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VÍCIOS DA DECISÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
IMPUGNAÇÃO AMPLA
CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES
CONSUMO MÉDIO INDIVIDUAL
OBJECTO DO RECURSO
NÃO TRANSCRIÇÃO NO REGISTO CRIMINAL
Sumário
- Não se pode confundir a invocação dos vícios previstos nas alíneas do nº 2 do artigo 410º com os requisitos da impugnação da matéria de facto a que se refere o nº 3 e respectivas alíneas e o nº 4 do artigo 412º: trata-se de institutos distintos com natureza e consequências distintas e os vícios previstos no mencionado artigo 410º – como é expresso na norma – devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência e aí se ficam; a impugnação ampla da decisão da matéria de facto cava fundo na apreciação da prova. - Na verdade, pode não existir nenhum dos vícios previstos no nº 2 do artigo 410º e, no entanto, a prova ter sido mal apreciada – haver um verdadeiro erro de julgamento. Ora se assim é, e é, na motivação do recurso não pode existir confusão nem mistura entre a invocação dos vícios do nº 2 do artigo 410º e a impugnação da decisão da matéria de facto, nos termos do artigo 412º, nos 3 e 4”. - Estando provado, sem que tenha sido objeto de impugnação, que o recorrente detinha 8,402 gramas de canabis (resina), com um grau de pureza de 25,7%, cujas características conhecia e que destinava ao consumo próprio e exclusivo, a problemática encontra-se então na densificação do que sejam o «limite quantitativo máximo para cada dose média individual diária» e o «consumo médio individual durante o período de 10 dias». - Se determinada resina de canabis, com o peso líquido de 5 gramas (por hipótese) tiver a concentração de 10% de tetraidrocanabinol, então corresponderá ao limite quantitativo máximo para consumo médio individual durante 10 dias (à mencionada razão de meia grama diária); porém, se a concentração for de 5%, a mesma quantidade de resina de canabis corresponderá ao consumo médio individual durante 5 dias (como, de outro lado, se a concentração for de 20%, corresponderá ao consumo médio individual durante 20 dias, pois que quanto maior for a concentração da substância ativa, menor será a necessidade do consumidor do referido produto, para obter o efeito desejado). - Não se vendem no mercado derivados de canabis que possam apresentar THC em estado puro. - Assim se compreende o critério da tabela da Portaria nº 94/96, de 26 de março relativamente à canábis : não se indica apenas um limite quantitativo para a dose média individual diária, mas diz-se que os limites quantitativos apresentados, conforme se trate de folhas e sumidades floridas ou frutificadas, resina ou óleo, referem-se a concentrações médias de THC, que seguramente têm em conta dados epidemiológicos relativos às concentrações médias usuais nos diversos produtos da canabis. Esclarece-se, assim, que a quantidade indicada para a canábis - resina (0,5 gramas) se refere “a uma concentração média de 10% de A9THC”. A pretensão do arguido de que, no caso da manutenção da sua condenação, não seja a mesma inscrita no seu registo criminal, a fim de preservar o seu futuro e carreira profissional, apenas poderia ser objecto de apreciação nesta instância se tivesse sido requerida e apreciada em 1ª instância.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa,
I. Relatório
O arguido AA, filho de BB e de CC, natural do ……, de nacionalidade ……, nascido em 08 de dezembro de 1991, solteiro, titular do passaporte emitido pela …… nº ……, emitido em 15.05.2017, e residente em ……, ……, foi condenado no processo nº 758/13.7SFLSB do Tribunal Judicial da Comarca de ……, Juízo Local Criminal – Juiz ……, por sentença datada de 18.03.2021, pela prática de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 40º, nº 2 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, com referência à Tabela I-C ao mesmo anexa, na pena de 60 dias de multa, à razão diária de € 6,00, perfazendo o montante global de € 360,00, a que correspondem 40 dias de prisão subsidiária.
Inconformado com a referida condenação, veio da mesma interpor recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
“(…)
4º O cálculo das doses individuais diárias indicado pelo relatório pericial constante dos autos encontra-se equivocado, uma vez que no presente caso concreto, com os dados contidos no relatório pericial junto aos presentes autos, podemos elaborar a seguinte equação para verificarmos, efetivamente, com base no limite quantitativo máximo, do princípio ativo, a seguinte equação, em prol do ora recorrente:
8,402 dividido por 100 = 0,08402 × 25,7 = 2,159314 que, dividido por 0,5 g = 4,318628
5º Pelo que, contrariamente ao doutamente decidido pela sentença recorrida, o ora recorrente não detinha 43 doses médias individuais diárias, de estupefaciente relevante, em seu poder, mas sim apenas 4,31 doses, portanto inferior a 10.
6º Assim, o ora recorrente não praticou o crime de consumo de estupefacientes, mas tão somente e, a contrario, praticou a contraordenação prevista no artigo 2º, nº 2 da Lei 30/2000, de 29-11, o qual restou violado pela sentença recorrida, juntamente com o disposto pelo nº 3, do artigo 71º, do DL 15/93, de 22/01.
7º Pelo que, deverá ser dado provimento ao presente recurso, para que, sanado o vício do artigo 410º do CPP, quanto a insuficiência da matéria de facto dada como provada, seja o recorrente absolvido do crime que lhe foi imputado.
8º Por outro lado, a título subsidiário, verifica-se que o recorrente encontra-se inserido socialmente, bem como seguiu os seus estudos e trabalha, atualmente, nos ……, conforme resulta dos autos.
9º Sem se olvidar que não tem antecedentes criminais e adotou uma postura “colaborante”, conforme referiu a testemunha DD, pelo que requer-se que, no caso da eventual condenação do arguido, ao se manter, não seja inscrita no seu registo criminal, a fim de preservar seu futuro e carreira profissional, ex vi o tutelado pelo artigo 40º, nº 1 do CP, ou seja, a reintegração do agente na sociedade.”
O Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu à motivação de recurso, concluindo nos seguintes termos:
“1 – O Mmo. Juiz a quo fez uma correcta apreciação da prova produzida em sede de Audiência de Julgamento, em face do disposto no art. 127º do Cód. Proc. Penal.
2 – O Mmo. Juiz a quo aplicou o direito em conformidade e consequentemente condenou o arguido na pena que se mostra adequada face à culpa respectiva e às necessidades de prevenção geral e especial.
3 – Em nosso entender a Douta Sentença recorrida não viola qualquer das disposições invocadas pelo recorrente ou outras.
4 – Todavia, face à ausência de antecedentes criminais por parte do arguido, o Ministério Público nada tem a opor à não transcrição da condenação para o registo criminal, nos termos e para os efeitos a que alude o art. 13º nº 1 da Lei nº 37/2015 de 5 de Maio.
5 – Em consequência, deve manter-se na íntegra a Douta Sentença recorrida, a qual aplica o direito em conformidade.
6 – Deve manter-se o julgado.”
Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, subscrevendo a posição já expressa pelo Ministério Público junto do Tribunal a quo e aditando, no que se refere à prova pericial, “(…) que a mesma se presume subtraída à livre apreciação do julgador e divergindo este da perícia deve fundamentar essa posição (art. 163.º, do CPP).
Não é este o caso, o Tribunal a quo seguiu a prova pericial.
Por último, pretendendo o recorrente inquinar a prova pericial que foi produzida no momento próprio, devia igualmente tê-lo feito no momento próprio, de acordo com o disposto no art. 158.º, do CPP, ou seja até ao julgamento, inclusive, não em sede de recurso.
Em face do exposto, a decisão tomada pelo Tribunal a quo quanto à matéria de facto, fundada na sua livre convicção e na prova pericial, configura-se como uma das soluções possíveis face às regras da experiência comum, pelo que deve manter-se nos exatos termos em que foi proferida.”
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, tendo o arguido atravessado requerimento nos autos, reiterando as conclusões apresentadas com o recurso.
Colhidos os «vistos», foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
*
II. Fundamentação (âmbito do recurso)
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.04.1999, CJ/STJ, 1999, tomo 2, pág. 196 e acórdão do Pleno do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19.10.1995, DR Iª série A, de 28.12.1995.
No caso, se bem entendemos a alegação do recorrente plasmada nas respetivas conclusões, pretende o mesmo que se aprecie a validade da prova pericial produzida nos autos, devendo ser extraída da mesma conclusão diversa quanto ao número de doses médias individuais diárias de estupefaciente detidas pelo arguido, com a sua consequente absolvição – o que, segundo alega, conduz a que a decisão recorrida enferme do vício de «insuficiência da matéria de facto dada como provada», previsto no artigo 410º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal.
Subsidiariamente, pretende o recorrente que se determine a não transcrição da condenação no seu registo criminal. (a decisão recorrida)
O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos: - No dia 09 de julho de 2013, cerca das 06h45, na Avenida ….., em ……, o arguido tinha consigo um pedaço de canábis (resina) – vulgarmente denominado de bolota – com o peso líquido de 8,402 gramas, tendo a amostra cofre o peso líquido de 8,123 gramas. - Tal produto apresentava um grau de pureza de 25,7%. - O arguido conhecia a natureza estupefaciente do produto apreendido, que destinava ao seu próprio e exclusivo consumo. - A quantidade do estupefaciente detido pelo arguido excedia a necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias. - Sabia o arguido que a detenção do estupefaciente em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias é proibida e punível por Lei penal. - Agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o intuito de consumir o estupefaciente que trazia consigo, o que sabia ser-lhe vedado, mas quis, representou e logrou alcançar. - O arguido não tem antecedentes criminais registados.
* (da insuficiência da matéria de facto provada)
O vício da «insuficiência da matéria de facto provada», previsto no artigo 410º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal, verifica-se quando os factos dados como assentes na decisão são insuficientes para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição; ou seja, quando os factos provados são insuficientes para poderem sustentar a decisão recorrida ou quando o tribunal recorrido, devendo e podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto com relevo para a decisão da causa, o que determina que a matéria dada como assente não permite, dada a sua insuficiência, a aplicação do direito ao caso.
Note-se, todavia, que só há insuficiência para a decisão da matéria de facto quando existe uma lacuna no apuramento da matéria de facto, necessária para a decisão de direito, ou quando há uma lacuna por não se apurar o que é evidente que se podia apurar, ou quando o tribunal não investiga a totalidade da matéria de facto, podendo fazê-lo.
Assim, tal insuficiência – definida por Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, in Recursos Penais, 8ª Edição 2011, Rei dos Livros, página 74, precisamente, como uma “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito” – tem de existir internamente, no âmbito da decisão.
Como se fez notar no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28.02.2012, proferido no processo nº 238/10.2PFSTB.E1 (Relator: Des. Sénio Alves), acessível em www.dgsi.pt, “A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência da prova para a matéria de facto dada como provada: ali, o que se critica é o facto de o tribunal não ter investigado e apreciado todos os factos que podia e devia, carecendo a decisão de direito de suporte fáctico bastante; aqui, censura-se o facto de o tribunal ter dado como provados factos sem prova suficiente.
Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 340, adianta: “Para se verificar esse fundamento é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito”.
E tem sido este, aliás, o entendimento jurisprudencial dominante.
Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 16.04.1998 (Relator: Cons. Hugo Lopes)[1], decidiu que “a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é um vício que se nos depara quando a matéria de facto provada é insuficiente para a decisão de direito, o que se verifica porque o tribunal recorrido deixou de apurar matéria de facto que lhe cabia apurar, dentro do objecto do processo, tal como este está enformado pela acusação e pela defesa, sem prejuízo do mais que a prova produzida em audiência justifique”.
Do mesmo modo, escreve-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.02.1996, proferido no processo nº 048391 (Relator: Cons. Sousa Guedes), com sumário disponível em www.dgsi.pt, que “a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o artº 410º, nº 2, al. a) do CPP de 1987, só existe quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo deixa de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que a matéria de facto apurada não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à sua apreciação”.
Importa, todavia, ter em atenção que, como previne Sérgio Gonçalves Poças[2], “a chamada revista alargada toca à decisão da matéria de facto — uma impugnação restrita da matéria de facto – mas não é a impugnação ampla da matéria de facto, se quisermos, a verdadeira impugnação da matéria de facto, conforme o artigo 412º, nº 3. Sobre esta distinção não podem subsistir dúvidas. O recorrente não pode misturar/confundir a invocação dos vícios previstos nas alíneas do nº 2 do artigo 410º com os requisitos da impugnação da matéria de facto a que se refere o nº 3 e respectivas alíneas e o nº 4 do artigo 412º: trata-se de institutos distintos com natureza e consequências distintas. Como se sabe, os vícios previstos no mencionado artigo 410º – como é expresso na norma – devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência e aí se ficam; a impugnação ampla da decisão da matéria de facto cava fundo na apreciação da prova. (…) Na verdade, pode não existir nenhum dos vícios previstos no nº 2 do artigo 410º e, no entanto, a prova ter sido mal apreciada – haver um verdadeiro erro de julgamento. Ora se assim é, e é, na motivação do recurso não pode existir confusão nem mistura entre a invocação dos vícios do nº 2 do artigo 410º e a impugnação da decisão da matéria de facto, nos termos do artigo 412º, nos 3 e 4”.
Revertendo ao caso dos autos:
Em face do teor a motivação do recurso e das respetivas conclusões, resulta evidente que o recorrente se equivocou no vício que pretendia invocar. Desde logo, porque como acima já se fez notar, não aponta qualquer falha resultante do texto da decisão – nem a mesma existe, posto que consta da matéria de facto provada que o arguido detinha 8,402 gramas de canabis, com um grau de pureza de 25,7%, factos bastantes para proceder ao respetivo enquadramento jurídico, em conformidade com as normas legais aplicáveis, como abaixo se explanará. Inexiste matéria de facto adicional que pudesse – e devesse – ser averiguada pelo Tribunal a quo.
Do que se trata, porém, é que o recorrente pretende por em causa o apuramento do número de doses diárias que tinha na sua posse, questionando a fórmula de cálculo usada na decisão recorrida.
Mostra-se junto aos autos (cf. fls. 45) um relatório de exame pericial efetuado pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária à droga apreendida na posse do arguido. Aí se conclui tratar-se de canabis, com o peso líquido de 8,402 gramas e com um grau de pureza de 25,7%.
Tal exame, e respetivo relatório, configura prova pericial, nos termos definidos no artigo 151º do Código de Processo Penal, na medida em que a respetiva realização exige especiais conhecimentos científicos e o juízo científico que lhe é inerente presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, como decorre do disposto no artigo 163º, nº 1 do Código de Processo Penal (afastando, por isso, a regra geral contida no artigo 127º do Código de Processo Penal). O que significa, como escreve António Latas[3], em anotação ao citado artigo 163º, “que, em confronto com as demais provas eventualmente produzidas, o juiz não tem a faculdade de atribuir maior ou menor valor ao estrito juízo técnico-científico vertido nas conclusões periciais, devendo julgar provada a factualidade a que se reporta aquele mesmo juízo independentemente do sentido para que pudessem apontar outros meios, se aquele juízo, devidamente expresso e contextualizado, for suficiente para prova do facto objeto da perícia”.
E significa também, como refere Maia Gonçalves[4], que “no regime agora perfilhado legislativamente, se o julgador acatar o juízo técnico, científico ou artístico dos peritos inerente à prova pericial, nada terá a dizer”.
Foi o que sucedeu na decisão recorrida: o Tribunal a quo fez constar dos factos provados a informação extraída do exame pericial quanto à natureza e peso líquido da substância (estupefaciente) apreendida ao arguido, bem como do grau de pureza detetado no mesmo, e mencionou, depois, a propósito da motivação da decisão de facto, que foi esse relatório pericial que permitiu a referida prova.
Nada temos a censurar a tal operação, nem, em rigor, o recorrente o fez.
E, por assim ser, verdadeiramente, o que está em causa não é uma questão de facto – seja ela de «insuficiência da matéria de facto», seja de «erro de julgamento» - mas sim a determinação do número de «doses médias individuais diárias» de estupefaciente, o que corresponde já à subsunção dos factos ao direito. (do preenchimento do tipo do artigo 40º, nº 2 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro)
Tal como no caso paralelo tratado no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 26.09.2017 (no processo nº 36/13.1GBALQ.L1-5, relator: Des. Artur Vargues, citado na decisão recorrida e disponível em www.dgsi.pt), o recorrente insurge-se contra a sua condenação pela prática do crime p. e p. pelo artigo 40º, nº 2, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, considerando que as quantidades de canabis que detinha, atendendo ao respetivo grau de pureza e a que se destinavam ao consumo próprio exclusivo, integram conduta não criminalizada, apenas suscetível de se configurar como contraordenação.
Está provado, sem que tenha sido objeto de impugnação, que o recorrente detinha 8,402 gramas de canabis (resina), com um grau de pureza de 25,7%, cujas características conhecia e que destinava ao consumo próprio e exclusivo.
Ora, estabelece-se no artigo 40º, da Lei nº 15/93, de 22/01:
“1–Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou pena de multa até 30 dias. 2–Se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias (…)”.
Com a entrada em vigor da Lei nº 30/2000, de 29 de novembro e concretamente do seu artigo 2º, passou a vigorar que:
“1–O consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contraordenação. 2–Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.
E, o artigo 28º, desta Lei nº 30/2000, veio revogar o dito artigo 40º, “exceto quanto ao cultivo, e o artigo 41º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, bem como as demais disposições que se mostrem incompatíveis com o presente regime”.
Entretanto, o Supremo Tribunal de Justiça pelo acórdão nº 8/08, de 25.06.2008, in D.R. nº 146, Série I-A, de 05.08.2008, fixou jurisprudência no sentido de que “não obstante a derrogação operada pelo artigo 28º da Lei 30/2000, de 29/11, a Lei 15/93, de 22/01, manteve-se em vigor não só quanto «ao cultivo», como relativamente à detenção para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.”
A problemática encontra-se então na densificação do que sejam o «limite quantitativo máximo para cada dose média individual diária» e o «consumo médio individual durante o período de 10 dias».
É neste contexto que importa tomar em consideração a Portaria nº 94/96, de 26 de março, que, tal como consta do respetivo artigo 1º, alínea c), tem por objeto, entre o mais, a definição “dos limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, de consumo mais frequente”.
Ora, no mapa a que se refere o artigo 9º da referida Portaria nº 94/96, indica-se como quantitativo máximo para cada dose individual diária de canabis (resina), 0,5 gramas. E se é certo, que nas notas explicativas a esse mapa se afirma, na nota 3 c) que a quantidade indicada se refere “à dose média diária com base na variação do conteúdo médio do TIIC existente nos produtos da Canabis”; não menos certo é que aí se afirma mais do que isso: na nota 3 e) (aplicável à resina de canabis) esclarece-se que a quantidade indicada (0,5 gramas) se refere “a uma concentração média de 10% de A9TIIC”.
E daqui decorre, com meridiana clareza, que se determinada resina de canabis, com o peso líquido de 5 gramas (por hipótese) tiver a concentração de 10% de tetraidrocanabinol, então corresponderá ao limite quantitativo máximo para consumo médio individual durante 10 dias (à mencionada razão de meia grama diária); porém, se a concentração for de 5%, a mesma quantidade de resina de canabis corresponderá ao consumo médio individual durante 5 dias (como, de outro lado, se a concentração for de 20%, corresponderá ao consumo médio individual durante 20 dias, pois que quanto maior for a concentração da substância ativa, menor será a necessidade do consumidor do referido produto, para obter o efeito desejado).
Atendendo à quantidade de produto estupefaciente apreendido e que se encontrava na posse do arguido, resulta como inequívoco que o arguido detinha em sua posse sem qualquer autorização legal canabis, substância esta contemplada na Tabela I-C, anexa ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro. Ademais, demonstrado está que o arguido destinava o produto que transportava exclusivamente ao seu consumo, sendo que sabia que tal conduta era proibida porquanto a quantidade detida era superior ao consumo médio individual durante o período de 10 dias.
De facto, considerando os limites definidos no mapa a que se reporta o artigo 9º da Portaria 94/96, de 26 de março, o limite quantitativo máximo diário para a substância em análise – resina de canabis - é de 0,5 gramas, sendo que tal dose se refere a uma dose média diária com base na variação de conteúdo médio do THC existente nos produtos de cannabis e reporta-se, como se disse, a uma concentração média de 10%. Desta forma, e considerando a quantidade que o arguido detinha de canabis e a respetiva concentração, fácil é de concluir que este detinha quantidade que sabia corresponder ao consumo médio para mais de 10 dias.
Com efeito, tendo em conta que o arguido detinha canabis com o peso líquido de 8,402 gramas, com a substância ativa presente (THC) e com um grau de pureza de 25,7%, e que a dose média individual é de 0,5 gramas, para um grau de concentração média de 10%, apuramos que tinha 43 doses diárias [8,402 × (25,7% ÷ 10%) ÷ 0,5].
O cálculo apresentado pelo arguido nas conclusões do recurso não se mostra correto, desde logo, porque não tem em consideração a concentração média de 10% de tetrahidrocanabinol enunciada na alínea e) da nota 3 do quadro a que se refere o artigo 9º da Portaria nº 94/96.
Como se pode ler no acórdão deste Tribunal da Relação e Secção, de 06.11.2012, no processo nº 5929/09.8TDLSB.L1-5 (Relator: Des. Jorge Gonçalves), acessível em www.dgsi.pt: “No que concerne aos derivados da canabis, o fenómeno da adulteração é, aparentemente, muito menos significativo, ainda que possível (Veja-se Eduardo Hidalgo, “Sabes lo que te metes? Pureza y adulteración de las drogas en España”, Ediciones Amargord, 2007, Capítulo 1, pág. 25-45. Segundo este autor, os estudos realizados em Espanha pelo Instituto Nacional de Toxicologia não têm confirmado as queixas ou suspeitas de muitos consumidores de haxixe: em 2005, das 6.095 amostras analisadas, apenas 0,78% estavam adulteradas; em 2004, 0,06%; em 2003, 1,6%; em 2002, 0,6%; em 2001, 7,6%; em 2000, 3,2%; em 1999, 2%, e assim sucessivamente).
O Supremo Tribunal de Espanha – atente-se que em Espanha não existe uma tabela comparável à da Portaria n.º 94/96, ainda que o Supremo tenha fixado valores de consumo diário das diversas substâncias para efeito de preencher o conceito de “notória importância” do tráfico agravado (que foi jurisprudencialmente estabelecido a partir das 500 doses referidas ao consumo diário) - tem mesmo entendido que, relativamente aos derivados da canabis, não é necessário concretizar o grau de THC, ou seja, a concentração de tetrahidrocannabinol, já que se trata de um componente da própria planta e não se encontra em estado puro, variando por causas naturais, como a qualidade da planta, a zona de cultivo, a seleção das partes componentes (já que a concentração varia na mesma planta), etc.
Do que se infere que não se vendem no mercado derivados de canabis que possam apresentar THC em estado puro. Assim se compreende o critério da tabela relativamente à canabis: não se indica apenas um limite quantitativo para a dose média individual diária, mas diz-se que os limites quantitativos apresentados, conforme se trate de folhas e sumidades floridas ou frutificadas, resina ou óleo, referem-se a concentrações médias de THC, que seguramente têm em conta dados epidemiológicos relativos às concentrações médias usuais nos diversos produtos da canabis.
Esclarece-se, assim, que a quantidade indicada para a canábis - resina (0,5 gramas) se refere “a uma concentração média de 10% de A9THC”.
Provado não está que o recorrente consumisse diariamente uma dose de canabis superior a 0,5 gramas (nem tal foi sugerido pelo arguido em momento algum do processo) e, porque assim é, temos de concluir que, efetivamente, detinha quantidade de estupefaciente que excede a necessária ao seu consumo individual pelo período de 10 dias, pelo que a conduta se subsume na previsão do artigo 40º, nº 2, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro.
Termos em que, cumpre negar provimento ao recurso, mantendo-se a condenação do arguido. (da não transcrição da condenação no registo criminal do arguido):
Pretende o arguido que, no caso da manutenção da sua condenação, não seja a mesma inscrita no seu registo criminal, a fim de preservar o seu futuro e carreira profissional.
Dispõe o artigo 13º da Lei nº 37/2015, de 05 de maio, sob a epígrafe decisões de não transcrição, que, “1-Sem prejuízo do disposto na Lei nº 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no artigo 152º, no artigo 152º-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, os tribunais que condenem pessoa singular em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, se o arguido não tiver sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza e sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes, a não transcrição da respetiva sentença nos certificados a que se referem os nºs 5 e 6 do artigo 10º. (…)”
A aplicação de tal dispositivo, por um lado, faz apelo à valoração de factos que não foram apurados na decisão recorrida (designadamente, a existência, ou não, de perigo da prática de novos crimes – que há de ser apreciada em concreto) e, por outro lado, corresponde a uma questão que, tanto quanto resulta dos autos, não foi suscitada perante o Tribunal a quo, pelo que vedado está a este Tribunal ad quem tomar conhecimento da mesma.
Como, elucidativamente, se esclarece no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.03.2009, no processo nº 09P0308 (Relator: Cons. Henriques Gaspar), disponível em www.dgsi.pt, “I -É regra geral do regime dos recursos que estes não podem ter como objecto a decisão de questões novas, que não tenham sido especificamente tratadas na decisão de que se recorre, mas apenas a reapreciação, em outro grau, de questões decididas pela instância inferior. A reapreciação constitui um julgamento parcelar sobre a validade dos fundamentos da decisão recorrida, como remédio contra erros de julgamento, e não um julgamento sobre matéria nova que não tenha sido objecto da decisão de que se recorre. II - O objecto e o conteúdo material da decisão recorrida constituem, por isso, o círculo que define também, como limite maior, o objecto de recurso e, consequentemente, os limites e o âmbito da intervenção e do julgamento (os poderes de cognição) do tribunal de recurso. III - No recurso não podem, pois, ser suscitadas questões novas que não tenham sido submetidas e constituído objecto específico da decisão do tribunal a quo; pela mesma razão, também o tribunal ad quem não pode assumir competência para se pronunciar ex novo sobre matéria que não tenha sido objecto da decisão recorrida”.
É, pois, perante o Tribunal recorrido que a referida pretensão deverá ser suscitada.
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III. Decisão:
Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e confirmar a decisão recorrida, no que se refere à condenação pelo crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 40º nº 2 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro.
Mais acordam em não tomar conhecimento do recurso no que se refere à eventual não transcrição da condenação no registo criminal do arguido.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
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Lisboa, 26 de outubro de 2021 (texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Sandra Oliveira Pinto
Ana Sebastião
_______________________________________________________ [1] Cujo sumário pode ser consultado em www.dgsi.pt (processo nº 97P1496). [2]“Processo Penal – Quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto”in Revista Julgar, nº 10, Janeiro-Abril 2010, págs. 24-25. [3]In Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, 3ª ed., Almedina, 2021, pág. 507. [4]Código de Processo Penal, 9ª ed., Almedina, 1998, pág. 371.