ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
INTERPRETAÇÃO DA LEI
GRAVAÇÃO DA AUDIÊNCIA
GRAVAÇÃO DA PROVA
NOTIFICAÇÃO
NULIDADE PROCESSUAL
PRAZO DE ARGUIÇÃO
CONTAGEM DE PRAZOS
DEVER DE DILIGÊNCIA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PROCESSO EQUITATIVO
Sumário


I. Estando em causa a impugnação de acórdão da Relação que aprecia decisão interlocutória da 1.ª instância, que recai unicamente sobre a relação processual, não cabe no âmbito do recurso de revista, tal como definido pelo art. 671.º, n.º 1 do CPC, apenas sendo admissível recurso nas hipóteses previstas no n.º 2 do mesmo artigo.
II. No caso dos autos, é aplicável a previsão da al. a) desse n.º 2, conjugada com a previsão do art. 629.º, n.º 2, al. d) do CPC, para a qual remete a dita al. a), por existir contradição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão da Relação que foi invocado como acórdão-fundamento.
III. A aplicação do art. 629.º, n.º 2, al. d) do CPC ao presente recurso justifica-se por diversas ordens de razões, entre as quais avulta a função específica que tal preceito tem no sistema do recurso de revista: permitir o acesso condicionado ao STJ, circunscrito à realização de uma uniformização da jurisprudência contraditória formada nas Relações, atenuando assim os efeitos de um regime de exclusão do acesso ao STJ no âmbito de certas matérias.
IV. A previsão do n.º 3 do art. 155.º do CPC segundo a qual a gravação da audiência final deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias, a contar do respectivo acto, não envolve a realização de qualquer notificação às partes de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efectiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes, quando estas o requeiram.
V. O prazo de dez dias, a contar da referida disponibilização, previsto no n.º 4 do artigo 155.º do CPC, faz recair sobre as partes um dever de diligência em averiguarem se tal registo padece de vícios, a fim de que os mesmos sejam sanados com celeridade perante a primeira instância.
VI. Na hipótese de a secretaria não disponibilizar a gravação no prazo de dois dias a contar do acto, a parte tem o ónus de, através de requerimento dirigido ao juiz, suscitar a questão; caso se confirme o incumprimento do prazo do art. 155.º, n.º 3 do CPC, o prazo do n.º 4 do mesmo artigo só começará a contar-se a partir do momento em que a secretaria passe a ter a gravação ao dispor das partes.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




1. Na presente acção instaurada por Tufama – Construção Civil, Lda. contra Sisav – Sistema Integrado de Tratamento e Eliminação de Resíduos, S. A. foi proferido despacho, após a decisão final, que julgou sanada a nulidade invocada pela R., em 13 de Agosto de 2019, referente à deficiência das gravações da audiência realizada em 23 de Maio de 2019.

O despacho é do seguinte teor:

«A R. requer que seja declarada nula a audiência que se realizou no dia 23 de Maio de 2019, por serem inaudíveis os depoimentos prestados nessa data, requerendo ainda a nulidade da tramitação processual subsequente.

A A. opôs-se (fls. 390-392) alegando extemporaneidade.

Nos termos do artº 155º, nº 4, CPC, a falta ou deficiência da gravação da audiência deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada.

“Decorrido esse prazo sem que seja arguido o vício em causa, fica o mesmo sanado, não podendo oficiosamente ser conhecido (…).” António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código do Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, página 190, Almedina.

A audiência cuja nulidade a R. pretende ver declarada teve lugar a 23 de Maio de 2019, data em que ficou disponibilizada a gravação. Não tendo a R. invocado a falta ou deficiência da gravação da audiência no prazo de 10 dias, que veio apenas a fazer em 13 de Agosto de 2019 (fls. 386-389), após ter solicitado cópia em 6 de Agosto de 2019 (fls. 383), fica sanada tal nulidade.

Termos em que, julgando sanada a nulidade invocada, se indefere o requerido.»

A R. apelou deste despacho para o Tribunal da Relação de Évora, tendo sido determinada a sua subida, em separado.

Por acórdão de 17 de Dezembro de 2020, o recurso foi julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.


2. Vem a R. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«1. O presente recurso tem por objecto o acórdão do Tribunal da Relação de Évora que confirmou decisão do Tribunal de primeira instância julgando intempestiva a invocação, pela Recorrente, da deficiência da gravação da audiência de julgamento.

2. Entendeu o tribunal a quo que a Recorrente não tinha invocado a deficiência da gravação no prazo estipulado no n.º 4, do art. 155.º, do CPC, porquanto já tinham passado dez dias da data da audiência, considerando que nessa data as gravações ficaram imediatamente disponíveis.

3. A Recorrente discorda totalmente de tal interpretação do referido preceito, que se encontra em clara oposição com um acórdão da mesma Relação de Évora já transitado em julgado e que constitui acórdão fundamento para o presente recurso de revista: o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 5 de Maio de 2016, processo 104/09.4-B.E1.

4. A referida contradição entre a jurisprudência quanto à mesma questão fundamental de direito no domínio da mesma legislação, não existindo qualquer acórdão uniformizador de jurisprudência e tendo em conta que de outro modo não haveria recurso da decisão do tribunal a quo por motivo estranho à alçada, constitui por isso o contexto legitimador do presente recurso de revista nos termos do disposto nos arts. 671.º, n.º 2, a) e 629.º, n.º 2, d), do CPC.

5. Muito embora a jurisprudência seja clara, tal como a lei, no sentido de que o dies a quo daquele prazo de dez dias se situa na data de disponibilização das gravações, são divergentes os entendimentos no sentido de saber o que deve considerar-se como disponibilização das gravações.

6. A interpretação do art. 155.º, n.º 4, que a Recorrente aqui preconiza é a adoptada pelo acórdão fundamento: o dies a quo apenas ocorre com a disponibilização efectiva das gravações às partes, seja por determinação da Secretaria do tribunal ou em virtude de pedido da parte.

7. Não pode entender-se que tal disponibilização ocorre automaticamente com a realização da audiência ou o disposto no art. 155.º, n.º 4, não teria qualquer sentido útil.

8. Nem pode considerar-se que tal disponibilização pela Secretaria se presume efectuada passados os dois dias previstos no n.º 3 do art. 155.º, mesmo que efectivamente tal não tenha acontecido.

9. A única interpretação do art. 155.º, n.º 4, que respeita a letra da lei e o direito fundamental a uma tutela jurisdicional efectiva é aquela que considera que o prazo de dez dias apenas se começa a contar da data em que a parte tenha efectivo acesso às gravações,

10. Sendo aquela conclusão válida independentemente do momento em que tal ocorra e ainda que tal apenas aconteça na sequência de requerimento da parte por ter interesse na audição das gravações para efeitos de recurso da matéria de facto.

11. Qualquer outra interpretação daquele preceito padece de inconstitucionalidade por restringir em demasia o acesso da parte à possibilidade de recurso da matéria de facto;

12. Isso significaria que a parte, num caso como o presente em que está em causa uma condenação que, com juros, ascende a cerca de um milhão de euros, veria precludido o seu direito ao segundo grau de jurisdição por um erro técnico de gravação da secretaria que em nada lhe pode ser imputado.

13. Como consequência, deve considerar-se que a Recorrente invocou tempestivamente o vício da gravação da audiência, devendo o tribunal dela conhecer.

14. Devendo considerar-se que existe, por conseguinte, uma nulidade secundária decorrente da deficiente gravação da audiência, ao abrigo do art. 195.º, do CPC, que deve ser julgada procedente.»

Termina pedindo que seja dado provimento ao recurso, decidindo-se pela tempestividade da arguição da nulidade da audiência de julgamento que se realizou a 23 de Maio de 2019, com as devidas consequências.

A Recorrida contra-alegou, concluindo nos seguintes termos:

«A – O objeto do presente recurso apresentado pela Recorrente, prende-se com o facto de saber a partir de quando se inicia a contagem do prazo de 10 dias, referido no art. 155º, nº 4 do CPC.

B – Entendemos, tal como o Douto Acordão recorrido, que o prazo inicia-se a partir da data em que a secretaria disponibiliza (coloca à disposição) o suporte digital da gravação.

C – Com efeito, dispõe o nº 4 do art. 155º do CPC, que a parte pode reclamar da falta ou da deficiente gravação no prazo de 10 dias a partir da data da disponibilização às partes da gravação de cada uma das gravações da audiência final,

D – Tem sido, nos últimos anos entendimento unânime jurisprudencial, que a disponibilização às partes da audiência, consiste na simples colocação pela secretaria judicial da referida gravação à disposição das partes para que estas possam obter cópia da mesma.

E – Tal disponibilização não envolve a realização de qualquer notificação às partes de que agravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efetiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes.

F – Disponibilizar não é entregar a gravação às partes. Pois disponibilizar significa colocar à disposição de outrem, ainda que o terceiro não aproveite tal disponibilidade; entregar é transferir algo para as mãos de outrem.

G – Pois, se a contagem do prazo fixado no nº 4 do art. 155º do CPC só se iniciasse a partir da entrega da gravação à parte, tal início ficaria na dependência do arbítrio desta, com a possibilidade de invocar a falta ou deficiência da gravação quando lhe aprouvesse, até à interposição do recurso da sentença.

H – A intenção do legislador foi a de que o procedimento tendente à obtenção de cópia da gravação pelas partes seja o mais simples possível, tendo em vista garantir que algum problema que se verifique com a gravação seja resolvido com rapidez, no Tribunal de primeira instância, de forma a evitar a anulação de actos processuais subsequentes, tornando-se assim, mais equilibrado.

I – O legislador no âmbito do novo código, entendeu que sobre as partes recai um dever de diligência que as onera com o encargo de diligenciarem, o mais tardar logo após o termo da audiência, pela rápida obtenção da gravação dos depoimentos e, num prazo curto, averiguarem se tal registo padece de vícios, a fim de que os mesmos sejam sanados com celeridade perante a primeira instância.

J – Face à necessidade de, por razões que se prendem com a memória daqueles que terão de depor de novo e com a eventual necessidade de confrontação desses depoimentos com outros produzidos em sentido contrário, é que a tomada de declarações ocorra em ocasião temporalmente próxima da data em que tais depoimentos foram inicialmente prestados.

L – Assim, se o vício da falta ou deficiência de gravação não for invocado pela parte, no prazo de 10 dias, a contar do momento em que a gravação é disponibilizada, fica precludido o direito de posteriormente invocar a correspondente nulidade.

M – Excedendo esse prazo, deve ter-se a arguição de nulidade por extemporânea, com a consequente sanação do vício.

N – O novo código veio resolver as dificuldades, impondo à parte o ónus de invocação da irregularidade no prazo de 10 dias a contar da data em que lhe tenha sido disponibilizada a gravação (disponibilização que deve ocorrer no prazo de 2 dias a contar do acto, nos termos do n.º 3);

O – Tratando-se de uma nulidade processual, terá de ser arguida autonomamente, sendo submetida a posterior decisão do juiz a quo, não sendo admitida a sua inserção imediata nas alegações de recurso.

P – Entendemos ter existido uma evolução quanto ao entendimento jurisprudencial e doutrinal da questão em apreço, com a entrada em vigor do novo código, no sentido de unanimemente se ter passado a considerar que o dies a quo ocorre nos prazos estabelecidos (2 dias e 10 dia) a contar do ato e não da entrega efetiva pela secretaria.

Q – Tal interpretação não padece de inconstitucionalidade, decorrente da restrição em demasia no aceso da parte à possibilidade de recurso da matéria de facto, porquanto sobre a parte recai o ónus de diligenciar pela rápida obtenção da gravação dos depoimentos.

R – Como consequência, ao contrário da posição assumida pela Recorrente, deve considerar- se que o vício de gravação de audiência foi invocado intempestivamente, tendo por isso ocorrido sanação do vício.

S – Devendo improceder a arguição da nulidade secundária decorrente da deficiente gravação.

T – Por estas razões, deverão improceder as conclusões da Recorrente, devendo manter-se na íntegra o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido».


3. Importa começar por apreciar da admissibilidade do presente recurso. Tratando-se de impugnação de acórdão da Relação que aprecia decisão interlocutória da 1.ª instância, que recai unicamente sobre a relação processual, não cabe no âmbito do recurso de revista tal como definido pelo n.º 1 do art. 671.º do Código de Processo Civil, apenas sendo admissível recurso nas hipóteses previstas no n.º 2 do mesmo artigo, a saber:

«a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível;

b) Quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme».

No caso dos autos, invoca a Recorrente a previsão da alínea a), conjugada com a previsão do art. 629.º, n.º 2, alínea d) do mesmo Código, para a qual remete a dita alínea a), considerando existir contradição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão da Relação de Évora de 5 de Maio de 2016, proferido no processo n.º 104/09.4-B.E1, de que junta cópia.


3.1. Suscita-se a questão preliminar de saber se uma contradição de julgados entre o acórdão recorrido e um acórdão invocado como acórdão-fundamento só será relevante na hipótese prevista na alínea b) do n.º 2 do art. 671.º do CPC, isto é, quando este segundo acórdão seja um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça; ou se, diversamente, é também aplicável a previsão da alínea d) do n.º 2 do art. 629.º do CPC, por remissão da alínea a) do n.º 2 do art. 671.º do mesmo Código, regime no qual se atribui relevância à contradição de julgados enre o acórdão recorrido e outro acórdão da Relação, tal como invocado no caso dos autos.

Não se ignorando que ambos os sentidos interpretativos têm tido acolhimento na jurisprudência deste Supremo Tribunal, assinala-se, desde já, que o segundo sentido tem prevalecido na jurisprudência da presente Secção. Cfr., entre outros, o acórdão de 12 de Setembro de 2019 (proc. n.º 587/17.9T8CHV-A.G1-A. S1), disponível em www.dgsi.pt[1], no qual se afirma:

«O Acórdão sob recurso incide sobre uma decisão interlocutória de natureza processual e, por isso, é enquadrável no artigo 671.º, n.º 2, do CPC. A admissibilidade da revista fica, pois, dependente da verificação dos pressupostos definidos nessa disposição, a saber: ser um dos casos em que é sempre admissível o recurso [al. a)] ou existir contradição do Acórdão recorrido com Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça [al. b)].

Sendo o Acórdão recorrido um acórdão do qual não cabe recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal e alegando o recorrente que ele está em contradição com outro Acórdão da Relação, há que pôr a hipótese de este ser um dos casos é que é sempre admissível recurso ao abrigo do disposto na al. d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC.»

Sobre a referida dicotomia interpretativa, consideremos a explanação de Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6.ª ed., Almedina, Coimbra, 2020, págs. 63 e 65-66:

«[D]e acordo com a primeira tese, o recurso de revista de acórdãos da Relação sobre decisões interlocutórias de natureza processual sustentados em contradição jurisprudencial ficam submetidos exclusivamente ao regime específico do art. 671.º, n.º 2, al. b) (pressupondo uma contradição reportada a um acórdão do Supremo), ao passo que, para a segunda tese, essas situações também são abarcadas pela al. d) do n.º 2 do art. 629.º. Bastando, neste caso, o confronto com outro acórdão da Relação, tal permite que fiquem no radar do Supremo Tribunal de Justiça questões de direito adjectivo objecto de decisões divergentes das Relações, em casos em que o recurso de revista não seja admitido por algum motivo de ordem legal não ligado ao valor do processo.

(…)

Apesar dos argumentos aduzidos em prol de uma via mais estreita de acesso ao recurso de revista, cremos ser mais ajustada a tese inversa, ou seja, a que admite a aplicação conjunta do art. 629.º, n.º 2, al. d), e do art. 671.º, n.º 2, al. b).

Para o efeito, destaca-se, desde logo, o elemento literal extraído do n.º 2 do art. 671.º, norma que, referindo-se explicitamente ao recurso de revista de decisões interlocutórias de cariz formal, assegura duas vias alternativas: a que decorre da al. b) (admissão de recurso de revista do acórdão da Relação que esteja em contradição com acórdão do Supremo, verificadas as demais condições aí previstas) e a que resulta da al. a) que, remetendo geneticamente para o n.º 2 do art. 629.º, não exclui a norma da al. d).

A par desse elemento formal, constata-se ainda, como argumento de ordem racional ou teleológica, o facto de apenas desse modo se garantir a efectiva possibilidade de, por intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, serem sanadas contradições jurisprudenciais estabelecidas ao nível das Relações em torno de questões de direito adjectivo que, por regra, não são suscitadas nos demais recursos de revista». [negritos nossos]

Sobre a razão de ser do regime de admissibilidade da revista previsto no art. 629.º, n.º 2, alínea d), do CPC se pronuncia Lopes do Rego (A dupla conforme – Cadernos do STJ – Secções Cíveis, Lisboa, 2021, págs. 16-17), em termos válidos também quanto à aplicação daquele regime a recursos de acórdãos da Relação que incidam sobre decisões interlocutórios da 1.ª instância:

«Os outros recursos atrás mencionados – e que têm como padrão a referida al. d) do n.º 2 do art. 629.º - arrancam de uma situação completamente diferente [em relação à denominada ‘revista excepcional’], desempenhando uma funcionalidade substancialmente diversa: trata-se, não de restringir o acesso ao STJ num caso em que se verificariam os normais pressupostos de admissibilidade da revista, mas antes de garantir uma via específica e excecional de acesso ao STJ naquelas matérias ou temas em que se mostra estruturalmente inviabilizada a revista (ou seja, em que ela não é viável mesmo que conjunturalmente o valor da causa e da sucumbência ultrapasse em muito a alçada da Relação) – sendo, porém, o recurso possível caso se verifique o específico fundamento invocado pelo recorrente, permanecendo o objeto do recurso estritamente circunscrito à matéria daquele.

De salientar que foi o CPC de 2013 que repristinou o regime que consta atualmente da al. d) do n.º 2 do art. 629.º - que sempre tinha existido no nosso direito processual civil (cfr. art. 678.º, n.º 4 do velho CPC) e que o DL 303/07 havia inexplicavelmente derrogado (provavelmente por supor equivocadamente o legislador que tal hipótese já teria cobertura na figura da revista excecional baseada na contradição jurisprudencial) – visando, como sempre sucedeu no nosso ordenamento processual, estabelecer um verdadeiro instrumento de ‘uniformização da jurisprudência’ contraditória eventualmente formada e sedimentada ao nível das Relações (nos casos em que, sem ele, nessas matérias insuscetíveis de revista, se perpetuariam irremediavelmente ao longo do tempo, com manifesto prejuízo para o valor da segurança jurídica[negritos nossos]

Desenvolvendo a sua posição, Lopes do Rego (em artigo intitulado «Problemas suscitados pelo modelo de revista acolhido no CPC: o regime de acesso ao STJ quanto à impugnação de decisões interlocutórias de natureza processual», a publicar em obra de homenagem à Professora Doutora Maria Helena Brito) manifesta a sua discordância relativamente à tese restritiva da admissibilidade pelas seguintes razões:

«Em primeiro lugar – e no plano formal – afigura-se que a interpretação restritiva operada quanto ao âmbito da al. d) do nº 2 do art. 629º do CPC não encontra, na letra deste preceito, um mínimo de correspondência verbal: o que ali se prevê, há muitas décadas, muito antes de existir na lei processual a norma que reporta o objeto da revista às decisões finais, é que essa via excecionalíssima de acesso ao STJ apenas implica que o acórdão da Relação tenha solucionado certa questão fundamental de direito em termos contraditórios com outro acórdão da Relação e que dele não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal; ou seja, não faz a norma o mínimo apelo à ideia de que tal recurso pressupõe que o acórdão que se pretende impugnar haja necessariamente posto termo à instância, bastando-se com a existência de um regime específico excludente da recorribilidade, assente na natureza da matéria controvertida, e, portanto, totalmente independente do funcionamento das normais regras referentes ao valor da causa e da sucumbência.

Ora, a articulação de tais regimes – que assentam em normas dotadas obviamente da mesma força jurídica - pode facilmente fazer-se em termos que conciliam adequadamente as duas previsões normativas: a exigência do nº 1 do art. 671º do CPC reporta-se à revista regra, não sendo efetivamente possível interpô-la de decisões processuais interlocutórias; porém, a revista excecionalíssima, decorrente da citada al. d) - e que pressupõe que o recorrente haja demonstrado a existência de um efetivo conflito jurisprudencial, ocorrido em matéria em que se mostra excluído estruturalmente o acesso ao STJ – já seria admissível perante decisões de qualquer tipo ou natureza, como instrumento indispensável para alcançar, naquelas matérias excluídas absolutamente da possibilidade de acesso ao STJ (a não ser precisamente pela via da referida al. d), a uniformização da jurisprudência contraditória da 2ª instância.

Não nos parece, por outro lado, que seja possível cristalizar o âmbito da previsão normativa da citada al. d) em torno das hipóteses para as quais o preceito foi historicamente delineado – ou seja, a existência de normas especiais, excludentes do acesso ao STJ por razões independentes do valor da causa, relativamente a certas decisões proferidas em determinados processos especiais (insolvência, expropriação).

Tal norma, transversal a todo o ordenamento adjetivo, deve acompanhar e dar resposta adequada aos regimes específicos de irrecorribilidade para o STJ que vêm sendo inovatoriamente criados e ampliados, ao longo dos últimos anos, transcendendo em muito o campo dos regimes especiais privativos de determinados processos especiais.

É o que sucede, como atrás se referiu, com as relevantíssimas restrições que o legislador vem estabelecendo quanto ao acesso ao STJ em matéria processual, em todos os casos em que a decisão não haja operado a extinção da instância. E não se diga que a exclusão quanto à recorribilidade para o STJ não pode abarcar os regimes específicos de irrecorribilidade estabelecidos em função do tipo de decisão; na verdade, o tipo de decisão, que o legislador excluiu do acesso ao Supremo, define-se conforme o conteúdo ou matéria sobre a qual tal decisão incidiu – o que significa que, ao dizer-se que são insuscetíveis de recurso para o STJ as decisões interlocutórias, o que, em última análise, se está a estabelecer é que certo tipo de matérias (atinentes à legalidade e regularidade da tramitação processual) está excluída do acesso ao Supremo, por razões que não são meramente conjunturais (enquanto associadas apenas do valor da causa).

Aliás, parece-nos que, quanto maior for a amplitude dos regimes transversais, excludentes da admissibilidade da revista num relevante bloco de matérias ou temas, mais indispensável será enquadrá-los no regime de uniformização da jurisprudência contraditória possibilitado pela citada al. d): é que provavelmente o sistema ainda poderia conviver com a eventualidade de pontuais conflitos jurisprudenciais, ocorridos em certas matérias bem delimitadas, situadas no campo de determinados processos especiais, não terem solução uniformizadora possível.

Porém, o que seguramente se configuraria como totalmente desproporcional, na ótica da segurança jurídica, seria a conclusão de que todos os conflitos jurisprudenciais em matéria adjetiva, ligada à legalidade da tramitação do processo declarativo, mesmo com afetação relevante dos direitos das partes, ou à realização de típicas diligências de cariz executivo (envolvendo temas com o relevo e importância que assumem a definição das condições de exequibilidade do título executivo ou as diligências de realização da penhora e seus limites e condicionamentos legais) – apenas porque são dirimidas mediante decisões interlocutórias - não teriam solução uniformizadora possível, por estar erigida uma barreira intransponível à admissibilidade da revista, estabelecida em função do tipo de decisão que dirime tais matérias processuais, mesmo perante a demonstração da existência e sedimentação de um efetivo conflito jurisprudencial entre Relações.

Acresce, por outro lado, que a previsão que foi aditada pelo CPC de 2013, ao contemplar na al. b) do nº 2 do art. 671º do CPC a hipótese em que ocorra contradição jurisprudencial entre o acórdão da Relação que se pretende impugnar e um acórdão do STJ, não é substitutiva, mas meramente complementar da que integra a referida alínea d), que – volta a recordar-se - só prevê explicitamente o recurso quando ocorra contradição entre o acórdão da Relação que se pretende impugnar e outro aresto proveniente dessa ou de diferente Relação.

Ou seja: a alínea a) do nº 1 do art. 671º do CPC, conjugada com a norma da al. d) do nº 2 do art. 629º do CPC, pretendia reportar-se ao recurso fundado na originária contradição entre acórdãos prolatados pelas Relações; e a alínea b) vem complementar tal previsão normativa, admitindo a interposição da revista excecionalíssima para uniformização da jurisprudência quando - dirimido pelo STJ o originário conflito interpretativo surgido ao nível das Relações - alguma delas persistir, em processos futuros, em aplicar a interpretação normativa oposta à que foi estabelecida pelo STJ.

Pretendia-se, assim, com o estabelecimento deste regime normativo no CPC de 2013, facultar à parte a interposição de recurso assente na invocação, como acórdão fundamento, precisamente do acórdão do STJ que dirimiu o conflito jurisprudencial primacialmente verificado - e não necessariamente de um dos arestos da Relação que consubstanciavam o surgimento desse originário conflito jurisprudencial, entretanto já apreciado e solucionado pelo STJ (embora mediante decisão que, ao ser normalmente proferida em secção – recorde-se a alteração introduzida pelo DL 38/03 ao regime que constava então do art. 678º, nº 4, do velho CPC - carece de valor vinculativo reforçado, idêntico ao que está associado às uniformizações de jurisprudência firmadas pelo plenário das secções cíveis).

De qualquer modo, o argumento fundamental que pode esgrimir-se contra esta orientação jurisprudencial situa-se no plano teleológico e, muito em particular, naquilo que sempre entendemos ser essencial e decisivo: a ponderação das consequências práticas da solução jurídica adotada na administração da justiça e na esfera jurídica dos cidadãos.

 Na realidade, a consolidar-se este entendimento jurisprudencial fortemente restritivo acerca da aplicabilidade do disposto na al. d) do nº 2 do art. 629º do CPC, ficaria para o futuro absolutamente inviabilizada a uniformização da jurisprudência contraditória que se viesse a formar nas Relações acerca de matérias ligadas à regularidade e legalidade da tramitação processual, dirimidas necessariamente mediantes despachos ou decisões interlocutórias: é que, como parece evidente, nestas matérias, abrangidas por um regime de estrutural exclusão das possibilidades de acesso ao STJ, só poderá haver um acórdão do Supremo que incida sobre tais temas ou matérias processuais se se admitir que, no momento em que o conflito surgiu originariamente, foi possível aceder ao STJ com base na invocabilidade de uma contradição entre acórdãos das Relações.

Nesta perspetiva, tornar-se-ia obviamente inviável uniformizar a jurisprudência que se viesse a sedimentar contraditoriamente, ao nível das Relações, sobre matérias de natureza adjetiva, dirimidas mediante quaisquer decisões interlocutórias, não ligadas à verificação de pressupostos ou requisitos essenciais do processo (só estas últimas suscetíveis de implicarem uma eventual decisão final extintiva da instância): aliás, cumpre realçar que, enquanto em matéria de pressupostos processuais ou de requisitos essenciais da ação ainda se poderia alegar que a irrecorribilidade das decisões positivas da Relação - que tivessem o pressuposto por verificado, determinando o prosseguimento da ação – não impediria em absoluto que as divergências interpretativas acerca da norma consagradora do pressuposto processual ainda pudessem acabar por ser dirimidas pelo Supremo – bastando aguardar que o conflito interpretativo se corporizasse numa decisão negativa, em que, tendo por verificada a exceção dilatória, a Relação pusesse termo à instância – no que concerne à matéria referente à legalidade e regularidade da tramitação do processo o obstáculo à possibilidade de uniformização dos conflitos surgidos entre Relações seria, na interpretação restritiva seguida pelo STJ, absolutamente incontornável.

Como já atrás se notou, a funcionalidade da via recursória excecionalíssima prevista atualmente na citada al. d) do nº 2 do art. 629º do CPC é permitir um acesso condicionado ao Supremo, circunscrito à realização de uma uniformização da jurisprudência contraditória formada nas Relações, contornando a eficácia de um regime específico excludente do acesso ao STJ no âmbito de certas matérias, e que obsta estruturalmente à admissibilidade da revista, mesmo nos casos em que se mostrarem preenchidos todos os pressupostos gerais de recorribilidade; ora, em última análise, a inexistir, como ultima ratio, esta via recursória prevista na al. d), no âmbito dessas matérias absolutamente excluídas de recorribilidade para o STJ os conflitos jurisprudenciais surgidos ao nível da 2ª instância poderiam perpetuar-se indefinidamente, sem solução – já que, nem no caso dos autos, nem no âmbito de nenhum outro processo, seria admitida a revista.

Imagine-se que sobre algumas soluções processuais inovatórias do CPC de 2013, em sede de tramitação do processo declaratório – e que têm gerado polémica na sua interpretação prática - envolvendo, por exemplo, a forma adequada para a parte responder a exceções ou as condições de admissibilidade do novo meio probatório das declarações de parte, se formam orientações jurisprudenciais antagónicas ao nível das Relações. Como parece evidente, tais contradições jurisprudenciais, verificadas a propósito de matérias relevantes, envolvendo o funcionamento do contraditório e o direito à prova, só podem ser dirimidas se se admitir, num primeiro momento, a possibilidade de a parte lançar mão do recurso tipificado na alínea d) do nº 2 do art. 629º do CPC, pedindo precisamente ao STJ a resolução desse conflito jurisprudencial surgido ao nível das Relações. Ora, se se excluir cabalmente tal possibilidade, obstando a que tal impugnação se faça ao abrigo da alínea a) do nº 2 do art. 671º do CPC, conjugada com a alínea d) do nº 2 do art. 629º do CPC - impedindo assim a possibilidade de o STJ se pronunciar sobre tais temas processuais controvertidos nas Relações - é evidente que nunca poderá existir um acórdão do STJ que, apreciando a matéria controvertida e solucionando o conflito, possa ser futuramente invocado no confronto de uma qualquer decisão proferida pela Relação sobre algum desses temas processuais.

Na realidade, esta interpretação restritiva quanto à recorribilidade para o STJ dos acórdãos que consubstanciem um conflito jurisprudencial efetivo entre Relações acerca das matérias ligadas à tramitação do processo, dirimidas necessariamente mediante decisões interlocutórias de natureza adjetiva, ao construir uma barreira intransponível à sua apreciação e resolução pelo STJ, acaba por fazer depender a única via de possível acesso ao Supremo (a decorrente da al. b) do nº 2 do art. 671º do CPC) de uma verdadeira condição impossível, traduzida na indispensável invocação pelo recorrente da existência de um precedente jurisprudencial - que, pela natureza das coisas, nunca poderá existir». [negritos nossos]

Acompanhando a orientação que se acaba de transcrever, afigura-se indubitável que a admissibilidade do recurso de revista com fundamento em contradição de julgados com um acórdão da Relação nas acções, matérias ou, como no caso dos autos, nos tipos de decisão, em que, via de regra, não há acesso ao Supremo Tribunal de Justiça constitui uma importante válvula de segurança do sistema, uma vez que, assim, é possível uniformizar a jurisprudência das instâncias, que, de outra forma, permaneceria contraditória entre si.


3.2. Posto é que se verifique uma efectiva oposição de julgados, questão que, no caso dos autos, passamos a apreciar, tendo presente, como se concluiu, ser aplicável, ex vi art. 671.º, n.º 2, alínea a), do CPC, o regime do art. 629.º, n.º 2, alínea d), do CPC, no qual se prescreve:

«... é sempre admissível recurso:

(...)

d) Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme».

De acordo com a jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal, os pressupostos legais da contradição de julgados são a identidade normativa, a divergência na resolução da mesma questão fundamental de direito e a essencialidade dessa divergência para o desfecho das decisões em confronto.

Vejamos.

Quer o acórdão recorrido quer o acórdão-fundamento versam sobre a interpretação da norma do n.º 4 do art. 155.º do CPC, com vista a aferir quando é que se inicia o prazo de dez dias, aí previsto, para a parte interessada arguir a falta ou deficiência da gravação da audiência de julgamento.

No acórdão recorrido os factos referem-se a audiência que teve lugar no dia 23.05.2019, data em que ficou disponível a gravação, tendo a R., aqui Recorrente, solicitado, em 06.08.2019, cópia da gravação da referida audiência, e tendo invocado, em 06.08.2019, a falta ou deficiência da gravação da audiência.

Decidiu-se da seguinte forma:

«(...)

O estabelecimento na lei de que a gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias, a contar do respectivo acto, não envolve a realização de qualquer notificação às partes, de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efectiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes, quando estas o requeiram.

O prazo previsto no n.º 4 do artigo 155º do Código de Processo Civil, a contar da referida disponibilização, faz recair sobre as partes um dever de diligência que as onera com o encargo de diligenciarem pela rápida obtenção da gravação dos depoimentos, que são disponibilizados no prazo máximo de 2 dias, a contar do acto em causa, e, num prazo curto (10 dias), averiguarem se tal registo padece de vícios, a fim de que os mesmos sejam sanados com celeridade perante a primeira instância.

9. Assim, verificando-se que, no caso, estão em causa as gravações da audiência de 23/05/2019, que foram gravadas, como consta indicado na respectiva acta, e ficaram disponíveis na mesma data, como se consignou no despacho recorrido, o prazo de 10 dias para arguir a nulidade decorrente da “deficiência das gravações” iniciou-se naquela data, pelo que tendo a dita nulidade sido apenas invocada em 13/08/2019 (cf. fls. 386-389), após se ter solicitado cópia das gravações 06/08/2019, a mesma foi invocada após o decurso do prazo legal, estando, por conseguinte, sanada, como se decidiu». [negrito nosso]

No acórdão-fundamento, os factos reportam-se a audiência que teve lugar no dia 12.01.2015, não se sabendo quando ficou disponível a gravação, tendo a parte solicitado, em 13.03.2015, cópia da gravação da referida audiência, a qual lhe foi entregue no mesmo dia, e tendo a mesma parte invocado, em 23.03.2015, a falta ou deficiência da gravação da audiência.

Foi decidido o seguinte:

«(…) a arguição da nulidade foi tempestivamente feita pelo Autor/apelante e a consequência que dela advirá será a anulação dos depoimentos deficientemente gravados, que deverão ser repetidos e novamente gravados em audiência de julgamento. E esta anulação da gravação conduzirá necessariamente à anulação da douta sentença proferida – na qual se decidiu a matéria de facto – e seus termos subsequentes, isto porque assenta a mesma na totalidade da prova produzida, e também no depoimento daquelas testemunhas. Pois que procedemos, entretanto, à audição das gravações – que estão no tribunal junto ao processo principal, também aqui em recurso – e efectivamente são praticamente inaudíveis os depoimentos dessas duas referidas testemunhas, únicas que foram ouvidas por videoconferência, acompanhadas por um ruído de fundo constante, apenas se ouvindo as perguntas, não as respostas, e dumas não se conseguindo extrair o conteúdo das outras.

Pelo que, nesse enquadramento fáctico e jurídico, tem o recorrente razão na discordância manifestada do douto despacho recorrido, em consequência do que terá o mesmo que ser retirado da ordem jurídica e procedendo o recurso.

E, em conclusão, dir-se-á: A nulidade decorrente de uma deficiente gravação da prova produzida na audiência de julgamento poderá ser arguida no prazo de dez dias a contar da sua efectiva disponibilização pela Secretaria do Tribunal». [negrito nosso]

Desta forma, temos que:

(i) No acórdão recorrido entendeu-se que a nulidade decorrente da deficiência ou falta de gravação da audiência deve ser invocada no prazo de dez dias contados desde o momento em que a mesma ficou disponível para as partes (no caso, no próprio dia em que teve lugar a audiência), pelo que, tendo a nulidade sido invocada mais de dois meses após essa data, se considerou ser a arguição intempestiva, encontrando-se sanada a nulidade;

(ii) Enquanto no acórdão-fundamento se entendeu que a nulidade resultante da deficiência ou falta de gravação da prova produzida na audiência de julgamento pode ser arguida no prazo de dez dias a contar da sua entrega efectiva pela secretaria do tribunal, considerando-se, por isso, implicitamente irrelevante apurar quando ficou a gravação disponível para as partes.

Encontram-se, deste modo, preenchidos os pressupostos da identidade normativa e da divergência na resolução da mesma questão fundamental de direito, constatando-se que tal divergência foi essencial para o desfecho das decisões em confronto.

Conclui-se, assim, pela existência da invocada contradição de julgados, sendo o recurso admissível nos termos do art. 671.º, n.º 2, alínea a), do CPC, conjugado com o art. 629.º, n.º 2, alínea d), do mesmo Código, tendo como objecto uma única questão: interpretação da norma do n.º 4 do art. 155.º do CPC, de modo a apurar quando é que se inicia o prazo de dez dias para a parte arguir a falta ou a deficiência da gravação da audiência de julgamento.

3.3. Assinale-se que se trata de questão ainda não apreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça e que, para além da assinalada divergência entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento, tem merecido, em geral, resposta divergente na jurisprudência das Relações:

(i) Maioritariamente no sentido adoptado pelo acórdão recorrido [cfr., designadamente os acórdãos da Relação de Coimbra de 13-11-2019 (proc. n.º 238/17.1T8MMV.C1); de 19-12-2018 (proc. n.º 5632/17.5T8CBR.C1), de 25-09-2018 (proc. n.º 7839/15.0TBLSB-A.C1) e de 12-01-2016 (proc. n.º 65879/14.3YIPRT.C1; os acórdãos da Relação de Évora de 24-10-2019 (proc. n.º 2243/18.1T8STR.E1), de 26-09-2019 (proc. n.º 1268/14.0TBSTR-A.E1), de 02-10-2018 (proc. n.º 159/16.5T8BJA-A.E1; de 12-10-2017 (proc. n.º 1382/14.2TBLLE-A.E1) e de 30-04-2015 (proc. n.º 166/09.4TBALR.E1); os acórdãos da Relação de Guimarães de 21-01-2021 (proc. n.º 1373/17.1T8CHV-E.G1), de 14-02-2019 (proc. n.º 17579/15.5T8PRT.G1), de 11-10-2018 (proc. n.º 484/13.7TBBRG.G2), de 30-11-2017 (proc. n.º 229/17.2T8VVD.G1) e de 14-05-2015 (proc. n.º 853/13.2TBGMR.G1); o acórdão da Relação do Porto de 08-03-2021 (proc. n.º 1270/17.0T8AGD-A.P1) e de 30-05-2018 (proc. n.º 1804/14.2TBGMR-C.P1); e o acórdão da Relação de Lisboa de 08-05-2018, Apelação n.º 1394/16.1T8CSC.L1-7, todos consultáveis em www.dgsi.pt].

(ii) Mas também no sentido seguido pelo acórdão-fundamento [cfr. designadamente, os acórdãos da Relação de Coimbra de 19-12-2017 (proc. n.º 814/16.0T8GRD.C1), da Relação de Guimarães de 28-03-2019 (proc. n.º 3268/17.0T8BRG.G1), da Relação do Porto de 10-03-2015 (proc. n.º 1277/12.4TBFLG.P1), da Relação de Lisboa 20-12-2020 (proc. n.º 6917/18.9 T8LSB.L1-6), de 5-11-2018 (proc. n.º 8893/08.7 TBCSC-B.L1-6) e de 24-05-2016 (proc. n.º 1393/08.7YXLSB.L1-7, disponíveis em www.dgsi.pt].


4. Relevam os seguintes factos, que se consideram assentes, em face da certidão[2] junta aos autos:

1. No dia 23-05-2019 teve lugar audiência de julgamento;

2. No mesmo dia a gravação ficou disponível para as partes;

3. Foi proferida sentença, que condenou a R. no pedido, a qual lhe foi notificada em 23-06-2019;

4. No dia 06-08-2019 a R. requereu cópia da gravação da audiência de julgamento do dia 23-05-2019;

5. No dia 13-08-2019 a R. invocou a falta ou deficiente gravação da audiência que teve lugar no dia 23-05-2019.


5. Dispõe o art. 155.º do Código de Processo Civil:

«1 - A audiência final de ações, incidentes e procedimentos cautelares é sempre gravada, devendo apenas ser assinalados na ata o início e o termo de cada depoimento, informação, esclarecimento, requerimento e respetiva resposta, despacho, decisão e alegações orais.

(...)

3 - A gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do respetivo ato.

4 - A falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada.

(...)».

O acórdão recorrido fundamentou a decisão nos termos que aqui se transcrevem:

«3. Não subsistem dúvidas de que, face ao disposto no n.º 1 do artigo 155º do Código de Processo Civil, a audiência final nas acções é sempre gravada, o que inclui necessariamente a gravação dos depoimentos e declarações nela prestados, e que pretendendo o recorrente impugnar a decisão sobre a matéria de facto, com fundamento nos depoimentos gravados, a faltar ou existirem deficiências nas gravações dos depoimentos está o recorrente impedido de dar cumprimento aos ónus de especificação exigidos no artigo 640º n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil, ficando coarctado de exercer plenamente o seu direito de recurso sobre a matéria de facto, e o tribunal ad quem fica impedido de proceder à reapreciação de tal matéria por falta de registo da prova ou de registo válido.

A falta ou a falha na gravação da prova constitui, assim, nulidade processual, nos termos definidos no n.º 1 do artigo 195º do Código de Processo Civil, pois trata-se de irregularidade susceptível de influir no exame e decisão da causa, desde logo por retirar ao recorrente a possibilidade de impugnar em sede de recurso o julgamento da matéria de facto, com fundamento na prova gravada.

4. Quanto ao prazo de arguição da aludida nulidade, não havia no regime anteriormente vigente unanimidade na jurisprudência, como nos dá conta o Acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 14/01/2010 (proc. n.º 4323/05.4TBVIS.C1.S1), e, mais recentemente, o Acórdão da Relação do Porto de 10/03/2015 (proc. n.º 1277/12.4TBFLG.P1), disponíveis, como os demais citados sem outra referência, em www.dgsi.pt.

Assim, uns defendiam que o prazo de arguição da dita nulidade era de dez dias (cf. artigo 153.º n.º 1 do anterior Código de Processo Civil), contados imediatamente após o termo da audiência de discussão e julgamento ou, pelo menos, da data da disponibilização do registo magnético pelo tribunal (cf., entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal da Justiça de 22/2/2001, 24/5/2001, 6/7/2006, 18/11/2008, 12/2/2009 e de 14/5/2009, proferidos nos processos n.ºs 3678/00-7.ª, 1362/01-7.ª, 1899/06-7.ª, 3328/08-6.ª, 47/09-6.ª e 40/09.4YFLSB-6.ª).

Outros, ainda, proclamavam que esse prazo de dez dias começava a contar da data limite em que a parte deveria ter solicitado a entrega da cópia do registo da gravação, nos termos do n.º 2 do art.º 7.º do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro (v.g. acórdãos do Supremo Tribunal da Justiça de 8/7/2003, na revista n.º 2212/03 e de 16/9/2008, na revista n.º 2261/08, ambas da 7.ª Secção).

Finalmente, outros entendiam que a aludida nulidade podia ser arguida dentro do prazo da alegação de recurso, salvo se se demonstrar que o reclamante teve conhecimento do vício mais de dez dias antes do termo desse prazo, podendo tal arguição ter lugar nessa própria alegação, por não ser exigível à parte (ou ao seu mandatário) que proceda à audição dos registos magnéticos antes do início do prazo do recurso (relativo à reapreciação da decisão sobre a matéria de facto), sendo que é no decurso deste prazo que surge a necessidade de uma análise mais cuidada do conteúdo dos referidos registos e, com ele, o conhecimento de eventuais vícios da gravação que podem ser alegados na própria alegação de recurso entretanto interposto (v.g. acórdãos do Supremo Tribunal da Justiça de 9/7/2002, na CJ - Acs. STJ - Ano X, tomo II, págs. 153 a 155, de 15/5/2008, de 1/7/2008, de 23/10/2008 e de 13/1/2009, estes proferidos nos processos 08B1099, 08A1806, 08B2698 e 08A3741, para além do já citado acórdão de 14/1/2010, no processo n.º 4323/05.4TBVIS.C1.S1, e da Relação do Porto de 27/03/2006, de 27/11/2008 e de 16/12/2009, proferidos nos processos n.ºs 0651069, 0836973 e 217/05.1TJVNF.P1).

5. Porém, ao contrário do que antes sucedia, agora o legislador tomou posição expressa sobre esta matéria no actual Código de Processo Civil (aplicável aos autos porque já vigente à data em que a acção foi instaurada), estipulando no artigo 155º que “a gravação [no caso da audiência de julgamento] deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do respectivo acto” (n.º 3), e que “a falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada” (n.º 4).

Deste modo, parece-nos claro que face ao aludido preceito as irregularidades ou deficiências da gravação dos depoimentos das testemunhas devem ser invocadas no prazo de 10 dias, a contar da disponibilização da gravação, a qual deve ocorrer nos 2 dias seguintes a contar da realização do acto, e tal irregularidade, que, como acima se referiu, constitui nulidade, deve, como tal, ser arguida perante o tribunal onde a mesma se verificou.

Do aludido preceito ressalta, não só o dever de o tribunal disponibilizar com brevidade a gravação da audiência, como, ao fixar-se o prazo de 10 dias para a arguição de eventuais irregularidades da gravação, torna-se clara a posição do legislador nesta matéria, com as inegáveis vantagens de certeza e segurança jurídicas, impondo-se ainda à parte um especial dever de diligência na verificação do conteúdo da cópia da gravação que lhe foi disponibilizada, por forma a poder arguir em tempo tais irregularidades e permitir a sua correcção antes de eventual recurso da sentença, obviando-se também os inconvenientes de posterior anulação de decisões.

Efectivamente, como se diz no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17/12/2014 (proc. n.º 927/12.7TVPRT.P1), «… o novo Código de Processo Civil fixou expressamente prazo para as partes arguirem o vício decorrente da falta ou deficiente gravação da prova, que, ao contrário do que antes sucedia, é sempre obrigatória em sede de julgamento, sendo esse prazo de 10 dias a contar da disponibilização do registo da gravação - que temporalmente poderá não corresponder ao levantamento pela parte do respectivo suporte -, devendo essa disponibilização ocorrer no prazo de dois dias contados de cada um dos actos sujeitos à gravação.

O vício em causa deve, assim, ser arguido em primeira instância, e no prazo peremptório agora legalmente estabelecido, sob pena de ocorrer, por decurso desse prazo, a sua sanação.

Daí afirmar-se que “a omissão ou deficiência das gravações é, após a entrada em vigor do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, um problema que deve ficar definitivamente resolvido ao nível da primeira instância, quer pela intervenção oficiosa do juiz que preside ao acto quer mediante arguição dos interessados”[Acórdão da Relação de Guimarães de 11.09.2014, processo nº 4464/12.1TMGMR.C1], deixando de ser admissível que a parte interessada na arguição o possa fazer no prazo de interposição do recurso – 30 ou 40 dias -, nas respectivas alegações.».

Idêntico entendimento é sufragado, entre outros, nos Acórdãos desta Relação de Guimarães, de 19/06/2014 e de 14/05/2015 (proc. n.º 1224/11.0TBVVD.G1 e n.º 853/13.2TBGMR.G1).

Este é também o entendimento defendido por ABRANTES GERALDES, para quem “[o] artigo 155º, n.º 4, veio resolver as dificuldades, impondo à parte o ónus de invocação da irregularidade no prazo de 10 dias a contar da data em que lhe tenha sido disponibilizada a gravação (disponibilização que deve ocorrer no prazo de 2 dias a contar do acto, nos termos do n.º 3), (…). Tratando-se de uma nulidade processual, terá de ser arguida autonomamente, sendo submetida a posterior decisão do juiz a quo, não sendo admitida a sua inserção imediata nas alegações de recurso.” (Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 130).

6. Ora, no caso em apreço, a Recorrente arguiu a dita nulidade no tribunal a quo, mas só o fez após a secretaria lhe ter entregue, a seu pedido, a cópia das gravações, defendendo, como se disse, a tempestividade da arguição da nulidade em causa no facto de a secretaria não ter antes dado conhecimento às partes da disponibilização das gravações da audiência.

Salvo o devido respeito, a tese defendida pela recorrente assenta num lapso interpretativo: o de que o comando ínsito na norma do n.º 3 do artigo 155º do Código de Processo Civil, onde se consigna que “a gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de 2 dias, a contar do respectivo acto”, implica que se dê conhecimento (comunique) às partes dessa disponibilidade, pelo que, na falta dessa comunicação, o prazo de 10 dias para arguir a deficiência da gravação se conta da entrega à parte da respectiva cópia.

Ora, como se concluiu no acórdão da Relação de Évora, de 12/10/2017 (proc. n.º 1382/14.2TBLLE-A.E1):

«1 – A disponibilização, às partes, da gravação da audiência final de acções, incidentes e procedimentos cautelares, nos termos do artigo 155.º, n.º 3, do CPC, consiste na simples colocação, pela secretaria judicial, da referida gravação à disposição das partes para que estas possam obter cópia da mesma.

2 – Tal disponibilização não envolve a realização de qualquer notificação, às partes, de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efectiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes.» (sublinhado nosso)

Como se diz neste aresto:

«…, em parte alguma a lei impõe que a secretaria realize a notificação referida pelo recorrente. Além de resolver as dúvidas que o regime anterior suscitava, foi intenção do legislador que o procedimento tendente à obtenção de cópia da gravação pelas partes seja o mais simples possível, sem necessidade de realização de qualquer notificação pela secretaria e tendo em vista garantir que algum problema que se verifique com a gravação seja resolvido com rapidez, no tribunal de primeira instância. Se fosse intenção do legislador que a secretaria notificasse as partes de que a gravação está disponível, certamente o teria estabelecido expressamente. Todavia, não é, manifestamente, isso que o n.º 3 do artigo 151.º faz.

Por outro lado, disponibilizar não é entregar o suporte digital da gravação às partes. Desde logo, porque, na língua portuguesa, estas duas palavras não são sinónimas. Disponibilizar é colocar algo à disposição de outrem, ainda que o terceiro assuma uma atitude de inércia e não aproveite tal disponibilidade. Entregar é mais que isso, é transferir algo para o poder, para as mãos de outrem. Na hermenêutica jurídica, tem de se partir do princípio de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (Código Civil, artigo 9.º, n.º 3, in fine), pelo que o verbo “disponibilizar” deve ser interpretado em sentido próprio e não como sinónimo de “entregar”. A tese do recorrente parte do princípio de que o legislador não se exprimiu adequadamente, utilizando o verbo “disponibilizar” quando queria dizer “entregar”. Ora, tal desconformidade entre a intenção do legislador e a forma como este se exprimiu não está demonstrada. Pelo contrário, a ponderação do resultado a que conduziria a interpretação proposta pelo recorrente confirma que o legislador se exprimiu correctamente ao utilizar o verbo “disponibilizar”. Como bem nota a decisão recorrida, se a contagem do prazo fixado no n.º 4 do artigo 155.º do CPC só se iniciasse a partir da entrega da gravação à parte, tal início ficaria na dependência do arbítrio desta. Bastaria que a parte não solicitasse a entrega da gravação ou, fazendo-o, não diligenciasse, depois, no sentido de ir recebê-la, para que aquela contagem não se iniciasse. Dessa forma, ficaria, na prática, a parte com a possibilidade de invocar a falta ou deficiência da gravação quando lhe aprouvesse, até à interposição de recurso da sentença. Ora, não foi, seguramente, isto que o legislador quis ao estabelecer os apertados prazos que as normas que vimos analisando estabelecem. Convém, a propósito, lembrar novamente o disposto no citado artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil: O intérprete deverá presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas. Atento o resultado a que conduz, a segunda tese que o recorrente propõe é tudo menos acertada.

Não se objecte com o argumento de que, na hipótese de a secretaria não disponibilizar (em sentido próprio) a gravação no prazo de dois dias a contar do acto, as partes ficariam injustamente penalizadas por verem comprimido o prazo para a reclamação prevista no n.º 4. Nessa hipótese, a parte terá o ónus de, através de requerimento dirigido ao juiz, suscitar a questão. Caso se confirme o incumprimento do prazo do n.º 3, o prazo do n.º 4 só começará a contar-se a partir do momento em que a secretaria passe a ter a gravação ao dispor das partes. É isto que decorre do n.º 4, ao estabelecer que o prazo de 10 dias para a arguição da nulidade decorrente da falta ou deficiência da gravação começa a contar-se no “momento em que a gravação é disponibilizada”.   

Veja-se, neste sentido, por exemplo, o Acórdão da Relação de Lisboa de 05.02.2015 (processo n.º 8/13.6TCFUN.L1-2), o qual, além do mais, enfatiza, bem, o dever das partes de cooperarem com o tribunal no sentido de eventuais irregularidades da gravação que possam comprometer a desejável celeridade no andamento dos autos serem remediadas o mais cedo possível.  

Estamos, portanto, perante um regime que, visando resolver eventuais situações de falta ou insuficiência da gravação com celeridade e de forma a evitar, em toda a medida do possível, a anulação de actos processuais subsequentes, é, ainda assim, equilibrado, na medida em que, através do n.º 4, salvaguarda as partes quando a secretaria não cumpra o prazo fixado no n.º 3. (…)»

7. No mesmo sentido, veja-se, ainda, o acórdão da Relação de Coimbra, de 25/09/2018 (proc. n.º 7839/15.0TBLSB-A.C1), e demais jurisprudência nele referida, onde se concluiu que:

«(…)

II - A disponibilização, às partes, da gravação da audiência final de acções, incidentes e procedimentos cautelares, nos termos do artigo 155.º, n.º 3, do CPC, consiste na simples colocação, pela secretaria judicial, da referida gravação à disposição das partes para que estas possam obter cópia da mesma.

III - Tal disponibilização não envolve a realização de qualquer notificação às partes, de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efectiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes. (sublinhado nosso)

IV – Foi intenção do legislador que o procedimento tendente à obtenção de cópia da gravação pelas partes seja o mais simples possível, sem necessidade de realização de qualquer notificação pela secretaria e tendo em vista garantir que algum problema que se verifique com a gravação seja resolvido, com rapidez, no tribunal de primeira instância. (…)»

8. Em suma, como resulta destes arestos, a cuja fundamentação aderimos, com a reforma de 2013, o legislador processual civil pretendeu esclarecer a controvérsia existente à luz do regime processual pretérito no que concerne ao prazo para arguir a nulidade decorrente da omissão ou deficiência da gravação, afastando o entendimento de que o início da contagem do prazo para a invocação de eventual deficiência da gravação dos depoimentos fica dependente da livre iniciativa da parte quanto ao momento da obtenção da gravação, sem qualquer limitação temporal (para além da que decorreria do prazo de apresentação do recurso da decisão final).

O estabelecimento na lei de que a gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias, a contar do respectivo acto, não envolve a realização de qualquer notificação às partes, de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efectiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes, quando estas o requeiram.

O prazo previsto no n.º 4 do artigo 155º do Código de Processo Civil, a contar da referida disponibilização, faz recair sobre as partes um dever de diligência que as onera com o encargo de diligenciarem pela rápida obtenção da gravação dos depoimentos, que são disponibilizados no prazo máximo de 2 dias, a contar do acto em causa, e, num prazo curto (10 dias), averiguarem se tal registo padece de vícios, a fim de que os mesmos sejam sanados com celeridade perante a primeira instância.

9. Assim, verificando-se que, no caso, estão em causa as gravações da audiência de 23/05/2019, que foram gravadas, como consta indicado na respectiva acta, e ficaram disponíveis na mesma data, como se consignou no despacho recorrido, o prazo de 10 dias para arguir a nulidade decorrente da “deficiência das gravações” iniciou-se naquela data, pelo que tendo a dita nulidade sido apenas invocada em 13/08/2019 (cf. fls. 386-389), após se ter solicitado cópia das gravações 06/08/2019, a mesma foi invocada após o decurso do prazo legal, estando, por conseguinte, sanada, como se decidiu.

Deste modo, improcede a apelação, com a consequente confirmação da decisão recorrida» [negritos nossos]

A circunstanciada fundamentação do acórdão da Relação, que aqui transcrevemos, merece a nossa inteira concordância. Tanto a evolução histórica como a letra e a teleologia da norma do n.º 4 do art. 155.º do Código de Processo Civil se orientam no sentido propugnado pelo acórdão recorrido e claramente sintetizado no respectivo sumário:

«I. A disponibilização, às partes, da gravação da audiência final de acções, incidentes e procedimentos cautelares, nos termos do artigo 155.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, consiste na simples colocação, pela secretaria judicial, da referida gravação à disposição das partes para que estas possam obter cópia da mesma, a qual deve ocorrer no prazo de dois dias a contar do respectivo acto.

II.    Tal disponibilização não envolve a realização de qualquer notificação, às partes, de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efectiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes.

III.     A lei impõe à parte um especial dever de diligência na verificação do conteúdo da cópia da gravação que foi disponibilizada, por forma a poder arguir em tempo eventuais irregularidades e permitir a sua correcção antes de eventual recurso da sentença, obviando-se também os inconvenientes de posterior anulação de decisões».

Para além das asserções constantes deste sumário, importa apenas realçar como se opera a conjugação entre o prazo de dois dias previsto no n.º 3 do art. 155.º do CPC (para a gravação ser disponibilizada às partes) com o prazo de dez dias do n.º 4 do mesmo artigo (para a arguição da deficiência ou da falta da gravação). Também aqui recorrendo às palavras do acórdão recorrido:

«Na hipótese de a secretaria não disponibilizar (em sentido próprio) a gravação no prazo de dois dias a contar do acto (...) a parte terá o ónus de, através de requerimento dirigido ao juiz, suscitar a questão. Caso se confirme o incumprimento do prazo do n.º 3, o prazo do n.º 4 só começará a contar-se a partir do momento em que a secretaria passe a ter a gravação ao dispor das partes». [negrito nosso]

Com este importante esclarecimento, afigura-se que a interpretação do n.º 4 do art. 155.º do CPC, adoptada no acórdão recorrido respeita o princípio da proporcionalidade dos ónus, cominações e preclusões impostos pela lei processual, princípio que, na lição de Lopes do Rego («Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil», in Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, pág. 835), constitui uma manifestação do princípio da proporcionalidade das restrições, consagrado no art. 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, e da garantia do processo equitativo, consagrada no art. 20.º, n.º 4, da Constituição.


6. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.


Custas pela Recorrente.


Lisboa, 8 de Setembro de 2021


Nos termos do art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade das Exmas. Senhoras Conselheiras Maria Rosa Tching e Catarina Serra que compõem este colectivo.


Maria da Graça Trigo (relatora)

______

[1] Relatado pela Senhora Conselheira Catarina Serra, 2.ª Adjunta no presente acórdão.
[2] A certidão é composta apenas pelo despacho que considerou sanada a nulidade invocada e, bem assim, pelas alegações e contra-alegações da apelação. O facto 3 foi considerado em face do alegado pela R. nas alegações de recurso (pág. 3 da certidão).