ALCOOLÍMETROS
PROVA VÁLIDA
Sumário

É válida a prova obtida por alcoolímetros, ainda que volvidos aqueles 10 anos sobre a aprovação pelo IPQ do alcoolímetro utilizado, desde que hajam sido submetidos a verificação metrológica, ou de bom funcionamento, como aconteceu.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.


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No âmbito deste processo foi o arguido FA condenado, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º, nº 1, do Código Penal, na pena de 60 dias de multa à razão diária de €5,50, bem como em proibição de conduzir veículos com motor por um período de quatro meses.

Interpôs o arguido o presente recurso concluindo:
A. O Recorrente insurge-se contra à validade e à valoração que o Tribunal a quo deu à prova do Teor de Álcool no Sangue (adiante abreviadamente designado por “TAS”) que levou à condenação do Recorrente, bem como à desvalorização da inimputabilidade do Recorrente em razão de anomalia psíquica, do erro sobre as circunstâncias do facto e sobre a ilicitude. Porquanto,
B.É manifesto que, por um lado, o Alcoolímetro utilizado na fiscalização rodoviária, à data em que o Recorrente foi submetido a teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue, encontrava-se fora de validade nos termos legais, o que inquina a validade da prova obtida pelo mesmo (quantificação do TAS), e por outro, a perturbação obsessiva compulsiva grave (POC) de que o Recorrente padece conduziu-o, à data da prática do facto ilícito, a um estado de inimputabilidade e a cair no erro sobre as circunstâncias do facto e sobre a ilicitude.
C. O Tribunal a quo errou na apreciação e valoração da seguinte matéria, pelo que, não se pode deixar de lhe tecer a merecida censura, por tais factos não corresponderem à verdade, a saber:
“2.-Tal taxa resultou da ingestão voluntária de bebidas alcoólicas por parte do mesmo.
3.- Este, quando iniciou a marcha do referido veículo sabia estar sob o efeito do álcool e admitia que a TAS que o afectava era, pelo menos, igual a 1,20 g/l.
4.- Indiferente, porém, a tal condição, não se coibiu de tripular o veículo na situação supra descrita, sabendo não o poder fazer.
5.- Agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.”
D. Também não se pode deixar de censurar a apreciação e a valoração dada aos factos não provados, porquanto considerando a prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, é manifesto que aqueles deveriam ter sido considerados por provados. Para tal, atente-se:
a)- As declarações do Recorrente gravadas e constantes de suporte digital (Ficheiro de Áudio n.º - 20210217145007_19743675_3994046), com início de gravação em 17 de fevereiro de 2021, das 14:48:07 às 14:49:26 (00:00:00 a 00:25:13), designadamente as transcrições e as passagens da gravação indicadas no artigo 10.º da motivação do recurso;
b)- O depoimento da testemunha do Recorrente, FC, Psicólogo do Recorrente, gravadas e constantes de suporte digital (Ficheiro de Áudio n.º - 20210217154912_19743675_3994046), com início de gravação em 17 de fevereiro de 2021, das 14:49:12 às 16:12:33 (00:00:00 a 00:23:20), designadamente as transcrições e as passagens da gravação que constam no artigo 11.º da motivação do recurso; e
c)- O depoimento da testemunha do Recorrente, ML, Psiquiatra do Recorrente, gravadas e constantes de suporte digital (Ficheiro de Áudio n.º - 20210217161315_19743675_3994046), com início de gravação em 17 de fevereiro de 2021, das 16:13:16 às 16:41:37 (00:00:00 a 00:28:21), designadamente as transcrições e as passagens da gravação que constam no artigo 12.º da motivação do recurso; que aqui se dão por integralmente por reproduzidas por razões de economia processual.
E.Ponderada a prova produzida em audiência final (por declarações de Recorrente, testemunha e documental, designadamente a informação clínica prestada pela Dra. ML), o Tribunal a quo só poderia ter proferido uma decisão absolutória, ao invés da decisão condenatória contestada com o presente recurso. Isto porque, conforme foi provado em sede de julgamento,
F.O Recorrente padece de uma POC grave, caracterizada por obsessões recorrentes (pensamentos indesejados e incontroláveis) e comportamentos repetidos de forma compulsiva, as quais são incompatíveis com o consumo de álcool. A POC é uma doença psiquiátrica crónica classificada como uma doença mental, que caracteriza-se por obsessões recorrentes (como pensamentos e imagens intrusivos, indesejados e incontroláveis) e comportamentos ou rituais repetidos de forma compulsiva, que deriva  de um distúrbio de ansiedade intensa e de ataques de pânico, que mantém o Recorrente num estado de vigília e alerta emergente de sentimentos de medo e insegurança e sentimentos de culpa, em que os pensamentos de proteção surgem para dar resposta a hipotéticas/imagináveis situações potencialmente perigosa.
G. Ficou provado que o Recorrente, à data da prática do facto ilícito não estava em condições de tomar boas decisões e, por conseguinte, não tinha o discernimento para distinguir o certo do errado e para pensar que não poderia conduzir o seu veículo automóvel depois de ter ingerido bebidas alcoólicas. Tal como foi atestado pelo Dr. FC, psicólogo do Recorrente, “ele estava limitado na sua capacidade de tomar boas decisões”; “ele não estava na plena totalidade das suas faculdades mentais para tomar boas decisões, nem emocionais porque as nossas decisões são tomadas com base nas nossas emoções e nos nossos pensamentos.”
H.Foi ainda afirmado pela Dra. ML, medida psiquiátrica que acompanha o Recorrente há largos anos, que clinicamente falando o Recorrente não tinha condições para tomar boas decisões antes da prática do facto ilícito, tendo, para tal, argumentado que “A ansiedade atinge níveis de tal forma elevados que deixa de haver uma capacidade de ser muito racional. Portanto, acredito que a única coisa que ele quisesse era sair dali. De qualquer maneira”; “É aquilo que nós chamamos “pensamento em túnel”. Portanto, é sempre em frente.”
I.Deste modo, dúvidas não subsistem em como o Recorrente não tinha condições para, naquele momento, compreender que ao conduzir um veículo automóvel com um TAS superior ao legalmente permitido estaria a cometer um ilícito criminal.
Ademais,
J.Atento o teor do relatório pericial junto aos autos, no qual o Tribunal a quo ancorou grande parte da fundamentação para condenar o Recorrente, por um lado, e a prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento pelo Dr. FC e pela Dra. ML, por outro, é manifesto que as conclusões e as repostas dadas aos quesitos nesse relatório não podem ser valoradas, porquanto o perito que elaborou o mencionado relatório não tem um conhecimento firme e profundo sobre a patologia de que o Recorrente padece e, por conseguinte, do grau de gravidade da mesma e do quantum essa doença afeta a capacidade do Recorrente em momentos de crise, ou seja, em momentos que não está medicado e é alvo de uma crise.
K.Isto porque, o perito desse relatório nunca fez um acompanhamento médico ao Recorrente, tendo apenas tido contacto com o Recorrente numa mera consulta médica de psiquiatria que serviu de base para elaborar o relatório, quando o Recorrente se encontrava medicado e estabilizado, ao invés do que aconteceu no dia 17 de fevereiro de 2019 aquando da prática do facto ilícito. Medicação essa que tem que ser levada em grande consideração devido à sua composição e aos efeitos que causa no paciente para o qual é prescrita.
L.Destarte, observando o depoimento prestado pelo Dr. FC e pela Dra. ML em audiência de julgamento que, note-se, acompanham o Recorrente há largos anos e, por isso mesmo, demonstram um conhecimento firme e profundo sobre a gravidade da patologia de que o Recorrente padece, bem como sobre o quantum essa doença o afeta em momentos de crise por ausência de medicação, é manifesto que, o Recorrente, antes de iniciar a condução do seu veículo automóvel, encontrava-se numa crise de ansiedade tal que não lhe permitia ter capacidade para tomar boas decisões e saber distinguir o certo do errado, ou seja, capacidade para saber e para refletir que não poderia conduzir depois de ter ingerido bebidas alcoólicas, por tal ser proibido por lei.
M.Pelo que, nos termos do disposto no n.º 1, do art.º 163.º, do CPP, que dispõe que a “(...)
prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador”, o Tribunal a quo deveria ter divergido do juízo contido no relatório pericial e, por seu turno, declarar a inimputabilidade acidental do Recorrente no momento da prática do facto de que vem acusado, nos termos do citado n.º 1, do art.º 20.º, do CP, com a consequente absolvição do Recorrente nos presentes autos, ou declarar que o Recorrente, aquando da prática do facto ilícito de que vem acusado, caiu em erro sobre as circunstâncias do facto e/ou sobre a ilicitude do mesmo em virtude da doença que padece, por naquele momento não ter consciência dos seus atos, nos termos do n.º 1, do art.º 16.º, e do n.º 1, do art.º 17.º, ambos do CP, com a consequente absolvição do Recorrente. Porquanto,
N. Note-se, pese embora a prova pericial ter sido efetuada por um perito, a verdade é que a mesma não tem mais valor que a prova testemunhal produzida pelo Recorrente em sede de audiência de julgamento, por essas testemunhas terem a mesma profissão que esse perito e, por conseguinte, os mesmos conhecimentos técnicos, nomeadamente a Dra. ML. Razão pela qual, os depoimentos das testemunhas têm tanto ou mais valor que o relatório pericial, ponderando o conhecimento que têm da patologia do Recorrente devido ao acompanhamento clínico que lhe fazem há bastantes anos.
Da inimputabilidade do Recorrente em razão de anomalia psíquica.
O.Dúvidas não subsistem de que o Recorrente padece de uma POC grave, que se trata de uma doença psiquiátrica crónica classificada como uma doença mental.
P.Também não existem dúvidas de que, devido à doença que padece, e ao facto de ter deixado de tomar radicalmente a medicação prescrita pela sua psiquiatra, o Recorrente deixou de ter noção e consciência dos seus atos momentos antes da prática do facto ilícito pelo qual foi condenado, ou sejam momentos antes de sair do Bar e até chegar ao Posto da GNR.
Q.Destarte, considerando que o Recorrente se encontrava incapaz de, no momento da prática do facto, avaliar a ilicitude do mesmo, ou de se determinar de acordo com essa avaliação, deverá o Recorrente ser declarado inimputável aquando da prática do facto, nos termos do citado n.º 1, do art.º 20.º, do CP.
Do erro sobre as circunstâncias do facto e sobre a ilicitude.
R.É indubitável que o Recorrente, por força da doença que padece, deixou de ter noção e consciência dos seus atos momentos antes de sair do Bar e até chegar ao Posto da GNR, bem como uma correta orientação da consciência ética e, por sua vez, aquando da prática do facto, não tinha a noção de que estava a conduzir o seu veículo automóvel com, alegadamente, um TAS superior ao permitido por lei, e que por isso estava a praticar um crime.
S.Assim, é manifesto o erro do Recorrente sobre as circunstâncias do facto e sobre a ilicitude do mesmo em virtude da doença que padece, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do art.º 16.º, e do n.º 1, do art.º 17.º, ambos do CP.
Da nulidade do valor probatório por falta de validade Alcoolímetro.
T.Como é sabido, os instrumentos de medição, designadamente os Alcoolímetros ou analisadores quantitativos utilizados para medir a concentração mássica de álcool por unidade de volume na análise do ar alveolar expirado (art.º 1.º e n.º 1, do art.º 2.º da Portaria n.º 1556/2007, de 10 de Dezembro, que aprovou o Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros - RCMA), estão sujeitos a homologação/aprovação do  Instituto Português da Qualidade, I.P. (IPQ), nos termos do n.º 3, do art.º 1.º, n.º 1, do art.º 2.º, da alínea b), do n.º 1, do artigo 8.º, todos do Decreto-Lei n.º 291/90, de 20 de Setembro, do n.º 5.1, da Portaria n.º 962/90, de 9 de Outubro, e do art.º 6.º, da Portaria n.º 1556/2007, de 10 de Dezembro.
U.Outrossim, estão ainda sujeitos a aprovação por despacho do Presidente da Autoridade  Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), nos termos do art.º 1.º e do art.º 14.º, ambos do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas (RFCIASP), aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio, conjugado com a alínea f) do n.º 2 do art.º 2.º, e alínea b) do n.º 1 do art.º 4.º, ambos do Decreto Regulamentar n.º 28/2012, de 12 de março, para serem utilizados pelas forças de segurança nas operações de fiscalização do trânsito.
V.Após a aprovação da ANSR e do IPQ, os Alcoolímetros ficam ainda sujeitos a uma verificação periódica legal a realizar anualmente pelo IPQ, nos termos do n.º 1 e n.º 2, do art.º 7.º, do RCMA.
W.Ainda no que respeita à matéria de aprovação de Alcoolímetros, estabelece o n.º 3, do art.º 6º, do RCMA, aprovado pela Portaria n.º 1556/2007, de 10 de dezembro, que “a aprovação de modelo é válida por 10 anos, salvo disposição em contrário no despacho de aprovação de modelo”. (negrito nosso)
X.Posto isto, apesar de o Alcoolímetro ter sido aprovado pelo Instituto IPQ, por Despacho n.º 11037/07, de 24 de abril de 2007 (modelo n.º 211.06.07.3.06), publicado no Diário da República n.º 109, 2.ª Série, de 6 de junho de 2007, bem como aprovado pela ANSR por Despacho n.º 19684/2009, publicado no Diário da República n.º 166, 2.ª Série, de 27 de agosto de 2009, e, supostamente, verificado em 29 de outubro de 2018, nos termos do n.º 1 e n.º 2, do art.º 7.º, do RCMA, a verdade é que o valor probatório produzido por aquele não deveria ter sido admitido pelo Tribunal a quo, por imposição do princípio da legalidade ínsito no art.º 125.º, do CPP, que estabelece que “são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei”.
Y.Pois, considerando a data da prática da infração, é manifesto que, aquando da realização do teste a que o Recorrente foi submetido, o prazo de 10 anos de aprovação do Alcoolímetro, imposto pelo n.º 3, do art.º 6º, do RCMA, aprovado pela Portaria n.º 1556/2007, de 10 de dezembro, já se encontra largamente ultrapassado, e, por seu turno, ao abrigo princípio da legalidade ínsito no art.º 125.º, do CPP, o valor probatório do Alcoolímetro não deveria ter sido admitido por padecer de nulidade, uma vez que trata-se de prova legal vinculada à existência de homologação e aprovação do Alcoolímetro, e, por seu turno, esse é o único elemento de prova que pode conduzir à  prova dos factos de que o Recorrente vem acusado.
Da nulidade do valor probatório por violação das garantias de defesa do Recorrente.
Z.O Recorrente requereu a realização de prova pericial sobre o Alcoolímetro para prova de que o mesmo não estava devidamente calibrado e em condições se ser utilizado pelas autoridades e, por conseguinte, ser declarado nulo o facto constitutivo da infração. Porém, o Tribunal a quo simplesmente ignorou a pretensão do Recorrente e, por seu turno, não ordenou a realização de uma peritagem ao Alcoolímetro para apurar a calibragem e as condições do mesmo para ser utilizado nas operações de fiscalização do trânsito. Isto quanto, pasme-se, se trata de um aparelho que está fora de validade conforme supramencionado.
AA.Razão pela qual, o princípio do inquisitório e da descoberta da verdade material ínsitos no n.º 1, do art.º 340.º, do CPP, a que o Tribunal a quo está vinculado, foram manifestamente violados e, por sua vez, foram violadas as garantias de defesa do Recorrente constitucionalmente consagradas no n.º 10, do art.º 32.º, da CRP.
Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
BB. Ainda sobre o pedido de realização de prova pericial sobre o Alcoolímetro, é manifesto que o Tribunal a quo, para além de não ter atendido ao pedido do Recorrente, não se dignou sequer a pronunciar sobre essa pretensão e sobre a (des)necessidade de realização da mesma para a descoberta da verdade material.
CC.Com efeito, o Tribunal a quo está vinculado aos princípios do inquisitório e da verdade material e, in casu, tais princípios não foram respeitados.
DD.Destarte, não tendo o Tribunal a quo pronunciado sobre esta matéria, dada a sua importância, é indubitável que a sentença padece de nulidade nos termos do disposto na al. c), do n.º 1, do art.º 379.º, do CPP, que estabelece que “É nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
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A Digna Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância pugnou fosse negado provimento ao recurso e mantida a sentença recorrida, concluindo:
1.- Quanto ao valor probatório do Alcoolímetro, muito embora tivessem decorrido mais de dez anos desde a data em que o aparelho foi aprovado pelo Instituto Português da Qualidade, o mesmo encontrava-se, à data em que ocorreu a fiscalização, dentro do prazo de validade de verificação, pelo que preenchia todos os requisitos de conformidade com as normas legais aplicáveis para utilização do aparelho em teste de deteção de álcool;
2.- Por outro lado, sempre a realização da requerida perícia, a realizar em 2021, três anos após a data dos factos, não seria suscetível de confirmar/infirmar o estado em que o aparelho se encontrava àquela data e a fiabilidade da medição então realizada, ao contrário do certificado de verificação do aparelho, válido até 31-12-2019 que, esse sim, atesta a conformidade do aparelho na data dos factos;
3.- Quanto à inimputabilidade do Recorrente em razão de anomalia psíquica, resulta do relatório pericial que “... qualquer grau de incapacidade deverá ser atribuído ao etilismo agudo em que o arguido se colocou, sendo que dependendo do estado de embriaguez poderia ter mais ou menos incapacidade para avaliar o risco de conduzir sob o efeito do álcool” e que “o arguido não apresentava doença mental grave ou sinais e sintomas de natureza psicótica, que constituam anomalia psíquica grave, pelo que no momento da prática dos factos o arguido estava capaz de avaliar os factos em presença”;
4.- Adere-se assim, na íntegra, à douta fundamentação da decisão em crise, quando refere que “As respostas contidas neste relatório permitem, assim, concluir que nem a doença, nem a abstinência da medicação impediriam o arguido de estar capaz de se determinar e reger o seu comportamento. Por outro lado, conclui o relatório que qualquer grau de incapacidade poderá ter ocorrido em função do grau de embriaguez concretamente verificado, o que, como aliás é do senso comum, poderá ocorrer com qualquer ser humano que ingira álcool em determinadas quantidades”, e ainda, “Deste modo, ainda que a ingestão do álcool tivesse afectado as capacidades físicas e mentais do arguido e tivesse refreado a capacidade de conter os seus impulsos, tal não o impediu de manter preservada a capacidade de avaliação crítica”;
5.- Sem prejuízo de se entender que o depoimento das testemunhas arroladas pela defesa – concretamente da médica psiquiatra do arguido Dra. ML - não contradiz as conclusões do relatório pericial junto aos autos, entendemos não haver, face às regras de experiência comum e aos depoimentos das testemunhas, motivos para divergir das conclusões obtidas pela perícia psiquiátrica realizada;
6.- Quanto ao invocado erro sobre as circunstâncias do facto e sobre a ilicitude, tendo em conta que, não só o arguido nunca invocou desconhecer que a sua conduta integrava a prática de um crime como, pelo contrário, demonstrou conhecer a proibição legal e ter consciência de que a condução de veículo automóvel com uma taxa de alcoolémia igual ou superior a 1,2 g/l constitui um ilícito penal, é imperioso concluir que o arguido conhecia a proibição legal e tinha consciência da ilicitude do facto praticado;
7.- Por fim, e quanto à invocada nulidade do valor probatório do Alcoolímetro, por violação das garantias de defesa do Recorrente e à nulidade da sentença por falta de pronuncia quanto ao requerimento de prova constante da contestação, entendemos não assistir razão ao Recorrente, porquanto a decisão ora em crise conheceu de todas as questões que devia conhecer e resolveu-as - ainda que a descontento do recorrente – o que resulta claro da fundamentação aduzida quando refere que “... estavam preenchidos todos os requisitos de conformidade com as normas legais aplicáveis para utilização do aparelho em teste de deteção de álcool”;
8.- De todo o modo, e sem prescindir, e ainda que assim não se entendesse, sempre estaríamos perante uma nulidade, não da sentença [artigo 379.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Penal], mas do procedimento [artigo 120.º n.º 2 alínea d) do Código de Processo Penal], que respeita à aquisição de meios de prova, cometida em momento anterior ao da sentença, que teria de ter sido arguida logo no início da audiência (artigo 120.º n.º 3 alínea d) do Código de Processo Penal) ou, no limite, em momento anterior àquele em que terminou a produção da prova e foi concedida a palavra ao ilustre defensor do arguido para alegações orais (artigo 120.º n.º 3 alínea a) e artigo 360.º n.º 1 do Código de Processo Penal).
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Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Dispensados os vistos, foram os autos à conferência.
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Fundamentação.
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A sentença recorrida estabeleceu os seguintes factos provados:
1.- No dia 17 de fevereiro de 2019, pelas 01h55m, na Avenida …, em Santo Isidro de Pegões, concelho do Montijo, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula 31-BJ-67, sendo portador de uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,90g/l.
2.- Tal taxa resultou da ingestão voluntária de bebidas alcoólicas por parte do mesmo.
3.- Este, quando iniciou a marcha do referido veículo sabia estar sob o efeito do álcool e admitia que a TAS que o afectava era, pelo menos, igual a 1,20 g/l.
4.- Indiferente, porém, a tal condição, não se coibiu de tripular o veículo na situação supra descrita, sabendo não o poder fazer.
5.- Agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
6.- O arguido padece de perturbação obsessivo-compulsiva (POC), caracterizada por obsessões recorrentes (pensamentos indesejados e incontroláveis) e comportamentos repetidos de forma compulsiva.
7.- O arguido é acompanhado regularmente por um Psicólogo, Dr. FC, e por uma Psiquiatra, Dra. ML.
8.- O tratamento da doença passa pela prescrição de fármacos que actuam nos sintomas, tais como: Xanax XR 1mg; Risperidona Mylan; Topiramato toLife 100mg; Ritalina LA 40 mg; Citalopram Aurovitas; Lamietal 100 mg; Ansiten 10 mg; Brintellix 20 mg e Dumyrox.
9.- Desde que controlado e medicado, o arguido consegue, dentro dos possíveis, fazer uma vida social normal.
10.- No dia 16 de fevereiro de 2019, o arguido, como se estava a sentir bem e sem qualquer tipo de sentimento de ansiedade e/ou perturbação, decidiu deixar de tomar a medicação prescrita pela sua Psiquiatra.
11.- No dia 17 de fevereiro de 2019, o arguido começou a sentir uma crescente ansiedade e perturbação, que o levou a sair de casa para ir ter com uns amigos a um bar sito na localidade de Pegões, a fim de se distrair e tentar acalmar-se.
12.- Foi então que, na companhia de amigos, e enquanto conversava com aqueles, o arguido bebeu uma cerveja para controlar e diminuir o sentimento crescente de ansiedade e de perturbação que estava a sentir.
13.- O arguido tem o 12.º ano de escolaridade.
14.- Tem a profissão de preparador automóvel.
15.- Encontra-se socialmente bem integrado, sendo uma pessoa estimada e prezada por todos os que com ele convivem e trabalham, conservando desde sempre um comportamento social correto.
16.- Aufere a título de subsídio de desemprego a quantia de cerca de € 400,00 mensais.
17.- Vive com os pais.
18.- O arguido não regista antecedentes criminais.
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E os seguintes factos não provados:
a)- Quer a convivência com os amigos, quer as poucas sagres minis que bebeu, não evitaram que o arguido tivesse, naquele momento, e subitamente, uma crise de ansiedade e perturbação, que o levou a uma forte depressão momentânea.
b)- Isto porque, o arguido começou com ataques de ansiedade e de pânico, e, em consequência, começou a imaginar e a interiorizar que tinha que ir de imediato para casa, e que só em casa é que se conseguiria acalmar e sentir-se seguro.
c)- A crise de que o arguido começou a sofrer ainda dentro do bar, foi de uma intensidade tal, que deixou o arguido sem consciência dos seus atos.
d)- Razão pela qual, o arguido não se lembra de ter saído do bar e de ter começado a conduzir o seu veículo automóvel em direção à sua casa, bem como de ter sido fiscalizado e conduzido ao Posto Territorial de Canha da Guarda Nacional Republica (GNR).
e)- O arguido apenas começou a acalmar e a tomar consciência dos seus atos e do que o rodeava, quando chegou ao Posto da GNR.
f)- Quando os soldados da GNR lhe comunicaram que tinha sido detido e trazido para o Posto, a fim de ser submetido a um teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue, o arguido recebeu o resultado do teste com grande espanto, e, por conseguinte, comunicou ao Guarda Nacional Republicado autuante (GNR) que pretendia fazer a contraprova desse teste.
g)- A pretensão do arguido (realização de contraprova) foi ignorada pelo militar da GNR.
h)- Assim que o arguido chegou ao Posto da GNR, o GNR autuante retirou o telemóvel ao arguido sem qualquer motivo que o justificasse.
i)- E só o voltou a entregar aquando da entrega do auto de libertação.
j)-No dia seguinte, quando o arguido foi mexer no seu telemóvel, ficou com a sensação de que tinham sido eliminados vídeos e fotografias pessoais do mesmo.
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Cumpre apreciar.
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
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Perante as conclusões apresentadas, são questões a decidir:
Omissão de pronúncia;
Validade da prova por alcoolímetro;
Erro de julgamento quanto à imputabilidade do arguido;
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Omissão de pronúncia.
Semelhante vício da sentença (que é usado ainda para arguir “nulidade do valor probatório por violação das garantias de defesa”) teria ocorrido, segundo o recorrente, por não ter havido pronúncia relativamente a pedido de perícia efectuado na contestação.
Vejamos então qual a projecção processual de tal circunstância.
Não equivale a omissão de pronúncia da sentença, já que lhe é prévia.
Por outro lado, a sentença apenas se tem de pronunciar sobre o objecto do processo, isto é, os factos alegados nas peças processuais a tanto destinadas, sendo uma delas a contestação.
Tendo nesta sido requerida prova e sobre tal ponto não tendo havido decisão, trata-se de vício com prazo processual de arguição e regime que de todo quadram o recurso, momento em que se tem aquele por sanado.
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Validade da prova por alcoolímetro.
Tratou-se da prova fundamental para a afirmação da factualidade provada e que objectivamente preenche o tipo penal pelo qual o arguido foi condenado.
Afirma (bem) o recorrente que já haviam decorrido mais de 10 anos sobre a aprovação pelo IPQ do alcoolímetro utilizado.
Nesse ponto coincide com a sentença, onde se pode ler que “compulsados os autos, constata-se que o arguido foi submetido ao teste de pesquisa de álcool, através de ar expirado, com o alcoolímetro marca Drager, modelo Alcotest 7110 MKIII P, número ARNA-0032.
O aparelho foi aprovado pelo Instituto Português da Qualidade através do Despacho n.º 11037/2007, de 24 de Abril de 2007 (aprovação do modelo n.º 211.06.07.3.06), publicado no Diário da República, 2ª série, N.º 109, de 6 de Junho de 2007, tendo a sua utilização para fiscalização sido autorizada pelo Despacho n.º 19684/2009, da ANSR e publicado no Diário da República, 2ª série, N.º 166, de 27 de Agosto de 2009.

Mas continua, agora em total divergência com o que o recorrente aduz:
Conforme resulta do certificado de verificação do alcoolímetro junto aos autos, o aparelho foi submetido a verificação metrológica em 29/10/2018, com o resultado de “Aprovado”, válido até 31/12/2019.
Constata-se, assim, que na data em que o arguido foi submetido ao teste de alcoolémia, ocorrido em 17/02/2019, o alcoolímetro utilizado na realização do teste tinha sido alvo de verificação metrológica, cuja validade se estendia até 31/12/2019.
Lapidar, se tivermos em linha de conta o acerto da jurisprudência também certeiramente citada na sentença e que, resumidamente, toma por válida a prova obtida por tais aparelhos, ainda que volvidos aqueles 10 anos, desde que hajam sido submetidos a verificação metrológica, ou de bom funcionamento, como aconteceu.
Não há pois qualquer invalidade probatória a este propósito.
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Imputabilidade do arguido.
Em apertada síntese e essencialmente, a decisão recorrida fundou na perícia psiquiátrica a sua convicção quanto a esta questão, sendo que tal exame é claro quanto à capacidade de avaliação do arguido e em sentido afirmativo.
Isso, em conjugação lógica e lúcida quanto aos actos do arguido depois da sua detenção, incompatíveis com qualquer inconsciência momentânea.
Transcrevendo:certo é que o arguido manteve, após a ingestão do álcool, a capacidade de, como o próprio referiu nas suas alegações, deslocar-se até ao carro para tomar a medicação que lá se encontrava, facto revelador da manutenção do grau de consciência crítica que o levou a procurar ajuda para diminuir a sensação de ansiedade que estava a sentir.
Por fim, importa considerar que as declarações prestadas pelo arguido em sede de audiência de julgamento são contraditórias com a alegação de um estado de falta total de consciência crítica.  Com efeito, é pouco conforme às regras da experiência comum que o arguido se encontrasse total ou muito incapaz de tomar consciência da ilicitude dos seus actos no período em que sai do bar e decidiu começar a conduzir o automóvel, mas se recorde de ter sido interceptado pelos militares da GNR e logo após, no posto da GNR, tenha recusado assinar os autos por não concordar com a actuação dos militares da GNR, requereu a realização da contraprova, solicitou para o levarem ao hospital por considerar que não estava bem, ligou para diversas pessoas e ainda, como o próprio disse, decidiu começar a fazer gravações com o seu telemóvel, por discordar da actuação dos militares.

Perante esta motivação, oferece o recorrente dois testemunhos, como prova a impôr decisão em contrário.
Tratam-se de depoimentos de psicólogo e psiquiatra que acompanham o arguido há anos.
E se os respectivos depoimentos poderiam ter importância para determinar com mais precisão a patologia do arguido, queda-se aí o seu valor probatório.
Na verdade, podendo testemunhar factos de que têm conhecimento (e é este particular que distingue as testemunhas dos outros intervenientes processuais), já não assim quanto aos factos objecto do processo que são os que constituem o crime ou o excluem, já que a nada assistiram.
Visto de outra forma. Se a perícia tivesse determinado que o arguido não sofria de qualquer patologia, poderiam tais testemunhos, nesse particular trecho, servir para fundar juízo que se afastasse daquela perícia e na correspondente medida.
Quanto ao mais, não passaram de perícia verbal, dissimulada como testemunho.
Imprestável como prova, já que apenas por parecer, escrito naturalmente, poderiam tais conhecimentos influir na decisão.
Parecer que depois e mediante opção do tribunal, poderia ser objecto de esclarecimentos a tomar pelo próprio, algo totalmente diverso do que ocorreu.
Assim, em rigor processual, a correspondente “prova” obtida é, ela sim, inválida, sem necessidade de mais considerandos.
Incapaz por isso para impôr decisão contrária, desde logo e nesta sede, já que na apreciação de 1ª instância foi inapta para o efeito, muito bem, pelos motivos que a sentença recorrida escalpeliza.
Consequentemente, improcede o recurso.
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Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três (3) UC.
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Lisboa, 6 de Julho de 2021



(Manuel Advínculo Sequeira)
(Alda Tomé Casimiro)