ACIDENTE DE VIAÇÃO EM ESPANHA
DIVERSOS VEÍCULOS INTERVENIENTES
RESPONSABILIDADE CIVIL
LEI APLICÁVEL
REGULAMENTO CE Nº 864/07
DE 11/7
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
Sumário

1.– O Regulamento CE n.º 864/07, de 11 de julho, conhecido por Roma II, só se aplica em situações que envolvam um conflito de leis.

2.– O que acontece com um acidente de viação ocorrido em Espanha entre veículos pertencentes a pessoas jurídicas de diferente nacionalidade (portuguesa e espanhola).

3.– O Regulamento é aplicável a todo o tipo de obrigações extracontratuais em matéria civil e comercial, o que é o caso, visto tratar-se de uma situação de responsabilidade civil aquiliana.

4.– O ponto saliente do Regulamento encontra-se no artigo 4.º, o qual contém uma regra geral para a determinação da lei aplicável às obrigações extracontratuais decorrentes da responsabilidade fundada em acto lícito, ilícito ou no risco.

5.– No conjunto do artigo 4.º importa destacar a regra do n.º 1, que aponta para a lei de pais no qual ocorreram as consequências directas do acto relevante ou do evento pelo qual o requerido é alegadamente responsável.

6.– Ao caso sujeito é de aplicar a legislação espanhola, porquanto foi em Espanha que se deu o evento pelo qual a ré é alegadamente responsável e aí ocorreram os danos; era em Espanha que o veículo sinistrado era usado para transporte e entrega de veículos, não sendo de aplicar o princípio conhecido por Mosaikbetrachtung.

7.– Nada permite conferir à norma do artigo 498.º, 1, do CC as características que o Tribunal europeu equaciona deverem estar preenchidas para ser considerada no caso uma norma imperativa derrogatória.

8.– A apreciação da legislação nacional de transposição faz-se unicamente depois de, num primeiro momento, se ter determinado a lei aplicável em conformidade com as disposições do Regulamento Roma II.

9.– No caso sujeito, a lei aplicável é a lei espanhola, que estipula um prazo de prescrição de um ano, já esgotado quando foi instaurada a acção.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa



O A, com sede em Amadora, Portugal, instaurou ação declarativa, com processo comum, contra B [ INTER, com sede em Lisboa, representante em Portugal da Companhia de Seguros Espanhola X ] , pedindo:
a)-a condenação da ré a pagar-lhe, a título de danos patrimoniais, o montante global de € 35 519,19 (trinta e cinco mil, quinhentos e dezanove euros e dezanove cêntimos);
b)-a condenação da ré a pagar-lhe o montante que venha a ter que suportar com: a reparação dos guarda-lamas das rodas dianteiras do veículo de matrícula 48-T...-30, a reparação do apoio da grelha dianteira do motor, a reparação e afinação da porta do lado do condutor e a substituição do sensor do óleo do motor;
c)-a condenação da ré a pagar-lhe juros de mora à taxa legal, calculados sobre os montantes reclamados, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento.

Alegou, em síntese, que:
- é uma sociedade comercial que tem como objeto “transportes internacionais de mercadorias”, exercendo actualmente o transporte de veículos automóveis por vários países da Europa;
- é proprietária do veículo com a matrícula 48-T..-30 da marca Renault e do semi reboque AV 56361;
- no dia 12 de março de 2019, pelas 10,00 horas, ocorreu um acidente de viação entre o veículo 3934 CCB e o conjunto de veículos da autora;
- o conjunto de veículos da autora era conduzido por Sergiu M;
- o veículo pesado de mercadorias 3934 CCB era conduzido por Jesus M;
- o acidente ocorreu em Espanha, Gasteiz, Vitoria;
- em consequência do rebentamento de um pneu, o condutor do veículo 3934 CCB não conseguiu controlar o veículo, vindo a invadir a via de trânsito por onde seguia o veículo da autora e a embater violentamente contra a lateral direita deste;
- o acidente de viação deu-se por culpa única e exclusiva do condutor do veículo com a matrícula 3934 CCB;
- por contrato de seguro, titulado pela apólice n.º 4......9, a proprietária do veículo 3934 CCB, transferiu para a Companhia de Seguros,  representada pela ré, a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros emergentes da circulação do veículo;
- em consequência do embate, a autora sofreu danos patrimoniais, que pretende ver ressarcidos com a presente ação.
A ré contestou, invocando a exceção peremptória de prescrição, e, subsidiariamente, por impugnação, peticionando a sua absolvição do pedido.

Alegou, em resumo, o seguinte:
- estamos perante obrigações extracontratuais decorrentes de um acidente de viação que ocorreu em Espanha;
- a tais obrigações aplica-se a lei espanhola, quer pelo disposto no artigo 4º, n.º 1 do Regulamento (CE) 864/2007 (Roma II), quer pelo disposto no artigo 45º do Código Civil;
- o acidente ocorreu em 12 de março de 2019;
- a ré e a sua representada aceitaram a responsabilidade, o que foi comunicado à autora por e-mail de 27 de março de 2019;
- a seguradora espanhola, representada da ré, pagou a reparação do cabeça-trator TQ e do reboque AV em junho de 2019;
- em 27 de março de 2019, a autora reclamou à ré indemnização pela paralisação do seu veículo;
- em 2 de julho de 2019, a ré informou a autora que a sua representada não estava disponível para efetuar qualquer indemnização por paralisação;
- após essa data a autora não voltou a contactar a ré ou a sua representada, diretamente ou através de mandatário;
- em 17 de novembro de 2020, a autora propôs ação judicial;
- a ré foi citada em 25 de novembro de 2020;
- decorreu mais de um ano desde a comunicação da ré de 2 de julho de 2019 e a data em que a ação foi proposta e a ré foi citada;
- nos termos dos artigos 1968º, n.º 2, 1969º e 1963º do Código Civil espanhol, encontra-se prescrito o direito de indemnização da autora relativamente aos danos reclamados na presente ação, pois, para além da propositura da presente ação, não foi praticado pela autora, nem pela ré (e sua representada) qualquer ato interruptivo da prescrição após 2 de julho de 2019.

A autora respondeu à exceção invocada pela ré. Alegou, em síntese, o seguinte:
- o direito invocado pela autora não está prescrito, porquanto a lei aplicável é a portuguesa,
- por um lado, verifica-se a exceção contida no artigo 45º, n.º 3 do Código Civil;
- a proprietária do veículo com a matrícula 3934 CCB transferiu para a Companhia de Seguros, representada pela ré, a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros emergentes da circulação do veículo;
- a ré tem sede na Avª..... ....., n.º ..., ...º andar, em L______;
- sendo lesante uma sociedade comercial com sucursal em Portugal, para a qual foi transferida a responsabilidade civil, e lesado um cidadão português, existe razões que apontem para a prevalência, como conexão a atender, da nacionalidade comum, em detrimento da conexão primariamente relevante, o local onde a atividade lesiva teve lugar;
- por outro lado, a ordem jurídica comunitária adota como regra geral aplicável em sede de responsabilidade fundada em ato ilícito ou no risco a lei do lugar onde o dano é sofrido, que na maioria dos casos corresponde à lei do país da residência da pessoa lesada;
- a presente ação foi intentada em 17 de novembro de 2020 e a citação da ré ocorreu em 25 de novembro de 2020;
- nos termos do artigo 498º, n.º 3 do Código Civil, a autora tinha o prazo de cinco anos para intentar a presente ação.
Procedeu-se à realização da audiência prévia.
Foi proferido saneador-sentença que julgou procedente a exceção peremptória de prescrição do direito da autora e, consequentemente, absolveu a ré do pedido.

Inconformada, interpôs a autora A competente recurso, cuja minuta concluiu da seguinte forma:
«I.–Conforme resultou do Acórdão do Tribunal de Justiça (Sexta Secção) de 31 de janeiro de 2019, proferido no âmbito do processo C-149/18, cuja cópia se anexa: “Decorre da decisão de reenvio que o artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 291/2007 dispõe que, relativamente aos acidentes ocorridos no território dos Estados que tenham aderido ao Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, a obrigação de indemnizar estabelecida na lei aplicável ao acidente é substituída pela lei portuguesa sempre que esta estabeleça uma cobertura superior. Em aplicação do artigo 498.º, 1, do Código Civil, o prazo de prescrição da ação de indemnização pelos danos resultantes de um sinistro é de três anos, enquanto o prazo previsto no direito espanhol, que o órgão jurisdicional de reenvio considera aplicável no caso em apreço, por força do artigo 4. o do Regulamento Roma II, é de um ano.
II.–E conforme resulta em conclusão desse Acórdão pode o órgão jurisdicional chamado a conhecer do processo “… com base numa análise circunstanciada dos termos, da sistemática geral, dos objetivos e do contexto da adoção dessa disposição, que ela assume uma importância tal na ordem jurídica nacional que justifica que se afaste da lei aplicável, designada nos termos do artigo 4.º daquele regulamento.
III.–A Directiva 2009/103/CE de 16 de setembro de 2009, relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização de cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, estipula no considerando (34) que: A pessoa lesada por um acidente de viação que caia no âmbito de aplicação da presente directiva e ocorrido num Estado que não o de residência deverá poder introduzir um pedido de indemnização no Estado-Membro de residência junto de um representante para sinistros designado pela empresa de seguros da parte responsável pelo acidente. Esta solução permite que um sinistro ocorrido fora do Estado-Membro de residência da pessoa lesada seja regularizado de forma que lhe seja familiar.
IV.–Em face do que acima se encontra exposto, conforme foi entendimento do Tribunal de Justiça da União Europeia, no seu Acórdão de 31/01/2019, proferido no âmbito do processo n.º C-149/18, deve ser reconhecido que o prazo de prescrição previsto no Artigo 498º, n.º1 do C.C. é uma norma que visa a proteção das vitimas de acidentes de viação e, por isso assume uma importância de extrema relevância na aplicação do Direito, que obriga a que seja afastado o Artigo 4º do Regulamento (CE) n.º864/2007.
Contudo, mesmo que assim não se entenda, o que não se concede e por mero dever de patrocínio se coloca à cautela sempre diremos o seguinte:
V.–A ordem jurídica comunitária adota como regra geral aplicável em sede de responsabilidade fundada em ato ilícito ou no risco, a lei do lugar onde o dano é sofrido.
VI.–No caso sub judice, os danos reclamados pela Recorrente, decorrentes da paralisação do veículo, ocorreram em Portugal, local onde deixou de poder exercer a sua atividade.
VII.–A Recorrente instaurou a ação dentro do prazo de três anos previsto no Artigo 498º, n.º1, do C. Civil.
VIII.–Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou os artigos 4º do Regulamento (CE) n.º 864/2007, bem como os artigos 28º da Directiva 2009/103/CE, e bem assim o Artigo 498º do C. Civil.
Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exas. mui doutamente suprirão deve o presente Recurso obter provimento e, em consequência ser proferido douto Acórdão que revogando a Sentença proferida pelo Tribunal a quo declare improcedente a exceção de prescrição invocada pela Recorrida, com as consequências legais inerentes.
Assim decidindo farão V. Exas. a esperada JUSTIÇA».

A ré apresentou contra-alegações em que pugna pela improcedência do recurso.

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Constitui única questão decidenda saber se se mostra extinto, por prescrição, o direito invocado pela autora. Tal passa por identificar e interpretar qual a lei aplicável ao caso.

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São os seguintes os enunciados de dados de facto considerados assentes no primeiro grau:
1.–A autora é uma sociedade comercial que tem como objeto “transportes internacionais de mercadorias”, exercendo o transporte de veículos automóveis por vários países da Europa.
2.–Encontra-se registada a favor da autora, com a apresentação n.º 06493, em 30 de outubro de 2017, a propriedade do veículo de matrícula 48-T...-30, da marca Renault e do semi reboque AV 56361.
3.–No dia 12 de março de 2019, pelas 10,00 horas, ocorreu um embate entre o veículo de matrícula espanhola 3934 CCB e o conjunto de veículos da autora.
4.–O conjunto de veículos da autora era conduzido por Sergiu M, residente em Portugal.
5.–O veículo pesado de mercadorias de matrícula 3934 CCB era conduzido por Jesus M, residente em Espanha.
6.–O acidente ocorreu em Espanha, Gasteiz, Vitoria.
7.–O local onde ocorreu o embate referido em 3) é uma reta.
8.–A faixa de rodagem é composta por duas vias de trânsito no mesmo sentido.
9.–O condutor do veículo de matrícula 48-T...-30 circulava na via de trânsito da direita e à sua frente seguia o veículo de matrícula 3934 CCB a uma velocidade inferior à daquele veículo.
10. O condutor do veículo de matrícula 48-T...-30 acionou o pisca do lado esquerdo e iniciou a manobra de ultrapassagem pela via de trânsito à esquerda.
11.–Quando o veículo de matrícula 48-T...-30 circulava em paralelo com o veículo de matrícula 3934 CCB, este sofreu o rebentamento de um pneu.
12.–Em consequência do rebentamento do pneu, o condutor do veículo de matrícula 3934 CCB não conseguiu controlar o veículo, vindo a invadir a via de trânsito por onde seguia o veículo de matrícula 48-T..-30.
13.–O veículo de matrícula 3934 CCB embateu, violentamente, contra a lateral direita do veículo de matrícula 48-T...-30.
14.–Em consequência do embate, o veículo de matrícula 48-T...-30 foi projetado contra os raids de proteção existentes à esquerda atento o sentido de marcha dos veículos.
15.–Em consequência do embate, o veículo de matrícula 48-T...-30 deixou de se mover pelos seus meios.
16.–Em consequência do embate, o veículo de matrícula 48-T...-30 e o semi reboque AV 56361 sofreram danos.
17.–O local onde ocorreu o embate entre os veículos tinha visibilidade.
18.–À data dos factos, o piso estava seco.
19.–Por contrato de seguro, titulado pela apólice n.º 4......9, a proprietária do veículo de matrícula 3934 CCB, transferiu para a companhia de seguros espanhola Seguros S.A., representada pela ré, a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros emergentes da circulação do veículo.
20.–O referido embate de veículos ocorreu por causa da conduta culposa do condutor do veículo de matrícula 3934 CCB.
21.–Em consequência do referido embate, a autora sofreu danos patrimoniais.
22.–O veículo com a matrícula 48-T...-30 e o semi reboque AV 56361 foram retirados do local com recurso a uma grua.
23.–A seguradora do veículo com a matrícula 3934 CCB suportou custos de reparação do conjunto de veículos da autora, em junho de 2019.
24.–Em 27 de março de 2019, a autora solicitou à ré uma indemnização no montante de € 454,50 (quatrocentos e cinquenta e quatro euros e cinquenta cêntimos), por cada dia de paralisação do veículo com a matrícula 48-T...-30.
25.–Em 2 de julho de 2019, a ré remeteu à autora um e-mail, com o seguinte conteúdo:
“Exmos Srs
Tendo o sinistro ocorrido em Espanha, a nossa representada Axa Espanha informa que não está disponível a efetuar qualquer indemnização por paralisação.”.
26.–Nem a ré, nem a sua representada entregaram à autora um veículo de substituição.
27.–A ANTRAM e a Associação Portuguesa de Seguradores (APS) aprovaram uma tabela que serve de fundamento para compensação decorrente da paralisação de viaturas pesadas de mercadorias em caso de sinistros.
28.–Após a data referida em 25), a autora não voltou a contactar a ré ou a sua representada, diretamente ou através de mandatário.
29.–Em 17 de novembro de 2020, a sociedade O, com sede na Amadora, instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum de declaração, contra a sociedade B, com sede na Avª..... ....., em L_____, representante em Portugal da Companhia de Seguros ... S.A..
29.–A ré foi citada em 25 de novembro de 2020.
30.–A ré tem sede na Avª..... ....., em L_____.
31.–Na declaração amigável de acidente automóvel, que se encontra junto aos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, consta, além do mais, identificado como segurado/tomador do seguro relativo ao veículo de matrícula 3934 CCB, Claudio B, residente em Espanha.

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Do direito
O primeiro grau entendeu que ao caso sujeito se aplica a lei espanhola que prevê o prazo de um ano para a prescrição.
A recorrente entende, por sua vez e ao contrário, que a lei aplicável é a portuguesa e, consequentemente, seria aplicável o prazo de três anos do artigo 498.º, 1, CC.
Veremos que assiste razão ao primeiro grau (e à recorrida).
O ajuizado acidente ocorreu em Espanha envolvendo um veículo da autora, com sede em Portugal, e um outro veículo pertencente a pessoa jurídica espanhola.
Na presenta acção, a autora peticiona a indemnização por danos patrimoniais decorrentes desse acidente, quer os causados propriamente na viatura quer os danos de privação do uso da mesma.
O primeiro grau entendeu aplicar a lei espanhola, conclusão a que chegou ao abrigo Regulamento CE n.º 864/07, de 11 de julho, conhecido por Roma II.
O artigo 1.º deste Regulamento dispõe sobre o seu âmbito material: 1. « O presente regulamento é aplicável, em situações que envolvam um conflito de leis, às obrigações extracontratuais em matéria civil e comercial. Não é aplicável, em especial, às matérias fiscais, aduaneiras e administrativas, nem à responsabilidade do Estado por actos e omissões no exercício do poder público ».
O Regulamento ROMA II só se aplica «em situações que envolvam um conflito de leis». Significa isto que este regulamento só é aplicável quando o caso apresenta «elementos estrangeiros» que suscitam a dúvida quanto à Lei estatal que regula o caso (Rui Vouga, O Regulamento Roma II, inédito, Lisboa: 3, que, com autorização do autor, aqui seguimos de perto). «Se as circunstâncias do caso são de molde a levantar-se a dúvida e a ter de ser respondida a questão de saber se existe um conflito de leis, estará invariavelmente preenchido o requisito exigido pelo cit. art. 1º-1 do Regulamento».
Não me parece que se levantem dúvidas quanto à necessidade de resolução de conflito leis neste caso, que envolve, como vimos, um acidente de viação ocorrido em Espanha entre veículos pertencentes a pessoas jurídicas de diferente nacionalidade (portuguesa e espanhola). Por outro lado, está liminarmente excluída a subsunção do caso em algumas das hipóteses excluídas na última parte do preceito.
Quanto às matérias abrangidas pelo Regulamento alcança-se que é aplicável a todo o tipo de obrigações extracontratuais «em matéria civil e comercial».

Como refere Rui Vouga «este requisito é familiar nos instrumentos de direito internacional privado da UE e deve ser definido em termos coincidentes com o mesmo conceito de «matéria civil e comercial» empregue no art. 1º do Regulamento Bruxelas I e em sintonia com os princípios definidos pelo Tribunal de Justiça da UE a propósito das correspondentes disposições da Convenção de Bruxelas e do Regulamento Bruxelas I (ver Considerando 7) do Regulamento ROMA II), excluindo do seu âmbito apenas os casos em que a pretensão se funda no exercício de poderes públicos por uma autoridade pública ou por um seu representante» (Rui Vouga, ibidem:4).

Estamos também seguramente perante um caso de obrigações extracontratuais em matéria civil.
Mas será isto assim tão seguro?
A pergunta justifica-se porquanto «o conceito de «obrigações extracontratuais» «é um conceito autónomo, europeu e próprio do Regulamento ROMA II, que não deve ser retirado dos Direitos nacionais dos EM.
Este conceito tem elementos positivos e negativos. Por um lado, ele tem uma relação binária com o conceito de obrigação contratual usado no Regulamento ROMA I. Os dois conceitos devem ser interpretados autonomamente e coerentemente um com o outro (Considerandos 7) e 11) do Regulamento ROMA II e Considerando 7) do Regulamento ROMA I.
Portanto, se uma obrigação é correctamente classificada como de natureza contratual, ela automaticamente fica excluída do âmbito material do Regulamento ROMA II» (Rui Vouga, Idem: 4).
Por outro lado, «a vertente positiva do conceito de obrigação não contratual no Regulamento ROMA II também deve ser posta em evidência»; «As normas de conflitos do Regulamento (…) abrangem apenas obrigações não contratuais decorrentes da responsabilidade fundada em acto lícito, ilícito ou no risco (arts. 5º-9º), do enriquecimento sem causa (art. 10º), da gestão de negócios (art. 11º) e da responsabilidade pré-contratual (culpa in contrahendo) (art. 12º). Não existe nenhuma regra residual para outras obrigações não contratuais, como, por exemplo, para as obrigações de pagamento costumeiras ou estatutárias ligadas à titularidade da propriedade».
Um simples olhar sobre as circunstâncias do caso, que é um caso típico de responsabilidade civil aquiliana, leva-nos a convocar as regras do Regulamento.
O ponto saliente do Regulamento encontra-se no artigo 4.º, o qual contém uma regra geral para a determinação da lei aplicável às obrigações extracontratuais decorrentes da responsabilidade fundada em acto lícito, ilícito ou no risco.  
No conjunto do artigo 4.º importa destacar a regra do n.º 1, a saber: «1. Salvo disposição em contrário do presente Regulamento, a lei aplicável às obrigações extracontratuais decorrentes da responsabilidade fundada em acto lícito, ilícito ou no risco é a lei do país onde ocorre o dano, independentemente do país onde tenha ocorrido o facto que deu origem ao dano e independentemente do país ou países onde ocorram as consequências indirectas».
O n.º 2 dispõe que, se a pessoa alegadamente responsável e a pessoa que sofreu o dano têm ambos a sua residência habitual no mesmo país, no momento em que ocorre o dano, aplicar-se-á a lei desse país.
O n.º 3 contém uma “cláusula de escape” (Considerando 18), que se aplica se resultar claro das circunstâncias do caso que o facto ilícito ou lícito está manifestamente mais conexionado com outro país que não aquele a que os arts. 4º-1 e 4º-2, se aplicáveis, se referem. Nesse caso, aplicar-se-á a lei desse outro país.
Antes de nos debruçarmos sobre a interpretação a dar ao artigo 4.º, convém realçar que ele só se aplica «quando se verifica uma ausência de escolha, ou naquelas situações em que não preenche a previsão de nenhuma das normas de conflitos especiais, previstas nos seus artigos 5.º a 9.º, ou seja, quando está em causa uma situação de responsabilidade por produtos defeituosos (artigo 5.º), responsabilidade por acto de concorrência desleal (artigo 6.º), responsabilidade por violação de direito ou propriedade intelectual (artigo 8.º) e a acção colectiva prevista no artigo 9.ª» (Anabela Sousa Gonçalves, «A responsabilidade civil extracontratual em direito internacional privado- breve apresentação das regras do Regulamento (CE) n.º 864/2007», Scientia Juridica, n.º 329 (2012)), s. p.)
Basta uma breve ponderação para se concluir, como evidência, que não se está in casu perante qualquer hipótese excludente daquele artigo 4.º.
Anabela Sousa entende que a conexão do n.º 2 tem prioridade sobre as restantes conexões. É óbvio que, no caso vertente, as partes envolvidas no acidente não têm residência habitual comum. Seria ocioso estar a demonstrá-lo.  
Há, portanto, que destacar o elemento de conexão do n.º 1: local onde ocorreu o dano.
Para uma melhor interpretação do artigo 4.º é importante ter em conta os considerandos n.ºs 15 a 18 do Regulamento., particularmente, no nosso caso, os n.º 15 e 17.
Esclarece Lima Pinheiro que «o considerando n.º 15 sublinha que o princípio da lex loci delicti comissié a solução básica para as obrigações extracontratuais na quase totalidade dos Estados-Membros, mas a concretização deste principio varia quando elementos do caso estão dispersos por vários países. Isto verifica-se principalmente quando o facto que causa o dano ocorre num Estado e o dano é sofrido num Estado diferente. Por exemplo, um erro feito por um controlador aéreo que opera num aeroporto de um Estado pode conduzir a uma colisão de aeronaves no espaço aéreo de outro Estado. Outro exemplo é o de o produto defeituoso, adquirido num país por uma pessoa que se encontrava aí temporariamente, causar um dano ao comprador no país da sua residência» (Luís de Lima Pinheiro, «O direito de conflitos das obrigações extracontratuais entre a comunitarização e a globalização- uma primeira apreciação do Regulamento Comunitário Roma II», Estudos em honra do Professor Doutor José Oliveira Ascensão», Almedina, Coimbra, 2008:1605/1606. 

«O considerando n.º 17 esclarece que a lei aplicável deverá ser determinada com base no local onde ocorreu o dano independentemente do país ou países onde possam ocorrer as consequências indirectas do mesmo. Assim sendo, em caso de danos patrimoniais ou não patrimoniais, o país onde os danos ocorrem deverá ser o país em que o dano tenha sido infligido, respectivamente, ao património ou à pessoa.

Assim pode dizer-se que, no contexto do Regulamento, o dano directo é a lesão do bem jurídico (por exemplo a vida ou a propriedade). Em alguns países da Europa continental fala-se neste sentido de dano real. Uma vez que o bem jurídico, sendo uma realidade jurídica, não tem uma localização física, a localização da sua lesão é operada pelo resultado prático directo da conduta lesiva. Por exemplo, se um português morre atropelado em Espanha, a lesão do bem juridicamente tutelado produz-se em Espanha, embora os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelos familiares residentes em Portugal se configurem em Portugal» (ibidem: 1608)  
  
Dito de outro modo: a regra do n.º 1 do artigo 4 aponta «para a lei de pais no qual ocorreram as consequências directas do acto relevante ou do evento pelo qual o requerido é alegadamente responsável, e não para a lei do lugar da actuação ou do lugar onde o demandante é afectado negativamente  duma maneira que apenas reflecte o que foi sofrido pela vítima directa (Acórdão do TJUE de 11 de Janeiro de 1990 – caso Dumez France SA e Tracoba SARL contra Hessische Landesbank e outros.- Processo C-220/88) ou que é meramente consequencial relativamente ao dano inicial sofrido pelo requerido noutro sítio (Acórdão do TJUE de 19 de Setembro de 1995  - caso Antonio Marinari contra Lloyds Bank plc e Zubaidi Trading Company.; Processo C-364/93). Se ocorrem danos relevantes em mais do que um país, parece que as leis desses países devem, na medida do possível, ser aplicadas cumulativamente de acordo com o princípio conhecido como Mosaikbetrachtung, embora os tribunais possam lutar para evitar esta conclusão (cf. o parágrafo 29 do Acórdão do TJUE 10 de Dezembro de 2015 [caso Florin Lazar  contra Allianz SpA; Proc. C-350/14])».

Ora, perante o exposto, está fora de questão aplicar ao caso sujeito legislação diferente da espanhola, porquanto foi em Espanha que se deu o evento pelo qual a ré é alegadamente responsável.

Foi em Espanha que ocorreu o acidente que provocou no veículo da autora os danos referidos nos artigo 31 e 35. Por outro lado, o veículo era usado para transporte de veículos para Espanha, conduzido de resto por um motorista espanhol. Todos os documentos de fls. 23, 24, 25 , 33 a 38 são passados por ou para empresas espanholas. A privação de uso do veículo é uma privação de uso para transportes…para Espanha. Não há aqui que aplicar o princípio  conhecido como Mosaikbetrachtung (ver supra).

A Recorrente junta um Acórdão do Tribunal de Justiça (Sexta Secção) de 31 de janeiro de 2019, proferido no âmbito do processo C-149/18, cuja cópia  anexa, para sustentar a aplicação da lei portuguesa.

Não parece que se possa retirar desse aresto a conclusão pretendida pela autora. Vejamos.

Deram origem a essa decisão três questões prejudiciais submetidas por este Tribunal da Relação ao Tribunal de Justiça europeu, a saber:
1.ª-É de considerar que o regime vigente em Portugal prevalece como norma imperativa derrogatória, na aceção do artigo 16.º, do Regulamento «Roma II»?
2.ª-Poderá a mesma regra ser entendida como uma disposição de Direito Comunitário que estabelece uma regra de conflito de leis, na aceção do artigo 27.º do Regulamento «Roma II»?
3.ª-Poder-se-á entender que, a um cidadão português que tenha sofrido acidente de viação em Espanha, é aplicável o regime de prescrição previsto no artigo 498.º, n.º 3, do Código Civil Português, na aceção do artigo 28.º, da Directiva 2009/103/CE?».

O Tribunal de Justiça respondeu:
i)-Quanto à primeira pergunta o Tribunal começou por recordar que o artigo 15.º, alínea h), do Regulamento dispõe que a lei aplicável às obrigações extracontratuais referidas no mesmo regulamento rege, designadamente, as regras de prescrição e caducidade e que o artigo 16.º permite a aplicação das disposições da lei do país do foro que regulem imperativamente o caso concreto, independentemente da lei aplicável à obrigação extracontratual.
Depois, respondendo concretamente à pergunta asseverou-se: «o artigo 16.º do Regulamento Roma II deve ser interpretado no sentido de que uma disposição nacional como a que está em causa no processo principal, que prevê, que o prazo de prescrição da ação de indemnização dos danos resultantes de um sinistro é de três anos, não pode ser considerada uma norma imperativa derrogatória, na aceção do referido artigo, a menos que o órgão jurisdicional chamado a conhecer do processo constate, com base numa análise circunstanciada dos termos, da sistemática geral, dos objectivos e do contexto da adoção desta disposição, que ela assume uma importância tal na ordem jurídica nacional que justifica que se afaste da lei aplicável, designada nos termos do artigo 4.º daquele regulamento».

Vejamos se se justifica que o tribunal afaste no caso sujeito a lei aplicável.

Estamos no âmbito da responsabilidade civil por acidentes rodoviários, que cada vez mais se orienta para uma dimensão social, desligada da culpa, enfrentando o evento infortunístico como algo inerente a uma «sociedade de risco».

O fundamento da prescrição é controverso: «Maioritariamente é reconhecido na exigência de certeza das relações jurídicas e na não queira necessidade de paralisar o exercício de direitos depois de anos de inércia, numa altura em que na colectividade se tinha formado já a convicção da sua inexistência. Com o passar dos anos perdem-se (ou eliminam-se: ninguém conserva, ao fim de muitos anos, os recibos dos pagamentos efectuados, de pequena importância) os documentos, morrem as testemunhas, tornam-se vagas as recordações e as decisões emitidas pela autoridade judiciária já não d´garantia suficiente de exactidão, fundada em elementos sempre fiáveis. Reclama-se a necessidade de assegurar a estabilidade e de consolidar as situações ocorridas há muito tempo; aduz-se a circunstância que o decurso do tempo torna manifesto o desinteresse do titular e deixa presumir que este não quer mais exercer o direito ou que ele renunciou» (Pietro Perlingieri, Manuale di Diritto Civile, 5.ª ed., ESI, Napoli, 2005:320/321).

Estes fundamentos do instituto podem perfeitamente coexistir.

Como é sabido, os nossos prazos de prescrição, de há cerca de 60 anos, estão manifestamente desactualizados. O ritmo acelerado dos tempos modernos já não se compadece com prazos tão longos. Os institutos do abuso de direito e da supressio têm, de certo modo, compensado esta desactualização.

A prescrição não é de conhecimento oficioso (artigo 303.º CC). Nada de indisponível ou de ordem publica se associa a esta figura.
Pois bem: as razões acabadas de referir justificam bem a conclusão que  nada nos leva a conferir à norma do artigo 498.º, 1, do CC as características que o Tribunal europeu equaciona deverem estar preenchidas para ser considerada no caso uma norma imperativa derrogatória.

Quanto à 2.ª e à terceira questões, o Tribunal de Justiça respondeu «que o artigo 27.º do Regulamento Roma II deve ser interpretado no sentido de que o artigo 28.º da Directiva 2009/103, conforme transposto para o direito nacional, não constitui uma disposição de direito da União que regula os conflitos de leis em matéria de obrigações contratuais, na aceção do mesmo artigo 27.º».

Como observa ainda o mesmo tribunal «a apreciação da legislação nacional de transposição faz-se unicamente depois de, num primeiro momento, se ter determinado a lei aplicável em conformidade com as disposições do Regulamento Roma II».

Ora, como vimos a lei aplicável é a lei espanhola.

Aqui chegados, diremos que a lei espanhola, no que respeita ao direito de indemnização decorrente de responsabilidade civil extracontratual fixa o prazo de prescrição num ano a contar do evento e desde que o lesado tenha conhecimento do direito que lhe compete – art.º 1968º e 1902º do C. Civil Espanhol.

Como diz, e bem o primeiro grau, «a prescrição invocada pela ré funda-se na circunstância de entre a data da última comunicação – em 2 de julho de 2019 – e a data da proposição da presente ação – em 17 de novembro de 2020 - ter decorrido mais de um ano.

Admitindo que a prescrição foi interrompida por tal comunicação, nos termos do artigo 1973º do Código Civil Espanhol, dado que após tal comunicação decorreu mais de um ano, consumou-se a prescrição».

O recurso deve, portanto, ser julgado improcedente, como vai ser.

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Pelo exposto, acordamos em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

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Lisboa,18.11.2021



Luís Correia de Mendonça
Maria Amélia Ameixoeira
Rui Moura