MEDIDA DE PROTECÇÃO PROVISÓRIA
TRANSFUSÕES DE COMPONENTES SANGUÍNEOS
JOVEM DE 16 ANOS
CONSENTIMENTO
DISPENSA
MEIO PROCESSUAL
Sumário

1.–O procedimento urgente previsto nos Art.s 91.º e 92.º da Lei de Protecção das Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP), aprovada pela Lei n.º 147/99 de 1/9, é o meio processual adequado para a aplicação da medida de protecção provisória que consista na autorização a uma instituição de saúde, onde um jovem de 16 anos de idade se encontra internado, a administrar transfusões de componentes sanguíneos medicamente necessárias a prevenir o risco de vida desse doente, quando essa instituição hospitalar é confrontada com a recusa no consentimento à administração desse tipo de tratamento por parte dos titulares das responsabilidades parentais, por razões relacionadas com as suas crenças religiosas.

2.–A medida provisória de autorizar a ministração de transfusões de sangue, quando se indicie ser a única que permitirá prevenir o risco de vida de menor de idade, deve ser aplicada pelo tribunal por ser a adequada a por termo a uma situação de perigo para um jovem ainda menor, encontrando-se a intervenção do Estado, através dos Tribunais, legitimada em face da lei (cfr. Art.s 3.º n.º 1, 6.º e 11.º n.º 1 al. j), 91.º e 92.º da LPCJP e Art. 1918.º n.º 1 do C.C.) e da Constituição (Art. 69.º n.º 1 da C.R.P.), tendo em atenção que os progenitores, legais titulares das responsabilidades parentais (cfr. Art.s 1877.º, 1878.º e 1901.º do C.C., conjugado com os Art.s 122.º e 123.º do C.C.), não adoptaram o comportamento adequado e necessário a prevenir o risco de vida do seu filho, por motivos religiosos, pois nestes pressupostos prevalece claramente o direito à vida relativamente ao exercício da liberdade religiosa (Cfr. Art. 335.º n.º 2 do C.C.).

3.–Conferindo a lei ao menor, com mais de 16 anos, o direito de legitimamente consentir na lesão (cfr. Art. 38.º n.º 3 do C.P.), concomitantemente deve concluir-se que lhe reconhece necessariamente a capacidade de gozo para não dar esse mesmo consentimento, nomeadamente quando em causa esteja uma intervenção médica que possa lesar a sua integridade física, mesmo que realizada com o propósito de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar uma doença.

4.–No entanto, não basta para o exercício desse direito que o menor tenha idade superior a 16 anos, é necessário que, cumulativamente, seja alegado e provado que o menor tem o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance da sua decisão de recusar o consentimento.

5.–Não se pode presumir que um menor, com idade superior a 16 anos, tem o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance da sua decisão de consentir, ou não consentir, na realização de determinado ato médico, porquanto o espírito geral da lei vai no sentido de que os menores não têm discernimento suficiente, sendo essa incapacidade natural suprida pelo exercício do poder paternal (Art. 124.º do C.C.), que se não for exercido de modo a prevenir perigo para a vida e saúde do filho, pode ser suprido pelo tribunal, a pedido do Ministério Público, para se autorizar as medidas necessárias e adequadas a afastar esse perigo (Art. 1918.º do C.C.).

6.–Sendo essa a regra, o tribunal de menores, perante um processo urgente, que exige decisão provisória e célere, no prazo de 48 horas, deve presumir que o menor não tem o discernimento necessário para compreender as consequências dos seus actos, sendo que perante a recusa do consentimento dos pais num ato médico necessário e adequado a prevenir um risco de vida para o doente menor, deve decidir autorizar esses tratamentos, porquanto é claro que o direito à vida prevalece evidentemente sobre as convicções religiosas, seja dos pais, seja do menor.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


IRELATÓRIO


O Ministério Público, ao abrigo dos Art.s 105.º n.º 1, 91.º e 92.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP – aprovada pela Lei n.º 147/99 de 1/9), veio requerer a instauração de processo judicial urgente de promoção e proteção relativamente ao menor A, nascido a 12 de julho de 2005, filho de B [ João ...]  e C  [ Alexandra ...] , atualmente internado no serviço de pediatria do IPO de Lisboa, requerendo a abertura de instrução e que desde logo fosse autorizada a instituição de saúde, onde o menor se encontra internado, a administrar as necessárias transfusões de componentes sanguíneos e a realizar todas as manobras clínicas adequadas para a concretização e tratamento do doente, determinando-se que os seus progenitores não poderão retirar o jovem do hospital sem autorização e alta clínica da autoridade médica, solicitando à EATTL a indicação de técnica que acompanhe a situação e elabore relatório com proposta de intervenção.

Para tanto, alegou que o jovem foi internado no IPO de Lisboa, com o diagnóstico de leucemia aguda e necessita de transfusões de componentes sanguíneos, mas, por razões religiosas, os progenitores não dão autorização a esse tipo de tratamento, correndo o menor perigo de vida se essa terapêutica não for ministrada.

Por despacho de 22 de julho de 2021, ao abrigo do Art. 92.º da Lei de proteção das Crianças e Jovens em Perigo, foi determinado:
- Que a instituição de saúde onde o jovem A, nascido em 12 de Julho de 2005, se encontra, ou qualquer outra para onde venha a ser transferido, administre as transfusões de componentes sanguíneos, medicamente necessárias, e a realize todas as manobras clínicas necessárias e adequadas para a concretização e tratamento do doente; e
- Que os Progenitores não podem retirar o jovem do hospital ou outra instituição para onde venha a ser transferido, sem autorização e alta clínica da autoridade médica.
Mais determinou o prosseguimento dos autos, com a abertura de instrução solicitando o acompanhamento do menor através da EATTL, que deveria elaborar relatório social, com diagnóstico da situação e definição do projeto de vida para o menor.
É desta decisão que o jovem A, acompanhado pelos seus pais, vem recorrer, apresentando no final das suas alegações de recurso, as seguintes conclusões:
A.A decisão ora recorrida está ferida por crassa violação do direito do Recorrente ao exercício do contraditório;
B.O Recorrente tem 16 anos de idade e capacidade suficiente e necessária para entender a sua situação e decidir em matéria de cuidados de saúde;
C.A decisão de não receber componentes sanguíneos é do Recorrente;
D.A decisão dos Progenitores coincide com a do Recorrente;
E.Recebida a Petição Inicial, o Tribunal não procedeu a qualquer averiguação sumária e indispensável, apenas reproduzindo a comunicação do IPO e a PI;
F.Remetendo-se a mera conclusão vaga, sem devido suporte e fundamentação técnico-científica, de que o Recorrente pode perder a vida por falta de tratamento;
G.Usando na fundamentação termos vagos e indeterminados, que não concretiza;
H.Foi o Recorrente, juntamente com os seus Progenitores, quem procurou ajuda médica e o meio hospitalar para o efeito, nunca equacionando sair do Hospital sem a devida alta médica;
I.O Recorrente aceita tratamento médico e o protocolo que lhe foi proposto pelo IPO, simplesmente solicitando que no decurso do mesmo não seja usado um procedimento muito específico: administração de componentes sanguíneos;
J.Os seus pais, igualmente, concordaram com o protocolo de tratamento proposto;
K.Os Progenitores têm demonstrado extremo cuidado com o seu filho, desde que os sintomas da patologia começaram a ser sentidos, solicitando apenas que não lhe sejam administrados componentes sanguíneos;
L.O tratamento do Recorrente está em curso há já 2 semanas, com êxito e plena colaboração deste e seus Progenitores;
M.O IPO subverteu os factos para assacar uma autorização judicial que imaginou dar-lhe legitimidade para impor transfusão de componentes sanguíneos contra a vontade do Recorrente, na eventualidade de vir a considerar recomendado transfundir;
N.O artº 12º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças estabelece que o jovem tem o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre questões que lhe digam respeito e de ver essa opinião tomada em consideração, sendo assegurada a oportunidade de ser ouvida nas decisões judiciais que lhe digam respeito;
O.No seu artº 14º salvaguarda-se o seu direito à liberdade de pensamento, consciência e religião;
P.A Convenção de Oviedo assegura a proteção do ser humano na sua dignidade e na sua identidade e garantem, sem discriminação, o respeito pela sua integridade e pelos seus outros direitos e liberdades fundamentais face às aplicações da biologia e da medicina (art. 1º);
Q.Qualquer intervenção no domínio da saúde só pode ser efetuada após ter sido prestado pela pessoa em causa o seu consentimento livre e esclarecido (artº 5º convenção Oviedo);
R.Assegura, igualmente, no artº 6º que a opinião do menor é tomada em consideração como um fator cada vez mais determinante, em função da sua idade e do seu grau de maturidade;
S.A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia salvaguarda o exercício do “Direito à Integridade do Ser Humano”, e que no domínio da medicina e da biologia, devem ser respeitados o consentimento livre e esclarecido (artº 3º, nº 2);
T.A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, assegura, no artº 9º, a Liberdade de pensamento, de consciência e de religião;
U.E no artº 14º proíbe a discriminação, por estabelecer que o gozo dos direitos e liberdades reconhecidos nela deve ser assegurado sem quaisquer distinções, de religião, minorias nacionais, entre outras;
V.A Carta da Criança Hospitalizada, considera que as agressões físicas ou emocionais ao jovem devem ser reduzidas ao mínimo, tendo o direito a ser informado para que possa participar em todas as decisões relativas aos cuidados de saúde, devendo evitar-se qualquer exame ou tratamento que não seja indispensável (artº 4º e 5º);
W.O Recorrente tem o direito a um tratamento digno, no respeito pela sua vontade e convicções, devendo ser tratado como um todo, respeitando-se a sua vontade e emoções;
X.O Recorrente tem direito ao respeito pela sua dignidade como pessoa humana (artº 1º da CRP;
Y.Artº 24º CRP, o Recorrente tem direito à vida, o que significa, que o Recorrente deverá continuar a receber tratamento, não devendo ser discriminado em vista da sua decisão, continuando igualmente a ser tratado sem hemoderivados;
Z.A integridade moral e física do Recorrente é inviolável, nos termos do estabelecido no artigo 25º da CRP, pelo que, ninguém deve realizar a administração de componentes sanguíneos, sem o seu consentimento, no respeito pelo direito que lhe assiste à autodeterminação;
AA.O seu direito e liberdade de consciência, de religião e de culto, fica assegurado no plano constitucional, pelo artº 41º CRP;
BB.O artº 340º CC estabelece que o ato lesivo dos direitos do Recorrente é lícito, desde que tenha consentido na lesão;
CC.Também pela LLR, artº 11º, o Recorrente vê assegurado o seu direito de realizar por si as escolhas relativas a liberdade de consciência, de religião e de culto;
DD.Em conformidade com o artº 38º do Código Penal, o consentimento ou dissentimento para determinada terapia médica é prestado pelo próprio Recorrente, em vista da sua idade e capacidade;
EE.A equipa médica respetiva tem a obrigação deontológica de respeitar as opções religiosas do Recorrente, sem a questionar (Regulamento nº 707/2016, Regulamento de Deontologia Médica, artigos 14º e 26º);
FF.No estado atual técnico científico, os médicos aplicam com êxito técnicas sem sangue, em cirurgias e procedimento que tradicionalmente exigiam transfusões de sangue, respeitando desta forma, a vontade do paciente;
GG.O Tribunal a quo violou o artº 92º, nº 2 da LPCJP, não tendo procedido a averiguações sumárias e indispensáveis, limitando-se a reproduzir a comunicação do IPO e a PI, o que gera a nulidade da decisão,
HH.Não se preocupou em averiguar a posição do jovem na questão que lhe dizia respeito, pese embora os seus 16 anos e se encontra lúcido e capaz de se expressar;
II.O Tribunal tinha possibilidades e tempo para o ouvir, nem que fosse pelos meios de comunicação à distância, cada vez mais usados nos nossos Tribunais;
JJ.Bem como, tinha a possibilidade e tempo para ouvir os pais pelos mesmos meios;
KK.O Tribunal violou o direito ao contraditório, (artº 84º e 85º da LPCJP) sem fundamentar a preterição de tais trâmites;
LL.A decisão está deficitariamente fundamentada, não sopesando os diversos valores em causa, nem justificando adequadamente a proteção de uns em detrimento de outros;
MM.O Tribunal a quo também não respeitou o direito e deveres dos pais de orientar o Recorrente no exercício do direito de exercício da sua liberdade de consciência e religião, de forma compatível com o desenvolvimento das suas capacidades (art. 14º Convenção da Criança), nem fundamentou devidamente a sua preterição;
NN.Não considerou a hipótese das alternativas ao procedimento específico rejeitado pelo Recorrente;
OO.Extravasou o pedido, decidindo sobre eventual retirada do Recorrente do Tribunal, questão que jamais foi equacionada;
PP. Não identificou devida e especificamente os meios de prova que permitiram concluir pelos factos indiciariamente demonstrados;
QQ.O Procedimento Judicial Urgente foi inadequado, porquanto, não estamos na presença de um alegado risco atual ou iminente, mas meramente eventual, não se encontrando preenchido tal requisito do Art. 91º da LPCJP;
RR.Nem o segundo requisito, do consentimento dos pais, releva porquanto o jovem já tem idade e capacidade para tomar as suas próprias decisões em matéria de cuidados de saúde;
SS.Ainda que a decisão provisória se tornasse definitiva, a mesma apenas supre a falta de consentimento dos Progenitores,
TT.Não supre a falta de consentimento do Recorrente;
UU.Não tendo, assim, qualquer efeito útil;
VV.Em todo o caso, a aplicação do procedimento por este rejeitado é sempre ilegítimo, gerando responsabilidade administrativa, civil, criminal e deontológica do IPO e seus profissionais, uma vez que é essencialmente o consentimento do Recorrente que releva.
Pede assim que seja concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão provisória que foi proferida, em sede de Procedimento Judicial Urgente, devendo ordenar o arquivamento do processo de Promoção e Proteção.

O Ministério Público respondeu ao recurso, sobrelevando das suas contra-alegações as seguintes conclusões:
1-O Recorrente veio recorrer da douta decisão proferida no dia 22 de julho de 2021, que determinou que a instituição de saúde onde o jovem João ... se encontrava, IPO, ou qualquer outra para onde o mesmo viesse a ser transferido, administrasse as transfusões de componentes sanguíneos medicamente necessárias ao tratamento da sua situação clínica, bem como que realizasse todas as manobras clínicas necessárias e adequadas para a concretização desse tratamento, determinando-se ainda que os progenitores não poderiam retirar o jovem do hospital ou de outra instituição para onde o mesmo viesse a ser transferido, sem autorização e alta clínica da autoridade médica.
2-A decisão, cujo valor e acerto se pretende agora questionar, acompanha a promoção do Ministério Público e baseia-se na prova junta aos autos, designadamente nas informações sobre o estado clínico do menor juntas pelo IPO.
3-Como nunca é demais repetir, o critério orientador principal para um juiz se guiar em qualquer decisão relativa a menores é o superior interesse da criança ou jovem.
4-Tendo presente esse critério importa encontrar a solução que melhor favoreça o seu interesse, da criança ou jovem, e não a solução que favoreça o interesse dos progenitores.
5-O jovem João ... foi diagnosticado com Leucemia Aguda num episódio de urgência a que recorreu.
6-Segundo informação clínica de fls. 16 dos autos: …as transfusões de sangue e derivados são essenciais ao suporte vital dos tratamentos considerados cientificamente adequados para a doença oncológica do João.... A não realização dessas mesmas transfusões, quando clinicamente necessárias, porá em risco de vida o menor. Quaisquer alterações aos tratamentos, no sentido de minimizar as necessidades de transfusões de sangue e derivados, deixarão de ter validade científica e irão contribuir para pôr em risco a vida do menor…
7-O direito à vida não é absoluto mas no confronto com outros princípios, nomeadamente com o da liberdade religiosa, deve ser-lhe reconhecida uma posição preferencial se o visado deste confronto for um menor de idade.
8-Embora a lei estabeleça uma “maioridade especial” nas questões da liberdade religiosa, artigo 1886º, do Código Civil, a partir dos 16 anos, a aferição de maturidade do menor João... para decidir sobre a necessidade ou não de efetuar transfusões de sangue é difícil de se conceber no caso concreto, atenta a complexidade das questões que se colocam na resposta, nomeadamente em termos científicos, religiosos, legais e até mesmo filosóficos.
9-O menor João..., que acabou de fazer 16 anos e que, como tal, tem tão pouca experiência de vida e tem uma natural dependência afetiva, emocional e material dos seus pais, não se assume com maturidade suficiente parta decidir sobre o destino da sua própria vida.
10-Dos elementos dos autos resulta a urgência, quer da instauração dos autos, quer da decisão tomada, a qual não pode ficar dependente da realização de outras diligências, visto que já se recolheram elementos médicos e científicos suficientes nos autos sobre a questão, nem ficar dependente da posição do jovem, que nos parece carecer de maturidade e autonomia suficientes para decidir sobre esta questão tão complexa.
11-Em nossa modesta opinião, a decisão proferida nos autos não deve ficar suspensa, a aguardar decisão a proferir em sede superior, sob pena de se perder o seu efeito útil, ou seja, conseguir preservar-se a saúde e a vida do menor.
12-Como tal, o Ministério Público entende que se deve manter a decisão tomada a 22.07.2021 nos seus precisos termos, seguindo o processo os seus ulteriores termos.

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II QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.s 635º n.º 4 e 639º n.º 1 do C.P.C., aqui aplicáveis “ex vi” Art. 126.º da LPCJP/99, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106).
Assim, em termos sucintos, as questões essenciais a decidir são:
a)- A inadequação do meio processual aplicado;
b)- A preterição de trâmites processuais;
c)- A insuficiência de fundamentação da decisão recorrida; e
d)-A adequação da medida de proteção e necessidade de ponderação da vontade do menor em recusar o tratamento, em face da sua maturidade.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

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IIIFUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal fundamentou a decisão aqui recorrida na seguinte matéria de facto, que julgou por provada com base na documentação junta aos autos:
1A, nascido em 12 de Julho de 2005 é filho de B e C .
2–O jovem João... está internado no IPO e foi diagnosticado com leucemia aguda.
3–O tratamento para a patologia de que o jovem padece exige transfusão de componentes sanguíneos.
4–Os progenitores não dão o seu consentimento às transfusões necessárias, por motivos religiosos.

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IVFUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Estabelecidas as questões que fazem parte do objeto da apelação, cumpre então delas tomar conhecimento pela ordem de precedência lógica, começando pelos alegados vícios formais que precedem a própria decisão recorrida, ainda que não tenha sido essa sequência respeitada nas alegações de recurso.

1.-Da adequação do meio processual.
O Ministério público lançou mão do procedimento urgente previsto nos Art.s 91.º e 92.º da Lei de Proteção das Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP), aprovada pela Lei n.º 147/99 de 1/9, com vista à aplicação duma medida de proteção provisória que autorizasse a instituição de saúde onde o jovem, aqui Recorrente, se encontra internado, para administrar as transfusões de componentes sanguíneos medicamente necessárias e realize todas as manobras clínicas necessárias e adequadas para a concretização e tratamento do doente e ainda que se determinasse que os progenitores não pudessem retirar o jovem do hospital sem autorização e alta clínica da autoridade médica, isto porque esse hospital foi confrontado com a recusa desse tratamento por razões religiosas.

O Tribunal decidiu confirmar e aplicar as medidas requeridas, precisamente no quadro legal do Art. 92.º da LPCJP. Mas, o Recorrente põe em causa a adequação do procedimento, porque não haveria perigo atual ou iminente para a vida ou integridade física ou psicológica, pois já estaria a ser sujeito a tratamento, sem administração de componentes sanguíneos, há 15 dias. Por outro lado, não se colocava a questão da existência ou não do consentimento dos detentores das responsabilidades parentais, porquanto o jovem, pela sua idade e capacidade, já escapa à necessidade de intervenção dos responsáveis parentais.

Efetivamente, nos termos do Art. 91.º n.º 1 da LPCJP, é estabelecido que: «1- Quando exista perigo atual ou iminente para a vida ou de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou jovem, e na ausência de consentimento dos detentores das responsabilidades parentais ou de quem tenha a guarda de facto, qualquer das entidades referidas no artigo 7.º ou as comissões de proteção tomam as medidas adequadas para a sua imediata proteção e solicitam a intervenção do tribunal ou das entidades policiais».

Por sua vez, o Art. 92.º n.º 1 da LPCJOP precisa que «1- O tribunal, a requerimento do Ministério Público, quando lhe sejam comunicadas as situações referidas no número anterior, profere decisão provisória, no prazo de quarenta e oito horas, confirmando as providências tomadas para a imediata proteção da criança ou do jovem, aplicando qualquer uma das medidas previstas no artigo 35.º ou determinando o que tiver por conveniente relativamente ao destino da criança ou do jovem».

Cumpre recordar que, para os efeitos da Lei de Proteção das Crianças e Jovens em Perigo considera-se criança ou jovem «a pessoa com menos de 18 anos ou a pessoa com menos de 21 anos de idade que solicite a continuação da intervenção iniciada antes de atingir os 18 anos, e ainda a pessoa até aos 25 anos sempre que existiam, e apenas enquanto durem, processos educativos ou de formação profissional» (cfr. Art. 5.º al. a) da LPCJP).

Não poderemos esquecer ainda que as medidas de promoção dos direitos e de proteção de crianças e jovens em perigo visam, nos termos do Art. 34.º da LPCJP: «a) Afastar o perigo em que estes se encontram; b) Proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral; c) Garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso». Sendo que o Art. 3.º n.º 1 da LPCJP legitima a intervenção do Estado para a promoção dos direitos e proteção de crianças ou jovens quando estes estejam em perigo; quando os pais, legais representantes ou pessoas que tenham a sua guarda de facto, ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento; ou «quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo».

Nestas condições, a promoção dos direitos e a proteção da criança ou do jovem está legalmente atribuída aos tribunais (cfr. Art.s 6.º e 11.º n.º 1 al. j) da LPCJP), que podem, e devem, decretar as medidas tidas por adequadas (cfr. Art. 1918.º n.º 1 do C.C.), sendo o procedimento processual adequado o previsto nos Art.s 91.º e 92.º da Lei em menção.

Ora, o jovem era, e continua a ser, menor de idade, tendo menos de 18 anos. Estava internado no IPO de Lisboa, na sequência de episódio de emergência médica, com diagnóstico de “leucemia aguda”, tendo o corpo médico, da instituição hospitalar onde estava internado, verificado a necessidade de realizar transfusões de sangue, quando foi confrontado com a recusa dos progenitores, legais titulares das responsabilidades parentais (cfr. Art.s 1877.º, 1878.º e 1901.º do C.C., conjugado com os Art.s 122.º e 123.º do C.C.).

Cumpre realçar que a informação médica que instruiu o requerimento do Ministério Púbico explicitava que existia «risco para a vida do doente identificado», para além de dar conta da «não concordância por parte dos pais», esclarecendo que tal se devia a «motivos religiosos»(cfr. doc. a fls 4). Pelo que, o argumento de que não havia perigo iminente para a vida do jovem, quando não sustentado em prova médica, é um argumento que perde todo o sentido, traduzindo uma afirmação leviana e infundada.

Por outro lado, sustentar que o jovem tinha autonomia para decidir sobre estas matérias, estando excluído da responsabilidade parental, era questão que, no mínimo, seria muito discutível quando o processo foi instaurado e à data em que a decisão recorrida foi proferida, pois tendo em atenção o disposto nos Art.s 1877.º, 1878.º, 1901.º, conjugados com os Art.s 122.º e 123.º, todos do C.C., e ainda com o que é estabelecido no Art. 5.º al. a) da LPCJP, seria sustentável precisamente o contrário, como posição de princípio, o que legitimaria perfeitamente a intervenção do Estado.

Em suma, improcedem as conclusões que sustentam a inadequação do procedimento formal aplicado ao caso, pois julgamos não haver qualquer erro na forma de processo e que o procedimento legal aplicado era o formalmente adequado à situação que se verificava à data da prolação da decisão recorrida, em face dos elementos disponíveis.

2. Da preterição de formalidades processuais.
A Mm.ª Juíza do Tribunal a quo veio decidir confirmar e determinar as medidas de proteção que foram requeridas pelo Ministério Público só com base no requerimento deste e na prova documental então junta, que consistiu num email do “Departamento da Criança e do Adolescente” do IPO de Lisboa, remetido pela “Assistente Graduada Sénior Hospitalar”, Maria .... (cfr. doc. de fls 4).

Entende o Recorrente que se verificou uma preterição de formalidades processuais, porquanto não foram feitas as “averiguações sumárias e indispensáveis”, que o Art. 92.º n.º 2 da LPCJP estabelece. Desde logo, daí se constatando que o IPO omitiu a oposição do próprio jovem ao tratamento proposto e que o mesmo estava lúcido e capaz de expressar a sua vontade. Em suma, foi violado o contraditório (cfr. Art.s 84.º e 85.º da LPCJP), não se justificando que a decisão seja tomada com ligeireza, sem ponderação de todos os interesses em jogo, nomeadamente sem ponderar a possibilidade de existirem outros tratamentos ou alternativas terapêuticas de igual ou aproximada equivalência e eficácia.

Apreciando diremos que, efetivamente, nos termos do Art. 92.º da LPCJP, depois de se afirmar, no n.º 1, que o tribunal tem o prazo de 48 horas para proferir decisão provisória, confirmando as providências tomadas ou determinando as que tiver por conveniente, no seu n.º 2 acrescenta-se que: «2- Para os efeitos do disposto no número anterior, o tribunal procede às averiguações sumárias indispensáveis e ordenar as diligências necessárias para assegurar a execução das suas decisões, podendo recorrer às entidades policiais e permitir às pessoas a quem incumba do cumprimento das suas decisões a entrada, durante o dia, em qualquer casa».

Cumpre ainda referir que, no n.º 3 do mesmo Art. 92.º da LPCJP, estabelece-se ainda que: «3- Proferida a decisão provisória referida no n.º 1, o processo segue os seus tramites como processo judicial de promoção e proteção». Ou seja, depois da decisão urgente e provisória, deve observar-se “a posteriori” a tramitação do processo comum estabelecido nessa lei, sendo aí que estão expressamente previstas, entre outras formalidades, a audição da criança ou jovem (cfr. Art. 84.º) e dos titulares das responsabilidades parentais (cfr. Art. 85.º). Por outras palavras, em função da celeridade imposta por lei a esta decisão provisória não está objetivamente imposta a necessidade de audição prévia do jovem ou dos seus progenitores, ainda que se reconheça a importância evidente destas diligências no contexto do processo judicial comum de promoção e proteção.

Em todo o caso, a omissão de formalidades legais, como a audição do jovem ou dos seus pais, só poderia determinar a nulidade na tramitação do processo por preterição de formalidades essenciais, tal como o Art. 195.º do C.P.C. prevê, aqui aplicável por força do Art. 126.º da LPCJP.

Ora, esse tipo de nulidade secundária tem de ser arguida pela parte, junto do tribunal de 1.ª instância, através de reclamação (cfr. Art. 196.º do C.P.C.) no prazo geral de arguição de dez dias, contados da notificação da decisão que omitiu a formalidade legal (Art.s 199.º n.º 1 e 149.º n.º 1 do C.P.C.).

Mantém plena atualidade e pertinência do brocardo segundo o qual dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se.

Conforme explicitam Luís Mendonça e Henrique Antunes (in “Dos Recursos”, Quid Juris, pág. 52): «A reclamação por nulidade e o recurso articulam-se, portanto, de harmonia com o princípio da subsidiariedade: a admissibilidade do recurso está na dependência da dedução prévia da reclamação.

Assim, o que pode ser impugnado por via do recurso é a decisão que conhecer da reclamação por nulidade – e não a nulidade ela mesma. A perda do direito à impugnação por via da reclamação – caducidade, renúncia, etc. – importa, simultaneamente, a extinção do direito à impugnação através do recurso ordinário.
Isto só não será assim no tocante às nulidades cujo prazo de arguição só comece a correr depois da expedição do recurso para o tribunal ad quem e no tocante às nulidades – exceções – que sejam oficiosamente cognoscíveis.»

Na mesma linha Teixeira de Sousa (in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, pág. 372) afirma que: «(…) quando a reclamação for admissível, não o pode ser o recurso ordinário, ou seja, esses meios de impugnação não podem ser concorrentes; - se a reclamação for admissível e a parte não impugnar a decisão através dela, em regra está precludida a possibilidade de recorrer dessa mesma decisão.»

Daqui resulta que cabia ao Recorrente, no momento próprio, arguir tal nulidade, o que não fez, razão pela qual a mesma se sanou. Não tendo arguido a nulidade apontada, não pode vir agora erigi-la em fundamento específico do recurso de apelação.

Em todo o caso, sempre se dirá que a relevância dessa nulidade estaria dependente da demonstração de que o ato omitido influiu no exame da causa ou na decisão proferida (Cfr. Art. 195.º n.º 1 “in fine” do C.P.C.). Ora, apesar de tudo, mesmo sabendo-se agora que o jovem também recusava as transfusões de sangue por razões religiosas, sempre se poderia sustentar que tal não alteraria substancialmente a perceção dos interesses em conflito, porquanto o jovem era, e continua a ser, menor de idade, sendo que em causa está a ministração de tratamento necessário e adequado a prevenir um efetivo risco para a sua vida e, nos termos do Art. 3.º n.º 1 da LPCJP, o Estado, através dos tribunais, sempre teria legitimidade para proteger crianças ou jovens em perigo mesmo «quando esse perigo resulte de ação ou omissão (…) da própria criança ou do jovem a que aqueles – referindo-se aqui aos titulares das responsabilidades parentais – não se oponham de modo adequado a removê-lo».

Veja-se, aliás, que o Tribunal a quo veio a ter conhecimento posterior dessa recusa de consentimento pelo próprio menor e não alterou a decisão provisória que havia tomado. Pelo que, a questão não seria de nulidade na tramitação do processo, mas de mérito na apreciação da causa. O que, oportunamente, no momento próprio, terá de ser apreciado, como adiante será feito.

No entanto, a situação já era formalmente diferente quanto á alegada falta de informação médica nos autos sobre a alegada possibilidade doutros meios terapêuticos de igual ou aproximada equivalência e eficácia que poderiam dispensar a realização do ato médico ao qual o jovem e os seus pais se opõem.

De facto, se existissem outros tratamentos, que não importassem na realização de transfusões de sangue, mas que garantissem que não era colocada em risco a vida do jovem, deveria optar-se por essas alternativas, tendo em atenção que a terapêutica proposta é invasiva e põe em causa as convicções religiosas do doente, menor, e dos seus pais.

Deve reconhecer-se que a informação do IPO, que instruía o requerimento inicial do Ministério Público, era efetivamente omissa sobre essa possibilidade, limitando-se a referir que o paciente «vai necessitar de transfusões de componentes sanguíneos» (cfr. doc. de fls 4). No entanto, cumpre verificar que o IPO remeteu aos autos um outro email, datado de 28 de julho de 2021 (portanto, posterior à decisão aqui recorrida, que data de 22 de julho), onde se faz menção ao facto de que «1. O menor, de 16 anos, também professa a religião dos pais (Testemunhas de Jeová) e expressou a sua vontade pessoal de não fazer transfusões de sangue». Mas também acrescentou que: «5. Gostaríamos de informar o Tribunal que as transfusões de sangue e derivados são essenciais ao suporte vital dos tratamentos considerados cientificamente adequados para a doença oncológica do João. A não realização dessas mesmas transfusões, quando clinicamente necessárias, porá em risco de vida o menor. Quaisquer alterações aos tratamentos, no sentido de minimizar as necessidades de transfusões de sangue e derivados, deixarão de ter validade científica, e irão contribuir para pôr em risco a vida do menor» (cfr. doc. a fls 16).

Assim sendo, ainda que com recurso a documental superveniente, verificamos que a questão das terapêuticas alternativas, não têm sustentação científica e a não realização das transfusões de sangue, quando necessárias, irá pôr em risco a vida do jovem. Pelo que, a possibilidade de respeito pela liberdade religiosa do menor, nos termos propostos, não teria cabimento no caso concreto, por pôr em risco a vida do menor.

Em face de todo o exposto, julgamos que a alegada omissão na tramitação do procedimento urgente em causa nestes autos não pode ser relevada para os efeitos do Art. 195.º do C.P.C., até porque, a final, em função das informações entretanto apuradas, essas alegadas falhas processuais não tiveram verdadeira influência no exame da causa, porquanto sempre se poderia sustentar que a decisão seria sempre a mesma, improcedendo assim as conclusões que sustentam o contrário, pois em causa está uma questão meramente jurídica relativa à apreciação do mérito da causa.

3.Da insuficiência da fundamentação da decisão recorrida.
Como vimos a decisão recorrida sustentou-se fundamentalmente na informação transmitida pelo IPO, constante de fls 4, junta pelo Ministério Público com o seu requerimento inicial.

Defende agora o Recorrente que, para além da omissão das averiguações essenciais e ligeireza da decisão, constata-se existir uma precariedade na fundamentação da decisão recorrida, nomeadamente porque não existe sustentação para a conclusão de que, se o jovem não for submetido ao tratamento médico sugerido, poderia perder a vida, considerando que o mesmo já está a ser tratado sem recurso a componentes sanguíneos, sendo que existem outros doentes, nas mesmas condições, cuja recuperação teve sucesso.

Sem prejuízo de se reconhecer que a decisão original se sustenta apenas na informação do IPO de fls 4, que não é explícita sobre a possibilidade doutros tratamentos que poderiam respeitar as opções religiosas do jovem e dos seus progenitores, a verdade é que, a informação de fls 16, é muito mais precisa sobre esse assunto, como deixámos consignado no ponto 2. do presente acórdão.

Está agora claro no processo, ainda que de forma indiciária e sem prejuízo de se poderem obter informações ainda mais precisas, que a situação clínica do menor em causa nestes autos é grave, implica a necessária ministração de transfusões de componentes sanguíneos e a cessação desses tratamentos põe efetivamente em risco a sua vida. Importaria assim, com urgência e em primeiro lugar, assegurar o tratamento adequado e necessário do menor.

Em todo o caso, constatamos que a fundamentação de facto e de direito expedida na decisão recorrida, apesar de sucinta, mostra-se bem explicitada em termos que se nos afiguram claros e perfeitamente percetíveis em função de todos os elementos coligidos nos autos até então, tendo ponderado adequadamente todos os interesses em conflito em modos tais que permitem ao Recorrente sindicar a decisão, quanto ao seu acerto. Nessa medida, de modo algum tal decisão não enferma de nulidade, nomeadamente da prevista no Art. 615.º n.º 1 al. b) do C.P.C..

Por outro lado, há que ter em consideração que estamos perante uma decisão provisória, que poderia ser alterada a qualquer momento, mas que nos termos do Art. 92.º n.º 1 da LPCJP teria de ser proferida no prazo de 48 horas.

Ora, a decisão judicial teve por base informações que foram prestadas diretamente pela instituição hospitalar onde o jovem se encontra internado e que se afigura ser entidade de reconhecida competência técnica nesta área da medicina, com evidentes responsabilidades públicas na gestão direta e casuística de situações de doença de pessoas que recorrem ao Serviço Nacional de Saúde com esse tipo de quadro clínico. Assim, não podemos pressupor que estamos perante uma informação leviana, ou com propósito de prejudicar o jovem na sua saúde, ou simplesmente que visava inutilmente testar as suas convicções religiosas.

Nessa medida, mesmo reconhecendo que o processo deveria ser mais profundamente instruído com relatórios médicos mais pormenorizados, não se nos afigura sustentável anular a decisão recorrida com fundamento na insuficiência da prova, nos termos do Art. 662.º do C.P.C., porquanto a natureza do processo, pela sua urgência e responsabilidade imposta pelos interesses em conflito, impunha uma decisão provisória, célere e rápida.

Evidentemente que interessaria fazer uma avaliação psicológica do menor, com vista a apurar a sua maturidade e discernimento para tomar decisões relativas à sua autodeterminação quanto a questões de saúde que são da maior relevância para a sua vida e, muito particularmente, se o menor não está agora a expressar uma vontade, pura e simplesmente, sob a influência de seus pais. Só que tem também de se reconhecer que não havia tempo para tanto, sendo que as prioridades estavam perfeitamente definidas, havendo que, em primeiro lugar, salvar uma vida.

Em conformidade, com o exposto, julgamos não haver fundamento para anular a decisão recorrida por “insuficiência de fundamentação”.

4.Da adequação da medida de proteção e da relevância da vontade do menor em recusar o tratamento.
O Recorrente põe em causa a adequação da medida de proteção aplicada principalmente por não ter sido tida em consideração a sua vontade, não terem sido respeitadas as suas convicções religiosas e a maturidade das suas opções, para além de sustentar que existiriam outras terapêuticas alternativas que não passariam pela transfusão de componentes sanguíneos.

No que se refere às alternativas terapêuticas já nos debruçámos suficientemente sobre a questão, sendo que o Recorrente não trás aos autos pareceres médicos que possam sustentar conclusão diversa relativamente às informações que o IPO forneceu (cfr. fls 4 e fls 16).

Portanto, em termos indiciários, como é próprio duma decisão provisória em processo urgentíssimo, decorre dos autos que as transfusões sanguíneas são necessárias e adequadas ao tratamento específico deste jovem, não existem outras soluções médicas que assegurem o mesmo resultado ou semelhante e a cessação dessa terapêutica autorizada pela decisão recorrida irá colocar em risco a vida do jovem, aqui Recorrente.

Com base nestes pressupostos, as medidas aplicadas afiguram-se perfeitamente adequadas a por termo a uma situação de perigo para a vida do menor (cfr. Art.s 91.º n.º 1, 92.º n.º 1, 34.º da LPCJP), que precisamente por ser menor de idade está sujeito à aplicação da Lei de Proteção das Crianças e Jovens em Perigo (cfr. Art. 5.º al. a) da LPCJP), encontrando-se a intervenção do Estado, através dos Tribunais, legitimada em face da lei (cfr. Art.s 3.º n.º 1, 6.º e 11.º n.º 1 al. j), 91.º e 92.º da LPCJP e Art. 1918.º n.º 1 do C.C.) e da Constituição (Art. 69.º n.º 1 da C.R.P.), tendo em atenção que os seus progenitores, legais titulares das responsabilidades parentais (cfr. Art.s 1877.º, 1878.º e 1901.º do C.C., conjugado com os Art.s 122.º e 123.º do C.C.), não adotaram o comportamento adequado e necessário a prevenir o risco de vida do seu filho, por meros motivos religiosos, por muito respeitáveis que possam ser.

A necessidade de intervenção célere e imediata do tribunal no interesse do menor não viola a Constituição da República Portuguesa. Pelo contrário, traduz a afirmação do Estado de Direito (Art. 2.º da CRP) e o respeito devido pela dignidade da pessoa humana (Art. 1.º da CRP) e pela integridade moral e física do menor (Art. 25.º da CRP).

Como refere Guilherme de Oliveira (in “Temas de Direito da Família”, Vol. 1, 2.ª Ed. Aumentada, Coimbra Editora, pág.s 296 a 299), os menores de 18 anos tem direito à proteção do Estado, mesmo contra si próprios, não por imposição de um castigo, mas antes por razões de proteção do menor. O mesmo se dizendo quanto à família, permitindo-se assim evitar que a mesma abuse do seu poder ou negligencie o cumprimento dos seus deveres, com manifesto prejuízo para o menor.

Citando ainda, a este propósito, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de maio de 2020 (Proc. n.º 40/18.3T8MFR-A-7 – Relator: Luís Filipe Sousa – disponível em www.dgsi.pt): «a convicção doutrinal maioritária vai, efetivamente, no sentido de que o médico deve proceder à transfusão sanguínea no menor contra a vontade dos pais, se isso se revelar indispensável à vida e saúde da criança, não incorrendo, se o fizer, em responsabilidade criminal a título de tratamento arbitrário. Nas palavras de Costa Andrade, “a liberdade de dispor do corpo ou da própria vida é uma liberdade pessoal, que não se comunica ao representante legal, nem é violada só por contrariar a vontade do representante” (obra supra cit.). Com Engisch: “O consentimento necessário dos pais não é emanação do direito de autodeterminação do próprio paciente, mas do direito de assistência dos pais que é, ao mesmo tempo, um dever de assistência” (Juristische Praxis 1965 4)».

Aliás, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida chegou a emitir um parecer com o nº 46 de 2005, de 27.6.2005, nos termos do qual:
«10.- Os doentes interditos ou com anomalia psíquica e os doentes menores de idade carentes do discernimento necessário não podem considerar-se como tendo competência para assumir decisões sobre cuidados de saúde, pelo que são justificados os atos terapêuticos para os quais não foi obtido consentimento e que se destinam a salvar a sua vida ou prevenir sequelas, designadamente a administração de sangue e hemoderivados.
«11.- Nas situações anteriores deve ser requerida a autorização dos representantes legais, prevalecendo igualmente, em caso de recusa, o dever de agir decorrente do princípio da beneficência, porquanto aquela autorização não corresponde ao exercício da autonomia, pessoal e indelegável, sem prejuízo do recurso às vias judiciais quando indicado».

Justifica-se, pois, deste modo a intervenção judicial que, mesmo contra a vontade dos pais, decide autorizar a transfusão sanguínea com vista à salvaguarda da vida de paciente menor de idade.

Resta, no entanto, ponderar a relevância da vontade do próprio doente, menor, em recusar esse tratamento, por razões relacionadas com as suas próprias convicções religiosas, tendo em atenção a sua maturidade e a sua capacidade de exercício do direito de consentir o ato médico considerado.

Nós não pomos em causa a pertinência de todas as disposições legais, inclusivamente constantes de instrumentos internacionais, relativamente ao respeito pela liberdade religiosa e à necessidade de auscultação da vontade dos menores em todas as decisões que lhe digam respeito, quer relativamente a decisões judiciais, quer relativamente à realização de atos médicos.

Já está claro no processo que o jovem, carecido desta terapêutica específica, recusa dar o seu consentimento pessoal à realização desse ato médico, porque as suas convicções religiosas não lho permitem.

Verificamos que, no caso dos autos, não está sequer em causa a violação da obrigação de informação por parte da instituição hospitalar. Tudo indica que todas as partes estão perfeitamente esclarecidas sobre as alternativas médicas – ou a ausência delas – e quais as consequências dos seus atos, sendo que o menor, e os seus pais, mantém-se irredutíveis, parecendo continuar a acreditar, infundadamente, que existem outras soluções que não põem em causa as suas crenças religiosas.

Ora, não há dúvida que o Art. 12.º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças estabelece que a criança tem o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre questões que lhe digam respeito e de ver essa opinião tomada em consideração, devendo os Estados assegurar o exercício deste direito, de acordo com a sua idade e maturidade. O que se estende, não só aos processos judiciais, como administrativos, que lhe respeitem (v.g. n.º 2 do Art. 12.º citado).

Por outro lado, o Art. 14º da mesma Convenção, estabelece também que o Estado deve respeitar o direito da criança à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. O que é igualmente reconhecido na Convenção Europeia dos Direitos do Homem no seu Art. 9.º, que também proíbe a discriminação fundada na religião no Art. 14.º.

De igual modo, a Convenção Para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser humano Face às Aplicações da Biologia e da Medicina (“Convenção de Oviedo”), estabelece a obrigação de proteção do ser humano na sua dignidade e na sua identidade e a garantia, a toda a pessoa, sem discriminação, do respeito pela sua integridade e pelos seus direitos e liberdades fundamentais face às aplicações da biologia e da medicina (cfr. Art. 1.º), impondo-se que qualquer intervenção no domínio da saúde dependa do consentimento livre e esclarecido da pessoa em causa (v.g. Art. 5.º), sendo que, no caso de menor, a sua vontade deve ser tomada em consideração como fator determinante, em função da sua idade e do seu grau de maturidade (Cfr. Art. 6.º).

O direito das crianças serem informadas sobre os tratamentos que vão receber e de participarem em todas as decisões relativas aos cuidados de saúde é também reconhecido na Carta da Criança Hospitalizada, preparada em Leiden, em 1988, por diversas associações europeias, como é realçado pelo Recorrente.

Todos esses direitos estão igualmente vertidos na legislação nacional (v.g. Art.s 14.º e 26.º do Regulamento de Deontologia Médica nº 707/2016), relembrando-se aqui que o direito ao respeito pela dignidade da pessoa humana está consagrado logo no Art. 1.º da nossa Constituição, a proibição de discriminação está prevista no Art. 13.º e a liberdade de consciência, de religião e de culto vem estabelecida no Art. 41.º.

Mas sejamos claros, todos esses direitos podem entrar em conflito entre si, inclusivamente podem contender com o direito à vida, também consagrado no Art. 24.º da Constituição, e nesse caso, não há a mínima dúvida que este último prevalece sobre todos os outros, tal como estabelece o Art. 335.º n.º 2 do C.C., por ser direito claramente superior.

Assim, não há liberdade religiosa que justifique a perda duma vida humana, para mais estando em causa uma criança. Nem há consentimento do lesado que justifique lesões graves à integridade física da pessoa que consente a lesão, nomeadamente quando esta possa causar a morte. A indisponibilidade do direito à vida parece indiscutível (vide: Germano Marques da Silva in “Direito Penal Português – Parte Geral II Teoria do Crime”, 1998, pág.  128).

Efetivamente, o Art. 340.º n.º 1 do C.C. estabelece que o ato lesivo dos direitos de outrem é lícito, desde que este tenha consentido na lesão. O que é consentâneo com o estabelecido no Art. 38.º n.º 1 do C.P.. No entanto, este último preceito ressalva, muito justamente, que a ilicitude desse ato é excluída pelo consentimento «quando se referir a interesses jurídicos livremente disponíveis e o facto não ofenda os bons costumes». Assim, não há consentimento legítimo relativamente a lesão de que resulte a perda da vida da pessoa que consente na lesão. Por isso, continua a ser punido o crime de homicídio a pedido da vítima (Art. 134.º do C.P.) e mesmo o auxílio ao suicídio (Art. 135.º do C.P.). Sendo que só em situações extremas e excecionais se poderá vir a admitir a possibilidade de haver morte clinicamente assistida, sendo que o Tribunal Constitucional já se pronunciou pela inconstitucionalidade da lei que a propósito foi aprovada na Assembleia da República (v.g. Ac. do T.C. n.º 123/2021 publicado no DR n.º 70, 1.ª Série, de 12 de abril de 2021).

Por regra a integridade física considera-se livremente disponível (cfr. Art. 149.º n.º 1 do C.P.), mas para tanto há que ter ainda em consideração se o ato lesivo não viola os “bons costumes”, para o que deverão relevar os motivos e os fins do agente ou do ofendido, bem como os meios empregados e a amplitude previsível da lesão (cfr. Art. 149.º n.º 2 do C.P.C.), sendo que o consentimento não é relevado como causa de exclusão no caso do crime de mutilação  genital feminina (cfr. Art. 149.º n.º 3 e Art. 144.º-A do C.P.).

Também por regra, as intervenções cirúrgicas e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrem indicados e forem levados a cabo, de acordo com a legis artis, por um médico ou por pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensas à integridade física (cfr. Art. 150.º n.º 1 do C.P.). Embora se forem realizados sem o consentimento do paciente, passem a ser punidos nos termos do Art. 156.º n.º 1 do C.P..

O consentimento do paciente tem assim um papel essencial na consideração da licitude dos atos médicos, seja para efeitos criminais, seja para efeitos cíveis, considerando que a licitude deve ser tida em consideração tendo em conta o ordenamento jurídico considerado na sua globalidade. Assim, fica claro que não basta que os atos médicos sejam adequados ao tratamento, segundo as regras da “arte”, os atos têm de ser consentidos pelo paciente. No entanto, há aqui uma diferença substancial neste outro tipo de ilícito, é que o “consentimento do lesado” não é causa de exclusão da ilicitude, mas sim condição para o exercício da medicina (vide: Cavaleiro Ferreira in “Lições de Direito Penal”, 1987, pág. 174).

Em todo o caso, é inquestionável que o consentimento é um ato pessoal do próprio lesado, sendo que nos termos do Art. 38.º n.º 3 do C.P. só é eficaz se for prestado por quem tiver mais de 16 anos de idade e possuir o discernimento necessário para avaliar o seu sentido e alcance no momento em que o presta.

Ora, se a lei confere ao menor com mais de 16 anos o direito de legitimamente consentir na lesão (cfr. Art. 38.º n.º 3 do C.P.), concomitantemente deve entender-se que lhe reconhece necessariamente a capacidade de gozo para não dar esse mesmo consentimento, nomeadamente quando em causa esteja uma intervenção cirúrgica que lese a sua integridade física, mesmo que realizada com o propósito de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar uma doença. No entanto, o requisito do “discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance da sua decisão” é cumulativo com o requisito da idade mínima considerada.

Não basta, portanto, que o menor tenha mais de 16 anos de idade, para poder consentir, ou recursar o consentimento, tem ainda de ter discernimento suficiente e necessário para avaliar o alcance do consentimento que lhe é pedido e das consequências duma decisão de recusa desse mesmo consentimento.

Sucede que nós não temos nos autos elementos de facto nos autos para concluir que o menor tenha ou não discernimento efetivo para tomar esta decisão. Tal como o Tribunal a quo também não tinha, quando proferiu a decisão recorrida, embora este desconhecesse então que o menor também recusava o tratamento em causa.

Não pode restar dúvida de que as pessoas, maiores e com capacidade para compreender as consequências dos seus comportamentos, são livres de não se sujeitarem a tratamentos médicos, independentemente das razões que sustentem essa opção, mesmo que isso constitua um risco para a sua vida (Art.s 129.º e 130.º do C.C.). Nesses casos, os tribunais não se podem substituir à vontade dessas pessoas e o ato médico que contraria essa falta de consentimento é ilícito (Art. 156.º n.º 1 do C.P.).

Relativamente a pessoas maiores de idade existe uma presunção legal de maturidade, no exercício dos seus direitos, sendo as mesmas pessoalmente responsáveis pelas consequências dos seus atos. Mas, o mesmo não se passa relativamente a menores de idade, em que a regra é que os mesmos carecem de capacidade para o exercício de direitos (cfr. Art. 123.º do C.C.), a qual é suprida pelo exercício do poder paternal (cfr. Art. 124.º do C.C.). Havendo assim uma presunção natural, decorrente do regime previsto na lei, de que os menores não dispõem ainda de discernimento suficiente para tomar decisões importantes para a sua vida. Por isso, os negócios jurídicos realizados por menores são inválidos (cfr. Art. 125.º do C.C.), excetuados: os atos de administração ou disposição de bens que menor de 16 anos haja adquirido por seu trabalho; os negócios da vida corrente que impliquem despesas de pequena importância e que estejam ao alcance da sua capacidade natural; e negócios relativos à sua profissão, arte ou ofício, que tenha sido autorizado a exercer (cfr. Art. 127.º do C.C.).

Os menores de 16 anos também podem emancipar-se pelo casamento, passando assim a ter plena capacidade de exercício de direitos (cfr. Art.s 132.º e 133.º do C.C.), mas o casamento de menores de 16 anos está dependente de autorização dos pais, caso contrário, os mesmos continuam, apesar do casamento, a ser considerados menores de idade na administração dos seus bens (cfr. Art. 1649.º n.º 1 do C.C.).

Diremos assim que os menores com idade superior a 16 anos têm efetivamente uma capacidade de exercício de direitos mais alargada, de acordo com a sua presumível maior maturidade para compreender as consequências dos seus atos. Ainda assim, a lei não presume a sua plena capacidade natural para o exercício dos seus direitos. A regra é precisamente a contrária, sendo as exceções enunciadas na lei.

Assim, quando o Art. 38.º n.º 3 do C.P, ao regulamentar umas das causas de exclusão de ilicitude de atos lesivos praticados por terceiros, confere aos maiores de 16 anos capacidade de gozo para consentirem na lesão dos seus direitos, sejam de natureza patrimonial, sejam de natureza pessoal, não deixou de ressalvar que o menor deve ter discernimento suficiente, confirmando assim a regra de que não estamos perante uma situação de capacidade plena de exercício de um direito. Na mesma medida, não podemos presumir que um menor, com idade superior a 16 anos, tem capacidade de discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance da sua decisão de consentir, ou não consentir, na realização de determinado ato médico. Pelo contrário, a presunção deve ser no sentido geral da lei de que os menores não têm discernimento suficiente, sendo essa incapacidade natural suprida pelo exercício do poder paternal (Art. 124.º do C.C.), que se não for exercido de modo a prevenir perigo para a vida e saúde do filho, pode ser suprido pelo tribunal, a pedido do Ministério Público, para se autorizar as medidas necessárias e adequadas a afastar esse perigo (Art. 1918.º do C.C.).

Sendo essa a regra, o tribunal de menores, perante um processo urgente, que exige decisão provisória e célere no prazo de 48 horas, deve presumir que o menor não tem o discernimento necessário para compreender as consequências dos seus atos, sendo que perante a recusa do consentimento dos pais num ato médico necessário e adequado a prevenir um risco de vida para o doente menor, deve decidir nos termos constantes da decisão recorrida, porque é claro que o direito à vida prevalece evidentemente sobre as convicções religiosas, seja dos pais, seja do menor.

Portanto, competirá ao menor alegar e provar, perante o tribunal de 1.ª instância, que dispõe do discernimento necessário para compreender as consequência da decisão de não dar consentimento às transfusões de sangue e que o faz de forma livre e consciente, sem qualquer influência de seus pais ou de terceiros, pois trata-se de facto impeditivo do direito pretendido fazer valer pelo Ministério Público neste processo (Art. 342.º n.º 2 do C.). Sendo certo que, se fizer essa prova, que implicará a produção necessária de perícia médica, será inevitável que este procedimento judicial deva ser arquivado.

Mas, em face dos elementos disponíveis nos autos e da natureza urgente e cautelar da decisão recorrida, impunha-se decidir, e rapidamente, no superior interesse do menor e em função da clara prevalência do direito à vida sobre o exercício pela liberdade religiosa e respeito pelas crenças, seja do progenitor, seja do menor.

Salvaguardo primeiramente o direito à vida, que é responsabilidade maior atribuída ao Estado, através dos tribunais, logo se apreciará oportunamente se estão reunidos os pressupostos para que possa vir a ser respeitada a vontade do menor, caso se verifique ser a mesma livre, séria e devidamente ponderada.

Julgamos assim que a decisão provisória aqui recorrida justificava-se plenamente improcedendo todas as conclusões que sustentam o contrário, sem prejuízo de se entender que se se fizer prova oportuna do discernimento e maturidade do menor na expressão da vontade de recusa ao consentimento no tratamento autorizado, inevitavelmente deverá prevalecer essa vontade.

VDECISÃO:
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente por não provada, mantendo assim a decisão recorrida.
- Isento de custas, nos termos do Art. 4.º n.º 1 al. i) do R.C.P..

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Lisboa, 14 de setembro de 2021


Carlos Oliveira
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva