RECURSO PENAL
CONFERÊNCIA
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
HOMICÍDIO QUALIFICADO
MOTIVO FÚTIL
PENA PARCELAR
MEDIDA DA PENA
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
PENA ÚNICA
Sumário

Texto Integral


Acordam, na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça



1. RELATÓRIO

1.1. No Juízo Central Criminal …. – no processo comum com intervenção do tribunal coletivo nº 86/19……. - foi julgado o arguido AA, solteiro, ……………, nascido em ... de maio de 2000, filho de BB e de CC, natural e nacional .........., residente na ......, .........., atualmente detido no Estabelecimento Prisional  ...... à ordem do presente processo, e, por acórdão de 03 de julho de 2020, foi deliberado:

1 – Absolver o arguido AA das qualificativas previstas nas alíneas e) e j) do n.º 2 do art. 132º do Código Penal.

2 - Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, e em concurso efetivo de:

a) - um crime de homicídio, na forma consumada, previsto e punido pelo art. 131º do Código Penal, com a atenuação especial prevista no art. 4º do DL n.º 401/82, de 23-09, na pena de 6 (seis) anos de prisão.

b) - um crime de homicídio, na forma tentada, com excesso de legítima defesa, previsto e punido pelos arts. 131º, 22º, 23º, 32º e 33º, n.º 1, todos do Código Penal, com a atenuação especial prevista no art. 4º do DL n.º 401/82, de 23-09, na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão.

c) - um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art. 86º, n.º 1, al. d) do Novo Regime Jurídico das Armas e Munições (NRJAM), aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23-02, com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 59/2007, de 04- 09, n.º 17/2009, de 06-05, n.º 26/2010, de 30-08, n.º 12/2011, de 27-04, e n.º 50/2013, de 24-07, na redação vigente à data dos factos, com a atenuação especial prevista no art. 4º do DL n.º 401/82, de 23-09, na pena de 10 (dez) meses de prisão.

3 – Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas ao arguido, condenar o arguido AA, na pena única de 7 (sete) anos e 8 (oito) meses de prisão.

4 – Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente/demandante DD; e, em consequência, condenar o arguido/demandado AA a pagar ao assistente/demandante, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo ofendido EE, transmitidos ao demandante por via sucessória, a quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros), e a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais, transmitidos por via sucessória e sofridos pelo assistente/demandante enquanto titular do direito à indemnização, e a título de indemnização pelos danos patrimoniais a quantia de € 2.399,00 (dois mil trezentos e noventa e nove euros); e, a título de danos futuros, o valor a liquidar em incidente posterior de liquidação, correspondente a 2/3 do montante referente à diferença entre o valor salarial e o montante recebido enquanto o assistente/demandante permanecer de baixa médica, em consequência das lesões sofridas resultantes da conduta do arguido/demandado, absolvendo o arguido/demandado do remanescente peticionado.

5 – Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante FF; e, em consequência, condenar o arguido/demandado AA a pagar à demandante a quantia global de € 57.500,00 (cinquenta e sete mil e quinhentos euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, transmitidos à demandante por via sucessória e enquanto titular do direito à indemnização, absolvendo o arguido/demandado do remanescente peticionado.

6 – Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante SGHL – Sociedade Gestora do Hospital de Leiria, S.A.; e, em consequência, condenar o arguido/demandado AA a pagar à demandante o montante de € 1.391,00 (mil trezentos e noventa e um euros), acrescida dos juros a contar da data em que se considera efectuada a notificação do arguido/demandado para contestar o pedido de indemnização civil, à taxa legal de 4%, resultante da Portaria n.º 291/2003, de 08-04, ou à taxa legal que vier a vigorar até integral pagamento (cf. arts. 804º, 805º, nºs. 2, al. b) e 3 e 806º, nºs. 1 e 2 do Código Civil), absolvendo o arguido/demandado do remanescente peticionado.

1.2. Inconformado com o acórdão dele interpôs recurso o assistente DD, para o Tribunal da Relação ….. e por acórdão de 03 de dezembro de 2020 foi deliberado:

a) Condenar o Arguido pela prática de um (1) crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos art.ºs 131º e 132º/1/2-e) do CP e art.º do DL 401/82, de 23/09, na pena de nove (9) anos de prisão;

b) Condenar o Arguido pela prática de um (1) crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 131º, 22º, 23º e 73º do CP e art.º do DL 401/82, de 23/09, na pena de quatro (4) anos de prisão;

c) Em cúmulo jurídico das penas parciais aplicadas em a) e b), com a pena aplicada pelo crime de detenção e uso de arma proibida, condenar o Arguido na pena única de dez (10) anos de prisão;

d) No mais, confirmar a decisão recorrida.

1.3. Inconformado com este acórdão dele interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça o arguido AA que motivou, concluindo nos seguintes termos: (transcrição):

«V – CONCLUSÕES

1 - Foi a seguinte a decisão proferido em 1ª instância:

Absolver o arguido AA das qualificativas previstas nas alíneas e) e j) do n.º 2 do art. 132º do Código Penal.

Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, e em concurso efectivo de:

a) - Um crime de homicídio, na forma consumada, previsto e punido pelo art. 131º do Código Penal, com a atenuação especial prevista no art. 4º do DL n.º 401/82, de 23-09, na pena de 6 (seis) anos de prisão.

b) - um crime de homicídio, na forma tentada, com excesso de legítima defesa, previsto e punido pelos arts. 131º, 22º, 23º, 32º e 33º, n.º 1, todos do Código Penal, com a atenuação especial prevista no art. 4º do DL n.º 401/82, de 23-09, na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão.

c) - um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art. 86º, n.º 1, al. d) do Novo Regime Jurídico das Armas e Munições (NRJAM), aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23-02, com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 59/2007, de 04- 09, n.º 17/2009, de 06-05, n.º 26/2010, de 30-08, n.º 12/2011, de 27-04, e n.º 50/2013, de 24-07, na redação vigente à data dos factos, com a atenuação especial prevista no art. 4º do DL n.º 401/82, de 23-09, na pena de 10 (dez) meses de prisão.

Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas ao arguido, condenar o arguido AA, na pena única de 7 (sete) anos e 8 (oito) meses de prisão.

2 – Não se conformando com esta decisão, dela interpôs recurso o Assistente DD para o Tribunal da Relação de …..;

3 - Foi a seguinte a decisão do Tribunal da Relação de …..:

Julgando parcialmente provido o recurso foi decidido:

a) Condenar o arguido pela prática de um (1) crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos art.ºs 131º e 132º/1/2-e) do CP e art.º 4º do DL 401/82, de 23/09, na pena de nove (9) anos de prisão;

b) Condenar o arguido pela prática de um (1) crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 131º, 22º, 23º e 73º do CP e art.º 4º do DL 401/82, de 23/09, na pena de quatro (4) anos de prisão;

c) Em cúmulo jurídico das penas parciais aplicadas em a) e b) e a aplicada pelo crime de detenção e uso de arma proibida, condenar o arguido na pena única de dez (10) anos de prisão;

Âmbito do recurso

4 - O arguido não vislumbra qualquer vício relativamente à condenação pelo crime de detenção de arma proibida:

5 - O arguido não vislumbra qualquer vício quanto à aplicação do regime de jovens delinquentes (decisão de 1ª instância, agora confirmada pelo Tribunal da Relação  …..)

Submete-se, porém, à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça, devendo este sindicar:

5 - A alteração da qualificação jurídica, decidida pelo Tribunal da Relação de ….., relativamente aos crimes de homicídio consumado e homicídio tentado;

6 - A medida da pena a aplicar em cúmulo jurídico;

7 - O presente recurso incide, assim, apenas, quanto à decidida alteração da qualificação jurídica, operada pelo Tribunal da Relação ….., relativamente aos crimes de homicídio consumado e homicídio tentado e quanto à medida da pena que, nessa emergência, foi fixada.

8 - O Tribunal da Relação ….. procedeu à alteração da qualificação jurídica relativamente aos crimes de homicídio (consumado e tentado).

Relativamente ao homicídio consumado:

9 - O Tribunal de 1ª instância havia absolvido o arguido das qualificativas previstas nas alíneas e) e j) do n.º 2 do art. 132º do Código Penal.

10 - O Tribunal da Relação de ….. decidiu qualificar tal crime, condenando o arguido nos termos do disposto nos artigos 131º e 132º nºs 1 e 2 al. e) do Código Penal.

11 - Fê-lo, fundamentando - para além de argumentário de natureza doutrinária – exarando o seguinte (fls. 69 do acórdão ora recorrido):

“No presente caso, o arguido desencadeou uma discussão e um confronto físico, com a vítima EE, por causa de um cigarro e, depois, decidiu matá-lo porque, durante o confronto que ele próprio havia desencadeado, a vítima lhe arrancou duas “rastas”, sendo que, entre a verificação da falta das duas “rastas” e a agressão mortal, o arguido ainda foi a casa buscar os instrumentos de agressão e, depois, dirigiu-se a casa da vítima, percorrendo mais cerca de 300 metros, persistindo sempre na intenção de o matar (fatos provados 1 a 14, 25 e 28). Nem a recusa do cigarro para a agressão inicial, nem a perda de duas “rastas” se revelam motivos aceitáveis ou compreensíveis para o desencadear das reacções do arguido, sendo manifesta a desconformidade entre aqueles motivos e a gravidade das consequências dos seus actos, o que acentua muito o desvalor da sua conduta, pelo que consideramos que o arguido cometeu o homicídio determinado por motivo fútil, revelador de especial censurabilidade.

Cometeu, pois, um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos art.ºs 131º e 132º/1/2-e) do CP.

12 - Cremos, com todo o respeito, ser pobre e simples tal fundamentação.

13 - Vejamos o que foi defendido em 1ª instância:

“A valoração global dos factos praticados pelo arguido, designadamente quanto ao contexto e ao modo de execução do crime de homicídio, na forma consumada, de que foi vítima EE, o circunstancialismo subjacente à sua actuação, ocorrida no decurso de um segundo confronto físico, mediando entre o primeiro e o segundo confronto um curto período temporal, não tendo resultado provado que a motivação subjacente à prática do referido ilícito criminal foi o desejo de vingança por parte do arguido devido ao facto de o ofendido ter recusado dar-lhe um cigarro, não permitem concluir por uma actuação especialmente desvaliosa, em termos de especial censurabilidade ou perversidade necessária à qualificação do crime, encontrando-se por conseguinte afastado o preenchimento do crime de homicídio qualificado, com referência ao critério generalizador do n.º 1 do art. 132º do Código Penal, e aos exemplos-padrão elencados nas alíneas e) e j) do n.º 2 do mencionado art 132º.

A conduta do arguido AA reconduz-se assim à autoria de um crime de homicídio, na forma consumada, previsto e punido pelo art. 131º do Código Penal.

14 - Na verdade, de acordo com o entendimento doutrinário e jurisprudencial maioritário, “motivo torpe ou fútil” pressupõe que o motivo da actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito …, de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana.». (v. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, págs. 31 a 33), ocorrendo nas situações em que se verifique o «móbil da actuação despropositada do agente sem sentido perante o senso comum, por ser totalmente irrelevante na adequação ao facto, sem explicação racional plausível, radicando num egoísmo mesquinho e insignificante do agente» (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-2008, http://www.dgsi.pt/), integrando o exemplo-padrão previsto na al. j) a circunstância qualificativa da premeditação.

15 - Uma última nota:

16 - A fls. 37 do Acórdão de 1ª instância encontra-se descrito o depoimento da testemunha HH.

17 - Nesse depoimento encontramos, porventura a frase mais marcante, de todo o julgamento, proferida pela vítima EE:

18 - “Hoje morro ou vou preso”

19 - Daqui decorre claramente a intenção da vítima (ao contrário do arguido) em prosseguir com a contenda, não se encontrando no “motivo fútil ou torpe” a razão de ser do desfecho e da dinâmica que conduziu à morte do Ofendido EE.

20 - Mal decidiu o Tribunal da Relação ….. ao qualificar a conduta do arguido, assim provocando uma alteração na medida da pena aplicada.

21 - Deve, pois, este Venerando Supremo Tribunal de Justiça sindicar tal questão, decidindo que a conduta do arguido integra a prática de um crime de homicídio simples, p. e p. pelo artigo 131º do CP.

Relativamente ao homicídio tentado:

22 - Decidiu o Tribunal de 1ª instância reconduzir a conduta do arguido à autoria de um crime de homicídio, na forma tentada, com excesso de legítima defesa.

23 - Para tanto – e bem, do nosso ponto de vista, e do MP também – entendeu que se verificavam os pressupostos da legítima defesa, resultando dos factos provados que a actuação do arguido de que foi vítima o ofendido DD ocorreu quando o arguido estava a ser alvo de uma agressão actual e ilícita por parte daquele, tendo nesse momento cessado já as agressões perpetradas pelo arguido na pessoa do ofendido EE, que causaram a morte do ofendido.

24 - Na verdade, isso resulta dos factos provados!!!!

25 - O Tribunal da Relação …….. decidiu nos seguintes termos:

“No presente caso, o tribunal recorrido considerou que a agressão da vítima DD ao arguido era ilícita, porque a agressão do arguido à vítima EE já havia cessado (cf. pág. 56 do acórdão recorrido). Mas não se deu como provado tal facto e, por isso, ele não pode ser levado em conta. O que está provado é que a vítima DD, ao ver o seu filho prostrado no chão e o arguido armado, junto a este, se muniu de um objecto de ferro e saiu para o exterior com intenção de o auxiliar, tendo, de seguida, desferido uma pancada com o ferro nas costas do arguido seguindo-se a agressão por este. Ora, a intenção do DD era auxiliar o filho, que se encontrava caído no chão, porque tinha sido agredido pelo arguido sendo que este se encontrava, ainda armado, junto do seu filho.

Como poderia o DD saber que o arguido não ia continuar a agressão, se não se afastou do local e continuava a empunhar as armas?

Temos, pois, que concluir que quem agiu em legítima defesa do seu filho foi a vítima DD. E não há legítima defesa contra legítima defesa, porque esta não é ilícita, pelo que temos que concluir que o arguido não agiu em legítima defesa”

26 - Este é um ponto de discordância com a decisão do Tribunal da Relação …...

27 - Com efeito, porventura por erro de análise, ou deficiente leitura, o TR…. considera que não se encontra provado o facto de a agressão ter ocorrido quando já havia cessado a agressão ao ofendido EE.

28 - Sem razão.

29 - Basta atentarmos no elenco dos factos provados e no referido a fls. 56 do Acórdão de 1ª instância e verificaremos da não razão do Tribunal da Relação ….. ao afirmar tal.

30 - Deve, assim, também este tema ser sindicado pelo STJ, decidindo-se pela verificação de legitima defesa, em excesso, de acordo com a fundamentação exarada a fls. 56 do Acórdão de 1ª instância (último parágrafo)

A POSIÇÃO DO MP

31 - Não assiste no entender do Ministério Público, razão alguma ao assistente.

32 - A este respeito cumpre dizer ao Ministério Público que subscreve a resposta (e que esteve presente no julgamento), que:

33 - O arguido descreveu de forma emocionada os factos, recorrendo a gestos ilustrativos do ocorrido, nomeadamente baixando-se levantando-se explicando os seus movimentos de ataque e os seus movimentos defensivos,

34 - Referiu de forma muito credível, que quando o assistente DD se abeirou de si tentou explicar a este qual o motivo que o opunha ao falecido EE e que em resposta, o assistente lhe desferiu com um objecto, o que fez recrudescer o ímpeto do arguido e atacar o assistente, perante o qual se queria explicar do que havia sucedido nos momentos anteriores e envolvendo o EE;

35 - Por outro lado, os factos dados como provados foram em grande parte fundamentadas nas declarações das testemunhas GG e HH que são totalmente terceiros a qualquer das partes, e que observaram os factos desventurosos desde o seu início, nomeadamente quando o arguido chegou à rua, passando pela contenda existente entre o arguido e o falecido EE, até ao momento do confronto entre o arguido e o assistente.

36 - E foi com base nestes testemunhos, concatenando os diversos elementos de prova que os factos foram dados como provados no acórdão agora em crise.

37 - Face a tais depoimentos, outra não poderia ter sido a decisão do Colectivo “a quo”, sob pena de violar as regras de experiência comum e o direito aplicável.

38 - Os argumentos invocados pelo Recorrente e SMO levantam ao Ministério Público dúvidas e incoerências de raciocino e o descurar de regras elementares da física e da própria experiência comum e em especial do bom senso.

39 - Por fim diga-se que recordando as sessões de julgamento, ficou a sensação ao Ministério Público de que os factos ocorreram conforme foi dado como provado, pelo Colectivo “a quo” e outra solução não seria possível senão dar como não provados os factos elencados como tal.

40 - A decisão estribou-se nas declarações das diversas testemunhas, na observação dos documentos juntos aos autos, concatenado tais factos com as regras de experiência comum inerentes a qualquer situação semelhante.

41 - Logo salvo melhor opinião, nesta questão não assiste razão ao recorrente.

42 - O tribunal a quo fundamentou de forma assaz exaustiva, quanto à sua convicção dos testemunhos.

43 - A decisão de direito, em matéria criminal, baseia-se apenas nos factos previamente dados como provados em sede de audiência de discussão e julgamento.

44 - Tendo isto como ponto assente e analisados os factos que o Tribunal a quo deu como provados na decisão recorrida constata-se que a condenação do arguido, ora recorrente, resultou da convicção que o Tribunal a quo formou com base na prova, frisa-se, em toda a prova produzida e examinada em sede de audiência de discussão e julgamento.

45 - Assim, e ao contrário do que pretende fazer crer o Recorrente, o Tribunal a quo socorreu-se de uma apreciação ponderada e conjugada de toda a prova produzida, a qual permitiu ao mesmo Tribunal concluir pela condenação do arguido.

46 - Afigura-se-nos que, no essencial, o Recorrente se prevalece do direito de discordar da apreciação efectuada pelo Tribunal a quo relativamente à apreciação da matéria de facto.

47 - Pese embora o facto do Recorrente poder discordar da posição assumida na decisão recorrida quanto à valoração da matéria de facto por não se conformar com o valor concedido pelo julgador ao depoimento prestado por uma testemunha em detrimento de outra ou outras, de sentido divergente, a verdade, porém, é que tal divergência de opinião não constitui fundamento legal de reexame da matéria de facto que, enquanto tal, é insindicável.

48 - É que não pode deixar de ter-se presente que, no ordenamento jurídico onde nos movemos vigora um princípio fundamental: o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127° do Código de Processo Penal.

49 - Não se verificando, como não se verificam, quaisquer das situações excepcionais, há que acatar a posição assumida pelo Mm° Juiz no exercício do poder jurisdicional que lhe foi conferido e ao abrigo da liberdade de apreciação da prova que lhe assiste (vide, por todos, o Acórdão do STJ, de 13.02.91, AJ n° 15/16, 7 "(...) se o Recorrente alega vícios da decisão recorrida a que se refere o n° 2 do artº 410 do Código de Processo Penal, mas fora das condições previstas neste normativo, afinal impugna a convicção adquirida pelo Tribunal a quo sobre determinados factos, em contraposição com a que, sobre os mesmos, ele adquiriu em julgamento, esquecido da regra da livre apreciação da prova inserta no art. 127° (...)").

50 - Por todo o exposto, e considerando o que acima ficou dito quanto à prova produzida em audiência de julgamento, afigura-se que não tem razão o Recorrente quanto às questões afloradas na sua motivação, uma vez que, tendo em atenção a factualidade dada como provada, outra não poderia ser a conclusão a retirar pelo Tribunal a quo.

51 - Assim, entendemos não merecer qualquer reparo a medida concreta da pena que foi aplicada ao arguido nos presentes autos”

Requer-se seja designado dia e hora para a realização de audiência.

Termos em que deve o presente recurso merecer provimento e, em consequência:

a) Absolver-se o arguido AA das qualificativas previstas nas alíneas e) e j) do n.º 2 do art. 132º do Código Penal. (relativamente ao crime consumado)

b) Condenar-se o arguido pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada, com excesso de legítima defesa, previsto e punido pelos arts. 131º, 22º, 23º, 32º e 33º, n.º 1, todos do Código Penal, com a atenuação especial prevista no art. 4º do DL n.º 401/82, de 23-09;

c) Confirmarem-se as penas aplicadas no Acórdão de 1ª instância, ou seja, o arguido condenado, em cúmulo jurídico, na pena de 7 anos e 8 meses de prisão.

Assim farão V. Exas., como sempre, a tão costumada Justiça».

1.3. No Tribunal da Relação  …. houve Resposta do Ministério Público, o qual se pronunciou pela improcedência do recurso, concluindo nos seguintes termos: (transcrição)

«Questão Prévia - Nas conclusões o recorrente limitou-se a reproduzir todo o texto da motivação, como impõe o artigo 412°, n.º 1, do CPP, pelo que deverá ser convidado a elaborar as conclusões da motivação;

1 - Os factos dados como provados, no que respeita à atuação do arguido relativamente à vítima EE, integram a previsão do crime de homicídio, na forma consumada, porquanto a atuação do arguido foi determinada por motivo fútil, situação prevista no artigo 132°, n.º 2, al. e), do C. Penal;

2 - É o que resulta do facto de na origem desta conduta estar o seu desagrado pela recusa do ofendido em lhe dar um cigarro, o que o levou a iniciar uma discussão e depois a desferir um soco e a derrubar a vítima, colocando-lhe o joelho em cima do peito e depois na zona da cabeça, altura em que a vítima agarrou com força o cabelo do arguido e lhe arrancou duas rastas;

3 - A revolta causada pela retirada das rastas levou-o a munir-se de uma faca de cozinha, com 116 mm de lâmina e um bastão de ferro e manganês, com o comprimento aproximado de 760mm, e a dirigir-se para a habitação da vítima com intenção de por termo à vida desta;

4 - Resulta da descrição dos factos provados, que a atuação do arguido foi baseada num motivo frívolo, numa "ninharia", num fundamento absolutamente desproporcional e desconforme à gravidade do resultado;

5 - Nesta parte não merece o acórdão recorrido qualquer censura;

6 - O mesmo se diga quanto à condenação por homicídio na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131°, 22°, 23° e 73° do C. Penal e 4o do DL 401/82, de 23 de setembro;

7 - Apesar de ter sido DD quem bateu no arguido com o objeto em ferro que levava consigo quando saiu de casa "com intenção de auxiliar o filho", o certo é que os factos dados como provados revelam que o arguido não agiu do nessas circunstâncias com "animus defendendi", mas sim com um ânimo de ofender a integridade física de DD;

8 - A conduta em causa configura uma atuação autónoma, que não se confunde com o excesso de uma atuação em legítima defesa;

9 - As penas parcelares e única aplicadas respeitam os critérios fixados no art.º 71° do C. Penal, face à culpa do agente, as exigências de prevenção geral e especial que se justificam.

Negando provimento ao recurso e mantendo o decidido, nos seus precisos termos, farão V. Excelências, aliás como sempre, JUSTIÇA!».

O ASSISTENTE ofereceu igualmente Resposta concluindo no sentido de que o arguido deve ser condenado pela prática de um homicídio qualificado, nos termos das al. e) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal; pela prática de no crime de homicídio simples, na forma tentada, nos termos dos artigos 131.º, 22.º, 23,.º e 72.º do Código Penal e em cúmulo jurídico, nas penas constantes nas al. a) e b), juntamente com uso e detenção de arma proibida, sem aplicação do artigo 4.º do Decreto Lei n.º 401/82, de 23/09.

1.4. Neste Supremo Tribunal a Exmª Procuradora-Geral Adjunta não emitiu Parecer, promovendo o cumprimento do art. 411º, nº 1, do CPP.

1.5. Com dispensa de Vistos, seguiu o processo para conferência.


***

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Nas instâncias foram dados como provados os seguintes factos: (transcrição)

«Da acusação:

1 – No dia ... de Maio de 2019, entre as 05h45m e as 06 horas, no exterior das instalações da Associação de Moradores, vulgarmente designadas «salão», localizadas ……........, ............, concelho......, o arguido AA dirigiu-se a EE, nascido em ..-08-1985, e disse-lhe «Ia mano, dá-me um cigarro!», o qual lhe foi negado por este.

2 - Atenta a recusa de EE, e desagradado com a forma desrespeitosa com que entendeu ter sido tratado por este, o arguido AA despoletou uma discussão com o mesmo e, ato contínuo, desferiu-lhe um soco, ao que se envolveram em disputa física, no decurso da qual o arguido agarrou EE pela cintura, atirando-o ao chão, colocando-lhe o joelho em cima do peito e de seguida na zona da cabeça, enquanto EE agarrava com força o cabelo do arguido, que na altura usava rastas, tendo-lhe arrancado duas rastas de cabelo.

3 – No decurso do mencionado confronto físico, o arguido foi manietado por II, o qual o envolveu com os seus braços, impedindo, assim, que aquele se dirigisse novamente para junto de EE.

4 - Já manietado, o arguido apercebeu-se que EE lhe tinha arrancado duas rastas do seu cabelo, o que intensificou a sua revolta.

5 – Por sua vez, HH agarrou numa das mãos de EE, puxando-o e logrando, assim, afastá-lo do arguido.

6 – Seguidamente EE saiu da referida Associação de Moradores e dirigiu-se para a sua residência situada na ....... – ........, ......, concelho ....., encontrando nas imediações GG, a quem contou o sucedido anteriormente.

7 – Por seu turno, o arguido ainda permaneceu no local durante alguns minutos, a pedido de II, por forma a evitar que aquele seguisse no encalço de EE.

8 – Não obstante, volvidos cerca de seis/sete minutos, o arguido AA abandonou o local, determinado a pôr termo à vida de EE.

9 – Para o efeito, dirigiu-se à sua residência sita na ........, lote ……, ........, ............., concelho …., e muniu-se dos seguintes objetos idóneos a executar tal propósito:

- uma faca de cozinha, da marca «Reneberg», modelo «RB-2528», com lâmina fixa, direita de um só gume, com o comprimento aproximado de 116 mm e com a largura aproximada de 16mm, com cabo plástico de cor preta, com o comprimento aproximado de 115 mm e com o comprimento total aproximado de 229 mm; e,

- um objecto em ferro, tipo bastão, composto de um corpo único fabricado exclusivamente de uma liga metálica de ferro e manganês, com o comprimento total aproximado de 760 mm, sem uso definido e destinado a servir de arma de agressão, e que adquirira em momento anterior à data dos factos, há cerca de três anos, e guardava num anexo da sua residência.

10 – Após, com tais objetos, o arguido encaminhou-se ao encontro de EE.

11 – O arguido percorreu apeado uma distância de cerca de 300 metros desde o seu domicílio até ao de EE, transportando na mão esquerda o bastão e na mão direita a faca de cozinha, dissimulada no antebraço, com a lâmina para cima.

12 - Próximo da casa de EE, o arguido foi intercetado por HH que o tentou demover de se envolver novamente em confronto físico com aquele.

13 - EE ao aperceber-se da presença do arguido, dirigiu-se a correr para casa, de onde saiu repentinamente, saltando o muro com cerca de um metro de altura, levando consigo uma pedra, que atirou na direção do arguido e de HH, e um pau de madeira de espessura não apurada.

14 - O arguido e EE envolveram-se em confronto físico, no decurso do qual EE tentou atingir o arguido com o pau em madeira, o que não conseguiu porque o arguido se desviou, tendo o arguido por diversas vezes atingido EE com o bastão, em diversas zonas do corpo, designadamente na cabeça e região dorsal, tendo ainda desferido pelo menos três golpes com a faca, que atingiram EE no hemitórax esquerdo, região dorsal esquerda e ombro esquerdo, provocando a queda deste no solo.

15 - No início do confronto HH ainda tentou separar o arguido e EE, gritando «parem, ajudem, ajudem», sem o ter conseguido.

16 - Ao ouvir barulho vindo do exterior, DD, nascido a ...-02- 1957, que se encontrava no domicílio onde residia com o seu filho EE, dirigiu-se para junto da porta, e, ao ver o seu filho prostrado no chão, e o arguido junto a este, entrou em casa para se munir de um objecto em ferro de características não concretamente apuradas, saindo para o exterior com intenção de auxiliar o seu filho.

17 - Ao ver DD o arguido disse-lhe «a culpa disto é do teu filho», tentando explicar-lhe o ocorrido, tendo nessa altura DD desferido uma pancada nas costas do arguido com o objeto em ferro de características não concretamente apuradas; e, quando se preparava para desferir a segunda pancada, o arguido utilizando o bastão e a faca, atingiu DD em várias zonas do corpo, nomeadamente na cabeça, zona posterior e lateral das costas e ombros.

18 – Após atuar da forma supra descrita, o arguido AA ausentou-se do local, começando, entretanto, a ouvir-se os gritos aflitivos das pessoas que acorreram ao local.

19 – Em consequência direta e necessária da sua conduta, o arguido AA provocou a EE, as seguintes lesões descritas no relatório de autópsia médico-legal de fls. 250 a 254:

«- uma ferida corto-perfurante a nível da face anterior do hemitórax esquerdo, oblíqua infero-medialmente, com trajeto da esquerda para a direita, condicionando solução de continuidade transfixiva ao nível do 5º espaço intercostal, solução transfixiva do lobo superior do pulmão esquerdo junto à língula, laceração na face lateral esquerda do pericárdio e solução de continuidade transfixiva no terço distal da parede entero-lateral do ventrículo esquerdo;

- uma ferida corto-perfurante a nível da região dorsal esquerda, oblíqua infero-lateralmente, com atingimento do tecido celular subcutâneo e dos planos musculares, com pouca profundidade, não atingindo a grelha costal;

- uma ferida corto-perfurante na face posterior do ombro esquerdo, oblíqua infero-lateralmente, com atingimento do tecido celular subcutâneo e dos planos musculares, com cerca de 3 cm de profundidade.

- feridas contusas, equimoses e escoriações, dispersas pela cabeça, região dorsal e membros, incluindo uma equimose na face palmar da mão esquerda.».

20 – As lesões traumáticas torácicas supra descritas, produzidas pelos golpes desferidos pelo arguido AA com a faca de cozinha, foram causa directa e necessária da morte de EE, verificada no local, após a actuação do arguido supra descrita.

21 – Em consequência directa e necessária da sua conduta, o arguido AA provocou a DD:

«- uma ferida corto-perfurante na região posterior do pescoço, produzida de cima para baixo, que demandou limpeza, desinfecção e sutura, da qual resultou cicatriz na região posterior do pescoço, medindo 16 x 2 cm;

- uma fractura no terço distal da clavícula direita que demandou imobilização e cirurgia com redução e osteossíntese; da qual resultou cicatriz cirúrgica do ombro direito, medindo 142 x 2 cm;

- pequenas escoriações ao nível das mãos e dos pés.».

22 – As lesões supra descritas em 21, produzidas pelos golpes desferidos pelo arguido com a faca de cozinha e com o bastão, demandaram para DD um período de 180 (cento e oitenta) dias de doença, com 180 (cento e oitenta) dias de incapacidade para o trabalho.

23 – As lesões supra descritas demandaram internamento de DD no Hospital Beatriz Ângelo desde 19-05-2019 até 04-06-2019, local onde lhe foram prestados os cuidados médicos necessários.

24 – O arguido sabia que o uso do bastão em ferro e da faca de cozinha, cujas características e natureza conhecia, contra o corpo humano, nas zonas por si atingidas, e que sabia conterem órgãos essenciais à vida humana, constituía um meio adequado e idóneo a causar as lesões físicas supra descritas e a provocar a morte de EE, o que pretendia ao atuar da forma descrita, e que eram meios idóneos a causar a morte de DD.

25 – Ao atuar da forma supra descrita, atingindo EE com a lâmina da faca de cozinha e com o bastão em ferro, que transportou, o arguido atuou com o propósito de atingir EE num órgão vital ou numa importante veia ou artéria, e assim provocar a sua morte, resultado que quis e logrou atingir, utilizando objetos que causam maior perigo para a vida e integridade física, colocando o ofendido numa posição de menor resistência.

26 - Ao atuar da forma descrita, o arguido agiu livre e conscientemente, provocando as lesões descritas no ofendido DD, praticando atos idóneos a causar a morte do ofendido, tendo em conta os instrumentos utilizados e as zonas do corpo que atingiu, só não tendo ocorrido a morte do ofendido por motivos alheios à vontade do arguido, agindo o arguido com o propósito de se defender e de impedir a continuação das agressões que DD lhe infligiu.

27 – O arguido conhecia as características do objeto – bastão – em ferro supra descrito, sabendo que a sua detenção lhe estava vedada uma vez que o mesmo não tinha uso definido, fora construído exclusivamente com o propósito de ser usado como arma de agressão e não possuía qualquer justificação para tal detenção e, não obstante, quis e deteve-o nos termos descritos.

28 – O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Dos pedidos de indemnização civil deduzidos pelo assistente/demandante DD e pela demandante FF:

29 – O assistente/demandante assistiu ao último instante de vida do seu filho EE, tendo a morte de EE causado no assistente/demandante dor e sofrimento.

30 – Em consequência das lesões sofridas resultantes da atuação do arguido/demandado, o assistente/demandante sofreu dores.

31 – O assistente/demandante trabalha como pintor, auferindo o vencimento mensal ilíquido de € 557,00 (quinhentos e cinquenta e sete euros).

32 – Desde o dia ...-05-2019, em consequência das lesões sofridas resultantes da atuação do arguido/demandado, o assistente/demandante encontra-se de baixa médica, recebendo da Segurança Social a quantia mensal de € 300,00 (trezentos euros), tendo em consequência da diferença entre o valor do seu salário e o valor efetivamente recebido da baixa médica, deixado de auferir a quantia de € 2.056,00 (dois mil e cinquenta e seis euros) desde Junho de 2019 a Janeiro de 2020, permanecendo de baixa médica desde essa data.

33 – A demandante FF ao perceber que algo se passava no exterior, saiu de casa, tendo visto o seu filho EE prostrado no chão, estando junto a este nos últimos momentos de vida do seu filho, que perdeu a vida no local, cerca de 15 minutos após a chegada da demandante, tendo falecido no estado de solteiro, sem filhos.

34 – EE era trabalhador, humilde, tendo uma boa relação com os progenitores, sendo respeitado no Bairro, íntegro e cumpridor das regras de conduta, convivência e respeito, sendo estimado pelos seus familiares, amigos e conhecidos, estando sempre pronto a ajudar a família, colegas de trabalho e amigos.

35 – A morte de EE deixou a demandante, sua mãe, profundamente abalada, transtornada, emocionada e em estado de choque, perdurando até hoje o trauma de ter visto o seu filho morrer.

36 – EE era saudável, dinâmico, sociável, alegre, ajudando os progenitores de acordo com as suas possibilidades, não obstante à data encontrar-se desempregado.

37 – As lesões causadas em EE, consequência directa e necessária da conduta do arguido/demandado, causaram no ofendido dores, tendo o mesmo sentido angústia, ansiedade e receio de perder a vida.

Do pedido de indemnização civil deduzido pela demandante SGHL – Sociedade Gestora do Hospital de Leiria, S.A.:

38 - A demandante SGHL – Sociedade Gestora do Hospital de Leiria, S.A., é uma sociedade comercial que se dedica às atividades de gestão e operação clínica do Hospital de Leiria (Hospital Beatriz Ângelo), em regime de concessão, incluindo o exercício de todas as atividades, a título principal ou acessório, nos termos do disposto no contrato de gestão, celebrado no âmbito do concurso para a celebração do contrato de gestão para a concessão do Hospital de Leiria, tendo celebrado com o Estado Português um contrato de gestão do Hospital Beatriz Ângelo, em regime de Parceria Público-Privada, obrigando-se a prestar serviços de saúde aos utentes do Serviço Nacional de Saúde da sua área de abrangência.

39 - No exercício da sua actividade a demandante prestou assistência médica e hospitalar ao ofendido DD, utente do Serviço Nacional de Saúde n.º ……….

40 - O ofendido DD deu entrada no serviço de urgência médico-cirúrgica do Hospital Beatriz Ângelo, pelas 08h12m do dia 19 de Maio de 2019, apresentando à observação a seguinte situação clínica «Alegada vítima de agressão com TCE com ferida exsanguinante s/PC», tendo sido observado e assistido por médico na urgência, efectuando análises ao sangue com avaliação de 16 parâmetros, uma radiografia à bacia, uma radiografia ao baço, uma radiografia à coluna cervical, uma radiografia à coluna dorsal, uma radiografia à coluna lombar, uma radiografia ao cotovelo, um electrocardiograma, uma radiografia ao ombro, uma tomografia computorizada articular, uma tomografia computorizada da coluna cervical, uma tomografia computorizada ao crânio e uma radiografia ao tórax.

41 - Às 18h03m do dia ...-05-2019 foi determinada a transferência do utente para o internamento, durante o qual recebeu cuidados médicos, tendo ficado internado até à data inicial da alta em ...-05-2019, pelas 15h52m.

42 - O custo da assistência médica prestada na urgência ao ofendido DD, de acordo com o preço tabelado para os hospitais do Serviço Nacional de Saúde, correspondeu ao montante de € 403,40 (quatrocentos e três euros e quarenta cêntimos), não tendo a demandante recebido o pagamento dessa quantia.

43 - Ainda em consequência das lesões sofridas em ...-05-2019, DD foi operado no dia 03 de Junho de 2019.

44 - O custo do procedimento cirúrgico, no sistema músculo-esquelético e/ou tecido conjuntivo (Severidade 1) no Bloco operatório, correspondeu ao montante de € 1.573,22 (mil quinhentos e setenta e três euros e vinte e dois cêntimos), de acordo com o preço tabelado para os hospitais do Serviço Nacional de Saúde, isento de taxa moderadora, não tendo a demandante recebido o pagamento dessa quantia.

45 - Em consequência das lesões sofridas no dia 19-05-2019, DD foi novamente avaliado em consulta de ortopedia nos dias 28 de Maio de 2019, 18 de Junho de 2019, e 6 de Agosto de 2019, e realizou MCDT’s (meios complementares de diagnóstico) nos dias 16 de Julho de 2019 e 24 de Setembro de 2019, correspondendo o custo das referidas consultas, ao montante de € 109,78 (cento e nove euros e setenta e oito cêntimos), de acordo com o preço tabelado para os hospitais do Serviço Nacional de Saúde, não tendo a demandante recebido o pagamento dessa quantia.

46 - À prestação de serviços hospitalares a DD correspondem taxas moderadoras que não foram cobradas ao utente DD por beneficiar de isenção 705 – Utentes em situação de insuficiência económica.

47 - Até à data a demandante não recebeu o pagamento da quantia de € 2.086,40 (dois mil oitenta e seis euros e quarenta cêntimos), correspondente ao custo total da assistência médica e hospitalar prestada ao utente DD.

Mais se provou:

48 – O arguido admitiu em termos globais a autoria dos factos, manifestando arrependimento sincero.

49 - O arguido AA nasceu ....... tal como os seus três irmãos, todos mais velhos, sendo os progenitores do arguido naturais desse País.

50 - O pai do arguido imigrou para Portugal antes de o arguido nascer e a mãe juntou-se-lhe quando o arguido tinha cerca de um ano de idade. Nessa altura o arguido e irmãos permaneceram ...... entregues aos cuidados da avó paterna. Mais tarde juntaram-se dois dos irmãos e só posteriormente se juntaram o arguido e a outra irmã. Quando veio para Portugal o arguido contava cerca de oito anos de idade.

51 - O arguido recorda da sua infância e adolescência os maus-tratos físicos e psicológicos perpetrados pelo progenitor, descrito pelo arguido como desagradável e desprezível, com o comportamento muito violento enquanto figura parental, que amiúde o castigava fisicamente com cinto ou chicote, deixando marcas no corpo, hoje com visíveis cicatrizes. A recorrência destas situações fez que, com cerca de catorze anos de idade, o arguido solicitasse ajuda junto do órgão de polícia criminal que, segundo o arguido, só à terceira vez, quando se fez acompanhar pela irmã mais velha, aceitou registar a queixa. Nessa ocasião, foi hospitalizado, tendo permanecido cerca de três meses em internamento, findos os quais, foi acolhido por uma tia materna. Esta ocorrência fez com que o progenitor saísse de casa por ordem judicial.

52 - O arguido regressou então a casa da mãe, mas dois anos depois, o pai regressou igualmente “Depois de pedir perdão á família”. Não voltaram a ocorrer agressões físicas, mas, durante cinco anos, pai e filho não se falaram, mais por recusa do filho do que do pai. A retoma da comunicação entre ambos ocorreu por insistência de um primo junto do arguido, que acabou por ceder. Apesar da comunicação mínima existente entre ambos, o arguido continua a referir-se ao pai com desprezo e desprovido de afecto. Ao contrário, refere-se à mãe com elevada estima e reconhecimento pelo esforço da mesma em garantir a subsistência familiar e pela afectividade que sempre transmitiu aos filhos. De modo idêntico refere-se aos irmãos e avó materna que passou também a integrar o agregado familiar em Portugal.

53 - O arguido iniciou a frequência escolar em Portugal, mas nunca demonstrou interesse e dedicação por tal actividade. Do seu percurso constam duas retenções no 4º e no 5º ano.

54 - Ao concluir o 7º ano foi encaminhado para curso profissionalizante na área ……. com a duração de três anos que lhe daria equivalência ao 9º ano. Porém, por excesso de faltas não o concluiu, pelo que está habilitado apenas com o 7º ano de escolaridade.

55 - Profissionalmente executou algumas tarefas sazonais em vindimas, e cerca dos dezassete anos inscreveu-se no Centro de Emprego, na perspectiva de obter curso de formação profissional. O seu primeiro contrato de trabalhou ocorreu com a empresa M……….., S.A., onde trabalhou sete meses como … . Optou por se despedir por ter dificuldade em conciliar esta actividade com a obtenção da carta de condução, cuja licença obteve aos dezoito anos. Conta ainda com uma experiência curta na N...

56 - À data da prisão preventiva o arguido integrava o agregado familiar dos progenitores, da avó paterna, de uma irmã e um sobrinho com dois anos de idade. Há cerca de quatro meses o progenitor do arguido emigrou para França para procurar trabalho, onde também se encontra o irmão mais velho do arguido, que foi acolhido por familiares depois de lhe ter sido diagnosticada uma doença………, beneficiando de tratamento em França. Ambos mantêm contactos regulares com a família em Portugal.

57 - A casa ocupada pela família de origem do arguido há mais de dezassete anos situa-se em bairro social propriedade do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, pela qual não pagam renda. Trata-se de uma pequena moradia, constituída por três quartos, uma cozinha, uma casa de banho e uma sala. O bairro……, inicialmente construído ………, foi ocupado por outras pessoas, verificando-se ainda a construção ilegal de barracas. A comunidade é diversificada, mas verificam-se alguns problemas relacionados com o desemprego, e dificuldades económicas, existindo ainda a presença de algumas pessoas com comportamentos desviantes.

58 - Economicamente a família sobrevive dos rendimentos resultantes do vencimento da progenitora (empregada………), da reforma da avó paterna, e o subsídio de maternidade recebido pela irmã. A família é apoiada pelo Banco Alimentar. A progenitora tinha o cartão multibanco do arguido e levantava dinheiro se necessário. Segundo familiares o arguido revelava hábitos de trabalho, tendendo a manter-se activo ainda que com alguma mobilidade. Quando foi preso tinha iniciado actividade profissional há quatro dias na ………. em ......

59 - A dinâmica familiar evoluiu favoravelmente ao longo do tempo. Com o crescimento dos filhos, a relação familiar, nomeadamente com o progenitor, normalizou, verificando-se na actualidade um relacionamento aparentemente estável. A progenitora parece ser um elemento apaziguador na família e revela disponibilidade, tal como os restantes familiares, para continuar a apoiar o arguido. No seio familiar o arguido é descrito como amigo e muito comunicativo, por vezes tendencialmente argumentativo, tende a adoptar uma postura solidária e cooperante. Quando trabalhava disponibilizava o seu rendimento em favor da família. Era a mãe que geria através da posse do cartão multibanco os seus proventos. Segundo os familiares, a relação com vizinhos foi sempre pacífica.

60 - O arguido estabeleceu uma relação de namoro com JJ há quase dois anos, sendo a relação estável e efectivamente compensadora, sendo o arguido descrito pela namorada como uma pessoa tendencialmente pacífica e respeitadora da sua pessoa, continuando por isso disponível para o apoiar, tal como outros elementos da sua família.

61 - O arguido iniciou consumos de haxixe há cerca de um ano, durante cerca de seis meses, tendo deixado tais consumos no Estabelecimento Prisional porque pretende adoptar comportamentos ajustados às regras.

62 - De acordo com o relatório social «O arguido refere essencialmente um impacto emocional pela ocorrência de vítima mortal e pelo afastamento da família e da namorada. O mesmo parece revelar capacidade para avaliar criticamente factos similares aos que vem acusado, reconhecendo nas instituições legais o papel regulador que lhes está conferido.».

63 - Do certificado de registo criminal do arguido AA nada consta.


***


3. O DIREITO

3.1. Questão Prévia:

O arguido no requerimento de interposição de recurso para este Supremo Tribunal do acórdão do TR.... requereu a realização de audiência, nos seguintes termos:

«INTERPOSIÇÃO DE RECURSO ATINENTE AO ACÓRDÃO PROFERIDO PELA .. SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO …...

Mais requer o recorrente, nos termos do artigo 411º nº 5 do CPP, que seja realizada audiência de julgamento para debater os pontos concretos que constam da seguinte Motivação:»

O art. 411º, nº 5, do CPP sob a epígrafe, “Interposição e notificação do recurso”, consagra (…)

«5– No requerimento de interposição de recurso o recorrente pode requerer que se realize audiência, especificando os pontos da motivação de recurso, que pretende ver debatidos».

O art. artº 419º CPP, sob a epígrafe, “Conferência

(…)

3– O recurso é julgado em conferência quando:

(…)

c) Não tiver sido requerida a realização de audiência e não seja necessário proceder à renovação da prova nos termos do artigo 430º.”


No caso dos autos o recorrente limita-se a requerer a realização da audiência, invocando o art. 415º, nº 5, do CPP. Contudo, não especifica os pontos da motivação de recurso, que pretende ver debatidos, como impõe o citado preceito, ou seja, não indica com precisão/especificadamente, quais os pontos que pretende discutir em audiência, limitando-se a requerer em termos genéricos a realização da mesma e a remeter para a generalidade da motivação.

Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário ao Código de Processo Penal, 4.ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, p. 1141, «“a Lei n.º 48/2007, de 29.8, não só suprimiu as alegações escritas, como abandonou a regra da audiência no tribunal de recurso em processo penal”, tendo o legislador considerado que a supressão da possibilidade de apresentação de alegações escritas se justificava, na medida em que aquelas acabaram por se revelar “«actos processuais supérfluos», pois «a experiência demonstrou constituírem pura repetição das motivações» (ver a motivação da proposta de lei n.º 109/X)”. Além disso, “com o mesmo objectivo de celeridade processual e ponderando que a audiência já constituía um direito renunciável, o legislador consagrou a audiência no tribunal de recurso como uma exceção”».

No mesmo sentido, se pronunciou o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 163/2011, processo n.º 459/10, in Diário da República, 2.ª série — N.º 211 — 3 de novembro de 2011, apreciando, sobre diversos aspetos, a conformidade da nova arquitetura da audiência com a Lei Fundamental, decidiu que: “a fixação legislativa de uma condição de realização de tal audiência de julgamento — que passou a constituir a exceção na tramitação processual dos recursos penais — não (…) viola o direito ao recurso e as demais garantias de defesa do arguido (artigo 32.º, n.º 1, da CRP)”.

Afirmando o seguinte: «É certo que o n.º 5 do artigo 411.º do CPP fixa um ónus processual de natureza preceptiva. É igualmente certo que a omissão do cumprimento de tal ónus processual impossibilita o julgador de proceder ao agendamento e realização de audiência de julgamento de recurso, mediante produção de alegações orais pelo recorrente. Porém, nenhuma norma processual penal comina a extinção do direito fundamental ao recurso, mas tão só a não realização de uma fase da tramitação processual, a qual não implica qualquer decisão de não admissão do recurso interposto, seja mediante decisão sumária do Relator (artigo 417.º, n.º 6, do CPP), seja mediante acórdão de conferência (artigo 420.º, n.º 1, alínea c), do CPP). Pelo contrário, a falta de indicação dos pontos da motivação de recurso, de acordo com a interpretação normativa, apenas implica a não produção de alegações orais, mas exige sempre — desde que cumpridos os demais pressupostos processuais de conhecimento — a apreciação da motivação e respectivas conclusões de recurso, por parte do tribunal recorrido. Assim sendo, não se afigura que a interpretação normativa em causa seja desproporcionada, por violação do princípio da necessidade. Julga -se pois que a interpretação normativa do n.º 5 do artigo 411.º do CPP, segundo a qual “o recorrente que pretenda ver o seu recurso de decisão que conheça a final do objecto do processo, apreciado em audiência no Tribunal da Relação deve requerê -lo aquando da interposição do recurso e indicar quais os pontos da motivação de recurso que pretende ver debatidos, sob pena de indeferimento da sua pretensão” não é contrária à Constituição, seja por violação do direito de assistência por advogado (artigo 32.º, n.º 3, da CRP), seja por violação do direito de recurso penal (artigo 32.º, n.º 1, da CRP), seja por violação de quaisquer outros princípios ou normas constitucionais, designadamente dos princípios do Estado de Direito (artigo 2.º, da CRP), da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP) ou do direito ao contraditório em processo penal (artigo 32.º, n.º 1, da CRP)».


O AC do STJ de 01JUL20, processo nº 301/19.4T8LSB.L1.S1 Relator Nuno Gonçalves, salienta o seguinte: «O significado de especificar é descrever detalhada e exaustivamente algo, indicar minuciosamente, pormenorizar, particularizar.

Antónimo da especificação é a indicação lata, generalizada, indistinta, total, global,

Concomitantemente e como vem de dizer-se, decorre da interpretação à luz do elemento histórico, da expressão do pensamento do legislador e da teleologia da alteração legislativa que a formulação global do pedido do recorrente, pela ausência de enunciação pormenorizada, ponto por ponto que pretende ver debatidos não só não cumpre minimamente com o requisito legal que exige a indicação especificada dos pontos concretos da impugnação que pode – havendo renovação de provas deve - submeter a audiência e sobre os quais deve alegar, oralmente, perante o tribunal de recurso, como ainda que a audiência só tem justificação e sentido prático relativamente a pontos da motivação que impugnam a decisão em matéria de facto. Facilmente se compreende que a aceitação de semelhante fórmula se traduzia na repristinação do modelo de julgamento do recurso que o legislador da Lei n.º 23/2007 quis precisamente inverter, formatado como estava de modo a poder comportar três possíveis modalidades de alegação: escritas – vertidas na motivação do recurso e respetivas conclusões – orais - na audiência, em todos os casos em que fosse requerida, indiferentemente de o recurso versar matéria de direito ou impugnar também factualidade provada e/ou não provada – e novamente escritas – em substituição da alegação oral. A audiência nos recursos perante o Supremo Tribunal de Justiça, já então com poderes de cognição circunscritos “exclusivamente ao reexame de matéria de direito”, era de importância e dimensão tão irrelevante que, tendo as alegações sido proferidas por escrito, destinava-se “a tornar pública a decisão” – art. 435º n.º 3 da versão originária do CPP de 1987. (…)

A inobservância daquele requisito redunda na denegação da audiência, mas sem prejudicar o conhecimento do recurso. Que, não tendo sido rejeitado pelo relator, nem havendo audiência, o recurso é julgado em conferência.

Foi o que sucedeu nos autos. O Tribunal, porque o requerimento do recorrente incumpriu com o requisito da especificação, indeferiu a requerida audiência, e decidiu o recurso em conferência. Procedeu segundo os ditames legais, portanto, correta e licitamente. O acórdão recorrido não enferma, pois, da nulidade que o recorrente lhe assaca, que imputa à denegação da audiência.

Ademais, a interpretação da norma do art. 411º n.º 5 com o sentido com que foi aplicada no acórdão recorrido, não viola preceitos nem princípios consagrados na nossa Lei Fundamental, como o Tribunal Constitucional certificou, no acórdão citado».


Do exposto se conclui que não tendo o recorrente especificado os pontos da motivação que pretende ver debatidos, como impõe o art. 411º, nº5, do CPP, indefere-se a realização da audiência neste Supremo Tribunal de Justiça, sendo o recurso decidido em conferência.


3.2. O objeto do recurso do arguido prende-se com as seguintes questões:

- o enquadramento jurídico-penal do crime de homicídio consumado, defendendo o recorrente que deve ser absolvido das qualificativas previstas na alínea e) do n.º 2 do art. 132º do Código Penal (relativamente ao crime consumado);

- o enquadramento jurídico-penal do crime de homicídio, na forma tentada, defendendo que o recorrente deve ser condenado, com excesso de legítima defesa, previsto e punido pelos arts. 131º, 22º, 23º, 32º e 33º, n.º 1, todos do Código Penal, com a atenuação especial prevista no art. 4º do DL n.º 401/82, de 23-09;

- a dosimetria das penas, confirmando-se as penas aplicadas no acórdão de 1ª instância, ou seja, o arguido condenado, em cúmulo jurídico, na pena de 7 anos e 8 meses de prisão.


3.2.1. Questão Prévia:

De harmonia com o disposto no art. 400º, nº 1, do Código do Processo Penal

«Não é admissível recurso: (…)

«e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos.

Por seu turno o artigo 432.º, do CPP, sob a epígrafe, “Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça” consagra que:

«1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça: (…)

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º».

O arguido AA foi condenado por acórdão do Tribunal da Relação … de 03 de dezembro de 2020:

a) pela prática de um (1) crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos arts.131º e 132º/1/2-e) do CP e art.º 4º do DL 401/82, de 23/09, na pena de nove (9) anos de prisão;

b) pela prática de um (1) crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 131º, 22º, 23º e 73º do CP e art.º 4º do DL 401/82, de 23/09, na pena de quatro (4) anos de prisão;

c) Em cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas em a) e b), com a pena aplicada pelo crime de detenção e uso de arma proibida, condenar o arguido na pena única de dez (10) anos de prisão.

Assim sendo, o acórdão do Tribunal da Relação ... ….., relativamente ao crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 131º, 22º, 23º e 73º do Código Penal e art.º 4º do DL 401/82, de 23/09, pelo qual o arguido foi condenado na pena de 4 anos de prisão, é irrecorrível, motivo pelo qual o recurso não pode ser admitido, porquanto a pena aplicada é inferior a 5 (cinco) anos de prisão, nos termos dos arts. 414º, nº 2 e 420 º, nº 1, al. b), do CPP, e terá que ser rejeitado, pois, o facto de ter sido admitido, não vincula o Tribunal Superior (art. 414 º, nº 3 do CPP).


***


3.2.2. Analisando o enquadramento jurídico-penal do crime de homicídio na forma consumada.

O recorrente defende que deve ser absolvido das qualificativas previstas nas alíneas e) do n.º 2 do art. 132º do Código Penal (relativamente ao crime consumado).


Sob a epígrafe «homicídio qualificado» estabelece o citado artº 132º do Código Penal:

«1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

2 - É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil.

Vejamos, agora, se no caso se a conduta do arguido integra o conceito de motivo fútil, a que se refere a mencionada alínea e), do nº 2, do art. 132º, do CP.

Como refere a doutrina «O legislador português de 1982 seguiu, em matéria de qualificação do homicídio, um método muito particular e até certo ponto, neste domínio original (…): a combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica chamada dos exemplos-padrão (…) Por outras palavras, a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: «especial censurabilidade ou perversidade» do agente referida no nº1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no nº 2 (…) Deste modo devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador (…), que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art. 132º, nº 2” (vide Prof. Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 25-26; Teresa Serra, in Homicídio Qualificado. Tipo de Culpa Medida da Pena, 1990, pág. 50).

Acrescenta ainda o Prof. Figueiredo Dias, in ob. cit., pág. 27 que É exato (…) que muitos dos elementos constantes das diversas alíneas do art. 132º- 2, em si mesmo tomados, não contendem diretamente com uma atitude mais desvaliosa do agente, mas sim com um mais acentuado desvalor da ação e da conduta, com a forma de cometimento do crime. Ainda, nestes casos, porém, não é esse maior desvalor da conduta determinante da agravação, antes ele é mediado sempre por um mais acentuado desvalor da atitude: a especial censurabilidade ou perversidade do agente, é dizer, o especial tipo de culpa do homicídio agravado Só assim se podendo compreender e aceitar que haja hipóteses em que aqueles elementos estão presentes e, todavia, a qualificação vem em definitivo a ser negada”, e a pág. 29, “o pensamento da lei é, na verdade, o pretender imputar à «especial censurabilidade» aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refração, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à «perversidade» aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta diretamente na documentação do facto de qualidades de personalidade do agente especialmente desvaliosas”.

Acrescenta ainda o Prof. Figueiredo Dias, in ob. cit., pág. 27 que “É exacto (…) que muitos dos elementos constantes das diversas alíneas do art. 132º- 2, em si mesmo tomados, não contendem directamente com uma atitude mais desvaliosa do agente, mas sim com um mais acentuado desvalor da acção e da conduta, com a forma de cometimento do crime. Ainda, nestes casos, porém, não é esse maior desvalor da conduta determinante da agravação, antes ele é mediado sempre por um mais acentuado desvalor da atitude: a especial censurabilidade ou perversidade do agente, é dizer, o especial tipo de culpa do homicídio agravado Só assim se podendo compreender e aceitar que haja hipóteses em que aqueles elementos estão presentes e, todavia, a qualificação vem em definitivo a ser negada”, e a pág. 29, “o pensamento da lei é, na verdade, o pretender imputar à «especial censurabilidade» aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à «pervesidade» aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação do facto de qualidades de personalidade do agente especialmente desvaliosas”.

As circunstâncias qualificativas do homicídio não são assim de funcionamento automático, sendo necessário verificar-se um especial tipo de culpa, espelhado na especial censurabilidade ou perversidade do agente.

E verificar-se-á essa especial censurabilidade ou perversidade nas formas de cometimento do facto especialmente desvaliosas ou nas condutas que revelem qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente (cfr. Prof. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 29).

Tudo isso, porém, terá que resultar espelhado na imagem global do facto concreto considerado provado cometido pelo agente.


Como salienta o AC do STJ de 28-09-2011 (Relator Armindo Monteiro) processo nº 68/08.1GAMGR.C1.S1, «O homicídio qualificado é construído a partir do tipo-matriz base, do art.º 131.º, do CP, pela adição de circunstâncias especializadoras que relevam de uma culpa agravada, retratada nos exemplos-padrão, descritos no n.º 2 , do art.º 132.º , do CP .

A meio caminho entre as circunstâncias modificativas agravativas e inominadas está uma figura reconhecida com amplitude pelo directo penal alemão, cujo desenho é obtido através daquilo a que doutrina chama uma técnica exemplificativa, denominada dos “ Regelbeisplien “ , exemplos-regra ou exemplos –padrão , tratando-se de circunstâncias modificativas agravantes que o legislador se não contenta em indicar a través de uma cláusula indeterminada de valor , mas que também não descreve com a técnica detalhada que usa para os tipos , antes nomeia através da exemplificação padronizada .

A descrição constitui um exemplo indiciador de situações que devem conduzir à agravação, podendo o juiz negar esse efeito, se considerar que a través da valoração do facto a agravação não existe –Cfr. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime , pág. 204 , Prof. Figueiredo Dias , ou seja deverá ter-se por revogado o efeito de indício a partir da “ existência na pessoa do autor ou na sua acção de circunstâncias extraordinárias que destaquem a sua ilicitude ou a sua culpa claramente do exemplo padrão “ , escreve Teresa Serra , in Homicídio Qualificado , pág. 68.

A técnica dos exemplos - padrão actua aquele efeito - indício , interessando indagar se não concorrem outros como contraprova, eliminando a especial censurabilidade e perversidade do acontecido globalmente considerado, pois que além de não serem de funcionamento automático são meramente exemplificativas – Cfr. Teresa Serra, in Homicídio Qualificado, 126 e Acs. deste STJ, de 7.7.2005 , P.º n.º 1670 /05 e de 15.5 2008, P.º n.º 3979/07 .

São conceitos relativamente indeterminados, com conteúdo e extensão em larga medida incertos, no dizer de Engish, para quem os conceitos absolutamente indeterminados são muito raros no direito – cfr . op. cit . ,pág . 119 -, fornecendo guias, uma listagem abstracta, em forma de construção aberta, sintomática ou exemplificativa de situações reveladora de especial perversidade e complexidade – ac. deste STJ,, de 15.5.2002 , Rec.º n.º 02P1214-5.ª Sec

A especial perversidade e censurabilidade é o crivo no dizer de Maria Margarida Silva Pereira, in Homicídios, II, 40 e 41 , por que passa a qualificação , e o suporte de  uma diferença essencial de grau , que intercede entre o homicídio simples e o qualificado.

A censurabilidade especial de que fala o art.º 132.º, do CP, reporta-se às circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com certos valores, visível na realização do facto; a especial perversidade revela uma atitude profundamente rejeitável, constituindo um indício de motivos e sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade, reconduzindo-se a uma atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor de que fala Binder, atinente à personalidade do autor, que denota qualidades desvaliosas da sua personalidade –cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal , pág. 29 e Teresa Serra , op . cit. , pág . 63 .

A especial perversidade releva de um egoísmo abominável, assentando a decisão de matar em grande reprovação, deixando-se o agente motivar por factores desproporcionados , aumentando a intolerância colectiva ante o facto; a especial censurabilidade denota que o agente se não deixou vencer por factores que o deviam levar a abster-se de actuar, traduzindo um profundo desrespeito ante padrões axiológico-normativos preestabelecidos-Ac. deste STJ , de 18.19.2006 , P062679».

O Tribunal Constitucional no AC nº 852/2014, de 10DEZ14, publicado in DR 48/2015, Série II de 2015-03-10, também já se pronunciou no sentido de «Julgar inconstitucional a norma retirada do n.º 1 do artigo 132.º do Código Penal, na relação deste com o n.º 2 do mesmo preceito, quando interpretada no sentido de nela se poder ancorar a construção da figura do homicídio qualificado, sem que seja possível subsumir a conduta do agente a qualquer das alíneas do n.º 2 ou ao critério de agravação a ela subjacente, por violação dos princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade penais, garantidos pelo artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa».

Do exposto resulta que «as circunstâncias do n.º 2 têm sempre que ser submetidas à cláusula geral do n.º 1. Da interação entre os n.ºs 1 e 2 do art. 132.º pode resultar a exclusão do efeito de indício do exemplo-padrão, e consequentemente a integração dos factos no crime de homicídio simples do art. 131.º. Mas pode também, precisamente pelo seu caráter meramente indiciário de uma culpa especialmente agravada, admitir-se a qualificação do homicídio quando se constatar a substancial analogia entre os factos e qualquer um dos exemplos-padrão.

VII - Esta interação reflexa entre os dois n.ºs do art. 132.º permite por um lado uma maior flexibilidade no tratamento dos casos concretos, e consequentemente na administração da justiça do caso, e por outro assegura a delimitação do tipo de homicídio qualificado em termos suficientemente rigorosos, garantindo a determinabilidade dos elementos do tipo legal, não havendo assim lesão dos princípios da legalidade e da tipicidade. (vide AC do STJ de 12MAR2015, Relator Maia Costa processo nº 185/13.6GCALQ.L1.S1).

Relativamente ao conceito de motivo fútil, constitui jurisprudência pacífica do STJ a que considera motivo fútil, aquele que não tem relevo, que não chega a ser motivo; que não pode razoavelmente explicar e, muito menos justificar a conduta do agente. Motivo fútil é aquele que não tem relevo, avaliado do ponto de vista do agente; motivo torpe é o que ofende a moralidade média ou o sentimento ético-social; meio insidioso compreende os meios aleivosos, traiçoeiros e desleais (Acs. do STJ de 24NOV98, in BMJ 481, pág 144, e Acs. aí citados; de 07DEZ99, in CJ Acs. do STJ de 1999, Tomo III, pág. 235 e Acs. aí citados).

Mais recentemente, sobre o conceito de “motivo fútil” pode ver-se, exemplificativamente, a jurisprudência do STJ nos acórdãos 13 de abril de 2016, relator Manuel Augusto de Matos, processo nº 61/15.8PFLRS.L1.S1, e a jurisprudência citada neste aresto, cujo sumário, na parte que aqui releva, é do seguinte teor:

«VIII - Integra a prática de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, al. e), ambos do CP, o comportamento do arguido-recorrente que, na sequência de uma discussão motivada pela recusa do ofendido em dar um cigarro aos arguidos, desferiu uma facada no peito do ofendido, em consequência do que, lhe provocou lesões traumáticas torácicas, na parede torácica, pulmão esquerdo e coração, as quais foram causa directa e necessária da sua morte, na medida em que a «imagem global do facto», revela que o arguido recorrente agiu por motivo fútil, sem a ocorrência de qualquer desavença ou situação anterior com significado relevante».

O Ac do STJ de 31-01.2012, o processo n.º 894/09.4PBBRR.S1 - 3ª Secção -Relator Maia Costa, considera-se «motivo fútil» como o motivo sem valor, insignificante, ridículo, que não tem relevo, que não pode razoavelmente explicar a conduta do agente, que é notavelmente desproporcionado ou inadequado, na perspectiva do homem médio e em relação ao crime de que se trata, tendo em vista a situação concreta (vide neste sentido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Julho de 1989, in BMJ n.º 389). «O motivo gratuito, frívolo, despropositado ou leviano, avaliado segundo os padrões éticos geralmente aceites na comunidade. Ele assenta, pois, numa ideia de desproporcionalidade flagrante entre a conduta da vítima e a atitude do agente, que choca frontalmente com o sentimento comunitário de justiça


O acórdão de 27-05-2010, processo n.º 58/08.4JAGRD.C1.S1 – 3.ª Secção (Relator Santos Cabral), caracteriza-se o «motivo fútil» como «o motivo de importância mínima. Será também o motivo frívolo, leviano, a ninharia que leva o agente à prática desse grave crime, na inteira desproporção entre o motivo e a extrema reacção homicida, o que se apresenta notoriamente inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime de que se trate, o que traduz uma desconformidade manifesta entre a gravidade e as consequências da acção cometida e o que impeliu o agente a essa comissão, que acentua o desvalor da conduta por via do desvalor daquilo que impulsionou a sua prática».

O acórdão de 16-10-2013, processo n.º 455/12.0PCLSB.L1.S1 – 3.ª Secção (Relator Armindo Monteiro), «apresenta-se o «motivo fútil» como a circunstância qualificativa «com relação à motivação do agente, é a que surge fundada num profundo desprezo do valor da vida humana, acção que não pode razoavelmente explicar e muito menos justificar a conduta; é um motivo que de tão pouco ou imperceptível relevo, não revelador de adequação e que faz avultar a desproporcionalidade entre o que impulsiona a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que aquela se objectivou. Neste sentido e alcance, em data recente, se pronunciou o STJ nos seus ACs. de 27.6.2012, Rec.º n.º 127/10.0JABRG.G2.S1e de 17.4.2013, P.º n.º 237/11.7JASTB.L1. S1. (…)

O motivo fútil é incapaz de fornecer uma explicação em termos razoáveis, insignificante, mesquinho, demonstrando insensibilidade moral do agente - Jurisprudência Criminal, 288, RJ, 3402, 346.

É aquele que se apresenta com antecedente psicológico desproporcionado com a reacção homicida, tendo em vista a sensibilidade normal média, assim Heleno Cláudio Fragoso.

Significa que o motivo de actuação avaliado segundo as regras éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente baixo, repugnante, de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pela vida humana, sintetiza abrangentemente o Prof. Figueiredo Dias, in Comentário citado, pág. 32».

O acórdão de 19-02-2014, processo n.º 168/11.0GCCUB.S1 – 3.ª Secção (Relator Santos Cabral), motivo fútil «é o motivo de importância mínima. Será, também, o motivo "frívolo, leviano, a “ninharia” que leva o agente à prática desse grave crime, na inteira desproporção entre o motivo e a extrema reacção homicida", o que se apresenta notoriamente inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime praticado; o que traduz uma desconformidade manifesta entre a gravidade e as consequências da acção cometida e o que impeliu o agente a essa comissão, que acentua o desvalor da conduta por via do desvalor daquilo que impulsionou a sua prática».

O AC do STJ de 09OUT2019, processo nº 24/17.9JAPTM.E1.S1, Relator Lopes da Mota, e do qual foi adjunta a ora, relatora, cujo sumário, na parte que aqui releva, é a seguinte:

«II. Motivo «torpe» (que se deve distinguir do motivo «fútil») é um motivo vil, abjecto, revelador de baixo carácter, repugnante, ignóbil, nitidamente revelador, tal como no motivo «fútil», de profundo desprezo pela vida humana».


Retomando a matéria de facto provada relevante para este tópico do recurso, verifica-se o seguinte:

1 – No dia ... de Maio de 2019, entre as 05h45m e as 06 horas, no exterior das instalações da Associação de Moradores, vulgarmente designadas «salão», localizadas no ............, ........., concelho ......., o arguido AA dirigiu-se a EE, nascido em ...-08-1985, e disse-lhe «Ia mano, dá-me um cigarro!», o qual lhe foi negado por este.

2 - Atenta a recusa de EE, e desagradado com a forma desrespeitosa com que entendeu ter sido tratado por este, o arguido AA despoletou uma discussão com o mesmo e, acto contínuo, desferiu-lhe um soco, ao que se envolveram em disputa física, no decurso da qual o arguido agarrou EE pela cintura, atirando-o ao chão, colocando-lhe o joelho em cima do peito e de seguida na zona da cabeça, enquanto EE agarrava com força o cabelo do arguido, que na altura usava rastas, tendo-lhe arrancado duas rastas de cabelo.

3 – No decurso do mencionado confronto físico, o arguido foi manietado por II, o qual o envolveu com os seus braços, impedindo, assim, que aquele se dirigisse novamente para junto de EE.

4 - Já manietado, o arguido apercebeu-se que EE lhe tinha arrancado duas rastas do seu cabelo, o que intensificou a sua revolta.

5 – Por sua vez, HH agarrou numa das mãos de EE, puxando-o e logrando, assim, afastá-lo do arguido.

6 – Seguidamente EE saiu da referida Associação de Moradores e dirigiu-se para a sua residência situada na ................. – ........, ..........., concelho ......., encontrando nas imediações GG, a quem contou o sucedido anteriormente.

7 – Por seu turno, o arguido ainda permaneceu no local durante alguns minutos, a pedido de II, por forma a evitar que aquele seguisse no encalço de EE.

8 – Não obstante, volvidos cerca de seis/sete minutos, o arguido AA abandonou o local, determinado a pôr termo à vida de EE.

9 – Para o efeito, dirigiu-se à sua residência sita na ......., lote 826 – ............, ........, .............., concelho ....., e muniu-se dos seguintes objectos idóneos a executar tal propósito:

- uma faca de cozinha, da marca «Reneberg», modelo «RB-2528», com lâmina fixa, direita de um só gume, com o comprimento aproximado de 116 mm e com a largura aproximada de 16mm, com cabo plástico de cor preta, com o comprimento aproximado de 115 mm e com o comprimento total aproximado de 229 mm; e,

- um objecto em ferro, tipo bastão, composto de um corpo único fabricado exclusivamente de uma liga metálica de ferro e manganês, com o comprimento total aproximado de 760 mm, sem uso definido e destinado a servir de arma de agressão, e que adquirira em momento anterior à data dos factos, há cerca de três anos, e guardava num anexo da sua residência

10 – Após, com tais objectos, o arguido encaminhou-se ao encontro de EE.

11 – O arguido percorreu apeado uma distância de cerca de 300 metros desde o seu domicílio até ao de EE, transportando na mão esquerda o bastão e na mão direita a faca de cozinha, dissimulada no antebraço, com a lâmina para cima.

12 - Próximo da casa de EE, o arguido foi interceptado por HH que o tentou demover de se envolver novamente em confronto físico com aquele.

13 - EE ao aperceber-se da presença do arguido, dirigiu-se a correr para casa, de onde saiu repentinamente, saltando o muro com cerca de um metro de altura, levando consigo uma pedra, que atirou na direcção do arguido e de HH, e um pau de madeira de espessura não apurada.

14 - O arguido e EE envolveram-se em confronto físico, no decurso do qual EE tentou atingir o arguido com o pau em madeira, o que não conseguiu porque o arguido se desviou, tendo o arguido por diversas vezes atingido EE com o bastão, em diversas zonas do corpo, designadamente na cabeça e região dorsal, tendo ainda desferido pelo menos três golpes com a faca, que atingiram EE no hemitórax esquerdo, região dorsal esquerda e ombro esquerdo, provocando a queda deste no solo.

(…)

25 – Ao actuar da forma supra descrita, atingindo EE com a lâmina da faca de cozinha e com o bastão em ferro, que transportou, o arguido actuou com o propósito de atingir EE num órgão vital ou numa importante veia ou artéria, e assim provocar a sua morte, resultado que quis e logrou atingir, utilizando objectos que causam maior perigo para a vida e integridade física, colocando o ofendido numa posição de menor resistência

28 – O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Como supra se referiu motivo fútil é aquele que não tem relevo, que não pode razoavelmente explicar e, muito menos justificar a conduta do agente, sendo que do ponto de vista do homem médio, se mostra manifestamente desproporcionado relativamente ao crime cometido.

No caso em apreço, a recusa do cigarro e a perda das duas “rastas”, não constituem qualquer razão aceitável ou compreensível para o desencadear da conduta do arguido, sendo ao invés manifestamente desproporcionada.

Do exposto se conclui que, atenta a matéria de facto provada, no caso verifica-se a qualificativa a que alude a alínea e), do nº 2, do art. 132º, do CP.


3.2.3. Analisando a dosimetria da pena.

Insurge-se o recorrente quanto à medida da pena defendendo que deve ser aplicada a pena única de 7 anos e 8 meses de prisão, que foi aplicada ao arguido em 1ª Instância.

Como supra se deixou transcrito o Tribunal da Relação alterou a qualificação jurídica quanto ao crime de homicídio consumado, condenando o arguido pela prática de um crime de crime de homicídio qualificado consumado, na pena de 9 anos de prisão.

Com efeito refere o acórdão recorrido, sobre a dosimetria das penas o seguinte:

«Mesmo que não tivesse havido recurso quanto às medidas das penas, sempre teríamos que redeterminar as relativas aos homicídios, bem como a pena única a aplicar em cúmulo jurídico, atenta a diferente tipificação que fazemos dos factos praticados pelo Arg.

A determinação da medida concreta da pena, nos termos do art.º 71º do CP, deve ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente.

O crime de homicídio qualificado consumado é punível com pena de prisão de 12 a 25 anos (art.º 132º/1 do CP).

Com a agravação pelo uso de arma, passa a ser punível com prisão de 16 a 25 anos (art.º 86º/3 da L. 5/2006, de 23/02).

Com a atenuação resultante da aplicação do regime penal especial para jovens, passa a ser punível com prisão de 3 anos, 2 meses e 12 dias a 16 anos e 8 meses (art.ºs 4º do DL 401/82, de 23/09, e 73º do CP).

O homicídio simples tentado é punível prisão de 1 ano, 7 meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses (art.ºs 131º, 23º e 73º do CP).

Com a agravação pelo uso de arma, passa a ser punível com prisão de 2 anos, 1 mês e 18 dias a 13 anos, 6 meses e 20 dias (art.º 86º/3 da L. 5/2006, de 23/02).

Com a atenuação resultante da aplicação do regime penal especial para jovens, passa a ser punível com prisão de 1 mês a 9 anos e 14 dias (art.ºs 4º do DL 401/82, de 23/09, e 73º do CP).

Para a determinação concreta das penas, no presente caso, há que ter em conta as seguintes circunstâncias.

- o grau de ilicitude subjectiva dos factos, que foi muito elevado no primeiro homicídio, porque o Arg. persistiu bastante tempo na intenção de o praticar, e menos elevado no segundo, em que reagiu a uma situação que não tinha previsto;

- o modo de execução dos crimes e a diferente gravidade das suas consequências;

- a intensidade do dolo, que foi directo no homicídio consumado e necessário no homicídio tentado, contrariamente ao que entendeu o tribunal recorrido, que considerou que, neste caso, o Arg. agiu com dolo eventual;

- as condições pessoais do Arg. (idade; violência paternal sofrida na infância; boa inserção familiar; baixa qualificação académica) e a sua precária condição económica;

- a sua primariedade;

- a confissão parcial e o arrependimento manifestado.

Tendo em conta todos estes elementos consideramos ajustadas as seguintes penas:

- homicídio qualificado consumado, 9 anos de prisão;

- homicídio simples tentado, 4 anos de prisão».

E em cúmulo jurídico condenou o arguido na pena única de 10 (dez) anos de prisão.

A aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40º, nº 1, do CP).

A determinação da medida da pena, dentro dos limites da lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (arts. 71º, nº 1 e 40º, nº 2, do CP), vista enquanto juízo de censura que lhe é dirigido em virtude do desvalor da ação praticada (arts. 40º e 71º, ambos do Código Penal).

E, na determinação concreta da medida da pena, como impõe o art. 71º, nº 2, do Código Penal, o tribunal tem de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor do agente ou contra ele, designadamente as que a título exemplificativo estão enumeradas naquele preceito, bem como as exigências de prevenção que no caso se façam sentir, incluindo-se tanto exigências de prevenção geral como de prevenção especial.

A primeira dirige-se ao restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, que corresponde ao indispensável para a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada.

A segunda visa a reintegração do arguido na sociedade (prevenção especial positiva) e evitar a prática de novos crimes (prevenção especial negativa) e por isso impõe-se a consideração da conduta e da personalidade do agente.

Conforme salienta o Prof. Figueiredo Dias[1], a propósito do critério da prevenção geral positiva, «A necessidade de tutela dos bens jurídicos – cuja medida ótima, relembre-se, não tem de coincidir sempre com a medida culpa – não é dada como um ponto exato da pena, mas como uma espécie de «moldura de prevenção»; a moldura cujo máximo é constituído pelo ponto mais alto consentido pela culpa do caso e cujo mínimo resulta do «quantum» da pena imprescindível, também no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias. É esta medida mínima da moldura de prevenção que merece o nome de defesa do ordenamento jurídico. Uma tal medida em nada pode ser influenciada por considerações, seja de culpa, seja de prevenção especial. Decisivo só pode ser o quantum da pena indispensável para se não ponham irremediavelmente em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais».

E, relativamente ao critério da prevenção especial, escreve o ilustre mestre, «Dentro da «moldura de prevenção acabada de referir atuam irrestritamente as finalidades de prevenção especial. Isto significa que devem aqui ser valorados todos os fatores de medida da pena relevantes para qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza, seja a função primordial de socialização, seja qualquer uma das funções subordinadas de advertência individual ou de segurança ou inocuização. (...).

A medida das necessidades de socialização do agente é pois em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial para efeito de medida da pena».


No que se refere à proteção de bens jurídicos, que constitui uma das finalidades das penas (art. 40º, nº 1, do CP), no caso o bem jurídico protegido no tipo em causa é a vida humana, bem supremo que a Constituição da República Portuguesa declara inviolável no seu art.º 24.º. Por isso, as necessidades de prevenção são muito elevadas.

As exigências de prevenção especial – elevadas e assumem especial relevância, consubstanciada na gravidade da conduta do arguido, de todo desproporcional relativamente ao motivo que levou a que procedesse do modo descrito.

Na determinação da medida da pena o modelo mais equilibrado é aquele que comete à culpa a função de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração positiva das normas e valores) a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo é dado pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos, dentro do que é consentido pela culpa, e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do agente[2].

Assim sendo, considerando que a medida da concreta da pena, assenta na «moldura de prevenção», «cujo limite máximo é constituído pelo ponto ideal da proteção dos bens jurídicos e o limite mínimo aquele que ainda é compatível com essa mesma proteção, que a pena não pode, contudo, exceder a medida da culpa, e que dentro da moldura da prevenção geral são as necessidades de prevenção especial que determinam o quantum da pena a aplicar», dentro da moldura penal abstrata prevista para o crime de homicídio qualificado, na forma consumada, com a agravação pelo uso de arma, e com a atenuação resultante da aplicação do regime penal especial para jovens (art.º 132º/1 do CP, art.º 86º/3 da Lei 5/2006, de 23/02, e .arts.4º do DL 401/82, de 23/09, e 73º do CP) - 3 anos, 2 meses e 12 dias a 16 anos e 8 meses de prisão - mostra-se justa, necessária, adequadas e proporcionada, a pena de 9 anos de prisão que lhe foi aplicada no acórdão recorrido.

Relativamente à pena única.

Consagra o art. 77º, nºs 1 e 2, do Código Penal:

«1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes».

Conforme refere o Prof Figueiredo Dias, [3] «Estabelecida a moldura penal do concurso o tribunal ocupar-se-á, finalmente, da determinação, dentro dos limites daquela, da medida da pena conjunta do concurso, que encontrará em função das exigências gerais de culpa e de prevenção. Nem por isso se dirá com razão, no entanto, que estamos aqui perante uma hipótese normal de determinação da medida da pena. Com efeito a lei fornece ao tribunal, para além dos critérios gerais da medida da pena contidos no art. 72º, nº 1, um critério especial «na determinação da medida concreta da pena [do concurso], serão considerados em conjunto os factos e a personalidade do agente (art. 78º, 1- 2ª parte]. (…)

Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma carreira) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes com efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento do agente (exigências de prevenção especial de socialização)».

No mesmo sentido o AC do STJ de 27JAN16 [4] a propósito da pena conjunta derivada do concurso de infrações, defende o seguinte:

«Fundamental na formação da pena conjunta é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação «desse bocado de vida criminosa com a personalidade». A pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares. Para a determinação da dimensão da pena conjunta o decisivo é que, antes do mais, se obtenha uma visão conjunta dos factos pois que a relação dos diversos factos entre si em especial o seu contexto; a maior ou menor autonomia a frequência da comissão dos delitos; a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados e a forma de comissão bem como o peso conjunto das circunstâncias de facto sujeitas a julgamento mas também a recetividade á pena pelo agente deve ser objeto de nova discussão perante o concurso ou seja a sua culpa com referência ao acontecer conjunto da mesma forma que circunstâncias pessoais, como por exemplo uma eventual possível tendência criminosa.”

Deverão equacionar-se em conjunto a pessoa do autor e os delitos individuais o que requer uma especial fundamentação da pena global. Por esta forma pretende significar-se que a formação da pena global não é uma elevação esquemática ou arbitrária da pena disponível mas deve refletir a personalidade do autor e os factos individuais num plano de conexão e frequência. Por isso na valoração da personalidade do autor deve atender-se antes de tudo a saber se os factos são expressão de uma inclinação criminosa ou só constituem delito ocasionais sem relação entre si. A autoria em série deve considerar-se como agravatória da pena. Igualmente subsiste a necessidade de examinar o efeito da pena na vida futura do autor na perspetiva de existência de uma pluralidade de ações puníveis. A apreciação dos factos individuais terá que apreciar especialmente o alcance total do conteúdo do injusto e a questão da conexão interior dos factos individuais. Dada a proibição de dupla valoração na formação da pena global não podem operar de novo as considerações sobre a individualização da pena feitas para a determinação das penas individuais.

Em relação ao nosso sistema penal é o Professor Figueiredo Dias quem traça a síntese do “modus operandi” da formação conjunta da pena no concurso de crimes. Refere o mesmo Mestre que a existência de um critério especial fundado nos factos e personalidade do agente obriga desde logo a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação, em função de um tal critério, da medida da pena do concurso: a tanto vincula a indispensável conexão entre o disposto nos arts. 78.°- 1 e 72.°- 3, só assim se evitando que a medida da pena do concurso surja como fruto de um ato intuitivo - da «arte» do juiz uma vez mais - ou puramente mecânico e, portanto, arbitrária. Sem prejuízo de poder conceder-se que o dever de fundamentação não assume aqui nem o rigor, nem a extensão pressupostos pelo art. 72 ° nem por isso um tal dever deixa de surgir como legal e materialmente indeclinável».

Acrescentando que «Na verdade, como se referiu, a certeza e segurança jurídica podem estar em causa quando existe uma grande margem de amplitude na pena a aplicar, conduzindo a uma indeterminação. Recorrendo ao princípio da proporcionalidade não se pode aplicar uma pena maior do que aquela que merece a gravidade da conduta nem a que é exigida para tutela do bem jurídico. (…)

Na definição da pena concreta dentro daquele espaço e um dos critérios fundamentais na consideração daquela personalidade, bem como da culpa, situa-se a dimensão dos bens jurídicos tutelados pelas diferentes condenações. Na verdade, não é raro ver um tratamento uniforme, destituído de qualquer opção valorativa do bem jurídico, e este pode assumir uma diferença substantiva abissal que perpassa na destrinça entre a ofensa de bens patrimoniais ou bens jurídicos fundamentais como é o caso da própria vida. (…)

Paralelamente, à apreciação da personalidade do agente interessa, sobretudo, ver se nos encontramos perante uma certa tendência, que no limite se identificará com uma carreira criminosa, ou se aquilo que se evidencia uma mera pluriocasionalidade, que não radica na personalidade do arguido. Este critério está diretamente conexionado com o apelo a uma referência cronológica pois que o concurso de crimes tanto pode decorrer de factos praticados na mesma ocasião, como de factos perpetrados em momentos distintos, temporalmente próximos ou distantes ou uma referência quantitativa pois que o concurso tanto pode ser formado por um número reduzido de crimes, como pode englobar inúmeros crimes.

Como é bom de ver, as necessidades de prevenção especial aferir-se-ão, sobretudo, tendo em conta a dita personalidade do agente. Nela, far-se-ão sentir fatores como a idade, a integração ou desintegração familiar, com o apoio que possa encontrar a esse nível, as condicionantes económicas e sociais que tenha vivido e que se venham a fazer sentir no futuro.

Igualmente importante é consideração da existência de uma manifesta e repetida antipatia na convivência com as normas que regem a vida em sociedade, quando não de anomia, e que é a maior parte das vezes evidenciada pelo próprio passado criminal.

Um dos critérios fundamentais na procura do sentido de culpa em sentido global dos factos é o da determinação da intensidade da ofensa, e dimensão do bem jurídico ofendido, sendo certo que, em nosso entender, assume significado profundamente diferente a violação repetida de bens jurídicos ligados á dimensão pessoal em relação a bens patrimoniais. Por outro lado, importa determinar os motivos e objetivos do agente no denominador comum dos atos ilícitos praticados e, eventualmente, dos estados de dependência. (sublinhado nosso)

Igualmente deve ser expressa a determinação da tendência para a atividade criminosa expresso pelo número de infrações; pela sua perduração no tempo; pela dependência de vida em relação àquela atividade.

Na avaliação da personalidade expressa nos factos é todo um processo de socialização e de inserção, ou de repúdio, pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade que deve ser ponderado.

Recorrendo á prevenção importa verificar em termos de prevenção geral o significado do conjunto de atos praticados em termos de perturbação da paz e segurança dos cidadãos e, num outro plano, o significado da pena conjunta em termos de ressocialização do delinquente para o que será eixo essencial a consideração dos seus antecedentes criminais e da sua personalidade expressa no conjunto dos factos. (sublinhado nosso).

Serão esses fatores de medida da pena conjunta que necessariamente deverão ser tomados em atenção na sua determinação sendo então sim o pressuposto de uma adição ao limite mínimo do quantum necessário para se atingir as finalidades da mesma pena».

Ou seja, quanto à pena única a aplicar ao arguido em sede de cúmulo jurídico, a medida concreta da pena única do concurso de crimes dentro da moldura abstrata aplicável, constrói-se a partir das penas aplicadas aos diversos crimes e é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente.

À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detetar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente.

Por último, de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).

Do que se trata agora é de ver os factos em relação uns com os outros, de modo a detetar a possível conexão e o tipo de conexão que intercede entre eles (“conexão autoris causa”), tendo em vista a totalidade da atuação do arguido como unidade de sentido, que há-de possibilitar uma avaliação do ilícito global e “ a culpa pelos factos em relação”, a qual se refere Cristina Líbano Monteiro em anotação ao acórdão do S.T.J de 12.7.2005 e Figueiredo Dias in “A Pena Unitária do Concurso de Crimes” in RPCC ano 16º, nº 1, pág. 162 e ss.

No caso, a moldura penal abstrata do cúmulo jurídico situa-se entre um mínimo de 9 (nove) anos de prisão, [correspondente à pena concreta mais elevada] e 14 anos e 10 meses de prisão [correspondente à soma das penas parcelares], aplicável ao caso concreto, deve definir-se um mínimo imprescindível à estabilização das expetativas comunitárias e um máximo consentido pela culpa do agente.

O espaço contido entre esse mínimo imprescindível à prevenção geral positiva e esse máximo consentido pela culpa, configurará o espaço possível de resposta às necessidades de reintegração do agente.

Partindo da moldura penal abstrata do cúmulo jurídico balizada entre um mínimo de 9 (nove) anos e 14 (catorze) anos e 10 (dez meses) de prisão, aplicável ao caso concreto, atendendo aos critérios e princípios supra enunciados, designadamente, a consideração em conjunto dos factos e a personalidade do agente, as exigências de prevenção geral e especial, mostra-se justa, necessária, a pena de única de 10 (dez) anos de prisão.

Aliás, a pena única até padece de evidente benevolência. Atenta a fenomenologia criminal envolvida – criminalidade altamente violenta – à pena que estabelece o limiar mínimo da moldura do concurso (9 anos de prisão), deveria ter-se adicionado, pelo menos um terço das restantes penas parcelares. O que se traduziria numa pena conjunta mais elevada. Neste aspeto, o acórdão recorrido pecou por defeito. Todavia, porque o recurso é apenas do arguido, não pode o STJ, corrigir essa manifesta deficiência.

Neste sentido improcede na totalidade o recurso do arguido AA.


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4. DECISÃO.

Termos em que acordam os Juízes que compõem a 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Rejeitar o recurso do arguido AA, relativamente ao crime de homicídio simples, na forma tentada, por inadmissibilidade (arts. 414º, nº 2 e 420 º, nº 1, al. b), do CPP).

b) Negar provimento ao recurso do arguido AA, quanto ao mais.

Custas pelo recorrente fixando a taxa de justiça em 5 (cinco) UC’s.

Processado em computador e revisto pela relatora (art. 94º, nº 2, do CPP).


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Lisboa, 07 de abril de 2021


Maria da Conceição Simão Gomes (relatora)

Nuno Gonçalves

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[1] Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Ed. Notícias, pág., 241-244
[2]Figueiredo Dias, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3º, Abril/Dezembro, pág. 186.
[3] Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1ª Ed. 199, páginas 290 a 291.
[4] Relator Santos Cabral, Proc. 178/12.0PAPBL.S2, disponível in dgsi.pt