorrentes apenas questionam em sede de motivação da matéria de facto por omissão de diligência necessária para a descoberta da verdade.

Efectivamente

Dispõe-se no art.º 132.º n.º 1 do CP que «Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.»

E no n.º 2 dispõe-se que «É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: (…)

e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil.»

j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados, ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas».

Como esclarecidamente ensina o Prof. Figueiredo Dias, a técnica legislativa para caracterizar o homicídio qualificado do art.º 132.º do CP, revelador de uma especial censurabilidade ou perversidade, foi “a combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa com a técnica chamada dos exemplos-padrão.”

Esta técnica tem como efeito que a formação do juízo de culpa não seja automática, o que se evidencia pela utilização da expressão “é suscetível de revelar”, e por outro lado implica que possa haver outras circunstâncias análogas aquelas, que levem à culpa qualificada.

Isto é, podem verificar-se as circunstâncias previstas no art.º 132.º e apesar de tudo considerar-se que no caso concreto não houve especial culpa, mas também podem verificar-se circunstâncias análogas de um ponto de vista material às circunstâncias padrão e verificar-se o homicídio qualificado.

No caso em análise entendeu o tribunal recorrido que se verificavam as agravantes das referidas alíneas e) e j) por considerar que: quanto à frieza de ânimo ‘No presente caso, claramente verifica-se uma premeditação e frieza de ânimo assente numa reflexão sobre a forma como havia de ser atraída a vítima e ocultada a morte - a ida para Espanha, o que não só faria com que a vítima não desconfiasse das intenções dos arguidos, mas faria dilatar no tempo a notícia da morte, ou mesmo fazer com que se procurasse da mesma em Espanha - a escolha de um lugar ermo (em local que não é de passagem) para concretizar a morte, o recurso a mais uma pessoa.

Todo este engendramento não faz quedar dúvidas ao Tribunal da verificação da frieza de ânimo, sendo que, como resulta da matéria dada como provada, a ambos os arguidos se pode imputar tal juízo já que agiram conjuntamente na concretização de um plano que ambos executaram.

O motivo torpe ou fútil. No caso em apreço a motivação para a morte foi o facto do arguido AA se antagonizar com o falecido a propósito de um boato que imputava a este, relativo a um envolvimento amoroso com a testemunha EE.

Se conjugarmos este facto com o facto de o arguido AA não ter qualquer relacionamento com a testemunha EE, decorre uma absoluta desproporcionalidade entre a acção do arguido e a morte que este e o arguido BB causaram.

Sejamos claros: nem sequer se trata de uma conduta de um namorado ou marido que teria visto a sua “honra” ou posição exclusiva (fiel) posta em causa.

Tudo se trata de uma efabulação na mente do arguido AA que se vê como companheiro ou parceiro da testemunha EE e se insurge violentamente perante qualquer situação putativa, que ponha em causa a sua, mera, pretensão (aliás, não correspondida, pelo que o arguido AA nem sequer deveria legitimamente aspirar à concretização da mesma).

A esta motivação o arguido BB aderiu, porquanto participou no plano de matar o falecido DD, pelo que o juízo de reprovação também lhe é subjetivamente feito.

Os factos revelam, indubitavelmente, uma situação de absoluta desproporção, de uma futilidade, na conduta dos arguidos.

Mas mais, o respaldo factual ainda faz antever laivos de alguma torpeza se se encarar a acção do seguinte modo: elimina-se toda e qualquer possibilidade de “competição” masculina e pode ser assim que a testemunha EE anua em relacionar-se. Claramente esta qualificativa fica igualmente, verificada.’

Não obstante a matéria provada não refletir todas as considerações expostas nesta fundamentação, já que dizer, ‘(…) o que fizeram com frieza de ânimo, crueldade e em total desrespeito pela vida do ofendido, aproveitando-se da superioridade numérica e do uso de instrumento de agressão letal, o que tiveram em consideração quando antecipadamente planearam a prática dos factos descritos, revelando personalidades profundamente distanciadas dos valores aceites pela comunidade, que não pode deixar de lhes ser especialmente censurado’ contém factos genéricos e conclusivos, ainda assim os factos materiais provados sob os pontos 2, 3, 4 e 6 são aptos a permitir concluir em sede direito pela integração das referidas qualificativas, como fez a decisão recorrida.

Efetivamente, como dão conta M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, ‘A frieza de ânimo tem sido definida como o agir «de forma calculada, com imperturbada calma, revelando indiferença e desprezo pela vida» um comportamento traduzido na «firmeza, tenacidade e irrevogabilidade da resolução criminosa» (Ac. STJ 6/472006 (362/06-5). A Jurisprudência do STJ tem afirmado que a frieza de ânimo é uma ação praticada a coberto de evidente sangue frio, pressupondo um lento, reflexivo, cauteloso, deliberado calmo e imperturbado processo na preparação e execução do crime, que maquinou por forma a denotar, insensibilidade e profundo desrespeito pela pessoa e vida humanas (Ac. STJ 26/9/2007 (2591-07-3). Traduz-se na formação da vontade de praticar o facto de modo frio, reflexivo, cauteloso deliberado, calmo na preparação e execução, persistente na resolução; trata-se, assim, de uma circunstância agravante relacionada com o processo de vontade, devendo reconduzir-se às situações em que se verifica calma, reflexão ou sangue frio na preparação do ilícito insensibilidade, indiferença e persistência na execução (Ac. STJ de 21/6/2006 (913/06-3).”

Ora, a atuação dos Arguidos descritas nos pontos 2,3,4, e 6 revela uma preparação do crime, ao atrair a vítima a pretexto de lhe arranjar trabalho, que raia o embuste, mantendo-se junto da vítima ao longo do dia 17, levando esta para um local ermo, ao fim do dia, e tendo planeado o modo como iriam destruir usando um produto celerante, tudo revelador de frieza de ânimo e desprezo pela vida da vítima.

Tal atuação revela também, como considerou a decisão ora recorrida que os arguidos atuaram determinados por motivo torpe, de eliminação de uma pessoa, que era tida como um ‘rival’ numa pretensão de relacionamento.”

22. No presente recurso, o arguido AA submete a questão da qualificação jurídica dos factos, bem como a questão da determinação da pena correspondente, sob um conjunto de considerações que formula a propósito do que designa por “Erro de julgamento na apreciação dos factos quanto à definição da culpa e da medida da pena. Omissão de diligência essencial para a descoberta da verdade. Falta de exame crítico da prova.”

É assim que transcreve o que designa por “motivações sobre o tema” para o Tribunal da Relação e a conclusão que apresentou a este propósito, acrescentando que “avaliação da culpa, que culminou na medida das penas aplicadas, em particular da pena única, não pode ser desligada dos elementos factuais provados e não provados no acórdão”, que se verifica uma “grave omissão” na não realização de perícia psiquiátrica, que a defesa, diferentemente do afirmado pela Relação, nunca invocou a inimputabilidade, “mas sim o trilho intelectual que levou o tribunal (da condenação) a concluir pelas agravantes do crime, tendo omitido as perícias requeridas, como elemento essencial para a descoberta da verdade”, e que “ressalta” “uma incoerência de fundamentação”, “bastando”, para o efeito “ler o texto do acórdão originário”.

23. O que vem alegado, reconduz-se, assim, em substância, na sua formulação e intencionalidade, à invocação de erro de julgamento em matéria de facto e de insuficiência de prova dos factos dados como provados, questões que, como se viu, por dizerem respeito a matéria de facto, se inscrevem na competência do tribunal da Relação (artigo 428.º do CPP) que sobre elas se pronuncia em última instância, e que, como tal, se encontram subtraídas ao conhecimento do Supremo Tribunal, que apenas conhece de matéria de direito (artigo 434.º do CPP).

Pelo que, devendo considerar-se estabilizada a matéria de facto, é com base nela que as questões (de direito) relativas à qualificação jurídica e à determinação das penas devem ser apreciadas.

24. Como tem sido unanimemente afirmado na doutrina e na jurisprudência – relembrando os recentes acórdãos de 27.05.2020, no Proc. 45/18.4JAGRD.C1.S1. (https://blook.pt/caselaw) e de 27.11.2019, no Proc. 323/18.2PFLRS.L1.S1 (em www.dgsi.pt) –, o crime de homicídio qualificado, p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º do Código Penal, constitui um tipo qualificado por um critério generalizador de especial censurabilidade ou perversidade, determinante de um especial tipo de culpa mediante uma cláusula geral concretizada na enumeração, não taxativa (de conformidade constitucional controversa – cfr. acórdão do TC n.º 852/2014, DR II, n.º 48/2015, de 10.3.2015, que, num caso concreto, julgou inconstitucional esta interpretação), dos exemplos-padrão enunciados no n.º 2 deste preceito, indiciadores daquele tipo de culpa, projetada no facto, cuja confirmação se deve obter, no caso concreto, pela ponderação, na sua globalidade, das circunstâncias do facto e da atitude do agente [assim, entre outros, o acórdão de 09.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM.E1.S1, e os acórdãos de 5.7.2017, Proc. 1074/16.8JAPRT.P1 (Rosa Tching), de 19.2.2014, Proc. 168/11. 0GCCUB.S1 (Santos Cabral), de 2.4.2008, Proc. 07P4730 (Raul Borges), de 18.10.2007, Proc. 07P2586 (Santos Carvalho), e de 20.06.2018, Proc. 3343/15.5JAPRT.G1.S2 (Vinício Ribeiro), em www.dgsi.pt, bem como os trabalhos preparatórios – Eduardo Correia, autor do Anteprojecto, Actas da Comissão Revisora do Código Penal, edição da AAFDL, 1979, p. 21 – e a jurisprudência e doutrina naqueles citadas, incluindo Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, comentário ao artigo 132.º do Código Penal, Fernanda Palma, “O Homicídio Qualificado no Novo Código Penal Português”, Revista do Ministério Público, 1983, ano 4, vol. 15, Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1998 Augusto Silva Dias, Direito Penal - Parte Especial: Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, AAFDL, 2005, Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, Quid Juris, 2008].

Exige-se, pois, que o agente tenha agido com culpa agravada, ou seja, que as concretas circunstâncias da sua conduta permitam justificar um especial juízo de censura, pela particular gravidade do facto revelada nessas circunstâncias, as quais, na ausência de motivo suscetível de, em concreto, diminuir ou neutralizar a sua valoração, a verificarem-se, se deve considerar preencherem o critério de especial censurabilidade ou perversidade para efeitos de realização do tipo qualificado do crime de homicídio (como se sublinhou no acórdão de 27.11.2019, citado).

25. A propósito dos conceitos normativos de “especial censurabilidade e perversidade” (artigo 132.º, n.º 1, do Código Penal), escreveu-se nos acórdãos de 27.05.2020, de 27.11.2019 e de 12.07.2018, Proc. 74/16.2JDLSB.L1.S1, cit. relembrando o acórdão de 18.10.2007 (Proc. 07P2586, citando Teresa Serra): «a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No artigo 132.º, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores... Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. (…) Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor. Especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente. Importa salientar que a qualificação de especial se refere tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete».

E sobre o tipo de culpa agravado do artigo 132.º considerou-se no acórdão de 19.2.2014 (Proc. 168/11.0GCCUB.S1, cit., apud mesmos acórdãos de 27.05.2020, de 27.11.2019 e de 12.07.2018): “Refere Silva Dias (...) que a verificação do exemplo padrão do n.º 2 do art. 132.º não implica, apenas indicia, a presença de um caso de especial censurabilidade ou perversidade. Tal indício, e não mais do que isso, tem de ser confirmado através de uma ponderação global das circunstâncias de facto e da atitude do agente nele expressas. (...) O que determina a agravação é sempre um acentuado desvalor da atitude do agente, quer o mesmo se exprima numa maior intensidade do desvalor da ação, quer numa motivação especialmente desprezível. Nas palavras de Margarida Silva Pereira ["Os Homicídios" pág. 40] a caracterização do art. 132.º do CP passa pela intersecção de três eixos fundamentais, a saber: a exclusão da aplicação automática; a aferição da qualificação por um critério de culpa no sentido de que se utilize os parâmetros consagrados e tipificados para aquilatar se no caso concreto existe de igual forma uma culpa especial e a permissão do recurso à analogia pois que ao juiz cabe sempre a possibilidade de construir em concreto os pressupostos da afirmação de uma especial censurabilidade, ou perversidade, os quais, embora não subsumíveis aos exemplos padrão, constituem, ainda assim, a demonstração de uma especial intensidade da culpa. Todavia, importa salientar que a valoração da culpa operada pelo art. 132.º do CP não aparece desligada de uma ilicitude qualitativamente mais intensa. (...) A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua atuação, sendo um tipo de culpa. Seguindo Roxin, por tipo de culpa entende-se aquele que, na descrição típica da conduta, contém elementos da culpa que integra fatores relativos à atuação do agente que estão relacionados com a culpa mais grave ou mais atenuada. A culpa consiste no juízo de censura dirigido ao agente pelo facto de este ter atuado em desconformidade com a ordem jurídica quando podia, e devia, ter atuado em conformidade com esta, sendo uma desaprovação sobre a conduta do agente. O juízo de censura, ou desaprovação, é suscetível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela atuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas. (...) O especial tipo de culpa do homicídio qualificado é conformado através da especial censurabilidade ou perversidade do agente. Como refere Figueiredo Dias a lei pretende imputar à especial censurabilidade aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refração ao nível da atitude do agente de formas de realização do ato especialmente desvaliosas e à especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta diretamente na documentação no facto de qualidades do agente especialmente desvaliosas. Enumera o normativo em análise um catálogo dos exemplos padrão e o seu significado orientador como demonstrativo do especial tipo de culpa que está associado à qualificação”.

26. Consideram as instâncias que o recorrente agiu por «motivo torpe ou fútil», com «frieza de ânimo» e com «premeditação», circunstâncias qualificativas do crime de homicídio previstas nas alíneas e) e j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.

27. Retomando o que se disse nos acórdãos de 27.05.2020 (45/18.4JAGRD.C1.S1), de 05.07.2017 (Proc. 1074/16.8JAPRT.P1), de 15.01.2019 (Proc. 4123/16.6JAPRT.G1.S1), em www.dgsi.pt, e de 29.04.2020 (Proc. 16/05.0GGVNG.S1, em  ECLI:PT:STJ:2020:16.05.0GGVNG.S1), sobre o exemplo-padrão da alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal:

Contempla este exemplo-padrão, sob o denominador comum da premeditação, a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados e o protelamento da intenção de matar por mais de 24 horas. Trata-se de circunstâncias agravativas relacionadas com o processo de formação da resolução criminosa.

Segundo Fernando Silva (Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas, Quid Juris, 2008, 2ª edição, págs. 60 e segs.), «A ideia fundamental nesta circunstância é a da premeditação. Pressupondo uma reflexão da parte do agente. O que acontece é a influência do factor tempo, e o facto de se ter estudado a forma de preparar o crime, demonstram uma atitude de maior desvio em relação à ordem jurídica. O decurso do tempo deveria fazer o agente cessar a sua vontade de praticar o crime, quanto mais medita sobre a sua prática mais exigível se torna que não actue desse modo». «Nestes casos o agente prepara o crime, pensa nele, reflecte sobre o acto, e mesmo assim decide matar, combatendo a ponderação que se lhe impunha».

A premeditação, reveladora, indiciariamente, de especial censurabilidade ou perversidade na prática do crime, surge, assim, materializada em três situações:

A frieza de ânimo, que, na expressão do acórdão de 06.01.2010, Proc. 38/08.2JAAVR.C1.S1 (Oliveira Mendes), se traduz «na actuação calculada, reflexiva, em que o agente toma a sua deliberação de matar e firma a sua vontade de modo frio, denotando um sangue frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante a vítima, ou seja, quando o agente, tendo oportunidade de reflectir sobre a sua intenção ou plano, ponderou a sua actuação, mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto» (neste mesmo sentido, cfr. Fernando Silva, loc. cit., págs. 83 e 84 e entre muitos outros, os acórdãos do STJ, de 17.04.2013, Proc. 237/11.7JASTB.L1.S1 (Raul Borges); de 13.11.2013, Proc. 2032/11.4JAPRT.P1.S1 (Maia Costa), de 19.02.2014, Proc. 168/11.0GCCUB.S1 (Santos Cabral) e de 12.03.2015, Proc. 405/13.7JABRG.G1.S1 (Francisco Caetano).

A reflexão sobre os meios empregados (Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, 3ª ed., II vol., págs 27 e 28), consiste na escolha ponderada pelo agente dos meios de atuação que, por força do efeito letal que possuem, facilitem a execução do crime projectado ou proporcionem mais probabilidades de êxito. Traduz-se, deste modo, na preparação meditada do crime, no estudo de um plano de acção para o executar, significando, no dizer do Acórdão do STJ, de 14.05.2009, Proc. 389/06.8GAACN.C1.S1 (Armindo Monteiro), «um amadurecimento temporal sobre o modo de o praticar, a congeminação serena e perdurante no campo da consciência da ideação de matar e dos meios a usar».

A persistência na intenção de matar por mais de 24 horas (premeditação propriamente dita), traduzida na preparação meditada do crime, no estudo de um plano de acção para o executar e na persistência no propósito de matar por mais de 24 horas, tempo considerado suficiente para o agente poder vencer emoções, ultrapassar impulsos súbitos e ponderar o alcance e consequências do ato (Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Vol. I, 2ª ed., págs. 83 e 84 e Fernando Silva, in, “Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas”, Quid Juris, 2008, 2ª edição, págs. 83 e 84) ”.

De tudo se extraindo que, para verificação da culpa agravada reveladora de especial perversidade ou censurabilidade, numa visão global do facto, se torna necessário que, para que se possa concluir que o agente atuou com “reflexão sobre os meios empregados”, das suas concretas circunstâncias resulte que este, no processo de formação e execução da sua vontade criminosa, com a intenção determinada de causar a morte da vítima, persistente num significativo período de tempo que lhe permite atuar de outro modo, agiu de forma pensada, calculada, ponderada, firme e reveladora de particular indiferença, insensibilidade e desprezo pela vida humana. Assim se devendo formular o juízo de censura na base de um especial nível de gravidade, para além do plano de censurabilidade que a lesão da vida humana em si mesma encerra, sob pena de qualquer comportamento causador da morte, pela gravidade que, por definição, comporta, se reconduzir, em regra, a formas qualificadas de homicídio agravado, com risco de esvaziamento da previsão típica fundamental do crime de homicídio.

28. Quanto ao “motivo torpe ou fútil”, indicado na al. e) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, a doutrina e a jurisprudência vêm salientando unanimemente que se trata de um exemplo-padrão “estruturado com apelo a elementos estritamente subjetivos, relacionados com a especial motivação do agente”. Atuar determinado por “qualquer motivo torpe ou fútil” significa que “o motivo da atuação, avaliado segundo as conceções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana”. Adverte-se, porém, que a situação pode ser “uma tal que a motivação, se bem que expressa, não possa em definitivo valer como especial censurabilidade ou perversidade, maxime, por se ligar a um estado de afecto particularmente intenso” (Figueiredo Dias / Nuno Brandão, Comentário Conimbricense, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2012, pp. 62, 63).

Como se escreveu no acórdão de 09.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM.E1.S1 (em www.dgsi.pt), motivo «torpe», que se deverá distinguir do motivo «fútil», embora de idêntica motivação, é um motivo vil, abjeto, revelador de baixo carácter, repugnante, ignóbil, nitidamente revelador de profundo desprezo pela vida humana [assim, também, entre outros, os acórdãos de 29.11.2018, proc. 1742/16.4JAPRT.P1.S1 (Clemente Lima), e de 02.03.2017, proc. 126/15.6PBSTB.E1 (Manuel Braz), em www.dgsi.pt].

Torpe é o motivo que mais ofende a moralidade média ou o sentimento ético social. É o motivo abjeto, ignóbil, repugnante, que imprime ao crime um caráter de extrema vileza ou imoralidade. Motivo fútil é o motivo de importância mínima, o motivo sem valor, insignificante para explicar ou tornar aceitável, dentro do razoável, a atuação do agente do crime, desproporcionado e sem sentido perante o senso comum, por ser totalmente irrelevante na adequação ao facto, sem explicação racional plausível, radicando num egoísmo mesquinho e insignificante do agente [assim, entre outros, os acórdãos de 26.11.2008 Proc. 08P3706 (Fernando Fróis), de 10-12-2008, Proc. 08P3703 (Pires da Graça), de 06.01.2010 , Proc. 238/08.2JAAVR.C1.S1 (Oliveira Mendes), de 17-04-2013, Proc. 237/11.7JASTB.L1.S1 (Raul Borges), em www.dgsi.pt]. O motivo é fútil quando, pela sua insignificância ou frivolidade, é notavelmente desproporcionado, do ponto de vista do homo medius e em relação ao crime. Se o motivo torpe revela um grau particular de perversidade, o motivo fútil traduz o egoísmo intolerante, prepotente, mesquinho, que vai até à insensibilidade moral (Simas SANTOS /Leal Henriques, Código Penal Anotado, Vol. III, Rei dos Livros, 2016, p. 71, citando também Nelson Hungria).

O motivo torpe é aquele em que o agente revela baixeza de caráter, constituindo um motivo repugnante, desonesto ou nojento (Fernando Silva, op. cit, p. 79); o motivo torpe ou fútil é o motivo incompreensível ou inexplicável à luz do modo de agir do homem médio ou mesmo revelador de baixo carácter (Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3.ª ed., Católica Editora, 2015, p. 512).

29. Verificando a fundamentação do acórdão condenatório que o acórdão da Relação reproduz e acolhe, mostra-se que nesta se identificam elementos e considerações que não constam da matéria de facto provada, que, por isso, não podem ser levados em conta. É o que sucede quando se afirma: a propósito da qualificativa “premeditação e frieza de ânimo”, sobre a forma de atração da vítima e sobre a intenção de ocultar a morte, que “a ida para Espanha, o que não só faria com que a vítima não desconfiasse das intenções dos arguidos, mas faria dilatar no tempo a notícia da morte, ou mesmo fazer com que se procurasse da mesma em Espanha - a escolha de um lugar ermo (em local que não é de passagem) para concretizar a morte; e, a propósito do “motivo torpe ou fútil”, se considera que “[t]udo se trata de uma efabulação na mente do arguido AA que se vê como companheiro ou parceiro da testemunha EE e se insurge violentamente perante qualquer situação putativa, que ponha em causa a sua, mera, pretensão (aliás, não correspondida, pelo que o arguido AA nem sequer deveria legitimamente aspirar à concretização da mesma)”e que “o respaldo factual ainda faz antever laivos de alguma torpeza se se encarar a acção do seguinte modo: elimina-se toda e qualquer possibilidade de “competição” masculina e pode ser assim que a testemunha EE anua em relacionar-se”.

Para além disso, a fundamentação de facto (que reproduz o ponto 12 da matéria de facto provada) contém elementos de caráter normativo e conclusivo, como observa o acórdão recorrido, não refletidos na fundamentação, ao dizer “(…) o que fizeram com frieza de ânimo, crueldade e em total desrespeito pela vida do ofendido, aproveitando-se da superioridade numérica e do uso de instrumento de agressão letal, o que tiveram em consideração quando antecipadamente planearam a prática dos factos descritos, revelando personalidades profundamente distanciadas dos valores aceites pela comunidade, que não pode deixar de lhes ser especialmente censurado”.

O acórdão da Relação considera que “ainda assim os factos materiais provados sob os pontos 2, 3, 4 e 6 são aptos a permitir concluir em sede direito pela integração das referidas qualificativas, como fez a decisão recorrida”, concluindo que “a atuação dos Arguidos descritas nos pontos 2, 3, 4, e 6 revela uma preparação do crime, ao atrair a vítima a pretexto de lhe arranjar trabalho, que raia o embuste, mantendo-se junto da vítima ao longo do dia 17, levando esta para um local ermo, ao fim do dia, e tendo planeado o modo como iriam destruir usando um produto celerante, tudo revelador de frieza de ânimo e desprezo pela vida da vítima” e que “[t]al atuação revela também, como considerou a decisão ora recorrida que os arguidos atuaram determinados por motivo torpe, de eliminação de uma pessoa, que era tida como um ‘rival’ numa pretensão de relacionamento”.

Pelo que, o que está em causa é saber se dos factos provados, tal como descritos, nomeadamente nos pontos 2, 3, 4 e 6, se pode extrair a conclusão de que os arguidos agiram por motivo “fútil ou torpe” e com “premeditação” ou “frieza de ânimo”, de modo a poder concluir-se pela qualificação do crime de homicídio com base nestas circunstâncias, por reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade.

30. Não oferece dúvida que a matéria de facto provada, tendo em consideração o tempo que decorreu entre o “anúncio” da intenção de matar de matar a vítima (ponto 2 dos factos provados), a elaboração do plano homicida (facto 3), a combinação com a vítima em encontrar-se com ela no dia 17/8/2019 da parte da manhã, encontro que ocorreu como previamente combinado (ponto 3 dos factos provados), o facto de os arguidos terem estado com a vítima durante o dia 17/8/2019 (ponto 4 dos factos provados) e de, na sequência do plano, a vítima ter acompanhado os arguidos no veículo automóvel conduzido pelo arguido AA (ponto 5 dos factos provados), depois das 20 horas desse dia, até ao local do crime cometido entre as 20h39m e as 20h51m, num caminho florestal (pontos 4 e 6 dos factos provados), com nove golpes violentos no queixo e no pescoço da vítima, que lhe causaram a morte no local (ponto 6 dos factos provados), permite a conclusão de que os arguidos agiram com “frieza de ânimo” e com “premeditação”, no sentido de atuação “com reflexão sobre os meios empregados”, bem como, a de que, com suficiente segurança, se revela a persistência na intenção de matar por um período de tempo considerável, superior a vinte e quatro horas

Estas circunstâncias mostram que, no processo de formação da resolução criminosa, de preparação e de execução do crime, em conformidade com um plano previamente definido, e em execução desse plano, o fator tempo, a reflexão, a escolha do modo, do instrumento com que se muniram previamente, do tempo e do local desempenharam um papel fundamental e que os arguidos, agindo assim, o fizeram de forma calculada, firme, serena e com sangue-frio.

Pelo que, ponderando estas circunstâncias no seu conjunto, que transmitem a imagem global do facto, se deve concluir que se mostram preenchidas as três hipóteses normativas enumeradas na alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, ou seja, a “frieza de ânimo”, a “reflexão sobre os meios empregados” e a persistência da intenção de matar por mais de 24 horas, reveladoras de especial perversidade ou censurabilidade, para efeitos do n.º 1 do mesmo preceito.

31. O mesmo não sucede, porém, quanto à circunstância qualificativa prevista na alínea e) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, ou seja, quanto ao “motivo fútil ou torpe”.

Relevam decisivamente com interesse para a caraterização desta circunstância os factos de o arguido AA ter “desenvolvido uma paixão obsessiva” por EE (ponto 2 dos factos provados) e de os arguidos “pelas sobreditas razões passionais” terem desferido os golpes de que resultou a morte da vítima DD (ponto 6 dos factos provados). De notar que, conforme a descrição do ponto 2 da matéria de facto provada, o facto de a vítima “ter criado o rumor de que manteria um relacionamento amoroso com a EE” surge como a razão do conflito do arguido AA com a vítima, que levou aquele a anunciar que a havia de matar. A expressão “por este ter criado o rumor de que manteria um relacionamento amoroso com a EE”, separada da expressão “anunciando que havia de o matar”, entre vírgulas, surge ligada à primeira parte da frase, onde se afirma que “o arguido AA mantinha um conflito com DD”, explicitando a razão de ser do conflito. Porém, mesmo que se interprete a expressão no sentido de que o arguido anunciou que havia de matar DD “por este ter criado o rumor de que manteria um relacionamento amoroso com a EE”, o “rumor” funcionaria aqui apenas como razão de ser de tal “anúncio” ou expressão de vontade de causar a morte, no futuro, relevando para a formação e persistência da vontade, mas não como elemento inserido no processo concreto de realização dessa vontade.

O que remete para a figura do crime de homicídio por “razões passionais” ou para o vulgarmente designado por “crime passional”, que, pelas possibilidades de perturbação ou interferência na liberdade da formação e execução da vontade criminosa, pode relevar, não para a agravação da culpa, mas para a sua atenuação ou, mesmo, exclusão, nos casos mais graves. Não sendo um motivo “fútil” ou “torpe”, no sentido que lhe é atribuído (supra, 28), a paixão, enquanto expressão de sentimentos profundos e obsessivos, como adverte Figueiredo Dias (supra, 28), pode conduzir a situações em que “a motivação não possa em definitivo valer como especial censurabilidade ou perversidade, maxime, por se ligar a um estado de afeto particularmente intenso”.

32. A violação do “dever de agir de outra maneira”, em conformidade com o direito, em que se traduz a culpa jurídico-penal e o seu inerente juízo de censura, não se limitando ao dolo ou negligência, comporta, na sua avaliação, a apreciação de outros elementos que, nas conceções político-criminais refletidas no Código Penal, relevam para a exclusão de culpa, por via da inimputabilidade – incapacidade de, no momento da prática do facto, por força de “anomalia psíquica”, avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação (artigo 20.º) –, do excesso de legítima defesa desculpante (artigo 33.º) – com fundamento no facto de o agente estar a reagir a uma agressão ilícita – e do estado de necessidade desculpante (artigo 35.º) – pelo facto de o agente estar a salvaguardar bens ou interesses de elevado valor. Diferentemente do que sucedia no Projeto de 1963 (artigo 45.º), que, refletindo o pensamento de Eduardo Correia, estabelecia uma causa geral de exclusão da culpa por inexigibilidade, o Código Penal apenas a admite, por refração deste princípio, nos casos dos artigos 33.º e 35.º.

Os “estados emocionais” ou “estados de afeto”, como a paixão ou o ciúme, “em casos de particular intensidade”, “substancialmente análogos, para os efeitos aqui em causa, aos estados patológicos” de “anomalia psíquica” poderão constituir o “substrato psicológico idóneo de um juízo de inimputabilidade” por traduzirem “perturbações profundas da consciência” (artigo 20.º do Código Penal) (assim, Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 3.ª ed., Gestlegal, 2019, pp. 676-677), ou, noutra conceção doutrinária, seguindo via diferente, por inexigibilidade, embora reconhecendo que a relevância que lhe é conferida pelo Código Penal não deixa lugar à consideração de outras formas de inexigibilidade para além das taxativamente previstas (Curado Neves, A Problemática da Culpa nos Crimes Passionais, Coimbra Editora, 2008, p. 648-649, em particular).

Embora a imputabilidade não venha questionada, a delimitação da exclusão de culpa nos termos expostos, nela se incluindo a consideração da relevância da inexigibilidade nos termos em que se reflete no Código Penal, permite situar o seu regime normativo, no âmbito da apreciação do alegado “erro na apreciação da culpa” [supra, 11 (a)].

Não estando em causa qualquer destes motivos de exclusão da culpa, a questão a decidir traduzir-se-á em saber se ocorre motivo de atenuação da culpa que afaste a qualificação do crime de homicídio por culpa agravada por especial censurabilidade ou perversidade.

33. A este respeito, importa levar em conta o artigo 133.º do Código Penal que consagra um tipo de crime de homicídio privilegiado relativamente ao tipo fundamental de homicídio, fundada numa atenuação da culpa, que cobre os casos em que, não obstante a ilicitude e a culpabilidade do facto, a motivação do agente, por “emoção violenta”, é “compreendida”, na presença de determinados requisitos. Nos termos deste preceito, “Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos”.

Embora os “estados passionais” sejam suscetíveis de dar origem a reações muito diversas, nomeadamente a “emoções violentas”, habitualmente de curta duração (furor brevis), que podem dominar o agente do crime no momento da sua prática, e, como tal, devam ser consideradas na perspetiva deste preceito, é manifesto que a matéria de facto dada como provada impõe conclusão oposta, que dispensa a verificação dos respetivos requisitos. Não se demonstra que os arguidos, em particular o arguido AA, ao porem termo à vida da vítima, estivessem “dominados” por “paixão” ou “impulso cego” que não conseguissem controlar. Pelo contrário, provou-se que arguido AA havia desenvolvido “uma paixão excessiva” por EE, que “pelas sobreditas razões passionais” desferiram os golpes de que resultou a morte, e que, com intenção de causar a morte, o fizeram de forma fria, firme, planeada, calculada e premeditada, prolongada no tempo, com escolha do meio, do momento e do local para a consumação do crime, ou seja de forma especialmente censurável e perversa, o que, pelo funcionamento destas circunstâncias de agravação, se opõe à formulação de um juízo de atenuação da culpa.

Agindo por essas razões passionais, os arguidos atuaram de modo a dar satisfação a essas razões, em violação grave dos valores e normas essenciais à vida em comunidade, nomeadamente do direito à vida, cujo respeito se lhes impunha, ou seja, com culpa especialmente agravada.

34. Em consequência do que vem de se expor, impõe-se concluir que carece de fundamento a alegação do arguido AA de “erro na apreciação da culpa”, por os factos provados “apontarem no sentido” da “não premeditação do crime”, e, em consequência do “esvaziamento” desta circunstância qualificativa do homicídio, “levando a supor que se terá tratado de uma desavença momentânea entre o arguido e a vítima, ocorrida de modo inesperado e instantâneo, por motivo desconhecido” [supra, 11 (a)].

Carece igualmente de fundamento a alegação, do mesmo arguido, de erro na qualificação jurídica dos factos, que, do seu ponto de vista, se reconduzem a crime “de ofensa à integridade física grave, agravado pelo resultado” ou a um crime de “homicídio simples” [supra, 11 (b)], pois que, estando afastada a valoração do “motivo passional” com base no artigo 133.º, e não obstante a não verificação da circunstância de qualificação da previsão da alínea e) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal (“motivo fútil ou torpe”), os factos provados conduzem à conclusão de que o arguido cometeu um crime de homicídio qualificado por especial censurabilidade ou perversidade, por ocorrerem as circunstâncias indicadas na alínea j) do n.º 2 do mesmo preceito. O que, fundando-se em agravação da culpa, exclui, por oposição, a atenuação a que o artigo 72.º, cuja violação vem alegada, confere relevância para a atenuação especial da pena.

Do exposto decorre que, com a alteração imposta pela exclusão da alínea e) do n.º 2 do artigo 132.º, o recurso não merece provimento nesta parte.

Quanto às penas

35. O arguido AA vem condenado na pena de 23 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão pela prática de um crime de profanação de cadáver, na pena de 6 meses de prisão pela prática de um crime de detenção de arma proibida e, em cúmulo jurídico destas penas, na pena única de 24 anos de prisão. Pretende a redução para “um patamar próximo do mínimo legal”, por “homicídio simples”, e que a pena única seja reduzida “para limite próximo dos 16 anos de prisão”.

O arguido BB vem condenado na pena de 10 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, na pena de 7 meses de prisão pela prática de um crime de profanação de cadáver, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 10 anos e 4 meses de prisão. Considera que a pena é “exagerada” e que deveria ser especialmente atenuada nos termos da al. a) do n.º 2 do artigo 72.º do Código Penal (atuação sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem depende ou a quem deve obediência).

36. De acordo com o disposto nos artigos 71.º, n.º 3, do Código Penal e 375.º, n.º 1, do CPP, que concretizam o dever de fundamentação das decisões judiciais estabelecido no artigo 205.º da Constituição, na sentença são expressamente referidos e especificados os fundamentos da medida da pena. O acórdão recorrido fundamenta a decisão nos seguintes termos;

36.1. Quanto ao arguido AA:

«O acórdão recorrido [da 1.ª instância] em sede de determinação da medida das penas considerou:

‘Quanto ao arguido AA:

Considerando que a ilicitude dos factos é intensíssima nos crimes de homicídio e de profanação de cadáver e já relevante em relação à detenção de munições; traduzida essa ilicitude na amplitude com que os bens jurídicos tutelados foram violados. Relembre-se em relação ao homicídio verificam-se duas qualificativas pelo que uma delas é ponderada nesta sede, o que milita contra o arguido. Por outro lado, tem-se em linha de conta a forma como a profanação do cadáver ocorreu, a qual foi feita, inclusive, com recurso a combustível acelerante. Em relação às munições atenta-se no número das mesmas – 23 – e no facto das mesmas estarem em condições de serem deflagradas;

Considerando que os motivos do homicídio foram já tidos em conta na qualificativa respectiva, pelo que não podem ser novamente valorados;

Considerando os sentimentos e o modo de execução dos factos, considerando-se, aqui, a frieza de ânimo com que os arguidos agiram;

Considerando que ao nível das consequências os factos se repercutem na dor de uma mãe e de irmãos que viram o seu ente querido ser brutalmente assassinado;

Considerando que o arguido agiu sempre com dolo directo e numa intensidade de censura elevadíssima;

Considerando os antecedentes criminais do arguido, sem olvidar que foi já condenado pela prática de um crime de homicídio o que revela extremas necessidades de prevenção especial;

Considerando a inserção sócio-económica do arguido;

Julga-se adequado, necessário e proporcional aplicar as penas de: 23 anos de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado; 1 ano e 2 meses de prisão pelo crime de profanação de cadáver; e 6 meses de prisão pelo crime de detenção proibida de munições.’»

36.2. Quanto ao arguido BB:

«[O tribunal de 1.ª instância considerou] quanto ao arguido BB:

‘Considerando que a ilicitude dos factos é intensíssima nos crimes de homicídio e de profanação de cadáver, traduzida essa ilicitude na amplitude com que os bens jurídicos tutelados foram violados;

Relembre-se em relação ao homicídio verificam-se duas qualificativas pelo que uma delas tem de ser ponderada nesta sede, o que milita contra o arguido.

Por outro lado, tem-se em linha de conta a forma como a profanação do cadáver ocorreu, a qual foi feita, inclusive, com recurso a combustível acelerante. Considerando que os motivos do homicídio foram já tidos em conta na qualificativa respectiva, pelo que não podem ser novamente valorados;

Considerando os sentimentos e o modo de execução dos factos, considerando-se, aqui, a frieza de ânimo com que os arguidos agiram;

Considerando que ao nível das consequências os factos se repercutem na dor de uma mãe e de irmãos que viram o seu ente querido ser brutalmente assassinado;

Considerando que o arguido agiu sempre com dolo directo e numa intensidade de censura elevada

Considerando a inexistência de antecedentes criminais do arguido, sem descurar de que padecesse da necessidade de interiorização de condutas conforme a ordem jurídica;

Considerando a inserção sócio-económica do arguido, que se consubstancia numa ausência total de actividade laboral vivendo a expensas da progenitora;

Julga-se adequado, necessário e proporcional aplicar as penas de: 10 anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado; e 7 meses de prisão pelo crime de profanação de cadáver.”

Alega o recorrente MP que mantendo-se a atenuação especial da pena quanto ao Arguido BB, que deve ser aplicada pelo crime de homicídio qualificado uma pena não inferior a 13 anos de prisão e pelo crime de profanação de cadáver uma pena não inferior a 9 meses de prisão, tendo em conta “…”

Contralega o Arguido BB quer no recurso interposto quer na resposta ao recurso do MP, que: “sem as requeridas perícias sobre a personalidade e psiquiátrica é impossível a avaliação da culpa” e que “mesmo atendendo-se aos elementos factuais de natureza objectiva, que a defesa contesta e impugnou como não provados, nunca a pena única globalmente considerada poderia, perante a escassez de outros elementos, ser superior a 8 anos de prisão’».

36.3. Apreciando o decidido em 1.ª instância, diz o tribunal da Relação:

«Nos termos do art.º 71.º do C. Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra aquele, designadamente as elencadas nesse preceito. Por outro lado, nos termos do art.º 40.º n.º 2 do CP, a pena não pode ultrapassar a medida da culpa.

Culpa e prevenção são, nas palavras do Prof. Figueiredo Dias, os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena, o que vale dizer de determinação concreta da pena. Sendo que o modelo de determinação da medida da pena que melhor combina os critérios da culpa e da prevenção é “aquele que comete à culpa a função (única, mas nem por isso decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena: à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma «moldura de prevenção», cujo limite é fornecido pelas exigências irrenunciáveis do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida «moldura de prevenção», que melhor sirva as exigências de socialização (ou em casos particulares, de advertência ou de segurança do delinquente”).

Verifica-se que a decisão recorrida ponderou as circunstâncias relativas à culpa, à ilicitude da conduta, as consequências da mesma e as condições socio-económicas do arguido de acordo com os critérios legais do art.º 71.º n.º 1 e atendendo às circunstâncias referidas no n.º 2 do CP, aplicando pelo crime de homicídio qualificado uma pena acima do meio da moldura penal e pelo crime de profanação de cadáver uma pena próxima do meio da pena.

Como já anteriormente se referiu, não se suscitando de forma fundamentada nos autos, a inimputabilidade do Arguido, e não se verificando alguma nulidade de que cumpra conhecer, a matéria provada exposta no acórdão recorrido revela-se suficiente para a determinação da medida das penas.

O recorrente Arguido, limita-se a invocar a desmesura das penas sem apontar qualquer circunstância concreta que não tivesse sido valorada ou o fosse indevidamente.

Assim e ponderando todas as circunstâncias enunciadas na decisão recorrida, para além da ausência de algum acto de contrição revelador da interiorização da conduta, tendo em conta que a actividade judicial de determinação da pena é, toda ela, juridicamente vinculada (artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal), pelo que, em sede de recurso, o procedimento, as operações e a aplicação dos princípios gerais de determinação da pena são susceptíveis de revista pelo tribunal superior quando “tiverem sido violadas regras de experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” – Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral, II - As Consequências Jurídicas do Crime, § 255, as penas parcelares aplicadas ao Arguido BB revelam-se proporcionais e adequadas, não necessitando de intervenção correctiva..

O Arguido AA alega também que as penas parcelares e única “são desmesuradas” porque mesmo que os factos tivessem ocorrido “sem as requeridas perícias sobre a personalidade e psiquiátrica é impossível a avaliação da culpa”, pelo que “mesmo atendendo-se aos elementos factuais de natureza objectiva, que a defesa contesta e impugnou como não provados, nunca a pena única globalmente considerada poderia, perante a escassez de outros elementos, ser superior a 14 anos de prisão.”, sem concretizar qual a medida em que deveriam ter sido fixadas as penas parcelares.

Sobre a questão das perícias requeridas damos por reproduzido o que supra já se referiu aquando da apreciação desta questão e da determinação da medida das penas quanto ao Arguido BB.

No caso concreto do crime de homicídio qualificado a moldura abstracta, oscila entre 12 a 25 anos de prisão.

O recorrente não aponta qual o critério de determinação da medida das penas que o tribunal teria violado ou quais as circunstâncias que não ponderou ou que tenha ponderado indevidamente.

Assim dando por reproduzidos os critérios da determinação da medida da pena supra expostos e não se detectando algum erro lógico ou violação de critério legal na determinação da medida das penas aplicadas na decisão recorrida, as quais se revelam proporcionais às circunstâncias aí ponderadas, designadamente à culpa e ilicitudes muito elevadas e às fortes exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir, mantêm-se as mesmas.

36.4. E, quanto às penas únicas, diz o acórdão do tribunal da Relação:

Ambos os Arguidos alegam ser as penas únicas fixadas desmesuradas.

Dispõe o art.º 77.º n.º 1 do CP que «Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.»

A moldura abstracta nos termos do art.º 77.º n.º 2 do CP oscila no caso do Arguido AA entre 23 anos e 24 anos e 8 meses de prisão e no caso do Arguido BB entre 10 anos e 10 anos e 7 meses de prisão.

Os critérios para a fixação da pena única são para além dos critérios decorrentes do art.º 71.º do CP, os estabelecidos no art.º 77.º do CP, onde se dispõe que na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

O tribunal aplicou ao Arguido AA a pena única de 24 (vinte e quatro) anos de prisão e em relação ao Arguido BB 10 (dez) anos 4 (quatro) meses de prisão com a seguinte fundamentação:

“Quanto ao arguido AA, está em causa a prática de um crime de homicídio qualificado, de um crime de profanação de cadáver e de detenção ilegal de munições, que ocorreram num período perfeitamente delimitado no tempo.

A prática dos crimes de homicídio e de profanação de cadáver concretizou-se na aplicação de um plano bem delineado com preparação, escolha de local adequado, invenção de estória enganosa como engodo e motivada por uma futilidade, pela efabulação do arguido AA (ao que o arguido BB aderiu) e relativa a uma pretensão amorosa não correspondida.

A prática destes dois crimes visou o “retirar de cena”, o “eliminar” de DD, enquanto pessoa que poderia retirar o lugar que o arguido AA pretendia numa relação amorosa com a testemunha EE.

A detenção das munições, ainda que não tenha ligação com o homicídio e a profanação de cadáver, considerando a sua quantidade e aptidão a funcionar, revela, igualmente a personalidade do arguido no quanto está disposto a deter objectos com capacidade letal.

Daqui decorre, desde logo, que a gravidade global dos factos é intensíssima e a ilicitude pungente.

A personalidade do agente é retratada pelo que transparece do respectivo relatório social, sem se descurar que os factos revelam alguém obcecado, tenaz e de ideias fixas, sem ver os limites impostos pela sã convivência em sociedade servirem-lhe de limite à sua actuação.

Sejamos claros: o arguido matou DD porque este propalou ter tido um contacto amoroso com a testemunha EE…pessoa com a qual o arguido nenhuma relação amorosa tinha, nem podia legitimamente a ela aspirar atenta a manifestação expressa de EE nesse sentido.

Para além do mais, no que toca à autocrítica, ou seja, no juízo que faz sobre os crimes praticados o arguido não denota qualquer arrependimento.

No que às necessidades de prevenção geral concerne não pode este Tribunal escamotear que os crimes praticados geraram (e geram) grande alarme social: os factos são uma imagem de horror.

Atentando em toda a factualidade disponível não se pode afirmar que se está perante uma mera pluriocasionalidade, já que os factos apurados quanto aos antecedentes criminais do arguido fazem resvalar o juízo para além dessa plúrima actuação delituosa.

Tudo ponderado, num juízo de adequação, necessidade e proporcionalidade o Tribunal entende que a pena única se deve fixar nos 24 anos de prisão.

Quanto ao arguido BB, igualmente está em causa a prática de um crime de homicídio qualificado e de um crime de profanação de cadáver, que ocorreram num período perfeitamente delimitado no tempo.

Como supra foi referido a prática dos crimes de homicídio e de profanação de cadáver concretizou-se na aplicação de um plano bem delineado com preparação, escolha de local adequado, invenção de estória enganosa como engodo e motivada por uma futilidade, pela efabulação do arguido AA (ao que o arguido BB aderiu) e relativa a uma pretensão amorosa não correspondida do arguido AA.

A prática destes dois crimes visou o “retirar de cena”, o “eliminar” de DD, enquanto pessoa que poderia retirar o lugar que o arguido AA pretendia numa relação amorosa com a testemunha EE.

Daqui decorre, desde logo, que a gravidade global dos factos é intensíssima e a ilicitude pungente.

A personalidade do agente é retratada pelo que transparece do respectivo relatório social, sem se descurar que os factos, quanto ao arguido BB revelam alguém que secundou o pai na sua pretensão homicida, deixando a claro uma personalidade que vê na lealdade filial algo forte o bastante para se permitir matar outrem, não obstante o motivo fútil.

A falta de arrependimento é, também, reveladora da inexistência de autocrítica, fazendo com que as necessidades de prevenção especial sejam elevadas.

No que às necessidades de prevenção geral concerne não pode este Tribunal escamotear que os crimes praticados geraram (e geram) grande alarme social: os factos são uma imagem de horror.

A circunstância do arguido BB ser primário e não lhe ser conhecida a prática de mais crimes, concatenada com a ausência de qualquer outra dimensão factual implicam que apenas se possa concluir por um pluriocasionalidade. Tudo ponderado, num juízo de adequação, necessidade e proporcionalidade o Tribunal entende que a pena única se deve fixar nos 10 anos e 4 meses de prisão”.

Os Arguidos não indicam qual o critério na determinação das penas únicas que o tribunal terá violado.

Considerando como referência que “em regra o STJ, na formação da pena única, não ultrapassa a soma da pena mais grave com um terço das penas restantes – embora aqui não haja um rigor matemático e pode admitir-se alguma margem para cima ou para baixo consoante se tratar ou não de criminalidade muito grave – (...)” face às molduras abstractas enunciadas, e às circunstâncias ponderadas na determinação das medidas das penas parcelares, realçando-se como fez a decisão recorrida a gravidade global dos factos e elevada ilicitude dos mesmos expostos na fundamentação da decisão recorrida, e elevadíssimas as necessidades de prevenção geral, face aos valores sociais atingidos e de prevenção especial atenta a inexistência de alguma atitude reveladora de interiorização das condutas, não se denota a violação de qualquer critério legal, sendo as penas únicas aplicadas proporcionais e justas, pelo que se mantêm.

Assim e em síntese conclusiva, naufragando todas as pretensões dos recorrentes e não se mostrando violados quaisquer princípios ou quaisquer preceitos constitucionais ou supra constitucionais ou quaisquer preceitos legais ordinários, designadamente os invocados pelos recorrentes, improcedem os recursos em toda a sua dimensão.

36.5. A questão da atenuação especial da pena aplicada ao arguido BB foi apreciada a propósito do recurso interposto pelo Ministério Público para o tribunal da Relação, que sobre ela se pronunciou nos seguintes termos:

Ambos os Arguidos questionam a medida das penas parcelares e única.

Porém previamente a essa questão, terá de ser apreciado o Recurso do MP, uma vez que a proceder o pedido deste recorrente, de inaplicabilidade ao Arguido BB da atenuação especial para jovens prevista no art.º 4.º do DL n.º 401/82, de 23/9, ter repercussão nas molduras abstractas dos crimes praticados.

O acórdão recorrido aplicou aquela atenuação especial ao Arguido BB por ter ponderado em concreto que:

“Volvendo ao caso em concreto, verifica-se que o condenado tem um passado marcado pela origem num agregado humilde, onde as responsabilidades parentais não foram exercidas de molde a condicionarem um comportamento conforme do mesmo.

Na verdade, assiste-se não só a um absentismo escolar, como também a um abandono. Acresce que o condenado desvaloriza os comportamentos desviantes que lhe são apontados.

Porém, resulta dos factos provados que o condenado parece reputar os crimes que estão em causa nos presentes autos como de alguma gravidade e representa, ainda que perfunctoriamente, o potencial danoso de tal realidade.

Em suma, o panorama factual não se apresenta de favor ao arguido, aliás, apresenta-se bem contrário.

No entanto, o arguido é primário (sem antecedentes criminais) e não lhe são conhecidos outros processos criminais.

Para além disso, não obstante a gravidade da globalidade dos factos do presente processo, a verdade é que não se deve escamotear que BB agiu aderindo a uma determinação do seu pai, o co-arguido AA e que era este que, geneticamente ou inicialmente, se antagonizava com o falecido DD.

Quer-se com isto dizer que, em certa medida, sob o prisma de uma autoridade filial – erradamente exercida – o arguido BB agiu secundando o co- arguido AA em intenções e acções.

De tudo isto decorre ser possível afirmar que o arguido BB deve beneficiar da aplicação do regime em análise já que se antolha que este circunstancialismo em específico abre a porta à pretensão do legislador em evitar o estigma e consequências negativas da condenação e reclusão havendo, assim, razões para crer que o arguido só sai beneficiado no que concerne à sua (re)inserção social se se proceder à atenuação especial da pena, o que se decreta em conformidade. Consequência do que, a moldura penal nos crimes praticados pelo arguido passa a ser – cfr. art.º 73.º, n.º 1, al. a) e al. b) do C.Penal Consequência do que, a moldura penal nos crimes praticados pelo arguido passa a ser – cfr. art.º 73.º, n.º 1, al. a) e al. b) do C.Penal:

De 2 anos, 4 meses e 6 dias a 16 anos e 8 meses, no que concerne ao crime de homicídio qualificado; e

De 1 mês a 1 ano e 4 meses, quanto ao crime de profanação de cadáver.”

O recorrente MP, por sua vez, fundamenta a inaplicabilidade daquele regime especial alegando que, e em síntese, a tal aplicação se opõem “razões de prevenção geral e especial associadas à total ausência de demonstração de arrependimento; o elevadíssimo grau de culpa; razões inerentes à personalidade do arguido; razões associadas à conduta anterior e posterior ao crime; razões atinentes à gravidade dos crimes cometidos, sua natureza, modo de execução e motivos subjacentes ao seu cometimento.”

Salienta ainda: a errada valoração da primariedade do arguido, atenta a sua recente imputabilidade penal; que não se trata de “crimes cometidos: num contexto de delinquência juvenil influenciado por um grupo de pares e visando sentimentos de afirmação no grupo de pares; cometidos em obediência a um temor reverencial sentido em relação ao seu progenitor ou sequer uma atitude de adoração da figura paternal.” Reconhecendo que “a redução das penas contribuiria para atenuar os efeitos “dessocializadores” que o cumprimento de uma pena de prisão normalmente envolve”, alega no caso não pode concluir “que a atenuação especial da pena terá efeitos positivos na reinserção social do condenado.”

Na resposta ao recurso o Arguido BB pugna pela manutenção da aplicação do regime especial para jovens.

Vejamos.

A decisão recorrida atenuou especialmente as penas aplicadas ao arguido ao abrigo do disposto no art.º 4.º do DL 401/82 de 23 de Setembro no qual se dispõe «Se for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 73.º e 74.º do Código Penal, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.»

A interpretação desta norma ainda que com algumas divergências de que também dá conta a decisão recorrida, vem sendo feita no sentido que o regime penal de atenuação especial para jovens é o regime regra de sancionamento dos jovens penalmente imputáveis que hajam completado 16 anos sem ter atingido 21 anos.

Mas isso não quer dizer que a aplicação, em concreto, do regime em análise seja automática, no sentido de que para ser aplicado seja suficiente que o jovem à data da prática do facto qualificado como crime tenha completado 16 anos de idade sem ter atingido os 21 anos.

Ser o regime regra de sancionamento dos jovens incluídos no aludido escalão etário significa que o tribunal tem o poder dever vinculado de averiguar os pressupostos de facto da sua aplicação.

Já sobre as circunstâncias em que a atenuação especial da pena de prisão deverá ter lugar apreendem-se no essencial duas orientações jurisprudenciais.

Uma, mais exigente, que sustenta que só deve ter lugar o funcionamento da atenuação especial da pena quando se comprovem sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção do condenado.

E outra, menos exigente, que defende que a atenuação especial da pena facilita a reinserção social do jovem – traz vantagens para a reinserção social do jovem condenado, e só deve ser afastada (regime regra) quando circunstâncias concretas documentarem a sua incapacidade para introduzirem benefícios com vista a essa almejada ressocialização do jovem. Por isso, esta orientação sustenta que, nesta sede, não se deve dar relevo excessivo a factores como a ilicitude, a culpa, e a prevenção. Pela nossa parte entendemos, que por regra haverá vantagens para a reinserção social do jovem adulto na aplicação do regime especial para jovens, mas que este regime não deverá ser aplicado se dos autos resultarem elementos que contrariem tal conclusão. No caso dos autos embora reconhece-se a objectividade da alegação do Digno recorrente, quanto à não excessiva relevância a atribuir ao facto de ser primário, que ainda assim não deve ser ignorado, e quanto à gravidade do crime, que resulta da própria integração jurídica efectuada, bem como a ausência de algum acto contrição sendo pois muito elevadas as razões de prevenção especial e geral. Porém tal como fez o tribunal recorrido afigura-se que o contexto do cometimento do crime, co-autoria com o pai, e adesão à motivação deste, não pode também ser ignorado, porquanto qualquer acto de assunção de culpa por parte do Arguido BB, se iria repercutir na apreciação da matéria de facto provada em relação ao Arguido AA seu pai.

Como tal, verificado o pressuposto formal para a atenuação especial, idade inferior a 21 anos, no caso 18 anos, a ausência de antecedentes e o contexto familiar em que ocorreu a coautoria dos crimes, entendemos existirem razões que em concreto permitem afirmar resultarem vantagens da aplicação da atenuação especial da pena para a reinserção social do Arguido BB. Improcede pois nesta vertente o recurso do MP.”

Quanto à medida das penas aplicadas ao crime de homicídio qualificado

37. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, que dispõe sobre as finalidades das penas, «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» e «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».

Estabelece o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito, o que deve constar da fundamentação (n.º 3).

Encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. A privação do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que, como é sabido, se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há-de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos –, adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva (cfr. Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, notas aos artigos 18.º e 27.º).

38. A projecção destes princípios no modelo de determinação da pena justifica-se pela necessidade de protecção do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora violada (finalidade de prevenção; no caso, a vida humana), em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado. A aplicação da pena exige que o agente do crime tenha agido com culpa, devendo ser censurado pela violação do dever de actuar de acordo com o direito, o que se requer como pressuposto e cujo grau se impõe como limite da pena (artigo 40.º, n.º 2). Na determinação da medida da pena, nos termos do artigo 71.º, de enumeração não taxativa, devem ser levados em consideração as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente manifestada no facto (personalidade onde o facto radica e o fundamenta), relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, incluídas no denominado “tipo complexivo total” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2001, p. 234) e não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele.

39. Para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o artigo 71.º, considerar os factores reveladores da censurabilidade manifestada no facto nomeadamente, nos termos do n.º 2, os factores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objectivo e subjectivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) – e os factores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os factores atinentes ao agente, que têm a ver com a sua personalidade – factores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto).

Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na protecção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto [alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves], o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e), com destaque para os antecedentes criminais] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente [circunstâncias das alíneas e) e f)] adquire particular relevo para determinação da medida da pena em vista da satisfação das exigências de prevenção especial (sobre estes pontos, para melhor aproximação metodológica na determinação do sentido e alcance da previsão do artigo 71.º do Código Penal, retomando o que se disse, entre outros, no acórdão de 9.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1, cit.. Segue-se, em particular, Anabela M. Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, pp. 611-678, em especial, e Figueiredo Dias, op. cit., pp. 232-357).

40. Como se observou no acórdão de 26.06.2019, Proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1 e no citado acórdão de 9.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1 (em www.dgsi.pt), seguindo Anabela M. Rodrigues (op. cit.) é, pois, na determinação da presença e na consideração destes factores, embora de enumeração não exaustiva, que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, neste caso a vida, concretizada no ataque ao bem jurídico objecto da acção levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar se a pena aplicada respeita os mencionados critérios de adequação e proporcionalidade que devem pautar a sua aplicação. A este propósito, importa ter presente que, como anteriormente se explicitou, estando a finalidade de prevenção geral delimitada pelos termos da protecção do bem jurídico violado (artigo 40.º do Código Penal), esta protecção conforma uma exigência de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto, constitucionalmente imposta, pelo que há-de ser a gravidade do facto, aferida pelo concurso das circunstâncias relevantes do artigo 71.º do Código Penal, que, a final, dentro dos limites mínimo e máximo das penas, servirá para definir os limites das necessidades de prevenção, em função da culpa revelada por essas circunstâncias, que também se lhe impõe como limite. Devendo, por conseguinte, a operação de determinação da pena alhear-se de considerações de natureza geral pressupostas pelo legislador na identificação dos bens jurídicos protegidos, na construção dos tipos legais de crime e no estabelecimento das molduras das penas legalmente fixadas, assim se assegurando o respeito pelo princípio da proibição da dupla valoração de factores relevantes para a determinação da medida da pena (como se observou, designadamente, no acórdão de 11.09.2019, proc. 1032/18.8JAPRT.S1, sumário em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2020/04/criminal_sumarios_2019.pdf).

41. No que respeita à determinação da pena, reportando-se fundamentalmente a aspetos de facto (parte relativamente à qual, como se disse, este tribunal não pode conhecer), o arguido AA afirma que a sua “maior revolta reside no facto de os juízes terem ignorado o conjunto das circunstâncias que rodearam os factos que deu como provados e sobretudo os que deu como não provados, o todo acrescentado com a falta de exame crítico da prova, aferia às regras da experiência comum, para a determinação do dolo e da culpa”, e criticar as razões que levaram a concluir pela especial censurabilidade motivada pela premeditação, que, a seu ver, resulta de presunções e afirmações incoerentes e contraditórias. Mais acrescenta que “perante a fragilidade da fundamentação e da própria matéria de facto provada que a culpa atribuída ao arguido, foi mal avaliada”, “reiterando que o arguido é trabalhador e muito doente”, que “o arguido beneficia, atualmente, do apoio incondicional dos membros da família que o visitam regularmente no Estabelecimento Prisional e quando for restituído à liberdade será ao agregado daquela que regressará” e que “a experiência de detenção vivida abalou-o física e psicologicamente, a tal ponto que demonstrou, o propósito firme de evitar novos comportamentos que possam de algum modo confundir-se com as ocorrências que o levaram à condenação”. Termina a sua fundamentação afirmando que a pena única de 24 anos de prisão é excessiva, mantendo que esta deverá ser limitada para o máximo de 16 anos.

No essencial, o arguido vem reafirmar o que, a este propósito, afirmou perante o tribunal da Relação, o qual, depois de apreciar a questão colocada, “dando por reproduzidos os critérios da determinação da medida da pena” e “não se detetando algum erro lógico ou violação de critério legal na determinação da medida das penas” manteve as penas aplicadas por as considerar “proporcionais às circunstâncias aí ponderadas, designadamente à culpa e ilicitudes muito elevadas e às fortes exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir”.

Por sua vez, o arguido BB vem invocar “erro de julgamento na desmesura da atenuação especial da pena do crime de homicídio qualificado p. e p. nos termos dos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 al. e) e j) do Cod. Penal, na pena parcelar de 10 anos de prisão”. Alega que, “pese embora, o Tribunal tivesse aplicado ao arguido o regime penal especial para jovens delinquentes previstos no DL n.º 401/82 de 23 de setembro, a pena aplicada de 10 anos de prisão atendendo às circunstâncias parece-nos elevada”, devendo atender-se ao facto de “não ter antecedentes criminais, nem episódios de ocorrência de ilícitos posteriores de que se tenha conhecimento”, acrescentando que «é o tribunal de julgamento que na fundamentação da sua decisão na página 79 refere: “...BB agiu aderindo a uma determinação do seu pai…’; ‘Quer-se com isto dizer (….) sob o prisma de uma autoridade filial.», “para dizer que a circunstância do arguido ter agido sob ascendente do seu pai, pessoa de quem dependia e devia obediência diminui por forma acentuada a ilicitude do facto e a culpa do agente”, o que, a seu ver, justifica a atenuação especial da pena para medida nunca superior a 6 ou 7 anos de prisão”.

42. Na determinação da medida das penas aplicadas pela prática do crime de homicídio, foram levados em conta os seguintes factores relevantes (artigo 71.º do Código Penal): a “intensíssima ilicitude dos factos”; a circunstância qualificativa da “frieza de ânimo”, concorrente com a de “motivo fútil ou torpe” (“motivos do homicídio”) tida em conta para a qualificação do homicídio; os “sentimentos e o modo de execução dos factos”; o “dolo directo” e a “intensidade de censura elevadíssima”; os “antecedentes criminais”, em particular o facto de ter sido anteriormente condenado pela prática de um crime de homicídio; a “inserção sócio-económica do arguido”; a “ausência de acto de contrição revelador da interiorização da conduta”.

43. Na ponderação das circunstâncias relevantes nos termos do artigo 71.º do Código Penal, como anteriormente se referiu, não podem levar-se em conta elementos de facto ou relativos à prova alegados e não constantes da matéria de facto provada, dada a limitação do recurso a matéria de direito, nem conferir-se relevância a elementos já considerados pelo legislador para a incriminação (bem jurídico protegido, gravidade abstracta do crime expressa na moldura penal e circunstâncias relevantes para a qualificação do homicídio), sob pena de violação do princípio da proibição da dupla valoração.

Pelo que, em concreto, com base nos factos provados, há que considerar, relativamente a ambos os arguidos: o elevado grau de ilicitude do facto revelado na forma como foi preparado e posto em execução o projeto criminoso, e no modo de execução do crime e as suas consequências, nomeadamente o uso e a forma como foi usado o objeto corto-contundente com que os arguidos desferiram pelo menos nove violentos golpes em profundidade no pescoço da vítima, com secção das artérias carótidas comuns, veias jugulares internas, nervo vago esquerdo, laringe e lesão da medula cervical, como descrito no ponto 9 da matéria de facto provada, e a dor da mãe e dos irmãos da vítima “que viram o seu ente querido ser brutalmente assassinado”; o dolo direto patente na intenção determinada e firme de “tirar a vida” (ponto 12 da matéria de facto provada – artigo 14.º, n.º 1 do CP); os sentimentos de paixão egoísta e de inimizade enquanto fatores de agravação manifestados no cometimento, nos fins e nos motivos que determinaram o crime; a conduta posterior ao crime, que conduziu à prática de outro crime (de profanação de cadáver). Relativamente ao arguido AA não pode ignorar-se o elevadíssimo grau de violação dos seus deveres para com o arguido BB, seu filho, de quem se fez acompanhar na planificação e na execução do projeto criminoso.

Embora não se possa levar em conta o “motivo torpe ou fútil” que as instâncias valoraram para a qualificação do homicídio, que, como se viu, se concluiu não se mostrar presente, deverá, no entanto, considerar-se como fator de agravação geral, nos termos do artigo 71.º, o concurso das três circunstâncias previstas na alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal – frieza de ânimo, reflexão sobre os meios empregados e persistência na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas – que, embora refletindo uma ampla ideia comum de “premeditação” (supra, 27), se devem autonomizar na previsão alternativa deste preceito. Bastando a presença de uma delas para a qualificação, deverão as demais ser valoradas neste âmbito [assim, designadamente, os acórdãos de 9.10.2019, proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1, cit, de 18.01.2012, proc. 306/10........P1.S1 (Santos Cabral), de 12.09.2012, proc. 1221/11.6JAPRT.S1 (Raul Borges), de 25.03.2015, proc. 1504/12.8PHLRS.L1.S1 (Santos Cabral), e de 07.05.2015, proc. 2368/12.7JAPRT.P1.S2 (Francisco Caetano), em www.dgsi.pt. Na doutrina, Figueiredo Dias / Nuno Brandão, op. cit., p. 79, e Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipos de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1997, p. 102].

44. Quanto às condições pessoais e à situação sócio-económica do arguido AA, de 56 anos de idade, descritas nos pontos 32 a 58 da matéria de facto provada, evidencia-se: um percurso de vida modesto, dedicado a trabalhos temporários na agricultura, pecuária e na área da construção civil, e de dificuldades e carências económicas que o levaram a beneficiar do rendimento social de inserção a partir de 2014, residindo num “empreendimento social”; um baixo nível de escolarização e ausência de um enquadramento familiar estável; associação a grupos de jovens “com comportamentos transgressivos e que o terão levado aos posteriores contactos com o sistema de justiça penal”, a partir dos 14 anos de idade, e, mais recentemente, interação com “pares de influência anti-social”; a vivência de longos períodos de reclusão em estabelecimentos prisionais, desde muito jovem, na sequência de condenações em penas (de 20 anos de prisão) por crimes de homicídio, roubo, introdução em casa alheia, furto qualificado e introdução em lugar vedado ao público, vindo a ser libertado em 1999, e em penas (2 anos e 2 meses de prisão e de 18 meses de prisão), em 2004 e 2009, pela autoria de crimes de furto qualificado e furto simples, praticados posteriormente; que, no seu contexto “sócio residencial, beneficia de boa imagem, sendo caracterizado como indivíduo educado e prestável” e “em meio prisional, tem-se apresentado em conformidade ao normativo vigente”, sem ocupação laboral (aspetos estes que, correspondendo a um padrão de comportamento normal de vida, tal como a intenção futura de exercer uma atividade profissional, não adquirem relevância como fatores de atenuação).

Dos antecedentes criminais, que evidenciam comportamento do arguido anterior ao facto, à margem do direito, descritos no ponto 31 da matéria de facto provada, com particular densidade negativa na valoração das circunstâncias, resulta que foi condenado anteriormente em nove processos, em penas de 3 anos, 22 meses, de 24 meses, de 2 anos, de 16 meses e 2 meses, de 2 anos e 6 meses, de 22 meses de prisão, 22 meses de prisão e 1 ano de prisão de prisão pela prática de crimes de furto e de furto qualificado, em 1989, de 14 anos, 9 anos e 3 meses de prisão, em 1989, pela prática de um crime de homicídio, um crime de roubo e um crime de introdução em habitação, de 3 meses de prisão pela prática de um crime de detenção de arma proibida, em 1989, de 6 meses de prisão, substituída por 180 dias de multa, pela prática, em 2015, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, de 170 dias de multa, e pela prática, em 2017, de um crime de furto simples e de um crime de dano simples.

Tem também pendente o processo n.º 2268/19....... que corre termos no Juízo de Instrução Criminal do ..... – Juiz .., no qual está indiciado da prática dos crimes de homicídio qualificado, incêndio, furto e detenção de arma proibida (ponto 56 da matéria de facto).

Estas circunstâncias revelam também manifesta falta de preparação do arguido para manter uma conduta lícita, com respeito pelas normas e valores que regem a vida em sociedade, depondo também, assim, contra o arguido a circunstância prevista na alínea f) do n.º 2 do artigo 77.º do Código Penal.

45. Do conjunto das circunstâncias mencionadas resulta que é muito elevado o grau de culpa e, evidenciando-se um trajeto de vida fortemente marcado por condutas criminosas, que são também muito elevadas as exigências de prevenção, em particular as exigências de prevenção especial.

Determinando-se a pena do crime de homicídio qualificado a partir da moldura definida pelo limite mínimo de 12 anos e máximo de 25 anos de prisão, correspondente ao tipo legal de crime da previsão do artigo 132.º do Código Penal, foi esta fixada em 23 anos de prisão.

A determinação da pena há-de comportar-se, como já se mencionou, no quadro e nos limites da gravidade dos factos concretos, nas suas próprias circunstâncias concorrentes por via da culpa e da prevenção (artigo 71.º do Código Penal), isto é, em função da gravidade dos ataques ao objecto das acções levadas a efeito pelo arguido, tendo em conta as finalidades de prevenção especial de ressocialização que se revelam.

Assim, face ao que vem de se expor, numa consideração global das circunstâncias relativas ao facto e ao agente, a que se refere o artigo 71.º do Código Penal, conclui-se que não se encontra fundamento que justifique uma intervenção corretiva na determinação da pena aplicada ao arguido AA, a qual, nessa medida, não se mostra não proporcional à gravidade dos factos e não adequada à realização das finalidades que a justificam.

Não ocorre, por conseguinte, a alegada violação dos artigos 70.º, 71.º e 72.º, n.ºs 1 e 2, al, a) e b), do Código Penal, sendo que a esta atenuação especial a que se refere este último preceito, com base na atenuação da culpa, se opõem a agravação da culpa na base da condenação pelo crime de homicídio e os fatores de agravação da pena, por via da culpa, nos termos expostos.

46. Quanto à conduta anterior ao facto, às condições pessoais e à situação sócio-económica do arguido BB, de 20 anos de idade, circunstâncias descritas nos pontos 17 a 30 dos factos provados, evidencia-se: a ausência de antecedentes criminais; o crescimento e vivência em meio particularmente desfavorecido, numa zona conotada com problemáticas de exclusão social e delinquência e em contexto desviante e de carência e instabilidade económica e familiar; a falta de ocupação e interesse na sua formação e desenvolvimento pessoal e abandono escolar, registando-se retenções nos 6.º e 7.º anos de escolaridade; ocupação e atividades lúdicas e recreativas informais no contexto familiar e comunitário, num registo de ociosidade entrecortado por períodos em que apoiava o pai na sua atividade laboral, na área da construção civil.

Com os fundamentos descritos em 36.5, foi decretada a aplicação ao arguido do regime penal dos jovens adultos (Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de setembro), no âmbito da qual foi considerada a relação de dependência do arguido AA, seu pai, que poderia constituir motivo autónomo de atenuação especial da pena nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 72.º do Código Penal, não fora a sua aplicação se encontrar prejudicada pela aplicação daquele regime.

A aplicação do regime penal dos jovens adultos constitui, nos termos do n.º 1 do artigo 72.º do Código Penal, um “caso” de atenuação especial da pena “expressamente previsto na lei”, aplicável aos casos não previstos (“para além dos casos expressamente previstos na lei”, diz o n.º 1 do preceito), falecendo razão ao arguido ao pugnar pela aplicação deste regime. Pelo que não ocorre a alegada violação do artigo 72.º, n.º 2, al. a), do Código Penal.

47. Tal como se referiu anteriormente relativamente ao arguido AA, do conjunto das circunstâncias mencionadas, bem como da adesão ao projeto criminoso do pai (não se mostra que, podendo e devendo não o fazer, participou no facto por motivo mitigador da culpa), resulta que é muito elevado o grau de culpa e, tomando em consideração as condições pessoais e as condições sócio-económicas, que são também elevadas as exigências de prevenção quanto ao arguido BB, em particular as exigências de prevenção especial.

Tendo em conta a pena definida pelo limite mínimo de 12 anos e máximo de 25 anos de prisão, correspondente ao tipo legal de crime da previsão do artigo 132.º do Código Penal, a moldura da pena aplicável por virtude do regime dos jovens adultos, a partir da qual há que determinar a pena concreta, é de 2 anos, 4 meses e 24 dias, no mínimo (ou seja, um quinto – artigo 73.º, n.º 1, al. b), do CP), e de 16 anos e 8 meses (máximo reduzido de um terço – al. b) do mesmo preceito,  

Assim, tendo em conta o que anteriormente se disse a propósito da pena aplicada ao arguido AA, numa consideração global das circunstâncias relativas ao facto e ao agente, a que se refere o artigo 71.º do Código Penal, relevantes por via da culpa e da prevenção, conclui-se que não se encontra fundamento que justifique uma intervenção corretiva na determinação da pena aplicada ao arguido BB, a qual, nessa medida, não se mostra não proporcional à gravidade dos factos e não adequada à realização das finalidades que a justificam.

Quanto às penas únicas

48. Nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, que adiciona um critério específico de determinação da pena em caso de concurso de crimes (artigo 30.º, n.º 1), quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, na qual são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. O substrato da medida da pena única não pode bastar-se com os factos que constituem os elementos do tipo de ilícito ou do tipo de culpa (acórdãos de 9.10.2019, proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1, cit. e de 27.02.2019, processo ECLI:PT:STJ:2019:186.05.8TASSB.S1.38). Impõe este critério que, na medida da pena, seja considerada a personalidade do agente manifestada no facto, em que se incluem, designadamente, as condições económicas e sociais deste, reveladoras das necessidades de socialização, a sensibilidade à pena, a susceptibilidade de por ela ser influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto, nomeadamente a falta de preparação para manter uma conduta lícita (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 3.ª reimp., 2011, p. 248ss).

A pena única corresponde a uma pena conjunta resultante das penas correspondentes aos crimes em concurso segundo um princípio de cúmulo jurídico, seguindo-se o procedimento normal de determinação e escolha das penas a partir das quais se obtém a moldura penal do concurso, formada, no seu mínimo, pela mais elevada das penas aplicadas aos crimes em concurso e, no seu máximo, pela soma das penas aplicadas a esses crimes, sem ultrapassar 25 anos de prisão (n.º 2 do artigo 77.º), de acordo com os critérios da culpa e da prevenção (artigo 71.º) e aquele critério especial fixado na segunda parte do n.º 1 do artigo 77.º, in fine (cfr. Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2013, p. 56).

Como se tem sublinhado «com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente»; «importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, a existência ou não de qualquer relação entre uns e outros, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente» [cfr. acórdão de 27.2.2019, Proc. 1960/18.0T8VCT.S1, em www.stj.pt/wp-ontent/uploads/2019/06/ criminal _sumarios_fevereiro_2019.pdf, retomando-se o que se afirmou no acórdão de 21.11.2018, ECLI:PT:STJ:2018:114.14.0JACBR.A.S1.73, citando-se os acórdãos de 06-02-2008 (Proc. n.º 4454/07), de 14.07.2016 e de 17.06.2015 (Proc. 4403/00.2TDLSB.S1) (Pires da Graça) e 488/11.4GALNH (Maia Costa), em www.dgsi.pt].

«Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta» (citando Figueiredo Dias, ob. cit., p. 291).

É o conjunto dos factos descritos na sentença que evidencia a gravidade do ilícito perpetrado, sendo decisiva, para a sua avaliação, a conexão e o tipo de conexão que se verifique entre os factos que constituem os tipos de crime em concurso.

«A personalidade do agente – se bem que não a personalidade no seu todo, mas só a personalidade manifestada no facto», como adverte Figueiredo Dias (op. cit. p. 248) – «é um factor da mais elevada importância para a medida da pena e que para ela releva, tando pela via da culpa como pela via da prevenção».

49. A questão da pena única vem suscitada no recurso do arguido AA, que, em consequência da pretendida alteração da qualificação do homicídio, a considera excessiva. Far-se-lhe-á, todavia, referência quanto ao arguido BB, em consideração da íntima conexão e coautoria dos crimes de que resultam as penas únicas e no âmbito dos poderes de conhecimento oficioso, em matéria de direito, do objeto do recurso, tendo em atenção o princípio do conhecimento amplo dos recursos [artigo 402.º, n.º 2, al. a), do CPP].

50. As penas únicas conjuntas, de 24 anos e de 10 anos e 4 meses de prisão, respetivamente, resultam das penas aplicadas (1) ao arguido AA, de 23 anos de prisão, pelo crime de homicídio qualificado, de 1 ano e 2 meses de prisão, pelo crime de profanação de cadáver, e de 6 meses de prisão, pelo crime de detenção de arma proibida; (2) ao arguido BB, das penas de 10 anos de prisão, pelo crime de homicídio qualificado, e de 7 meses de prisão, pelo crime de profanação de cadáver.

Tendo em conta o critério de definição da moldura do cúmulo, a pena de prisão aplicável ao arguido AA é de 23 anos, no seu limite mínimo, e de 24 anos e 8 meses, no seu limite máximo; a aplicável ao arguido BB é de 10 anos no seu limite mínimo e de 10 anos e 7 meses no seu limite máximo.

51. A gravidade dos factos, revelada pelas circunstâncias da sua prática, a conexão e concentração espácio-temporal dos crimes de homicídio e de profanação de cadáver, com recurso a “combustível acelerante” e com intenção de ocultar e fazer desaparecer o corpo” [da vítima] (ponto 7 da matéria de facto provada), as circunstâncias relativas à condições pessoais e ao comportamento anterior ao crime, com mais intensidade no que respeita ao comportamento do arguido AA, evidenciam personalidades particularmente desvaliosas, manifestando profunda insensibilidade e radical desprezo pela vida humana e evidente e grave falta de preparação dos arguidos para manter uma conduta lícita, tudo revelando elevadíssimas exigências e necessidades de prevenção especial de ressocialização, que justificam a aplicação das penas, no respeito pelos limites impostos pela elevada gravidade da culpa.

Sendo a pena do arguido AA fixada em 24 anos de prisão e a do arguido BB em 10 anos e 4 meses de prisão, na consideração conjunta dos factos e da personalidade dos arguidos neles manifestada (artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal), e tendo em conta a moldura penal correspondente aos crimes em concurso projetada, não se encontra (nem os arguidos invocam) fundamento que justifique divergência quanto ao decidido, por desrespeito dos critérios estabelecidos para a sua determinação.

Quanto a custas e sanções processuais

52. Nos termos do disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. A taxa de justiça é fixada entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

De acordo com o disposto no artigo 420.º, n.º 3, do CPP, se o recurso for rejeitado, o tribunal condena o recorrente, se não for o Ministério Público, ao pagamento de uma importância entre 3 UC e 10 UC.

III. Decisão

53. Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Rejeitar o recurso do arguido BB na parte que respeita às questões suscitadas quanto à pena, de 7 meses de prisão, que lhe foi aplicada pela prática do crime de profanação de cadáver;

b) Julgar improcedente o recurso do arguido BB na parte restante;

c) Julgar improcedente o recurso do arguido AA;

d) Alterar o acórdão recorrido na parte relativa às circunstâncias qualificativas do crime de homicídio, condenando os arguidos pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea j), do Código Penal;

e) Condenar os recorrentes em custas, fixando em 6 UC a taxa de justiça a pagar por cada um dos recorrentes;

f) Condenar o recorrente BB na importância de 3 UC nos termos do artigo 420.º, n.º 3, do CPP.

Mantendo, no mais, o acórdão recorrido.


Supremo Tribunal de Justiça, 3 de novembro de 2021.


José Luís Lopes da Mota (relator)


Maria da Conceição Simão Gomes