NULIDADE DE ACÓRDÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
ERRO DE JULGAMENTO
LAPSO MANIFESTO
Sumário


I. A oposição relevante, para efeitos de nulidade da decisão judicial, é a oposição entre a fundamentação de direito e a decisão final e não a contradição entre os factos e o direito.
II. Uma vez que o acórdão reclamado se pronunciou, detalhadamente, sobre a relevância das cláusulas contratuais respeitantes ao cancelamento das hipotecas, não se verifica a invocada nulidade por omissão de pronúncia.
III. Tampouco se verifica o invocado lapso manifesto na interpretação do art. 74.º do Cód. Coop., já que, diversamente do invocado pelo reclamante, a norma ínsita neste preceito não determina qualquer conduta dos responsáveis das cooperativas, revestindo, apenas e tão-só, a natureza de norma remissiva.

Texto Integral


Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça



1. Notificado do acórdão de 17 de Junho de 2021, veio o A. arguir a sua nulidade, concluindo nos termos seguintes:

«a) O douto acórdão ora reclamado está ferido de nulidade por violação do disposto no art. 615, 1, c) e d), aplicável por força do art. 684, ambos do CPC, baseada na oposição entre a decisão e os fundamentos de facto e direito e na omissão de pronúncia; pelos motivos seguintes:

b) As conclusões III, IV e V, e respetivo desenvolvimento, do douto acórdão não têm suporte ou aplicação nos factos provados;

c) No caso, a venda a terceiro (que não é a entidade bancária credora) não é complementar da atividade da cooperativa ré, mas esgotante, impede o pagamento do passivo hipotecário, prejudica as posições das associadas, e viola normas imperativas, que não se reconduzem a mero direito interno da cooperativa – arts. 2 e 111 do Código Cooperativo e art. 14,1 do DL 502/99, como tem sido assinalado pacífica e uniformemente pelo STJ, designadamente no acórdão de 05/05/1994 (proc. 084939);

d) Pelo que ocorre violação do direito cooperativo que determina a nulidade do negócio;

e) Acresce que o douto acórdão refere apenas a responsabilidade do autor, por faltar às escrituras, mas não se pronuncia sobre as hipotecas e as suas consequências na inviabilização do negócio, omitindo a evidente impossibilidade de cumprimento imputável à ré (factos provados 18 e 19);

f) Por via de tal omissão e contradição, decide-se contra a jurisprudência uniforme deste Venerando Tribunal, que consta designadamente dos acórdãos de 15/10/2002 (proc. 02A1160: “Ocorrendo culpas iguais de ambas os promitentes, deve ser decretada a resolução do contrato e mandado restituir ao promitente comprador, em singelo, o sinal por ele prestado), 12/09/2017 (proc. 148/14.4TVPRT.P1.S1), 13/01/2019 (proc. 08A3649) e 17/10/2017 (revista 164/14.6T8FAR.E1.S1), entre tantos outros;

g) Teria, pois, de condenar-se a ré cooperativa a restituir o sinal;

h) Por fim, desaplicando [o] douto acórdão do STJ, o acórdão reclamado desatende à violação do disposto no art. 74 do Código Cooperativo (que protege expressamente terceiros e confere direitos em caso de violação de deveres por parte dos diretores da cooperativa), e não atende ao pedido de condenação em indemnização deduzido na p.i., que é de reconstituição natural (devolução do sinal), contra os réus diretores que cometeram o ilícito;

i) Deveriam ter sido condenados os réus diretores a restituir o sinal, solidariamente com a ré cooperativa, tal como peticionado.»

A R. pronunciou-se no sentido da não verificação da invocada nulidade.

Cumpre decidir.


2. Antes de mais alega o reclamante que, a respeito das questões relativas à interpretação e aplicação do direito cooperativo, o acórdão padece de contradição entre “a decisão e os fundamentos de facto e direito”, uma vez que as suas conclusões “não têm suporte ou aplicação nos factos provados”.

Vejamos.

Nos termos do art. 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil:

«É nula a sentença quando:

(...)

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão (...)

(...)».

A oposição relevante para efeitos de nulidade da decisão judicial é a oposição entre a fundamentação de direito e a decisão final e não, como pretende o reclamante, a alegada contradição entre os factos e o direito. Invocar tal contradição mais não é do que manifestar a não conformidade do reclamante com o sentido da decisão.

Improcede, assim, este fundamento da impugnação.

3. Alega ainda o reclamante que o acórdão padece de nulidade por omissão de pronúncia (art. 615., n.º 1, alínea d), do CPC), porque o mesmo se “refere apenas a responsabilidade do autor, por faltar às escrituras, mas não se pronuncia sobre as hipotecas e as suas consequências na inviabilização do negócio, omitindo a evidente impossibilidade de cumprimento imputável à ré”.

Vejamos.

Afirma-se na fundamentação do acórdão ora reclamado:

«11.1. O contrato-promessa dos autos contém as seguintes cláusulas:

Cláusula segunda

(Objecto)

1. (...)

2. Sobre os lotes (...) existe ónus a favor do Montepio Geral, que a promitente se compromete a eliminar no prazo de 60 dias.

Caso tal não suceda, opera-se a resolução do presente contrato de compra e venda com a devolução em singelo do sinal prestado.

Cláusula quinta

(Escritura pública)

1. As Partes Contratantes acordam em que a escritura notarial relativa ao contrato de compra e venda ora prometido se realize até 90 dias após a assinatura do presente contrato.

2. A marcação da escritura ficará a cargo da Promitente Vendedora (...)

Cláusula sétima

Considera-se que houve incumprimento definitivo se uma vez ultrapassada a data prevista e assumida neste contrato, a parte faltosa (em mora), depois de interpelada para cumprir, deixar de o fazer no prazo que lhe vier estipulado pela parte contrária, que as partes acordam nunca ser superior a trinta dias.

Cláusula nona

(Alterações)

O presente contrato constitui o integral acordo celebrado entre as Partes Contratantes, só podendo ser alterado ou modificado por documento escrito e assinado por ambas a partes».

Entendeu a Relação que o n.º 2 da cláusula 2.ª estabelece uma condição resolutiva em sentido próprio, nos termos e para os efeitos dos arts. 270.º e segs. do Código Civil, a qual opera automaticamente, sem necessidade de declaração das partes. Consequentemente, concluiu que, não tendo havido lugar ao cancelamento das hipotecas sobre os lotes de terreno prometidos vender, se operou a resolução do contrato, com efeito retroactivo (cfr. art. 276.º do CC).

Em sentido diverso – e se bem interpretamos as respectivas alegações, que, neste ponto, não são inteiramente inequívocas – alega a 1.ª R. que a sobredita cláusula prevê antes uma condição resolutiva em sentido impróprio, a qual não opera automaticamente, apenas permitindo ao A. invocar que, não tendo a R. obtido o cancelamento das hipotecas, lhe assistia o direito a resolver o contrato após ter fixado um prazo admonitório para o efeito. Porém, com o acordo superveniente, segundo o qual tal cancelamento seria efectuado até à celebração da escritura de compra e venda (facto provado 25), a obrigação da 1.ª R. de cancelar as hipotecas ficou dependente do cumprimento da obrigação do A. de outorgar o contrato prometido. Não tendo o A. comparecido em qualquer das sucessivas datas em que, com o seu acordo, a escritura pública esteve marcada, ficou constituído em mora, sendo-lhe imputável a impossibilidade superveniente de celebração do contrato definitivo.

Vejamos.


11.2. Tal como entendeu a Relação, afigura-se que o teor do n.º 2 da cláusula 2.ª, em si mesmo considerado, e em confronto com o teor da cláusula 5.ª, configura uma condição resolutiva em sentido próprio, não lhe sendo assim aplicável o disposto na cláusula 7.ª a respeito da necessidade de fixação de prazo admonitório para a transformação da mora em incumprimento definitivo.

Isto dito, porém, importa apreciar se o contrato-promessa foi válida e eficazmente alterado, tendo a dita condição resolutiva sido substituída por acordo entre as partes segundo o qual «o cancelamento das hipotecas seria efetuado até ao ato da celebração da escritura notarial de compra e venda, tudo com a concordância do Montepio Geral, mediante o pagamento que o autor tinha de efetuar para liquidação do preço de compra e venda» (facto 25).

Questão essencial para a resolução de ambos os recursos e que, a nosso ver, implica um duplo nível de análise: (i) à luz do regime da forma convencional adoptado pelas partes; (ii) à luz do regime da forma legal respeitante ao contrato-promessa.

Entendeu o acórdão recorrido que, tendo as partes adoptado, na cláusula 9.ª, uma convenção de forma escrita, o dito acordo não será válido nem eficaz em razão da presunção de que as mesmas partes não se quiseram vincular a não ser pela forma convencionada (art. 223.º, n.º 1, segunda parte, do Código Civil).

Contra, alega a R. Recorrente, que, ao assim decidir, se afigura não ter o tribunal a quo ponderado que a ilisão da presunção prevista nesta disposição legal foi realizada pela R., pela prova, por confissão do A., dos factos constantes do ponto 25 da matéria de facto.

Acerca da possibilidade de ilisão da presunção do art. 223.º, n.º 1, do CC, afirma-se no recente acórdão deste Supremo Tribunal de 28.01.2021 (proc. n.º 3443/18.0T8CBR.C1.S1), disponível em www.dgsi.pt[1]:

«(...) [Diga-se, com Manuel Carneiro da Frada, que “as declarações contratuais não têm de ter um sentido único, definível para todo o sempre. Sobretudo quando elas visam criar uma disciplina para uma ligação contratual prolongada que enfrentará necessariamente várias vicissitudes, não (plenamente) antecipáveis pelos sujeitos” [18: Cfr. Manuel Carneiro da Frada, “Sobre a interpretação do contrato”, in: Forjar o Direito, Coimbra, Almedina, 2015, pp. 14-15].

Reforçando o ponto / indo mais longe, António Menezes Cordeiro afirma que “os factos posteriores ao comportamento interpretando (designadamente, o modo como o negócio foi executado) relevam, por exemplo, para concluir acerca do entendimento das partes quanto ao sentido do negócio (especialmente relevante no caso dos contratos duradouros, em que é normal que, durante o período de vigência, as partes ajustem o negócio à alteração das circunstâncias envolventes)” [19: Cfr. António Menezes Cordeiro, Código Civil comentado – I – Parte Geral, Coimbra, Almedina, 2020, p. 694 (nota 8)].

É certo que, através da cláusula 11.ª, as partes convencionaram que as alterações ou os aditamentos ao contrato apenas seriam válidos se constassem de documento escrito, assinado por ambas as partes. Estipularam, assim, por esta via uma forma especial para a declaração, conforme previsto no artigo 223.º, n.º 1, 1.ª parte, do CC.

Mas, como resulta do mesmo artigo 223.º, n.º 1, 2.ª parte, do CC, isto apenas permite presumir que as partes se não quiseram vincular senão pela forma convencionada. Esta presunção é meramente relativa, havendo a possibilidade de ela ser ilidida por prova em contrário (cfr. artigo 350.º, n.º 2, do CC).

Sobre a possibilidade de ilisão desta presunção existe unanimidade da doutrina.

Afirma, por exemplo, António Menezes Cordeiro: “As partes podem, de comum acordo, não observar o combinado: haverá então uma revogação (distrate) da prévia convenção de forma, desde que as circunstâncias do caso permitam mesmo concluir pela vontade de suprimir o antes acordado” [20: Cfr. António Menezes Cordeiro, Código Civil comentado – I – Parte Geral, cit., p. 647].

Afirma Manuel Pita: “O que verdadeiramente está em causa é a presunção de que as partes não se querem vincular senão por aquela forma que convencionaram; ora, se, apesar disso, as partes se comportarem como vinculadas ao negócio menos solene que realizaram, a presunção cai, situação em que se entende ter havido uma verdadeira revogação da convenção sobre a forma”[21: Cfr. Manuel Pita, in: Código Civil Anotado, volume I, Lisboa, Almedina, 2017, p. 275].

E afirma Joana Vasconcelos: “Porém, e porque esta presunção – como a que se lhe segue, no n.º 2 –, é, nos termos gerais do artigo 350.º, n.º 2, relativa (iuris tantum), pode ser elidida mediante prova em contrário. E tal prova resultará das circunstâncias do caso, sempre que estes evidenciem que as partes, cientes da prévia fixação de uma forma mais exigente para o negócio quiseram, não obstante, vincular-se sem sujeição à mesma, por tal modo revogando ou derrogando a convenção quanto à forma por si outorgada (HÖRSTER, 1992: 442; OLIVEIRA ASCENSÃO, 2003: 63)” [22: Cfr. Joana Vasconcelos, in: Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, pp. 502-503].» [negritos nossos]

No caso dos autos, a ilisão da presunção foi realizada pelos RR., pela prova, por confissão do A., dos factos constantes do ponto 25 da matéria de facto. Ou seja, o acordo verbal constante do ponto 25 dos factos provados significa que as partes manifestaram tacitamente a vontade de abandonar a forma convencionada, ficando assim ilidida a presunção estabelecida no n.º 1 do art. 223.º do Código Civil.

Tanto na decisão recorrida como nas alegações das partes, a questão do respeito pelas exigências de forma para a alteração da cláusula 2.ª do contrato-promessa vem equacionada exclusivamente no âmbito do respeito pela forma convencional. Sucede, porém, que, nos termos do n.º 2 do art. 410.º do Código Civil, o contrato-promessa respeitante à celebração de contrato para o qual a lei exija documento autêntico ou particular, como ocorre no caso sub judice quanto ao prometido contrato de compra e venda de lotes de terreno (cfr. art. 875.º do CC), só vale se constar de documento assinado pela parte ou partes que se vinculam.

O que implica que a validade da alteração ao contrato-promessa nos termos do facto provado 25 (em vez do cancelamento das hipotecas a ser feito no prazo de 60 dias após a celebração do contrato-promessa, tal cancelamento «seria efetuado até ao ato da celebração da escritura notarial de compra e venda, tudo com a concordância do Montepio Geral, mediante o pagamento que o autor tinha de efetuar para liquidação do preço de compra e venda») tem também de ser apreciada em função das exigências legais de forma.

A respeito do âmbito da forma legal, prescreve o n.º 2 do art. 221.º do CC:

«As estipulações posteriores ao documento só estão sujeitas à forma legal prescrita para a declaração se as razões da exigência especial da lei lhes forem aplicáveis»

Assim sendo, em princípio, e num plano abstracto, uma tal alteração no plano contratual estaria abrangida pelas razões pelas quais a lei exige forma escrita para a celebração do contrato. Importa, contudo, verificar se, nas circunstâncias concretas dos autos, assim será efectivamente.

Resulta da factualidade provada que:

- O contrato-promessa foi celebrado em 23 de Setembro de 2016;

- De acordo com a cláusula 2.ª, o prazo para a 1.ª R. cancelar as hipotecas que oneravam os lotes de terreno terminava a 22 de Novembro de 2016;

- E, de acordo com a cláusula 5.ª, o prazo para a celebração da escritura pública de compra e venda terminava a 22 de Dezembro de 2016, cabendo à 1.ª R. proceder à marcação da mesma;

- Em data não determinada, as partes acordaram substituir a previsão da cláusula 2.ª nos termos descritos no facto 25: o cancelamento das hipotecas teria de ser feito até à celebração da escritura mediante o pagamento pelo A. do valor devido a título de preço;

- Na sequência do que ocorreram os seguintes factos:

26. Nesse sentido [do acordo descrito no facto 25], autor e ré Uchalgar, através dos 2.º e 3.º réus, tentaram, por acordo, marcar a escritura notarial de compra e venda, na qual estaria presente o Montepio Geral, a fim de se proceder ao cancelamento das hipotecas.

27. A escritura notarial de compra e venda esteve inicialmente marcada para o dia 27/12/2016, no Cartório Notarial da Dra. AA, em ....

28. O autor informou a ré Uchalgar, através do 2.º e 3.º réus de que não lhe seria possível comparecer nessa data, solicitando nova marcação.

29. Por acordo entre o autor e a ré Uchalgar, através do 2.º e 3.º réus, foi marcada escritura de compra e venda para o dia 16/1/2017, no atrás citado Cartório Notarial.

30. Mais uma vez, o autor não compareceu à escritura, na data e local acordados, invocando motivos de saúde e tratamento médico.

31. O autor e a ré Uchalgar, através dos 2.º e 3.º réus, acordaram, mais uma vez, que a escritura notarial de compra e venda seria celebrada em 24/2/2017.

32. Mais uma vez o autor não compareceu para celebrar a escritura em causa.

33. O autor e a ré Uchalgar, através dos 2.º e 3.º réus, acordaram, mais uma vez, que a escritura notarial de compra e venda seria celebrada em 18/4/2017.

34. Mais uma vez o autor não se disponibilizou para celebrar a escritura em causa, nessa data, tendo proposto a data de 24/4/2017, que foi aceite pela ré Uchalgar, através dos 2.º e 3.º réus, tendo para tal sido contactado o Montepio Geral.

35. Após essa data, o autor desinteressou-se do negócio.

Constata-se, assim, que, já depois de decorrido o prazo de 60 dias do n.º 2 da cláusula 2.ª, mas antes de decorrido o prazo de 90 dias da cláusula 5.ª, foi marcada, com a concordância do A., data para a realização do contrato definitivo, a que se seguiu, sucessivamente, e sempre com o acordo do A., a marcação de outras quatro datas para a outorga da escritura pública de compra e venda, na qual estaria presente o credor hipotecário, a fim de o valor do preço a entregar pelo A. servir para liquidar a dívida garantida pelas hipotecas e, consequentemente, se proceder ao cancelamento das mesmas.

A conduta das partes revela, de forma patente, que a exigência, prevista na cláusula 2.ª, de cancelamento das hipotecas no prazo de 60 dias após a celebração do contrato-promessa, não revestia, para as mesmas, carácter essencial, não devendo, assim, considerar-se abrangida pelas razões da exigência da forma legal para a celebração do contrato.

Aqui chegados, porém, importa ainda considerar se tal alteração do contrato, acordada entre as partes nos termos descritos no facto provado 25 (em vez do cancelamento das hipotecas, a ser feito no prazo de 60 dias após a celebração do contrato-promessa, o cancelamento «seria efetuado até ao ato da celebração da escritura notarial de compra e venda (...)»), produziu efeitos, i.e., se impediu efectivamente o funcionamento da condição resolutiva.

Não tendo sido apurado em que momento teve lugar o acordo modificativo do contrato, configuram-se duas hipóteses.

Se o acordo teve lugar antes de decorrido o prazo de 60 dias previsto na cláusula 2.ª do contrato, dúvidas não subsistem que o contrato foi válida e eficazmente alterado, com a revogação da condição resolutiva.

Se o acordo modificativo teve lugar depois de decorrido o prazo de 60 dias, entende-se que a conduta das partes revela, de forma evidente, que, não obstante o decurso desse prazo, ambas quiseram manter-se vinculadas à celebração do contrato prometido, marcando, por acordo, sucessivas datas para a outorga da correspondente escritura pública. Ora, estando em causa interesses disponíveis, tal configura afinal uma renúncia tácita à invocação da condição resolutiva prevista na cláusula 2.ª do contrato e a sua concomitante substituição pelo acordo segundo o qual o cancelamento das hipotecas seria efectuado até à celebração da escritura pública de compra e venda, destinando-se o valor do preço devido pelo A. a satisfazer a dívida garantida pelas hipotecas.

Na verdade, a conduta do A., ao acordar com a 1.ª R. a marcação de sucessivas datas para a celebração do contrato prometido, a que o mesmo A. não compareceu, apresentando diversas justificações circunstanciais, mas sem nunca invocar a falta de cancelamento das hipotecas, ou sequer aludir ao funcionamento da condição resolutiva originariamente prevista na cláusula 2.ª, contradiz frontalmente – com desrespeito pelo princípio da boa fé que preside tanto ao cumprimento dos contratos como ao exercício dos direitos (cfr. arts. 762.º e 334.º do CC) – a pretensão de, na presente acção, fazer valer a sobredita cláusula contratual.

Assim, perante o teor do acordo modificativo – válido e eficaz – descrito no facto 25, provado por confissão do A., forçoso é concluir que as sucessivas não comparências ao acto de celebração do contrato prometido (e subsequente desinteresse, não juridicamente justificado, em tal celebração), configuram uma situação de mora no cumprimento do contrato-promessa, imputável ao A., a qual, em virtude da adjudicação dos lotes de terreno ao credor hipotecário, em processo executivo, redundou numa situação de impossibilidade de celebração do contrato definitivo, imputável ao mesmo A..

Deste modo, nos termos do n.º 2 do art. 442.º do CC, considera-se que a promitente-vendedora, a aqui 1.ª R. União de Cooperativas, tem direito a reter para si as quantias entregues pelo A. a título de sinal e de reforço de sinal.»

Do teor da fundamentação do acórdão reclamado, resulta evidente que o mesmo se pronunciou, detalhadamente, sobre a relevância das cláusulas contratuais respeitantes ao cancelamento das hipotecas. Que não o tenha feito no sentido propugnado pelo A., ora reclamante, não constitui obviamente causa de nulidade da decisão.

Deste modo, improcede também este fundamento da impugnação.


4. Por último, em relação ao tratamento, pelo acórdão impugnado, da pretensão de responsabilização pessoal dos 2.º e 3.º RR., alega o reclamante o seguinte:

«14. O acórdão do STJ de 08/09/2016, citado na fundamentação do acórdão sob reclamação, é aplicável ao presente caso em sentido contrário ao propugnado. Aí se esclarece que: “na responsabilidade delitual, apenas será de admitir a ressarcibilidade de danos económicos puros nas seguintes situações:

(i) Quando tiver sido violada uma norma de protecção ou “disposição legal destinada a proteger interesses alheios” (art. 483º, nº 1, segunda regra, do CC);

(ii) Quando exista previsão delitual específica que contemple os danos económicos puros, como por exemplo, as normas dos arts. 485º e 495º do CC, ou a norma do art. 8º do Decreto-Lei nº 147/2008, de 29 de Julho, relativamente à reparação de danos ambientais;

(iii) Quando se verifique abuso do direito, nas condições em que este constitua fonte de responsabilidade civil”.

15. Nos presentes autos verifica-se a hipótese da alínea a): foi violada disposição legal destinada a proteger interesses alheios. Na verdade, o art. 74 do Código Cooperativo dispõe que: “Os administradores respondem nos termos gerais para com os cooperadores e terceiros pelos danos que diretamente lhes causarem no exercício das suas funções.” [negrito nosso]

Com estas considerações afigura-se pretender o reclamante invocar a existência de um lapso manifesto (cfr. art. 616.º, n.º 2 do CPC) por, alegadamente, o acórdão não ter tido em conta que o referido art. 74.º do Código Cooperativo seria uma norma de protecção cuja violação seria geradora de ilicitude nos termos da segunda parte do n.º 1 do art. 483.º do Código Civil.

Tal alegação carece de razão. Com efeito, como se extrai com meridiana clareza da letra do preceito em causa, a norma ínsita no art. 74.º do Código Cooperativo não determina qualquer conduta dos responsáveis das cooperativas, revestindo, apenas e tão-só, a natureza de norma remissiva («Os administradores respondem nos termos gerais...») e não uma norma de protecção susceptível de ser violada por acção ou por omissão.

Pelo que improcede igualmente este último fundamento da impugnação.


5. Pelo exposto, julga-se a impugnação improcedente.


Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs.


Lisboa, 8 de Setembro de 2021

Nos termos do art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade das Exmas. Senhoras Conselheiras Maria Rosa Tching e Catarina Serra que compõem este colectivo.


Maria da Graça Trigo (relatora)

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[1] Relatado pela aqui segunda Adjunta e votado na presente 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça.