ACORDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ACLARAÇÃO
INCIDENTE ANÓMALO
INADMISSIBILIDADE
PROCESSO PENAL
OBSCURIDADE
AMBIGUIDADE
INDEFERIMENTO
Sumário


I -    O pedido de “aclaração” do acórdão não tem consagração legal no processo penal e, com a reforma operada pela Lei n.º 41/2013 de 26 de junho, desapareceu do processo civil.
II - O “esclarecimento da sentença”, que estava previsto no art. 669.º n.º 1 al. a), do anterior CPC, foi abolido restando daquela norma apenas a “reforma da sentença” quanto a custas e multa.
III - No CPP institui-se, no art. 380.°, um regime próprio de correção das decisões judiciais, atribuindo ao Juiz ou ao Tribunal que proferiu a decisão a possibilidade de a expurgar de “erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade” que possa conter, contudo, sem que a correção possa ir além ou ficar aquém daquilo que, bem ou mal, está decidido.
IV - Entenderem os sujeitos processuais que o Tribunal, decidiu mal, de forma incorreta, em sentido contrário ao preconizado pelos mesmos, é coisa totalmente diversa da existência de erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade do acórdão visado.

Texto Integral


O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção criminal, em conferência, acorda:


A. RELATÓRIO:

1. a decisão visada:

Este Supremo Tribunal, pelo acórdão proferido no processo em epigrafe, em 7 de julho corrente, fazendo uso dos poderes conferidos pelo art.º 434º, 1º parte, do CPP, decidiu:

a) declarar que a decisão recorrida em matéria de facto relativamente à facticidade vertida nos pontos 7 e 8 da facticidade julgada provada enferma de erro notório na apreciação da prova – art. 410º n.º 2 al.ª c) do CPP;

b) em consequência, anula-la, decretando o reenvio do processo ao tribunal recorrido para, em novo julgamento, corrigir ou reenviar os autos à 1ª instância para novo julgamento, relativamente à totalidade do objeto do processo, nos termos dos artºs 426º, nºs 1 e 2, e sem prejuízo do disposto no art. 426º-A, ambos do CPP.

2. o requerimento do arguido:

O arguido, notificado daquela decisão, veio “requerer a ACLARAÇÃO, desse mesmo acórdão, de molde a ser compreensível para o recorrente, o que ali se fez constar, de modo a que se possa tomar a posição que se impuser, quer em sede do STJ, quer em sede de TC, bem como do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem”.

Argumenta, em síntese, que o seu recurso para o STJ visava, exclusivamente, o reexame de matéria de direito, pelo que, afirma, a decisão recorrida em matéria de facto transitou em julgado, sendo “como tal, insuscetível de ser alterada ou posta em crise”.

B. FUNDAMENTAÇÃO:

1. o direito:

Nota-se que o arguido omitiu a indicação de qualquer dispositivo legal no qual pudesse amparar o seu pedido de “aclaração” do acórdão visado. Omissão criteriosa, porque aquele instituto adjetivo não tem consagração legal no processo penal e, com a reforma operada pela Lei n.º 41/2013 de 26 de junho, foi abolido também do CPC.

i. inexistência do instituto da aclaração:

Quanto à lei adjetiva civil, conforme a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem uniformemente interpretado e aplicado[1], o “esclarecimento da sentença” - que estava previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 669.º do anterior CPC, foi abolido, desaparecendo do regime processual civil, restando daquela norma apenas a “reforma da sentença” quanto a custas e multa (regime aplicável aos acórdãos) – cfr. arts. 616º e 666º n.º 2 do vigente CPC. Manteve-se a “retificação de erros materiais” – art. 614º (art. 667º do anterior Cód.) e o regime das “causas de nulidades da sentença” – art. 615º (anterior art. 668º). 

Este Supremo Tribunal, no Ac. de 25/11/2020, entendeu que “o Código de Processo Civil em vigor não consagra a possibilidade de aclaração das obscuridades ou ambiguidades da decisão ou dos seus fundamentos, nos termos que resultavam da alínea a) do n.º 1 do artigo 669.º do anterior código”[2].

No Ac. de 15/10/2020, sustentou-se que “a figura da aclaração de sentença deixou de existir a partir da reforma processual civil de 2013 (Lei n.º 41/2013, de 26.06), cujo art.º 615.º, n.º 1, alín. c), do NCPC passou a integrar o vício da ininteligibilidade da sentença, v. g. por ambiguidade, no elenco das causas de nulidade, sendo que o CPP dispõe no art.º 380.º de norma própria para arguição e conhecimento de tal vício em processo penal, aplicável aos acórdãos por força do art.º 425.º, n.º 4”[3]

Em conformidade com o exposto, conclui-se, que o pedido de aclaração apresentado pelo arguido não colhe amparo no regime processual civil vigente.

ii. regime processual penal:

Tem este Supremo Tribunal entendido, pacificamente, que o regime dos recursos no processo penal, em matéria criminal, está regulado autónoma e completamente no CPP.

No regime adjetivo penal não se admitem pedidos de aclaração de sentença ou acórdão.

No CPP instituiu-se, no art. 380°, um regime próprio de correção das decisões judiciais, atribuindo ao Juiz ou ao Tribunal que proferiu a decisão – despacho, sentença, decisão sumária, acórdão - a possibilidade de corrigir erros, lapsos, obscuridade ou ambiguidade que possam ostentar. Contudo, a correção não pode ir além ou ficar aquém daquilo que, bem ou mal, decidiu, ou, na expressão da lei, não pode importar modificação essencial da decisão.

Conforme sustentado no Ac.de 12-05-2021[4] a regra é a da estabilidade das decisões judiciais. Uma vez proferida a decisão fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do tribunal. quanto à matéria da causa. Proibindo-se, assim, que o juiz, ou o tribunal modifiquem a sua decisão e/ou a motivação que a fundamenta.

Todavia, haverá que reconhecer que, por melhor trabalhada que tenha sido, pode, por desconexões várias, apresentar desarmonias internas que, sendo eliminadas, todavia não modificam o julgado e os fundamentos em que se alicerçou.

Por isso, o legislador processual penal, preservando aquela regra do auto-esgotamento do poder de julgar, consagrou regime específico que autoriza o mesmo juiz ou tribunal a, por sua iniciativa ou mediante requerimento, expurgar do acórdão que proferiu de “erros, lapsos, obscuridades ou ambiguidades cuja eliminação não importe modificação essencial” da decisão – arts. 425º n.º 4 e 380 n.º 1, al.ª b), ambos do CPP.

Erro, para efeito do regime legal em análise é somente o de expressão ou de cálculo, nunca o erro de apreciação nem o erro de raciocínio. Corrigível é, assim, apenas o defeito da decisão que ocorre quando o juiz mencionou nomes, empregou palavras e frases ou utilizou números que, manifestamente, não exprimem corretamente o seu raciocínio. Erro é unicamente aquele que a mera leitura do acórdão imediatamente demonstra, evidenciando que os nomes que refere, determinada palavra ou alguma expressão, certos algarismos e operações de cálculo surgem ali manifestamente descontextualizados. Em registo diferente, a mão que escreveu traiu o pensamento de quem a comandava. Alberto dos Reis, exemplifica com a situação em que o juiz queria escrever “absolvo”, mas, por distração ou cansaço, escreveu precisamente o contrário, “condeno” [1], quando a fundamentação evidencia inequivocamente que a decisão pensada era inequivocamente absolutória.

Se o erro de escrita ou de cálculo não se depreende claramente do texto do acórdão, não admite correção nos termos das normas citadas.

Lapso, para efeito da norma em apreço, é essencialmente o lapsus calami, resultante de gralhas, da omissão ou interposição de palavras, frases ou números, designadamente por menor atenção, pressa ou descuidado, que patentemente ficaram por escrever ou surgem fora do contexto.

Obscuridade é a falta de claridade, a ininteligibilidade da decisão. Obscuro é o acórdão de difícil compreensão, que contenha algum passo ininteligível, cujo sentido exato não pode alcançar-se.

Ambiguidade significa ambivalência, pluralidade de sentidos, dúvida. Ambíguo é o acórdão confuso, de sentido dúbio, que contém alguma passagem equivoca, que se presta, razoavelmente, a interpretações diferentes. Que diz uma coisa e o seu contrário. Ao qual podem razoavelmente atribuir-se dois ou mais sentidos diferentes. Conforme se sustenta no Ac. de 20/07/2006 deste Supremo Tribunal, “a ambiguidade só releva se vier a redundar em obscuridade, ou seja, se for tal que não seja possível alcançar o sentido a atribuir ao passo da decisão que se diz ambíguo[5].  

Entenderem os sujeitos processuais que o tribunal, decidiu mal, de forma incorreta, em sentido contrário ao preconizado pelos mesmos, é coisa totalmente diversa da existência de erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade do acórdão.

2. no caso:

O requerente não aponta qualquer erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade que tenha detetado em alguma passagem do acórdão visado, seja na fundamentação, seja no dispositivo.

Nota-se que compreendeu muito bem e completamente o decidido no acórdão visado. Tanto assim que, argumenta, ter o decidido ofendido o que diz ser o caso julgado em matéria de facto.  Nenhuma dúvida manifestando, pois, quanto aos fundamentos ao sentido e aos efeitos do jugado.  

Tendo percebido muito bem o dispositivo e os argumentos do Acórdão visado, limita-se, pois, a discorda, que o Supremo Tribunal tenha, oficiosamente, mas em estrita conformidade com o estabelecido no art.º 434º do CPP, anulado o acórdão recorrido e determinado o reenvio total para que o tribunal a quo, em novo julgamento, corrija o patente erro notório de que enferma a decisão em matéria de facto, especificadamente apontado e justificado (concretamente na facticidade levada aos pontos 7 e 8 dos factos provados).

Com o requerimento aqui em apreciação pugna, isso sim, pela modificação essencial do decidido, pretendendo reverter a decisão anulatória e o reenvio total.

Como escreveu o Prof. José Alberto dos Reis, no "Cód. Proc. Civil Anotado", V, págs., 151/152, "já se tem feito uso do pedido de aclaração, não para se esclarecer obscuridade ou ambiguidade realmente existente, mas para se obter, por via oblíqua, a modificação do julgado. A título ou a pretexto de esclarecimento o que, na verdade, se visa é a alteração da sentença. Os tribunais têm reagido, e bem, contra tais tentativas, votando-as ao malogro".

Não é essa a finalidade e seguramente não pode ser esse o alcance da correção do acórdão consentida pelas citadas normas adjetivas.

Conforme se salientou, de aclaramento só carece a decisão que é obscura ou ambígua.

A fundamentação e o dispositivo do acórdão visado são explícitos, abundantes e inequívocos, não contendo erros de escrita ou quaisquer outros defeitos que dificultem a sua fácil compreensibilidade pelo arguido ou por qualquer outra pessoa.

Sendo tudo – a fundamentação e a decisão -, meridianamente claro, nada há que careça de esclarecimento.


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Em nota final muito breve, não se compreende o teor do vertido nos pontos 7 a 10 do requerimento em apreço, ao referir os seguintes termos ou expressões:

Com o termo “renitente”, no contexto em que surge - como o recorrente bem deve ter compreendido -, quis-se, simplesmente e unicamente, dizer que o recorrente foi insistente, persistente, que não desistiu da via recursiva. Não se vislumbra como pode aquele termo ofender quem insiste, persistente e não desiste de perseguir, licitamente, os seus objetivos. É até digno de admiração.

Quanto à qualificação das conclusões dispensamo-nos aqui de a evidenciar, remetendo para a leitura, atenta, do respetivo texto, sem perder de vista que o recurso deveria limitar-se a tratar questões de direito.

Como é inequivocamente patente a expressão: “qualquer jurista com mediana formação e experiência de vida”, não se refere ao recorrente que nem sequer tem essa formação. Nem muito menos, direta ou indiretamente, ao ilustre causídico subscritor da peça recursória, Tão evidente assim é que os argumentos esgrimidos no respetivo recurso não foram sequer conhecidos. Reporta - como o recorrente certamente percebeu -, ao “medium litteratus iurisconsultus” suposto pela ordem jurídica. Ao jurista padrão, no qual, no fim de contas, todos, juízes, magistrados, advogados, professores, juristas, nos incluímos.

Finalmente as leituras precipitadas e descontextualizadas podem facilmente induzir a interpretações meramente subjetivas, que desvirtuam o texto escrito e o pensamento de quem o elaborou. Como exemplarmente ilustra a expressão com que o Requerente remata o ponto 10 do seu petitório. Certamente que não terá querido, com aquela expressão, confundir funções, adjetivando os Juízes Conselheiros que subscrevem o acórdão de “partes envolvidas” no processo, colocando-os ao nível dos sujeitos processuais.

C. DECISÃO:

Termos em que, o Supremo Tribunal de Justiça, 3ª sessão decide:

a) Indeferir, por infundada, a requerida “aclaração”;

b) manter, integralmente, o acórdão visado.

Condena-se o arguido nas custas do incidente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.


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Lisboa, 14 de julho de 2021

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Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro relator)

(Atesto o voto de conformidade do Ex.mº Sr. Juiz Conselheiro Paulo Ferreira da Cunha – art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março na redação dada pelo DL n.º 20/2020 de 1/05 aplicável ex vi do art.º 4 do CPP)[6] .

Paulo Ferreira da Cunha (Juiz Conselheiro adjunto)

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1 Vd. Acs. a seguir citados.
[2] Proc. 3283/18.6T8MTS.P1.S1 im www.dgsi.pt
[3] Proc. 2275/15.1JAPRT.P2.S1, in www.dgsi.pt.
[4] (proc. 143/17.1GDEVR.E1.S1   deste Supremo Tribunal (3ª sec.ª), in www.dgsi.pt.
[5] Proc. 06P1246, in www.dgsi.pt.
[6]   Artigo 15.º-A: (Recolha de assinatura dos juízes participantes em tribunal coletivo)
A assinatura dos outros juízes que, para além do relator, tenham intervindo em tribunal coletivo, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 153.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, pode ser substituída por declaração escrita do relator atestando o voto de conformidade dos juízes que não assinaram.