EXONERAÇÃO DO PASSIVO
INDEFERIMENTO LIMINAR
COMPORTAMENTO ANTERIOR DO INSOLVENTE
DOAÇÃO DO PATRIMÓNIO
Sumário

I– Os factos enunciados no artigo 238.º n.º 1 do CIRE, que permitem o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo, equivalem a factos impeditivos do direito àquela exoneração, pelo que, constituindo matéria de excepção, o ónus de alegação e prova de tais factos recairá sobre os credores do insolvente e sobre o administrador da insolvência.

II– É motivo de indeferimento liminar do pedido de exoneração, à luz dos artigos 238.º, n.º 1, al. e) e 186.º, n.ºs 1 e 2, al. d) e n.º 4, do CIRE, o facto de os devedores terem doado ao seu filho os únicos bens de que eram proprietários, nele se incluindo um imóvel liberto de quaisquer ónus e encargos, bens esse que eram suficientes para liquidar a divida de que eram devedores, numa altura em que estavam já em incumprimento, e dois anos antes de se terem apresentado à insolvência.

III– Não tendo liquidado o empréstimo do qual eram fiadores e principais pagadores, e tendo doado todos os seus bens, o que determinou o encerramento do processo de insolvência por não terem sido apreendidos quaisquer bens para a massa, evidentemente agravaram a sua situação económica, não podendo ignorar que com esse comportamento inviabilizaram o cumprimento das suas obrigações, prejudicando os seus credores.

IV– Pressupondo o prosseguimento do pedido de exoneração uma lisura e rectidão do comportamento anterior dos insolventes no que respeita à sua situação económica, a mesma não se verifica nas circunstâncias descritas e não é impedimento desse indeferimento liminar, à luz dos aludidos normativos, o facto de o tribunal ter determinado o encerramento do processo por falta de bens e qualificado como fortuita a insolvência, por força do artigo 233.º n.º 6 do CIRE.

V– Tal qualificação decorre directamente da lei e não pressupõe qualquer avaliação dos factos comportamentais dos insolventes, nada impedindo que os mesmos, ainda assim, vejam liminarmente indeferido o seu pedido de exoneração do passivo.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA


I–Relatório:


(….) e (…) apresentaram-se à insolvência, pedindo também a exoneração do passivo restante.

A Sra. Administradora de Insolvência apresentou relatório, à luz do artigo 155.º do CIRE, e mais tarde pronunciou-se desfavoravelmente sobre o pedido, entendendo que se encontram preenchidos os requisitos do artigo 238.º, n.º 1, al. e) do CIRE, uma vez que os insolventes doaram todo o seu património ao filho nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, não tendo apresentado qualquer justificação ou esclarecimento quanto às referidas transmissões.

Foi ordenada a notificação dos insolventes para se pronunciarem, tendo os mesmos afirmando que não houve qualquer intuito de sonegar o seu património, defendendo não estarmos perante a qualificação da presente insolvência, nos termos do disposto no artigo 186.º e do disposto no artigo 238.º n.º 1 alínea e), ambos do CIRE, pois que não existiu dolo aquando da transmissão dos referidos bens, dado que desconheciam por completo o incumprimento do devedor principal, e só vieram a ter conhecimento de que eram responsáveis pelo pagamento do empréstimo de que foram fiadores, quando, em 17/10/2018, receberam uma notificação onde foram informados da existência de uma cessão de créditos.

Em consequência da resposta, o tribunal proferiu despacho, ordenando a notificação do BCP, S.A., anterior titular do crédito sobre os insolventes (entretanto cedido à SD Debt Portofolios) para, no prazo de 20 dias, informar e comprovar se o incumprimento do contrato pelo devedor principal, e consequente resolução do contrato, foram comunicados aos ora insolventes, na qualidade de fiadores.

Junta a documentação, foi então proferido despacho, em 31/05/2021, tendo o tribunal recorrido, com fundamento na verificação dos pressupostos previstos no artigo 238.º n.º 1 al. e-) do CIRE, indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelos Insolventes.

Não se conformando com o teor de tal despacho, dele apelaram os insolventes, formulando, a final, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
«A.No âmbito do processo à margem identificado, os Recorrentes foram notificado em 07.06.2021 do despacho do Tribunal a quo da recusa da exoneração do passivo restante.
B. Esta recusa deveu-se ao facto de o Douto Tribunal a quo ter entendido ter-se verificado a previsão da alínea e) do nº 1 do art.º 238º do CIRE,
C. O despacho de que se recorre concluiu que os Recorrentes ao transmitirem todo o seu património, de forma gratuita, ao filho em 2017, fizeram-no com o único intuito de subtrair o seu património à satisfação do crédito dos credores, 
D. Obstando por isso a que se conclua pela boa-fé e honestidade dos recorrentes.
E. Esta assunção fundamentou-se no facto de que os ora Recorrentes conheciam desde Março de 2017, a situação de incumprimento do devedor principal, valor em falta, no montante de €386,38 e a possibilidade de integração em PERSI.
F.Foram desconsiderados, todavia outras circunstâncias relativas à situação económica dos Recorrentes à data de alienação dos seus bens e que se mostram de maior relevância para efeitos de aferição da boa-fé e honestidade dos recorrentes.
G. Entre outros Ignorou o Douto Tribunal a quo
H. Os comportamentos dos Recorrentes sempre foram o longo da sua vida pautada pela boa-fé, transparência e honestidade, não possuindo cadastro criminal. 
I. Os Recorrentes sempre mantiveram uma vida económica estável, o que lhes permitiu a dada altura, das suas vidas assumirem a qualidade de fiadores, num contrato de mútuo. 
J. Não foram, contudo, no referido contrato de mútuo, os Recorrentes os únicos a assumirem a qualidade de fiadores, existindo neste contrato mais um fiador, de nome Maria (…).
K. No decorrer da manutenção desse contrato de mútuo, foram os Recorrentes por diversas vezes notificados para, na qualidade de fiadores, assumirem o pagamento de prestações mutuárias, que se encontravam em mora, o que estes satisfizeram.
L.Os Recorrentes sempre efectuaram o pagamento das prestações em mora sempre que foram notificados para o fazer.
M.Têm também conhecimento, terem existido prestações mutuárias em mora que foram satisfeitas pelo outro fiador.
N. Pelo que, entenderam ser aquela notificação, apenas como mais uma.
O. Os Recorrentes em 201, encontravam-se ambos a laborar, auferindo cada um, a sua remuneração.
P. Os Recorrentes à data de 2017 possuíam uma boa situação económica.
Q. Os Recorrentes transmitiram os seus bens ao seu filho, maior mas totalmente dependente destes por sofrer de uma incapacidade de 64%, tão-somente, porque liquidaram, finalmente, o seu crédito habitação.
R. Fizeram-no com objectivo de proteger o futuro de seu filho, no caso de eles próprios, Recorrentes, sofrerem de alguma doença incapacitadora.
S. Sem que fizesse parte das suas intenções não cumprirem com o pagamento da dívida emergente da sua qualidade de fiadores.
T. Uma vez que, sempre honraram os seus compromissos pessoais, assim que foram notificados para o fazerem. Pagando por diversas vezes as prestações atrasadas na qualidade de fiadores.
U. Nessa data os Recorrentes mesmo com essas transmissões tinham capacidade financeira para poder acordar e liquidar essa divida.
V. Não se provou nem fundamentou a culpa dos Recorrentes na sua situação ou agravamento da sua insolvência até porque á data, os Recorrentes não se encontravam em situação de insolvência.
W. Sendo certo, porém que, nunca esperaram os Recorrentes que de repente o mundo se visse confrontado com uma pandemia – Covid -19. - o que levou à perda de emprego da Recorrente Maria (…).
X. Esta impossibilidade de cumprir este crédito por parte dos Recorrentes só surge em Março de 2020 e face a circunstâncias que não podiam controlar.
Y. Não são, pois, tidos em conta na douta decisão recorrida, a alteração das circunstâncias que se verificaram na vida dos Recorrentes, entre o final do ano de 2017 e Maio de 2020. 
Z. A exoneração do passivo constitui um benefício concedido ao devedor principal declarado insolvente, de modo a poder reiniciar a sua vida económica livre de dívidas contraídas, tal situação só se compreende à luz da ideia de que o insolvente deseja orientar a sua vida de modo a não se envolver de novo em situações geradora de incapacidade de satisfazer pontualmente os seus débitos
AA. Os recorrentes nunca tiveram intenções de defraudar os direitos de crédito dos seus credores e prova disso, é o facto de à data das transmissões efectuados pelos Recorrentes, não serem estes conhecedores da existência ou não desse crédito em concreto e, qual o seu montante, sendo certo que nessa data, tinham capacidade de o liquidar.
BB. Pelo que é errado o entendimento do Douto Tribunal a quo que a conduta dos recorrentes em 2017, visava subtrair os únicos bens de que eram proprietários à acção dos credores. 
CC. Não podendo concluir como concluiu, que os recorrentes não eram merecedores do benefício excepcional em causa. Por falta de boa-fé, transparência e honestidade.
DD. É nosso entendimento, que o momento adequado para avaliar, concreta e definitivamente, se os insolventes são ou não merecedores do beneficio excepcional em causa, é no momento da prolação da decisão final, pois só então terão os elementos suficientes para avaliar da sua boa-fé, transparência, honestidade, diligência e propósitos de vida futura.
EE. O Douto Tribunal a quo, veio indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos recorrentes fundando-se única e exclusivamente, por ter entendido ter-se verificado a previsão da alínea e) do nº 1 do art.º 238º do CIRE que dispõe do seguinte “o pedido de exoneração é liminarmente indeferido ….” Se constarem já do processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador de insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade da existência de culpa do devedor na criação ou no agravamento da situação de insolvência nos termos do art.º 186º “.
FF. Os fundamentos invocados para o indeferimento da exoneração com base na alínea e) do nº 1 do art.º 238 são os mesmos que poderiam servir para fundamentar a qualificação da insolvência culposa. Caso existissem nos autos elementos que indiciassem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação de insolvência nos termos do art.º 186º.
GG. Ora, o art.º 186.º integrado nas normas que regulamentam o incidente de qualificação de insolvência prescreve que a insolvência é culposa quando a situação criada ou agravada em actuação dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito e de facto, nos três anos anteriores ao início do processo.
HH. Todavia, após apreciar o pedido de exoneração do passivo restante, decidiu-se, qualificar a insolvência dos ora insolventes como fortuita, o que significa que não se indiciou sequer qualquer comportamento culposo por nexo de causalidade à criação ou agravamento da situação de insolvência pessoal”.
II. Os ora Recorrentes consideram, pois, que existem duas decisões contraditórias. 
JJ. Os recorrentes afastaram todos os requisitos previstos nos artº 238 do CIRE pelo que deve ser revogada a decisão que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.  
KK.Ao não ter assim decidido o Tribunal a quo violou, nomeadamente o art.º 238º do CIRE.
Nestes Termos e nos melhores de Direito e com o Douto Suprimento de V. Exas deve ser concedido total provimento ao presente recurso e, em consequência ser revogado o despacho proferido pelo Tribunal a quo que indeferiu a exoneração do passivo restante aos Alegantes».
 
Não foram apresentadas contra-alegações nos autos.

O recurso foi admitido, e, remetidos os autos a este Tribunal da Relação, após prolacção de despacho da Relatora, foram colhidos os vistos legais.

Cumpre, pois, apreciar e decidir.

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II.–Questões a decidir:

Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem, em:

(i)-apreciar se se verificam os pressupostos que permitiam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante;
(ii)-apreciar se o despacho recorrido encerra em si duas decisões contraditórias, ao indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e ao qualificar de forma fortuita a insolvência decretada.

***

III.–Fundamentação de facto:

Pela decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1.–(…) e (..) apresentaram-se à insolvência em 19/10/2020.
2.–Por sentença proferida em 06/11/2020 foi declarada a insolvência dos requerentes.
3.–Por sentença proferida em 25/02/2021 foi homologada a lista definitiva de créditos apresentada pelo AI, na qual foi reconhecido um único credor, (…), S.A., com um crédito no valor de €57.266,51 (anteriormente na titularidade do Banco Comercial Português, S.A.), o qual foi contraído pelos devedores na qualidade de fiadores e que se encontra vencido desde 25/06/2016.
4.–O crédito reconhecido foi contraído por (…), o qual foi declarado insolvente por sentença de 20/06/2017, no processo n.º 2337/17.0T8BRR.
5.–Por carta datada de 10/03/2017, remetida para a morada dos insolventes, o BCP, S.A comunicou ao insolvente o incumprimento do crédito, data de incumprimento e valor em falta, solicitando a sua regularização e dando conhecimento da possibilidade de integração em PERSI.
6.–Os insolventes transmitiram o veículo com a matrícula (…), marca Ford, em 31/10/2017 ao filho, (…).
7.–Os insolventes, 02/01/2018, doaram ao filho, (…), a Fração autónoma designada pela letra “E” do prédio urbano sito (…) …..
8.–O imóvel tem o valor patrimonial de € 60.088,00.
9.–Os insolventes residem com o filho no imóvel identificado em 5).
10.–O filho dos insolventes tem uma incapacidade de 64%.
11.–Não foram apreendidos outros bens para a massa e a AI propôs o encerramento do processo, que foi encerrado por insuficiência da massa, nos termos do artigo 232º, al. d) do CIRE.

E foram considerados não provados, com interesse para a presente decisão:
1.–Os insolventes transmitiram o veículo ao filho face à necessidade de reduzirem custos e para beneficiarem de isenções e/ou reduções, como no caso do imposto único de circulação (IUC).
2.–Os insolventes doaram o imóvel ao filho para proteger e salvaguardar o seu futuro, face à incapacidade do mesmo, e à idade dos devedores, que receiam, caso lhes aconteça alguma coisa, o mesmo possa vir a ser institucionalizado, e se o for, que o seja com alguma dignidade.
3.–Os devedores só tiveram conhecimento de que eram responsáveis pelo pagamento do empréstimo, quando em 17 de Outubro de 2018 recebem uma notificação onde são informados da existência de uma cessação de créditos.

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IV–Do mérito do recurso:
O instituto da exoneração do passivo restante encontra-se previsto nos artigos 235º e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), e, como escreve Catarina Serra (na obra “O Novo Regime Português da Insolvência - Uma Introdução”, págs. 73 e 74) tem como objectivo «a extinção das dívidas e a libertação do devedor, para que, «aprendida a lição», este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua atividade económica».
Resulta também da exposição de motivos que consta do diploma preambular do diploma que aprovou o CIRE (Dec. Lei nº 53/2004 de 18/03) que “o princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos - designado período da cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento. A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica” - ponto 45.

Deduzido o pedido de exoneração do passivo restante, cumpre então verificar se não existe motivo para o seu indeferimento liminar, à luz do artigo 238.º do CIRE, sendo que tal despacho deve ser proferido após a audição dos credores e do administrador da insolvência, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 236.º do CIRE, excepto, desde logo, se o pedido for apresentado fora do prazo.

Estabelece então o artigo 238.º n.º 1 do CIRE que o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
«a)- For apresentado fora de prazo;
b)- O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;
c)- O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
d)- O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica;
e)- Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º (sublinhado nosso);
f)- O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;
g)- O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência».

Encontram-se assim definidos os requisitos que justificam a exoneração, cumprindo ao requerente alegar, tempestivamente, a qualidade de insolvente e fazer constar do requerimento a declaração expressa do artigo 236.º, n.º 3 do CIRE, sendo entendimento da jurisprudência maioritária que os fundamentos enunciados naquele n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, que permitem sustentar o seu indeferimento, equivalem a factos impeditivos do direito à exoneração do passivo constituindo assim matéria de excepção, pelo que o ónus de alegação e prova de tais factos recairá sobre os credores do insolvente e sobre o administrador da insolvência, por força do disposto no artigo 342º, n.º 2 do CC (ver, neste sentido, anotação ao artigo 238.º, no CIRE anotado por Ana Prata, Jorge Carvalho e Rui Simões, 2013, Almedina, e no anotado por Carvalho Fernandes e João Labareda, QJ, 3ª edição, e a diversa jurisprudência em ambos mencionada, e ainda, entre outros, os Acórdãos do STJ de 21/01/2014, relatado por Paulo Sá, e de 27/03/2014, relatado por Orlando Afonso, e Acórdão desta Relação de Lisboa de 05/03/2015, relatado por Jorge Leal, todos disponíveis na dgsi).

No caso presente, foi o pedido liminarmente indeferido, considerando-se, na aceitação da argumentação da administradora, que se encontram preenchidos os requisitos do artigo 238.º, n.º 1, al. e) do CIRE, uma vez que os insolventes doaram todo o seu património ao filho nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Defendem agora os recorrentes que assim não é, pois que sempre pautaram a sua vida pela boa-fé, transparência e honestidade, sempre cumpririam quando chamados a fazê-lo, sendo que em 2017 possuíam uma boa situação económica e, mesmo com as transmissões que fizeram ao seu filho, tinham capacidade financeira para poder acordar e liquidar a sua divida. Justificam as ocorridas transmissões no facto de o filho de ambos deles ser totalmente dependente, por sofrer de uma incapacidade de 64%, e por terem logrado liquidar o seu crédito habitação, com o objectivo de proteger o futuro daquele. Reiteram que nunca tiveram intenções de defraudar os seus credores e que à data das transmissões efectuadas não eram conhecedores da existência do crédito em concreto e seu montante, que tinham então capacidade para liquidar. Terminam dizendo que, após apreciar o pedido de exoneração do passivo restante, o tribunal recorrido decidiu qualificar a insolvência dos ora insolventes como fortuita, o que significa que não se indiciou sequer qualquer comportamento culposo por nexo de causalidade à criação ou agravamento da situação de insolvência pessoal, existindo assim duas decisões contraditórias no processo.

Apreciemos.

Decorre, como vimos, do acima citado artigo 238º n.º 1 e), do CIRE, preceito que os recorrentes alegam ter sido violado, por não estarem preenchidos os requisitos ali enunciados, que pode ser liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo, se «constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º.».

Da leitura deste normativo decorre assim que estão em causa comportamentos do devedor que tenham contribuído ou agravado a sua situação de insolvência, sob a forma de actuação indiciariamente culposa. Com efeito, convocando agora o aludido artigo 186.º do CIRE, dali resulta do seu n.º 2, al. d), e 4, que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que tenha «disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros».

No despacho recorrido, foi então consignado que «No caso, os insolventes em 31.10.2017 transmitiram o veículo ao filho e em 02.01.2018 doaram o imóvel ao filho. Tendo o processo de insolvência entrado em juízo no dia 19.10.2020, verifica-se que tais transmissões ocorreram menos de três anos antes da data do início do processo, e em data em que o único crédito dos insolventes já se encontrava vencido, situação da qual os insolventes tinham conhecimento. Assim, a transmissão de todo o seu património, de forma gratuita, configura, sem qualquer dúvida, uma disposição de bens dos insolventes em proveito de terceiros, neste caso, do filho. Veja-se ainda que só o valor patrimonial do imóvel era suficiente para liquidar integralmente a dívida».

Tendo ainda, mais adiante, considerado «Ora, no caso, a conduta dos insolventes, visando subtrair os únicos bens de que eram proprietários à acção dos credores, menos de três anos antes de se apresentarem à insolvência, obsta a que se conclua pela sua boa fé e honestidade. Os insolventes alegaram que a transmissão do seu património pretendeu apenas salvaguardar o futuro do filho, bem como permitir o acesso a benefícios fiscais, face à sua incapacidade. Contudo, por um lado, tal intenção não ficou demonstrada; por outro, ainda que assim fosse, a verdade é que, como consequência directa da transmissão de TODO o seu património ao filho, os insolventes prejudicaram o ressarcimento do seu único credor. Assim, e independentemente do valor do bem ou da resolução do contrato – que, no caso, face ao decurso do prazo de dois anos não foi possível realizar - (cfr. neste sentido o Acórdão da Relação de Coimbra de 02-03-2010, in www.dgsi.pt), entende-se que a conduta dos insolventes integra as disposições conjugadas dos artigos 238.º, n.º 1, alínea e), e 186.º, n.º 2, alínea d), do CIRE».

Temos por certa tal argumentação. Com efeito, no juízo de antecipação a realizar ao abrigo do disposto no artigo 238.º, n.º 1, al. e), por referência ao artigo 186.º, n.ºs 1 e 2, al. d) e 4, do CIRE, não só o agravamento da situação de insolvência é evidente, em face da doação por parte dos insolventes de todo o seu património, como indiciada está também a sua culpa nesse agravamento, pois que, não se olvide, é de considerar sempre culposapresunção jure et de jure a insolvência do devedor que tenha disposto dos bens em proveito pessoal ou de terceiros.
Na fase preliminar de apreciação de tal pedido, deve ser ponderada a idoneidade dos insolventes e o merecimento por parte dos mesmos de uma nova oportunidade, através da concessão do benefício da exoneração do passivo restante.

Ora, temos por evidente que, por via das aludidas transmissões, do seu veículo automóvel e do único imóvel do seu património, então não onerado com garantias reais, cerca de dois anos antes de ser declarada a insolvência, os insolventes, dispondo daqueles bens a favor de terceiro (seu filho) agravaram a sua situação de insolvência, tanto assim é que o processo foi arquivado por inexistirem bens para serem apreendidos para a massa insolvente.
Toda a cronologia dos acontecimentos (incumprimento do devedor principal, seu afiançado, e sua posterior declaração de insolvência, a transmissão dos bens pelos ora insolvente ao seu filho e sua posterior declaração de insolvência) não nos deixam dúvidas de que o comportamento dos mesmos não é merecedor da oportunidade que a concessão do benefício da exoneração do passivo restante visa conceder.

A transmissão dos bens no circunstancialismo dos autos, mantendo-se os insolventes a também usufruir do imóvel, onde vivem, ficando o reconhecido credor sem qualquer meio de obter o pagamento dos seus créditos, não é compaginável com o comportamento que a lei exige a quem quer beneficiar do instituto de que aqui cuidamos. Independentemente da bondade da argumentação usada, no que respeita à protecção que visavam conceder ao filho de ambos, atenta a deficiência de que o mesmo é portador, certo é que, para benefício daquele, ficou prejudicado o credor ao ver ser eximido do pagamento da divida dos insolventes todo o património dos mesmos.

É, pois, absolutamente legítimo concluir que resultam dos autos elementos suficientemente indiciadores da existência de culpa dos devedores, pelo menos no agravamento da sua situação de insolvência, em conformidade com o disposto nos artigos 238.º, n.º 1, al. e) e 186.º, n.ºs 1 e 2, al. d) e n.º 4, do CIRE, o que constitui motivo bastante de indeferimento liminar do pedido formulado de resolução do passivo restante.
Veja-se, a título meramente exemplificativo, no sentido do que aqui se defende, o acórdão da Relação de Coimbra de 02/03/2010, relatado Gonçalves Ferreira, e disponível em www.dgsi.pt, assim sumariado  «O prosseguimento do pedido de exoneração do passivo restante pressupõe, além do mais, a retidão do comportamento anterior do insolvente no que respeita à sua situação económica. Não é reto o comportamento do insolvente que, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, doa a nua propriedade do único imóvel que possui a filho menor. Numa hipótese desta natureza, deve o pedido de exoneração ser indeferido liminarmente», e o da Relação de Guimarães de 18/01/2018, relatado João Peres Coelho assim sumariado «I - É de indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo devedor quando este, dentro dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, tiver doado a favor dos seus filhos menores o único bem imóvel que integrava o seu património. II - Nessa situação, subsumível à previsão do artigo 186º, n.º 2, alínea d), do CIRE, aplicável por força do artigo 238º, n.º 1, alínea e), do mesmo diploma legal, presume-se, “iuris et de iure”, não só o carácter doloso ou gravemente negligente da conduta do devedor, como o nexo de causalidade entre essa conduta e a criação ou agravamento da situação de insolvência».

Resultando dos autos, no momento da decisão liminar, que os recorrentes haviam transmitido todo o seu património a favor do filho de ambos, em detrimento do seu reconhecido credor, dado que, na qualidade de fiadores, assumiram também, e garantiram, o bom e integral cumprimento de todas as obrigações do seu afiançado, assim se vinculando igualmente como pagadores, justificada está a decisão de indeferimento liminar.

A argumentação aduzida pelos recorrentes tem, pois, que improceder, tanto mais que, de acordo com a factualidade provada – que temos por fixada e que os mesmos não impugnaram no presente recurso – os insolventes apresentaram-se à insolvência em 19/10/2020, que foi declarada em 06/11/2020, tendo sido reconhecido um crédito no valor de 57.266,51 euros, já vencido em 25/06/2016, sendo remetida para a morada dos insolventes em 10/03/2017 a comunicação do incumprimento, após o que os insolventes transmitiram todos os seus bens.

No fracasso da argumentação apresentada terão de ver improceder a sua pretensão recursória.

Por último, defendem os recorrentes que a decisão proferida, e objecto do presente recurso, é em si mesma contraditória, pois que o tribunal recorrido acabou por considerar fortuita a insolvência, o que significa que não se indiciou sequer qualquer comportamento culposo por nexo de causalidade à criação ou agravamento da situação de insolvência pessoal.

Não têm qualquer razão.
Vejamos porquê.

Diz o artigo 188.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que «Até 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa de realização desta, após a junção aos autos do relatório a que refere o artigo 155.º, o administrador de insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito de qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devam ser afetadas por tal qualificação, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação de insolvência, nos 10 dias subsequentes».

Na versão originária do CIRE (Decreto Lei n.º 53/2004), e no que concerne ao incidente de qualificação de insolvência, foi considerado, desde logo no seu preâmbulo, que o mesmo era «40 – aberto oficiosamente em todos os processos de insolvência, qualquer que seja o sujeito passivo, e não deixa de realizar-se mesmo em caso de encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente (assumindo nessa hipótese, todavia, a designação de ‘incidente limitado de qualificação da insolvência’, com uma tramitação e alcance mitigados) …..».

Com a alteração introduzida pela Lei 16/2012 de 20/04, foi então considerado, conforme se pode ler, desde logo, na exposição de motivos da proposta de Lei n.º 39/XII (que veio dar origem à Lei 16/2012), que «outra das novidades consiste na transformação do atual incidente de qualificação da insolvência de carácter obrigatório num incidente cuja tramitação só terá de ser iniciada nas situações em que haja indícios carreados para o processos de que a insolvência foi criada de forma culposa pelo devedor ou pelos seus administradores de direito ou de facto, quando se trate de pessoa coletiva (artigos 36.º, 39.º, 188.º, 232.º e 233.º)».

O artigo 36.º, nº 1, al. i) do CIRE, nessa nova redação, passou então a prever que na sentença que declara a insolvência, o juiz, caso disponha de elementos que justifiquem a abertura do incidente de qualificação da insolvência, declara aberto o incidente de qualificação, com carácter pleno ou limitado, sem prejuízo do disposto no artigo 187.º. O juiz tem agora o poder discricionário de aferir da pertinência ou não da abertura do incidente em sede de prolacção de sentença.

No caso de não determinar a abertura do incidente na sentença que declara a insolvência, e como decorre da actual redacção do artigo 188.º n.º 1, até 15 dias após a realização da assembleia, não só qualquer interessado, mas agora também o próprio administrador da insolvência, podem dar início ao incidente de qualificação culposa, competindo ao juiz o poder de aferir da pertinência da abertura desse incidente.

Ou seja, a lei apenas permite hoje que o incidente seja declarado aberto em dois momentos processuais e por duas formasoficiosamente pelo juiz, na sentença de insolvência, ou posteriormente, agora a requerimento do Administrador da Insolvência ou de qualquer interessado – até 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa de realização desta, após a junção aos autos do relatório a que refere o artigo 155.º.
Ora, no caso dos autos, não havendo elementos aquando de declaração de insolvência, o incidente não foi oficiosamente aberto em sentença, e, após esse momento, no prazo que a lei o permitia, também não foi pedido pela administradora e pelos interessados que o mesmo fosse iniciado.
Por isso, e em conformidade com o hoje estatuído no artigo 233.º n.º 6 do CIRE, no encerramento do processo de insolvência, sem que tenha sido aberto incidente de qualificação por aplicação do disposto na alínea i) do artigo 36º, deve o juiz declarar expressamente na decisão prevista no artigo 230º o carácter fortuito da insolvência.

Em suma, da alteração legislativa de 2012 decorre então que o incidente de qualificação da insolvência passou a assumir natureza facultativa e que o mesmo só existe a partir do momento em que é declarado aberto por despacho judicial, o que pode ocorrer apenas em dois momentos distintos, tal como acima consignamos, não prevendo a lei nova possibilidade para se requerer a abertura do incidente ou para que o mesmo seja oficiosamente aberto pelo juiz.

Donde, ainda que o Tribunal possa indeferir liminarmente o pedido formulado de exoneração do passivo restante - por aplicação do disposto nos artigos 238.º, n.º 1, al. e) e 186.º, n.ºs 1 e 2, al. d) e n.º 4, do CIRE, em face do comportamento dos insolventes que, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, transmitiram todos os seus bens a favor de terceiro (seu filho) agravando a sua situação de insolvência, tanto assim que o processo foi arquivado por inexistirem bens para serem apreendidos para a massa insolvente - não pode deixar de, declarando encerrado o processo, onde não foi aberto incidente de qualificação de insolvência nos momentos processais que a lei prevê, declarar expressamente o carácter fortuito da insolvência.
O juiz não faz ali qualquer apreciação, limita-se, por aplicação da lei – 233.º n.º 6 do CIRE - a fazer tal declaração e nada mais. Aliás, em anotação a este preceito legal, Carvalho Fernandes e João Labareda (no CIRE anotado, 3ª edição. QJ, Sociedade Editora, pág. 843) dizem que «16. Em rigor o n.º 6 não seria necessário para o fim que imediatamente visa alcançar. Com efeito, se não chegar a ser aberto o incidente de qualificação no decurso do processo, no quadro que decorre das disposições combinadas dos artigos 36.º n.º 1 al. i) e 188.º, é claro que a insolvência não poderia nunca ser qualificada como culposa. Dá que determinar a declaração do seu carácter fortuito na própria decisão de encerramento nada traga, realmente, de relevante».

Como vemos, e por ser assim, tal declaração do seu carácter fortuito em nada contraria a decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante. Foi opção legislativa que o incidente de qualificação apenas fosse aberto nos momentos processuais indicados, como vimos, e ainda que os fundamentos, que determinaram o aludido indeferimento, pudessem conduzirem a uma qualificação culposa da insolvência, certo é que tal incidente não foi aberto nos autos, e após os momentos indicados pelo legislador para esse feito, já nada se poderia mais fazer (quadro esse, aliás, diga-se, que apenas beneficia os insolventes que jamais poderiam contra tanto reagir).

Veja-se, neste sentido, o Acórdão desta secção da Relação de Lisboa de 13.04.2021, relatado por Amélia Sofia Rebelo no processo 17920/19.1T8LSB-D-L1, assim sumariado em parte «….. 4. Quer na sua versão originária, quer na versão atual, ao fixar prazos precisos e concretamente situados no iter legal do processo da insolvência, o legislador não pretendeu, antes afastou, a manutenção da abertura do incidente de qualificação da insolvência num estado de ‘latência’ para além das fases processuais que expressamente prevê e que permitisse o ‘aproveitamento’ da superveniência de factos suscetíveis de preencherem os respetivos pressupostos ou da sua cognoscibilidade nos autos ou pelos interessados»..

Impõe-se, pois, e sem mais, a absoluta improcedência do recurso intentado, que não merece assim qualquer provimento.

***

V.–Decisão:

Perante o exposto, acordam os Juízes desta 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente improcedente a presente apelação, assim se mantendo o despacho recorrido.
Custas pelos apelantes.
Registe e notifique.



Lisboa, 26/10/2021



Paula Cardoso
Renata Linhares de Castro
Nuno Teixeira