DECISÃO SURPRESA
VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO
NULIDADE DA SENTENÇA
Sumário

I - O conhecimento de mérito no despacho saneador apenas deve ter lugar quando o processo fornecer já, em tal fase processual, antecipadamente relativamente à normal - a da sentença -, todos os elementos de facto necessários à decisão do caso segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.
II - Perante a invocação de preenchimento de circunstância suscetível de conduzir à procedência de pretensão formulada, mesmo que a alegação se revele conclusiva, sempre se impõe seja efetuada a devida interpretação das peças processuais e atividade, oficiosa, do juiz no sentido da especificação e concretização fáctica.
III - Controvertida estando matéria relevante para a subsunção jurídica do caso a um instituto convocado, nunca pode ser considerado consolidado estado dos autos que permita ao juiz antecipar a decisão, com o adiantar da solução por si perfilhada, pois que necessária se torna, após instrução, no exercício do contraditório, a condensação - como provados e não provados - dos factos que permitam, na interpretação, concatenação e ponderação de todos eles, adotar justa solução que se desenhe no leque das possíveis. Deve, pois, o juiz proceder à recolha dos factos da causa (cfr. art. 5º, do CPC) que se mostrem dotados de relevância jurídica, garantindo a condensação de todos, por forma a acautelar anulações de julgamento.
IV - E cabe ao juiz respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem, sendo proibida decisão-surpresa (a solução efetivamente dada a uma questão que, embora previsível, não tenha sido configurada pela parte, sem que a mesma tivesse obrigação de a prever – nº3, do art. 3º, do CPC), o caso, pois que se trata de decisão de questão, oficiosamente suscitada, fundada em prova, para tanto, determinada pelo juiz, sem, sequer, disso ter sido dado conhecimento às partes.
V - A inobservância do contraditório constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual sempre que seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo nula a decisão (surpresa) quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre factos e respetivo enquadramento jurídico (designadamente seu alcance e efeitos).
VI - E, sempre, determina o vício de nulidade da sentença por falta de fundamentação (al. b), do nº1, do art. 615º, do CPC) a absoluta falta dos factos da causa, vicio a obstar à subsunção jurídica do caso.

Texto Integral

Apelação nº2358/19.9T8VLG.P1
Processo do Juízo Local Cível de Valongo – Juiz 2

Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: António Eleutério

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

Recorrente: B…, Lda.
Recorrido: Banco C…, S.A

B…, Lda, intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra Banco C…, S.A., pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de 45.000,00 € (quarenta e cinco mil euros).
Alega, para tanto, que celebrou com o R., por escritura pública de 16 de abril de 1998, um contrato denominado de “locação financeira”, através do qual este financiou a aquisição, por si, da fração “CB do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Rua … …./…., freguesia …, concelho de Valongo, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2168 e inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo 7696, mas que o contrato celebrado não era um verdadeiro contrato de locação financeira, antes um negócio indireto, pelo qual este último ficava constituído no dever de transferir formalmente para a A. a propriedade da referida fração logo que esta lhe pagasse todas as prestações devidas relativas ao valor adiantado para pagamento do preço da mesma e da remuneração pela disponibilização do capital. Afirma que, no âmbito do aludido negócio, as partes ficcionaram as prestações como se fossem as rendas típicas dos contratos de locação financeira, em número de 180, tendo ficcionado um valor residual de 1.475,92 €, que acrescia às mencionadas 180 prestações. A última prestação foi paga em 15.04.2013, tendo a A. comunicado ao R. que iria pagar o valor residual ficcionado. Em 20.05.2014, o R. comunicou à A. o dia, hora e cartório notarial onde seria outorgada a escritura pública de transmissão formal da propriedade da mencionada fração mas a gerente da A. não pode comparecer, por se encontrar no Luxemburgo e estar impedida de viajar por motivos de saúde, o que comprovou no ato perante a Sra. Notária e o R. não marcou outra data para ser outorgada a escritura. Entretanto, o R. intentou uma providência cautelar, que correu termos por este Juízo e Tribunal sob o n.º 25196/16.6T8PRT, na qual alegou a resolução do contrato por incumprimento do pagamento do valor residual, a qual veio a ser julgada procedente, e decretou a antecipação do juízo sobre a causa principal, decisão que transitou em julgado, após o Tribunal da Relação do Porto ter recusado a alteração do valor dado à acção: 1.475,92 €.
Em face disto, invoca a A. a nulidade do contrato, por ser proibida aos bancos a prática de actos de locação financeira, e a inconstitucionalidade da sentença proferida, por ter aplicado norma em favor de sociedades comerciais que funcionam em regime de oligopólio, em posição dominante. Invoca, ainda, que a sentença proferida no citado processo n.º 25196/16.6T8PRT incorreu em erro grave, pois as rendas encontravam-se integralmente cumpridas, não podendo ser resolvido um contrato cumprido. Conclui a A. que, caso o contrato seja considerado nulo, o R. estará obrigado a restituir-lhe o montante por si pago: 45.000,00 € e caso o contrato seja considerado válido, o R. estará obrigado a indemnizar a A. pela mesma quantia, em consequência do incumprimento daquele das suas obrigações contratuais, decorrente da venda do imóvel a terceiro, invocando os prejuízos que sofreu, decorrentes da violação do dever de boa fé contratual e atuação abusiva do banco que, faltando pagar apenas os referidos 1.475,92 €, após ter pago 45.000,00€, no demais circunstancialismo densificado, vendeu o imóvel a terceiro.
Subsidiariamente, pede a condenação do R. a pagar-lhe a mesma quantia de 45.000,00 €, seja com base na violação das regras da boa fé e abuso de direito, seja com base em responsabilidade civil extra contratual ou enriquecimento sem causa.
O Banco Réu contestou, defendendo-se por impugnação, ao negar factos alegados pela Autora, e por exceção, ao invocar, por sua vez, o abuso de direito da Autora de vir, agora, arguir que o contrato celebrado foi um “ficcionado” contrato de locação financeira e que as rendas que pagou ao longo dos anos afinal eram prestações “ficcionadas” de rendas (v. art. 65º e segs, da contestação, fls 83 e segs, articulado este oferecido, após apresentação de nova petição inicial que a Autora apresentou, a fls 61 e segs, na sequência do despacho proferido a fls 58, ao abrigo do nº3, do art. 590º, do CPC), e pugna pela improcedência da ação.
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Em audiência prévia, o juiz a quo transmitiu aos ilustres mandatários das partes a sua intenção de conhecer, desde logo, do mérito da causa, e deu-lhes a palavra para, querendo, alegarem quanto aos factos e ao direito, o que fizeram, reiterando a posição já vertida nos articulados, conforme consta de fls 99.
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De seguida, o Tribunal a quo, após ter proferido em 29/09/2020 despacho a ordenar a “apensação temporária do processo nº 25196/16.8T8PRT deste Juíz, aos presentes autos, para fins de consulta e de prova” (cfr. fls 97), sequer notificado às partes, conheceu do mérito da causa no despacho saneador e após fundamentação nos seguintes termos: “Segundo o art.º 580.º, n.º 1, do C.P.C., “as exceções de litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção de caso julgado”. Nos termos do art.º 581.º, n.º 1, do C.P.C., “repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”.
Antes de mais, começar-se-á por dizer que o objecto do processo se determina pela configuração dada à acção pelo seu autor e, essencialmente à relação jurídica por ele representada e, bem assim, pela sua pretensão ou pedido.
No caso vertente, apesar da diferença dos pedidos, há identidade perfeita de sujeitos entre a presente acção e a acção n.º 25196/16.6T8PRT - sendo irrelevante, para este efeito, a posição processual que ocupam, ao invés, relevando a posição na relação jurídica material - e, pelo menos parcialmente, da causa de pedir (o contrato de locação financeira tendo por objecto a fracção “CB” do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Rua …, …./…., freguesia …, concelho de Valongo, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2168 e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 7696).
Porém, não deixará de se referir que, quer no tocante à factualidade relevante para efeitos da presente acção quer no tocante à possibilidade do pedido, deverá atender-se ao efeito positivo ou autoridade de caso julgado emanada da decisão saída do referido processo n.º 25196/16.6T8PRT.
(…) À luz de todo o exposto, não restarão dúvidas de que o fundamento principal da presente acção se encontra a coberto do caso julgado formado no processo n.º 25196/16.6T8PRT, nos limites traçados pela decisão e pela fundamentação plasmada na sentença ali proferida. Com efeito, a validade do contrato de locação financeira e a também válida resolução final do mesmo, com a obrigação de a aqui A. entregar ao aqui R. a fracção autónoma que era objecto daquele, encontram-se definitivamente assentes. A pretensão da A. implica o “ressuscitar” do aludido contrato, com vista a traçar-lhe um novo, distinto, e incompatível, fim, contrariando abertamente a finalidade de segurança e estabilidade jurídica inerentes ao caso julgado. A ser aceite esta pretensão, o Tribunal ver-se-ia na posição de poder contradizer o que que já havia ficado definitivamente definido pela primeira sentença.
Acresce que os vários reparos que são feitos na petição inicial à sentença proferida no aludido processo n.º 25196/16.6T8PRT – designadamente relativos a erros e a inconstitucionalidades - não poderão ter valia autónoma nestes autos. Com efeito, decorre do disposto nos art.ºs 627.º, n.º 1, do C.P.C., e 4.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, que as decisões judiciais e, evidentemente, os efeitos que as mesmas produzem na ordem jurídica, apenas podem ser impugnadas por meio de recurso para um tribunal de categoria hierárquica superior à daquele que as profere. Como é patente, não só a A. não pode já recorrer da decisão final proferida no processo n.º 25196/16.6T8PRT (o que, aliás, chegou a fazer, não tendo logrado, contudo, que o Tribunal da Relação do Porto conhecesse dos fundamentos recursivos alegados para além do atinente ao valor da causa) como este tribunal não está numa posição de superioridade hierárquica em relação ao que proferiu tal decisão. Como tal, vedada está também a apreciação de tais fundamentos de discordância para com a aludida sentença.
Isto dito, e aceitando a prejudicialidade da decisão proferida no referido processo n.º 25196/16.6T8PRT, estão verificadas as condições necessárias para a apreciação do fundamento subsidiário invocado pela A. …” que, dado o caso julgado e a referida prejudicialidade, apreciou e decidiu:
“Por todo o previamente exposto, por ser manifestamente improcedente a acção, determina-se a absolvição do R. “Banco C…, S.A.” da totalidade do pedido formulado pela A. “B…, Lda.”.
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Custas pela A. – art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C.”.
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A Autora apresentou recurso de apelação pugnando pela anulação da decisão e por que o processo volte ao Tribunal de 1.ª Instância a fim de, após audiência prévia e em pertinente despacho saneador, seja identificado o objeto do litígio e sejam enunciados os temas de prova, formulando, para tanto as seguintes
CONCLUSÕES:
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O Réu respondeu sustentando não padecer o despacho saneador-sentença de nulidade, de nenhum dos vícios de excesso de pronúncia, omissão de pronuncia e falta de fundamentação que lhe são apontados pela apelante, padecendo e não se trata de decisão-surpresa, pois que bem deu o Tribunal a quo conhecimento às partes da sua intenção de conhecer de mérito e lhes deu a palavra para, querendo, alegarem quanto aos factos e ao direito.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações da recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
1º - Se a decisão recorrida constitui uma “decisão surpresa”, por inobservância do princípio do contraditório, e consequências de tal inobservância (v. nº3, do art. 3º e nº1, do art. 195º, ambos do CPC);
2º – Não sendo de anular pelo anteriormente referido, se, ainda assim, deve ser anulada por padecer dos invocados vícios, designadamente do de “falta de fundamentação” (nº1, do art. 615º, do CPC).
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos relevantes para a apreciação do objeto do recurso, conforme vicissitudes processuais, constam do relatório supra e nenhuns factos da causa foram selecionados como provados e como não provados, pelo Tribunal a quo que se limitou a exarar na decisão recorrida:
Foi determinada a apensação temporária do processo n.º 25196/16.6T8PRT aos presentes autos, para fins de consulta e prova. Compulsado o referido processo, constata-se:
(i) são as mesmas as partes em ambas as acções, embora em posições processuais invertidas;
(ii) a causa de pedir alegada pelo aí A. - aqui R. - assenta no mesmo contrato de locação financeira em causa nos presentes autos;
O aí A. arguiu que, no termo do contrato, a aí R. ficou adstrita a optar pela aquisição do imóvel locado, mediante o pagamento do valor residual indicado nas condições particulares do contrato de locação financeira, ou pela restituição do mesmo. Não tendo a aí R. exercido a opção de compra, ao não comparecer na data designada para a escritura e ao não efectuar o pagamento do valor residual, aquela perdeu o direito à aquisição do imóvel, ficando assim obrigada a restitui-lo ao aí A. A aí R. contestou, além do mais, aceitando a celebração do contrato de locação financeira, a obrigação que sobre si recaía no termo do contrato, e impugnou apenas a existência de incumprimento culposo da sua obrigação.
(iii) A sentença aí proferida em 07.07.2017, constante de fls. 179 a 189, considerou como provados e não provados os seguintes factos, concluindo pela decisão:
“1– O requerente é uma sociedade comercial que tem por objecto a celebração de contratos de locação financeira imobiliária.
2– No exercício da sua actividade, o requerente celebrou com a requerida, em 25.01.1998, o contrato de locação financeira imobiliária junto a fls. 5 e ss, cujo teor se dá por reproduzido.
3– O contrato de locação financeira imobiliária tinha como objecto a fracção autónoma designada pelas letras “CB”, correspondente a um estabelecimento no R/C, destinado a comércio ou serviços, café, restaurante e actividades similares, com entrada pelo nº1450, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, nºs …./…., freguesia …, concelho de Valongo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Valongo sob o nº 2168, a favor do requerente, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 7696.
4– Nos termos do referido contrato, pela locação do imóvel acima identificado, eram devidas pela requerida 120 rendas mensais cujo valor, inicialmente indicado, consta das cláusulas particulares, que se dão por reproduzidas.
5– Em 15.05.2006 foi celebrado um acordo de alteração ao contrato de locação financeira, tendo sido alterados os montantes das rendas assim como a duração do contrato, conforme fls. 13 e 14, cujo teor se dá por reproduzido.
6– Com o termo do contrato, a requerida ficou adstrita a optar pela aquisição do imóvel locado, mediante o pagamento do valor residual indicado nas condições particulares do contrato de locação financeira nos termos do disposto no artigo 3º das condições gerais ou pela restituição do mesmo.
7– De acordo com o referido contrato era obrigação da locatária informar o locador do exercício da opção de compra com pelo menos 90 dias de antecedência do final do prazo do contrato, devendo o preço ser pago na data da outorga da respectiva escritura de compra e venda, a qual deverá ser realizada nos 30 dias após o final do prazo do contrato, em local, dia e hora a indicar pelo locador ao locatário, com pelo menos 15 dias de antecedência.
8– O requerente enviou à requerida a carta de fls. 33v, datada de 5.11.2012, cujo teor se dá por reproduzido, informando do vencimento do contrato de locação financeira.
9– Na sequência da tal carta a requerida enviou ao requerente, a carta datada de 26.12.2012, comunicando a intenção de exercer a opção de compra, conforme carta de fls. 34, cujo teor se dá por reproduzido.
10– Por carta datada de 20.05.2014, junta a fls. 15, cujo teor se dá por reproduzido, a requerente informou a requerida que “Por carta datada de 26.12.2012, V.Exªs comunicaram a este Banco a pretensão de exercer a opção de compra do imóvel objecto do contrato de locação financeira imobiliária entre nós celebrado em 16.04.1998. Sucede que, não obstante as muitas interpelações efectuadas pelo Banco no sentido de se marcar a escritura de compra e venda, V.Exªas se têm mostrado totalmente indisponíveis para a sua realização. Face a isso, e porque naturalmente esta situação não se poderá manter, o Banco C…, SA, vem informar V.Exºas que se encontra impreterivelmente marcada para o próximo dia 06 de Junho de 2014, às 10h00 no Cartório Notarial Dra. D…, sito na …, … – 1º, sala .., ….-… Valongo, a celebração da referida escritura de compra e venda, data em que deverá ser pago ao Banco o montante de €1.197,11 referente ao valor residual. Fazemos ainda notar, uma vez mais, que na presente data se encontram por pagar as seguintes quantias: 379,46€ de P/CPC, €40,64€de IMI e 99,87€ de juros, os quais deverão ser liquidados até à apontada data…..Caso aquela escritura não se venha a realizar por causa imputável a V.Exªas, consideramos, sem necessidade de qualquer interpelação adicional, definitivamente, não cumpridas as V/obrigações contratuais, com todas as consequências”.
11– A legal representante da requerida que se encontrava ausente do país, no Luxemburgo, porque estava grávida com uma gravidez de risco, dirigiu-se ao médico que a acompanhava, para aferir se poderia viajar até Portugal naquela altura, tendo sido informada que se o fizesse perderia a bebé.
12- A legal representante da requerida porque se encontrava impedida de viajar, contactou a sua Mandatária Dra. E…, Advogada, com escritório na Rua …, nº …, 1º G, …, Valongo, a quem enviou o atestado médico que lhe foi passado pelo seu médico de família e solicitou que estivesse presente no dia e hora designados para a outorga da escritura – 6 de Junho de 2014 – para comunicar a sua ausência, o que aquela fez, conforme documento junto a fls. 34 a 36, cujo teor se dá por reproduzido.
13– Assim a requerida não compareceu na data designada para a escritura pública de compra e venda, pelo que não exerceu a opção de compra, e não efectuou o pagamento do valor residual devido à data (€1.197,11), apesar de devidamente notificada para o efeito, conforme carta junta a fls. 15, cujo teor se dá por reproduzido.
14– A requerida não procedeu à restituição do imóvel locado ao requerente até à presente data, continuando na sua posse, utilizando-a como se fosse coisa sua.
15– O requerente enviou à requerida a carta de fls. 55 e 56, cujo teor se dá por reproduzido.
16– A requerida procedeu aos pagamentos de fls. 57 a 65, relativos a IMI, cujo teor se dá por reproduzido.
17– Conforme certidão de fls. 79 e ss, 123 a 126, cujo teor se dá por reproduzido, correu termos pelo J1 do Juízo de Execução do Porto, Comarca do Porto, autos de processo nº59/13.0TBVLG, em que era executada a aqui requerida, os quais deram entrada em 04/01/2013, com o valor de execução de €6.175,08, na qual foi penhorada expectativa de aquisição que a requerida teria sobre a fracção autónoma em causa nos autos, a qual foi efectivada em 15/04/2013, com citação da requerida em 17.4.2013, tendo a quantia sido paga em 16/05/2016, com o consequente levantamento da penhora realizada.
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b) - Factos não provados
1– A carta referida em 10 só foi recepcionada pela requerida a 22.05.2014.
2 – A requerente só marcou a escritura uma vez.
3– Foi porque não tinha nem meio de transporte nem possibilidade de atempadamente se dirigir à Embaixada de Portugal no Luxemburgo que a legal representante da requerida solicitou à sua mandatária que procedesse conforme consta do factos 12 supra, tendo-lhe pedido que esta solicitasse o agendamento de nova data para a celebração da referida escritura, o que aquela fez.
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V – Fundamentação Jurídica:
A providência cautelar de entrega judicial e cancelamento de registo (na locação financeira) encontra-se prevista no artigo 21º do DL 149/95 de 24 de Junho, alterado pelo DL nº 265/97 de 2 de Outubro e mais recentemente pelo DL 30/2008 de 25.02. Prevê o nº1 deste preceito legal que “ Se, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este, após o pedido de cancelamento do registo da locação financeira, a efectuar por via electrónica, sempre que as condições técnicas o permitam, requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente.”
A providência em causa, criada pelo DL 149/95 de 24 de Julho, começou por se restringir apenas aos bens móveis. A partir da alteração introduzida pelo DL 265/97 de 2 de Outubro, passou a estender-se aos imóveis, independentemente do seu destino. De todo o modo, o seu âmbito circunscreve-se às relações jurídicas que possam qualificar-se como contratos de locação financeira
O contrato de locação financeira pode ser resolvido de acordo com as normas conjugadas dos artigos 17º e 18º do DL 149/95 para além dos casos de dissolução ou liquidação da sociedade locatária ou da verificação dos fundamentos da declaração de falência, a resolução pode ser declarada “ nos termos gerais, com fundamento no incumprimento das obrigações da outra parte, não sendo aplicáveis as normas especiais, constantes da lei civil, relativas à locação.”
A providência pode ser requerida como incidente da acção declarativa já instaurada ou como preliminar de acção que deva ser interposta.
Atenta a instrumentalidade relativamente a essa acção, deve o requerente alegar no requerimento inicial, ainda que de forma sumária, os factos de onde emerge o direito que através da providência pretende ver acautelado. Não se exige, contudo, a prova do periculum in mora, (pois que o legislador presumiu que a continuação do bem locado na esfera do locatário, depois de extinto o contrato, era susceptível de afectar relevantemente os interesses do locador, o que justifica a recuperação dos seus poderes), bastando ao requerente alegar os factos que, de acordo com a situação verificada, legitimem a entrega imediata do bem: a extinção do contrato, em consequência da resolução ou da caducidade.
Ponderada a matéria de facto dada como provada impõe-se concluir que o requerente logrou fazer prova dos pressupostos de que depende o deferimento da presente providência cautelar.
Assim, logrou provar a existência de um contrato de locação financeira imobiliária celebrado com a requerida.
Igualmente provou que tal contrato foi resolvido na sequência do incumprimento da locatária, ora requerida; e, finalmente, que a requerida não procedeu à restituição do objecto daquele contrato (no caso um imóvel).
Deve, pois, proceder a requerida providência cautelar
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Da antecipação do juízo final sobre o litígio
O Decreto-Lei nº 30/2008, de 25 de Fevereiro, “dando continuidade ao esforço de racionalização da justiça que foi iniciado em 2005 com a aprovação do Plano de Acção para o Descongestionamento dos Tribunais (PADT)”, no sentido de “reduzir a pressão da procura sobre os tribunais e, assim melhorar a sua capacidade de resposta através do seu descongestionamento”, tal como se anuncia no respectivo preâmbulo, veio alterar alguns dos números daquele artigo 21º do Decreto-Lei 149/95, e permitir, no respectivo nº 7, que o juiz decida a causa principal após decretar a providência cautelar de entrega do bem locado, extinguindo a obrigatoriedade de intentar uma acção declarativa apenas para prevenir a caducidade da providência. No mesmo preâmbulo, explicitando o desiderato do legislador, refere-se que se evita “assim a existência de duas acções judiciais - uma providência cautelar e uma acção principal - que, materialmente, têm o mesmo objecto: a entrega do bem locado”.
Dispõe o nº 7 do referido artigo 21º do Decreto-Lei 149/95 que, decretada a providência cautelar, o tribunal ouve as partes e antecipa o juízo sobre a causa principal, excepto quando não tenham sido trazidos ao procedimento, nos termos do nº 2 do mesmo artigo, os elementos necessários à resolução definitiva do caso.
Temos presente que o mecanismo previsto pelo legislador pretende acima de tudo evitar delongas judiciais sobre questões que podem, sem mais, ficar solucionadas estribadas nas posições das partes e prova produzida em sede cautelar. Com isto presente é segura a conclusão que, sem prejuízo de desejar uma resolução total dos problemas possíveis que, a jusante, pudessem dar origem a acções autónomas, o que o legislador pretendeu acima de tudo foi que os litígios emergentes ficassem, se possível, solucionados, sem que fosse necessário, só para prevenir a caducidade da providência, intentar acções autónomas.
Temos assim que na presente acção, passada que está a fase cautelar, caberá, se possível, antecipar o juízo definitivo sobre o fundo da causa. A forma como a acção ficou circunscrita na petição inicial limita o julgamento definitivo sobre todos os elementos porventura relevantes para uma resolução completamente abrangente dos problemas ali suscitados. Com efeito, a solução global do caso como ele foi exposto naquele articulado parece possível de alcançar em virtude dos pedidos formulados pelo Requerente acima mencionados, que comportarão a tal antecipação de um juízo global pra o litígio.
Retira-se esta última conclusão da circunstância de, no que diz respeito aos elementos relevantes para a decisão da causa, as partes estarem de acordo (por via da falta de oposição) quanto a todos os elementos fácticos e jurídicos relevantes. Assim sendo, nada obsta a que se determine a entrega do bem objecto da locação financeira.
Atento o exposto o Tribunal entende que os presentes autos contêm todos os elementos necessários à resolução definitiva do caso, razão pela qual entende ser possível fazer-se um juízo antecipatório sobre a causa principal pela procedência da mesma, reconhecendo-se a validade da resolução do contrato celebrado entre Requerente e Requerida e, em consequência, condenar a Requerida na restituição, a título definitivo, do bem cuja entrega foi requerida.
Tal bem é propriedade exclusiva da Requerente, foi entregue à Requerida por conta de contrato de locação financeira que hoje já não vincula as partes (conclusão decorrente dos factos 1º a 17º), pelo que nada obsta a que o imóvel lhe seja restituído. Sendo propriedade da Requerente e pedindo esta a sua entrega só a constituição de algum direito incompatível, legitimador da detenção por parte de terceiro, poderia fazer naufragar a pretensão daquela. Porém, neste sentido nada foi demonstrado pela Requerida.
Ora, em face do contrato celebrado entre as partes, o qual não foi alvo de impugnação, procede na totalidade o pedido formulado pela requerente.”
A sentença transitou em julgado em 19.12.2017”.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1º- Da verificação de decisão surpresa
Decidiu o Tribunal a quo verificar-se caso julgado e absolveu a ora recorrida do pedido, tendo-o feito após ter proferido o referido despacho a determinar a
apensação temporária do processo nº 25196/16.8T8PRT deste Juíz, aos presentes autos, para fins de consulta e de prova” (cfr. fls 97),
insurgindo-se a apelante contra a decisão recorrida, para além do mais, por:
i) constituir uma “decisão surpresa” - nº 3, do artigo 3º, do Código de Processo Civil;
ii) e por padecer do vício de “falta de fundamentação”– al. b), do nº1, do art. 615º, do referido diploma;
o que, adianta-se, não pode deixar de se verificar, pois que as partes, não notificadas do referido despacho, sequer foram confrontadas com o referido meio de prova nem com a questão, oficiosamente suscitada, para apreciação, e, na verdade, a decisão padece, até, de, total, falta de fundamentação de facto, já que nenhuns factos da causa foram selecionados e recolhidos, como provados ou não provados, apenas tendo sido feita mera alusão à fundamentação de facto e de direito da decisão do dito processo, “temporariamente” apenso.
Analisemos, em 1º lugar, da inobservância do contraditório, pois que de arguição de nulidade processual se trata, a implicar, na procedência, a anulação da decisão, e, após, apreciemos o invocado vício, específico, da sentença, que, a verificar-se, importa, também ele, a anulação.
O referido nº 3, do artigo 3º, do Código de Processo Civil, diploma a que nos referimos na falta de outra indicação, veio ampliar o âmbito da regra do contraditório, tradicionalmente entendido como garantia de uma discussão dialética entre as partes ao longo do desenvolvimento do processo, trazendo para o nosso direito processual uma conceção mais alargada, visando-se prevenir as “decisões surpresa”.
Tal sentido amplo atribuído ao princípio do contraditório - que impõe que seja concedida às partes a possibilidade de, antes de ser proferida a decisão, se pronunciarem sobre questões suscitadas oficiosamente pelo juiz em termos inovatórios, mesmo que apenas de direito - já há muito vinha sendo afirmado pela jurisprudência constitucional e justifica-se por maiores garantias de defesa proporcionar.
Na verdade, a referida conceção ampla do princípio do contraditório, também já há muito defendida pelo Professor Lebre de Freitas[1] para o processo civil, traduz um direito à fiscalização recíproca ao longo do processo visto como uma “garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”[2]. Esta vertente do contraditório, que surgiu no nosso direito processual como uma inovação, revela grandes potencialidades práticas em termos de cooperação, de lealdade recíproca dos vários intervenientes processuais e de eficácia das decisões judiciais que passam, sempre, a ser previstas pelas partes.
E, na medida em que garante a igualdade das partes - pela possibilidade de pronúncia e resposta - leva a que, mais fácil e frequentemente, se obtenha a verdade material e que a solução do litígio seja a mais adequada e justa, logrando-se atingir num maior número de casos a realização dos verdadeiros objetivos finais de que o processo é um mero instrumento para alcançar.
Como vimos, e como refere o ilustre professor Lebre de Freitas, cuja lição seguimos, o princípio do contraditório materializa-se, pois, em todas as fases do processo - quer ao nível dos factos, quer ao da prova, quer ao do direito propriamente dito - tendo as partes, em todos estes níveis, direito a, de modo participante e ativo, influenciar a decisão, tentando convencer, em cada momento e ao longo de todo o processo, o julgador do acerto da sua posição.
Ao nível do direito, o princípio do contraditório impõe que, antes de ser proferida a decisão final, seja facultada às partes a discussão de todos os fundamentos de direito em que a ela vá assentar, sendo aquele princípio o instrumento destinado a evitar as decisões surpresa[3].
É, ainda, uma decorrência do princípio do contraditório a proibição da decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento não previamente considerado pelas partes, como dispõe o nº 3, do referido artigo 3º.
Decisão-surpresa é a solução dada a uma questão que, embora pudesse ser previsível, não tenha sido configurada pela parte, sem que a mesma tivesse obrigação de prever fosse proferida.
A proibição da decisão-surpresa reporta-se, principalmente, às questões suscitadas oficiosamente pelo tribunal. O juiz que pretenda basear a sua decisão em questões não suscitadas pelas partes mas oficiosamente levantadas por si, “ex novo”, seja através de conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve, previamente, convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer, conforme dispõe o nº 3, do art. 3º, em casos de manifesta desnecessidade.
Com este princípio quis-se impedir que as partes pudessem ser surpreendidas no despacho saneador ou na decisão final, com soluções de direito inesperadas, por não discutidas no processo, as quais, no regime anterior, eram permitidas.
Pretendeu-se, pois, proibir as decisões-surpresa embora tal não retire a liberdade ao juiz de qualificar, interpretar e aplicar a norma jurídica que entender, aplicando o direito aos factos de modo totalmente autónomo. Apenas impõe ao julgador que, para além de dar a possibilidade às partes de alegarem de direito, sempre que surge uma questão de direito ainda não discutida ao longo do processo tem de, antes de decidir, facultar às partes a sua discussão.
A regra da contraditoriedade passou, assim, a abarcar a própria decisão de uma questão de direito, decisiva para o destino da ação, não perspetivada pelas partes, tendo, nesse caso, de lhes ser dada a possibilidade de, previamente, a discutirem sendo que tal “entendimento amplo da regra do contraditório, afirmado pelo nº3, do art. 3º, não limita obviamente a liberdade subsuntiva do juiz; trata-se apenas e tão somente, de, previamente ao exercício de tal “liberdade subsuntiva” do julgador, dever este facultar às partes a dedução das razões que considerem pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de exceções dilatórias, com que elas não tinham razoavelmente podido contar”[4].
Não quis, pois, a lei excluir da decisão as subsunções que juridicamente são possíveis embora não tenham sido pedidas, antes estabeleceu que a concreta decisão a tomar tem de, previamente, ser prevista pelas partes, tendo, por isso, de lhes ser dada “a priori” possibilidade de se pronunciarem sobre o novo e possível enquadramento jurídico.
Assim, o princípio processual segundo o qual “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação e aplicação do direito” tem, presentemente, de ser compatibilizado com a proibição das decisões surpresa tendo, desse modo, antes da prolação da decisão, de ser facultado às partes o exercício do contraditório sempre que a qualificação jurídica a dar não corresponda ao previsto pelas partes e plasmado no processo.
Nenhuma decisão deve, pois, ser tomada sem que previamente tenha sido dada efetiva possibilidade ao sujeito processual contra quem é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar, possibilitando-se-lhe, assim, influir ativamente na decisão.[5]. A imposição de audição das partes em momento anterior à decisão é determinada por um objetivo concreto – o de permitir às partes intervirem ativamente na construção da decisão, chamando-as a trazerem aos autos a solução para que apontam.
Uma determinada questão, seja relativa ao mérito da causa seja meramente adjetiva, não pode ser decidida, quer em primeira instância, quer em via de recurso, com um fundamento jurídico diverso, até então omitido nos autos e não ponderado pelas partes sem que, antes, as mesmas sejam convidadas a sobre ela se pronunciarem.[6]. E o dever de audição prévia só existe quando estiverem em causa factos ou questões de direito suscetíveis de virem a integrar a base de decisão.
São, pois, proibidas as decisões surpresa, isto é, as decisões baseadas em fundamento que não tenha sido previamente analisado pelas partes.
A surpresa que se visa evitar não se prende com o conteúdo, com o sentido, da decisão em si mas com a circunstância de se decidir uma questão não prevista. Visa-se evitar a surpresa de se decidir uma questão com que se não estava a contar.
Assim, o exercício do contraditório é, sempre, justificável e desejável se puder gerar o efeito que com ele se pretende – permitir que a pronúncia das partes possa influenciar a decisão do Tribunal.
Na estruturação de um processo justo, o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração[7].
Em obediência ao princípio do contraditório e salvo em casos de manifesta desnecessidade devidamente justificada, o juiz não deve proferir nenhuma decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente tenha sido conferida às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar[8].
Há decisão surpresa se o juiz de forma inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correta decisão do litígio. Não tendo as partes configurado a questão na via adotada pelo juiz, cabe-lhe dar a conhecer a solução jurídica que pretende vir a assumir para que as partes possam contrapor os seus argumentos[9], só estando dispensado de o fazer em caso de manifesta necessidade.
Quer se trate de questões processuais ou de mérito, de facto ou de direito, não suscitadas pelas partes, caso as mesmas tivessem obrigação de prever que o tribunal as podia decidir no sentido em que veio a fazer e não cuidaram de as discutir no processo, sib imputet, não se podendo, de modo equilibrado e razoável, considerar que, nesses casos, a decisão proferida pelo tribunal configura uma decisão-surpresa. Como a expressão indica, a mesma pressupõe que a parte seja confrontada com uma decisão, embora juridicamente possível, não prevista, não configurada[10]. Se a decisão tomada pelo tribunal é emanação dos factos alegados e debatidos pelas partes e o tribunal se cingiu a esses factos, sem recurso novos, não alegados, como o enquadramento jurídico feito pelo tribunal consubstancia algo que aquelas previram ou, pelo menos, tinham a obrigação legal de prever, como possível, nenhuma decisão surpresa existe.
Conclui a apelante ser a decisão uma decisão surpresa, pois que conheceu de mérito no despacho saneador e julgando verificado caso julgado absolveu a Ré do pedido sem sequer ter efetuado a elencação dos factos (dos provados e dos não provados) da presente causa, e tendo apreciado do caso julgado sem facultar a possibilidade de pronúncia sobre a questão suscitada oficiosamente (o caso julgado, âmbito e efeitos do mesmo) –, sendo, ainda, nula por omissão de pronúncia sobre os factos, nenhuns tendo sido selecionados.
Ora, não era previsível que o tribunal enveredasse pela posição que seguiu, constituindo a decisão recorrida, uma decisão surpresa, na medida em que as partes sequer contavam que tivesse sido ordenada a apensação do processo em causa para ser utilizado como meio de prova, o que só souberam com a notificação da decisão recorrida.
Constitui decisão surpresa a solução seguida pelo tribunal que se afasta “do alegado pelas partes na sua substancialidade ou na sua adjetividade, isto é, se a decisão não se ativer, com um mínimo de arrimo, ao que foi alegado e sufragado pelas partes durante o curso do processo. Assim, se as partes não tiveram hipótese de aportar e debater factos – novos e condizentes com a realidade jurídica prefigurada pelo tribunal antes da decisão – que poderiam trazer alguma luz sobre a “questão nova” oficiosamente assumida pelo tribunal, então as mesmas terão o direito de tentar refazer a atividade do tribunal de modo a encarrilar e adequar a estrutura do processo ao resultado decisório”, só aí se podendo considerar que o tribunal se apartou “do dever de cooperação, colaboração e boa-fé que deve nortear o princípio de imparcialidade e de posição super partes constitucionalmente atribuído ao julgador”[11].
São, pois, proibidas as decisões surpresa, isto é, as decisões baseadas em fundamento que não tenha sido previamente analisado pelas partes. A surpresa que se visa evitar não se prende com o conteúdo, com o sentido, da decisão em si mas com a circunstância de se decidir uma questão não prevista. Visa-se evitar a surpresa de se decidir uma questão com que se não estava legitimamente a contar.
Na estruturação de um processo justo o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração[12].
Em obediência ao princípio do contraditório e salvo em casos de manifesta desnecessidade devidamente justificada, o juiz não deve proferir nenhuma decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente tenha sido conferida às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar[13].
Estamos perante uma decisão-surpresa, pois que foi dada uma solução jurídica à causa sem que às partes tenha sido facultada a possibilidade de tomar posição sobre a concreta questão do alcance do caso julgado.
Existia o dever de audição prévia, pois que estão em causa factos e questões de direito suscetíveis de virem a integrar a base de decisão.
Conclui-se, assim, pela efetiva violação do princípio do contraditório, pois que não tendo as partes sido notificadas do despacho proferido em 29/9/2020, nem da efetiva apensação nos termos ordenados, decidiu sem ouvir, previamente as partes quanto à verificação de caso julgado, impondo-se, pelo que se expôs, a sua observância, previamente à decisão.
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Consequência da inobservância do contraditório

A não observância do contraditório, no sentido de não se conceder às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão a conhecer, na medida em que possa influir no exame ou decisão da causa, constitui uma nulidade processual, nos termos do art. 195º, que tem de ser arguida, de acordo com a regra geral prevista no art. 199º. Na verdade, incluindo-se a violação do princípio do contraditório na cláusula geral sobre as nulidades processuais constantes do nº1, do art.195º, não constituindo nulidade de que o tribunal conheça oficiosamente, a mesma tem-se por sanada se não for invocada pelo interessado no prazo de 10 dias após a respetiva intervenção em algum ato praticado no processo - arts 197º, nº 1 e 199º, nº 1[14].
A violação do princípio do contraditório, mediante a prolação de uma decisão-surpresa, constitui nulidade processual, prevista no nº1, do art. 195º, onde se consagra que “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve, só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
Dada a relevância e primordial importância do contraditório, como analisamos, é indiscutível que a inobservância desse princípio, com prolação de decisão-surpresa, é suscetível de influir no exame ou decisão da causa, pelo que esta padece de tal nulidade (constituindo a referida inobservância uma omissão grave e representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa).
Sendo decorrência do referido princípio a proibição de decisões-surpresa, isto é, decisões baseadas em fundamento não previamente considerado pelas partes, tais decisões, a serem proferidas, incluem-se nas referidas nulidades. E, carecendo a nulidade de ser invocada pelo interessado na omissão da formalidade ou na repetição desta ou na sua eliminação (art. 197º, n.º 1), no prazo de dez dias, após a respetiva intervenção em algum ato praticado no processo (art. 199º, n.º 1 ), sob pena de ficar sanada, estando a decisão-surpresa coberta por decisão judicial, como é entendimento pacífico da jurisprudência, nada obsta a que a mesma seja invocada e conhecida em sede de recurso[15]. A prolação de decisão desacompanhada de prévia auscultação das partes, constitui nulidade, impugnável por meio de recurso[16].
Assim, analisada a lei, vista a doutrina e a jurisprudência não pode deixar de se decidir, pelos argumentos expostos que tinha, pois, o Tribunal a quo, antes de decidir, de ouvir os argumentos das partes. Assiste, deste modo, razão à apelante, ao concluir pela violação do contraditório, elevado, na verdade, até, à categoria de princípio constitucional.
Deste modo, procedendo a apelação por ter ocorrido violação do princípio do contraditório, não pode a decisão ser mantida.
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Sempre se dirá, ainda, quanto à específica nulidade da sentença, por verificação dos vícios, previstos no art.º 615.º, n.º 1, al. b) e d) do Código de Processo Civil, falta de fundamentação, omissão de pronúncia e excesso de pronúncia, que o nº1, do art.º 615º, que consagra as “Causas de nulidade da sentença”, estabelece que é nula a sentença quando:
“a) (…)
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (…).
Como decorre do referido preceito, este ato juiz, é passível do mencionado vício quer por violação das regras próprias da sua elaboração e estruturação quer das que balizam o conteúdo e os limites do poder jurisdicional ao abrigo do qual foi decretado. Para além da falta de assinatura do juiz, suprível oficiosamente em qualquer altura, contam-se, como vícios da sentença (e ainda de despacho e de acórdão), uns que respeitam à sua estrutura e outros que se reportam aos limites da mesma, sendo atinentes aos primeiros os fundamentos das alíneas b) (falta de fundamentação), c) (oposição entre os fundamentos e a decisão) e aos segundos os das alíneas d) (omissão ou excesso de pronúncia) e e) (pronúncia ultra petitum)[17].
As nulidades da sentença são vícios intrínsecos (quanto à estrutura, limites e inteligibilidade) da peça processual que é a própria decisão (trata-se, pois, de um error in procedendo), nada tendo a ver com os erros de julgamento (error in iudicando) seja em matéria de facto seja em matéria de direito. São vícios meramente formais de tal peça processual, taxativamente consagrados no referido nº1, sendo tipificados vícios do silogismo judiciário, inerentes à sua formação e à harmonia formal entre premissas e conclusão, não podendo ser confundidas com hipotéticos erros de julgamento (error in judicando) de facto ou de direito[18]. São, pois, apreciados em função do discurso lógico desenvolvido em tal peça processual, não se confundindo com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento, estes, a sindicar noutro âmbito.
Sendo frequente a confusão entre a nulidade da decisão e a discordância do resultado obtido, cumpre reforçar que os vícios da sentença não são erros de julgamento (error in judicando), estes erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa. E, efetivamente, as causas de nulidade da decisão, conforme exposto no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/10/2017, visam tão só o “erro na construção do silogismo judiciário e não o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, ou a não conformidade dela com o direito aplicável, nada tendo a ver com qualquer de tais vícios a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada para julgar a pretensão formulada: não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados, sendo coisas distintas a nulidade da sentença e o erro de julgamento, que se traduz numa apreciação da questão em desconformidade com a lei. Como tal, a nulidade consistente na omissão de pronúncia ou no desrespeito pelo objecto do recurso, em directa conexão com os comandos ínsitos nos arts. 608º e 609º, só se verifica quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões ou pretensões que devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada”.
Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto. Esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença, mas o mérito da relação material controvertida nela apreciada, não a inquinam de invalidade, mas de error in judicando atacáveis em via de recurso[19].
Sustenta a apelante que a decisão recorrida é nula, pois que nela o tribunal a quo não especifica os fundamentos que justificam a decisão.
Analisemos o referido vício que respeita à estrutura da sentença.
O dever de fundamentação das decisões judiciais é uma decorrência da lei fundamental (v. art. 205º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, abreviadamente CRP) e da lei ordinária, que se apresenta a densificá-lo (cfr. arts. 154º, n.º 1 e 615º, n.º 1, al. b)), impondo-se ao juiz o dever de especificar os fundamentos de facto e de direito em que alicerça a sua decisão[20], através da fundamentação, esclarecer terceiros da correção da mesma[21]. É requisito de salvaguarda dos direitos de ação e de defesa das partes, pois que é ela que assegura o conhecimento das razões do decaimento das suas pretensões, designadamente, a fim de ajuizarem da viabilidade dos meios legalmente previstos para sindicar e impugnar essas decisões. E é, também, requisito de controle pelos tribunais superiores das decisões dos tribunais inferiores, pois que as instâncias superiores carecem de conhecer os concretos fundamentos de facto e de direito em que o tribunal que proferiu a decisão que está a ser sindicada baseou a mesma a fim de poderem reapreciar esses fundamentos e ajuizar do bem ou mal fundado da decisão[22]. Por isso, é que em termos de matéria de facto, se impõe ao juiz a obrigação de na sentença discriminar os factos que considera provados e não provados, devendo, de forma clara e especificada, analisar criticamente as provas e expor os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção em relação a cada facto (art. 607º, n.ºs 3, 4 e 5), explicitando desse modo, não só a respetiva decisão como, também, quais os motivos que a determinaram. E em sede de fundamentação da matéria de direito, a lei faz impender sobre o juiz iguais obrigações, impondo-lhe o ónus de, na decisão, identificar as normas e os institutos jurídicos de que se socorreu e a interpretação que deles fez em sede de subsunção jurídica ao caso concreto (n.º 3 daquele art. 607º).
Assim, “ao juiz cabe especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão (art. 607-3). Há nulidade (no sentido de invalidade, usado pela lei) quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão (ac. do STJ de 17.10.90, Roberto Valente, AJ, 12, p. 20: constitui nulidade a falta de discriminação dos factos provados). Não a constitui a mera deficiência de fundamentação (ac. do TRP de 6.1.94, CJ, 1994, I. p 197: a simples indicação do preceito legal aplicável constitui fundamentação suficiente da decisão[23].
Relativamente à falta de fundamentação de facto, diga-se que, integrando a sentença tanto a decisão sobre a matéria de facto como a fundamentação dessa decisão (art. 607º, nº3 e 4), “deve considerar-se que a nulidade consagrada na alínea b), do nº1 (falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão) apenas se reporta à primeira, sendo à segunda, diversamente, aplicável o regime do art. 662, nºs 2-d e 3, alíneas b) e d) (ac. do TRP de 5.3.15, Aristides Rodrigues de Almeida, www.dgsi.pt.proc.1644/11, e ac. do TRP de 29.6.15, Paula Leal de Carvalho, www.dgsi.pt, proc 839/13)”[24].
Relativamente à falta de fundamentação de direito, que é indispensável para se saber em que se fundou a sentença, não pode “ser feita por simples adesão genérica aos fundamentos invocados pelas partes (art. 154-2; mesmo ac. de 19.1.84); mas é admitida em recurso, quando a questão a decidir é simples e foi já objeto de decisão jurisdicional, a remissão para o precedente acórdão (art. 656 e 663-5 (…). Este vício da sentença tem a falta da causa de pedir como seu correspondente na petição inicial (art. 186-2-a)[25].
Não obstante a essencialidade reconhecida à fundamentação, entende a doutrina e a jurisprudência, só a absoluta falta de fundamentação, isto é, a omissão absoluta de motivação, determina a nulidade da decisão. Tal acontece, designadamente, nos casos de falta de discriminação dos factos provados, ou de genérica referência a toda a prova produzida na fundamentação da decisão de facto, ou de meros conclusivos juízos de direito, e não apenas em situações de mera deficiência da mesma[26], de fundamentação alegadamente insuficiente e, ainda menos, de putativo desacerto da decisão [27].
Deste modo, importa distinguir entre erros de atividade ou de construção da sentença (despacho – cfr. art. 613º, n.º 3), geradores de nulidade a que se reporta aquele art. 615º, n.º 1, dos erros de julgamento, que apenas afetam o valor doutrinal da decisão, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada[28] atacáveis em vias de recurso e não determinativos daquela invalidade. A deficiente fundamentação, em que apenas se verifica uma deficiente análise crítica das provas produzidas ou uma deficiente enunciação e interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto, não constitui omissão de fundamentação, determinativa de nulidade da sentença mas tão só mero erro de julgamento, atacável e sindicável em via de recurso[29].
E nos casos em que o vício da deficiente fundamentação se coloque ao nível da decisão sobre a matéria de facto, esse vício tem de ser solucionado mediante as regras próprias enunciadas nos n.ºs 1 e 2 do art. 662º.
Revertendo para o caso, verifica-se que a apelante sustenta que a decisão recorrida é nula, desde logo, por falta de fundamentação de facto.
Ora, como resulta da leitura da sentença recorrida, o tribunal a quo não indicou os factos provados e os não provados, pelo que, na verdade, a decisão recorrida se não encontra fundamentada.
Padece, pois, do vício que aquela lhe atribui, sendo entendimento doutrinal e jurisprudencial uniforme, que o vício da absoluta falta de fundamentação é suscetível de determinar a invalidade da decisão, nos termos da al. b) do n.º 1 do art. 615º.
Assim, também o vício da nulidade da decisão, por falta de fundamentação de facto, se verifica, prejudicado ficando o conhecimento das demais questões suscitadas.
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Diga-se, contudo, ainda, que insurge-se a Autora, ora apelante, contra a decisão proferida no despacho saneador, que, sem observância do contraditório e sem indicação dos factos, antecipadamente, julgou improcedente a pretensão principal, concluindo que os autos deviam ter seguido para julgamento da matéria de facto controvertida e relevante para a decisão a proferir.
E, com efeito, não devia ter sido apreciado de mérito no despacho saneador, pois que, na verdade, como resulta da lei e da interpretação que dela vem sendo efetuada quer pela doutrina quer pela jurisprudência, designadamente pela deste Tribunal em Acórdãos em que a ora relatora foi adjunta, O tribunal em questões de insuficiência de alegação de matéria de facto, hoje em dia, está vinculado, face à nova redacção do nº 2 do art. 590º do CPC, ao convite às partes para aperfeiçoamento do articulado em que tais deficiências se verifiquem, não podendo avançar no processo sem previamente ter cumprido este comando legal”[30], e, por outro lado, “o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito, não se devendo ter em vista apenas a visão partilhada pelo juiz da causa.” [31] [32].
Com efeito, bem se analisa naquele Acórdão que “na versão actual do CPC, no âmbito dos poderes de gestão inicial do processo (art. 590º do CPC), onde antes se dizia “pode o juiz”, determina-se agora que “incumbe ao juiz”, numa clara assunção de que o convite ao aperfeiçoamento deixou de constituir uma simples possibilidade, um poder, para se assumir como um dever, como um acto vinculado a ser praticado.
Assim, se ao juiz se afigurar que a petição ou a contestação padecem de insuficiência/imprecisão na alegação da matéria de facto, tem de convidar as partes ao seu aperfeiçoamento, sob pena de incorrer, como referimos, em nulidade pela inobservância de um acto prescrito na lei, que se repercutirá no exame e decisão da causa, como é característica das insuficiências da matéria de facto (art. 195º nº 1 CPC).
No caso concreto, temos que as AA. apresentaram – como o próprio tribunal recorrido logo salientou ao ponto de mencionar que se poderia eventualmente configurar uma situação de falta de causa de pedir – um articulado deficiente – deficiências que o tribunal também logo evidenciou.
O que está subjacente ao convite ao aperfeiçoamento, para além do espírito de cooperação, é a garantia a uma tutela jurisdicional efectiva, a prevalência das decisões de mérito sobre as decisões de forma, ou seja, o princípio pro actione, e a justa composição do litígio (art. 7º, nº 1 do CPC).
Perante articulados deficientes, designadamente no tocante a “insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada” (art. 590º nº 4 CPC) que sejam sanáveis[33], a lei impõe ao juiz que ordene o respectivo aperfeiçoamento, por forma a que a acção possa vir a alcançar o seu objectivo, que é o conhecimento do mérito.
Já vimos que esse convite não foi feito e, atentas as diversas finalidades que o legislador previu, a omissão do convite plasmado no art. 590º nº 4 CPC poderá constituir também, como já referimos, uma nulidade processual (art. 195º do CPC).
Mas como o convite ao aperfeiçoamento só se justifica perante deficiências sanáveis (até pela proibição de prática de actos inúteis, art. 130º CPC), resta ainda averiguar se era aqui o caso, pois doutra forma não ocorre a nulidade do art. 195º CPC.
A nossa lei consagra a teoria da substanciação (cf. arts. 552º nº 1 al. d) e 581º nº 4 do CPC), isto é, impõe-se a alegação dos factos que integram a causa de pedir e fundamentam o pedido, formando-se caso julgado sobre a situação da vida assim delimitada.
Como é sabido, a causa de pedir consiste no acto ou facto jurídico de que emerge o direito que o Autor se propõe fazer valer ou no “(…) núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido (…)”[34].
Ora, dado que a previsão legal de direito material, a estatuição normativa, é formulada abstractamente, torna-se necessário alegar os factos concretos, as ocorrências da vida que, no caso, integram o núcleo essencial da previsão da norma e permitem identificar o referido “facto jurídico”.
Ou seja, é preciso não confundir a identidade de factos naturalísticos ou materiais com identidade de factos jurídicos.
Quanto à falta de causa de pedir, é consensual o entendimento de que não é a simples deficiência de alegação que acarreta a nulidade por ineptidão, mas a sua falta total. Esta é insanável, enquanto que aquela pode ser suprida.
O não estarem alegados todos os factos que integram a estatuição das normas de direito material que se invoca como causa de pedir é questão que ultrapassa a esfera da ineptidão da petição inicial para se situar no domínio da procedência/improcedência da acção.
Olhada a petição inicial, podemos concluir que manifestamente não estamos perante um caso de omissão total de factos.
Concluímos, no entanto, tal como, aliás, o tribunal recorrido concluiu, que os articulados apresentados não são exemplos de clareza e objectividade, merecendo, sem dúvida, um convite ao seu aperfeiçoamento - no sentido já por mais de uma vez salientado.
Importa dizer, de qualquer forma, que, não obstante isso, a Ré apresentou contestação e da análise da sua peça pode-se depreender ter ela interpretado a petição em termos de poder articular uma defesa eficaz.
Nestas circunstâncias, as deficiências que os articulados apresentados pelas AA. apresentam são sanáveis.
Os vícios de insuficiência/inteligibilidade de alegação são exactamente o campo de actuação do convite ao aperfeiçoamento.
A omissão de tal convite influi claramente no exame e decisão da causa, já que a parte fica coarctada da possibilidade de suprir as deficiências – como sucedeu no caso concreto”.
E, supridas as deficiências/insuficiências de alegação, que o Tribunal a quo até, de algum modo, aponta, como neste último Acórdão bem se entendeu, “o conhecimento do mérito da causa, total ou parcialmente, só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não tendo em vista apenas a (visão) partilhada pelo juiz da causa[35].
Assim, a exemplo do que sucedia no anterior art. 511º do CPC, o juiz, ao identificar o objecto do litígio e ao fixar os temas da prova (art. 596º do CPC), deve (continuar a) seleccionar para a matéria de facto (para os temas da prova), aquela que seja relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis de direito.
Nesta conformidade, “…o conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito: ao despacho saneador não cabe antecipar qualquer solução jurídica e, muito menos, desconsiderar quaisquer factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possíveis do objecto da acção. De maneira que se os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação, o processo deve prosseguir para a fase da instrução, realizando-se a apreciação do mérito na sentença final”[36].
Na verdade, “… quando o juiz coloca a si próprio a questão de saber se tem, efectivamente, condições para conhecer do mérito da causa, no despacho saneador, o mais frequente é ser duvidoso o sentido da resposta. Quer dizer, poucos serão os processos em que, na fase intermédia, o juiz pode, claramente, concluir que todos os factos alegados estão provados ou não provados… Por outro lado, esta dificuldade é agravada pela perspectiva de a questão de direito poder ter mais do que uma solução, implicando que o relevo dos referidos factos (ainda que controvertidos) varie em função desta ou daquela solução jurídica…”[37].
Assim, por uma questão de cautela, e para esse efeito, o Juiz deverá usar um critério objectivo, isto é, tomando como referência indicadores que não se cinjam à sua própria convicção acerca da solução jurídica do problema[38]”.
Aí bem se considerou que “o Tribunal Recorrido, apelando a uma interpretação própria e opinativa da factualidade[39], entendeu que, para esse efeito, era irrelevante apurar toda esta factualidade, considerando que o processo continha já todos os elementos necessários a proferir uma decisão de mérito conscienciosa (impedindo, nessa medida, que os RR. pudessem produzir prova sobre essa factualidade que, como se acaba de referir, se mantém controvertida).
Daí que se nos afigure que o Tribunal Recorrido não podia, desde já, proferir tal decisão, porque desconsiderou o aludido comando legal de se dever atender à necessidade de ponderar a factualidade de acordo com (todas) as soluções igualmente plausíveis da questão de direito.
Com efeito, tendo em conta o aludido critério de atender às várias soluções plausíveis de Direito, impõe-se, no caso concreto, que a decisão a proferir, em sede de mérito, deva aguardar a produção dos meios de prova oferecidos ou que venham a ser produzidos pelas partes, seja em sede da fase instrutória do processo, seja em sede da Audiência Final, no que concerne à aludida factualidade alegada pelos Réus e que ainda se mostra controvertida.
Na verdade, o conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito”.
Destarte, bem sendo esta a solução consagrada na lei e a interpretação que dela é efetuada pela Doutrina e Jurisprudência, nunca podem ser desconsiderados factos alegados que possam ser relevantes, segundo outros enquadramentos jurídicos, possíveis, de mérito, e enveredar, antecipadamente, por uma solução do pleito. Se não completamente concretizados os factos e cabalmente esclarecida a situação, sempre compete ao juiz, no âmbito dos seus poderes de gestão processual, determinar a sua especificada concretização ou seja efetuado o esclarecimento.
Com o respeito que a solução jurídica adiantada nos merece, certo é que, no caso concreto, e perante os factos essenciais e as posições das partes assumidas nos autos, mesmo com recurso a conclusões, outras soluções jurídicas da questão de direito se podem configurar como possíveis, como até resulta do que o próprio Tribunal a quo, refere.
Para que outras soluções jurídicas, igualmente plausíveis, da questão de direito possam ser adotadas, necessária é a presença de toda a matéria de facto alegada pela Autora e a consideração, ainda, do carreado para os autos pela Ré e adquirido para o processo, impondo-se necessárias concretizações.
E é garantida ampla liberdade, em sede de instrução, no sentido de permitir que, na produção de meios de prova (máxime, prova testemunhal, pericial ou por depoimento de parte), sejam averiguados os factos circunstanciais ou instrumentais, designadamente aqueles que possam servir de base à posterior formulação de presunções judiciais, sendo que a instrução da causa “deve ter como critério delimitador o que seja determinado pelos temas da prova erigidos e deve ter como objetivo final habilitar o juiz a expor na sentença os factos que relevam para a decisão da causa, de acordo com as diversas soluções plausíveis da questão de direito”[40].
Não há, pois, “cristalização da matéria de facto na fase intermédia do processo, ficando relegada para a sentença, isto é, para depois de concluída a instrução, a definição do quadro fáctico da lide, o que é, aliás, uma decorrência do dever de o juiz considerar na decisão os factos complementares ou concretizadores que resultem da instrução (art. 5º, nº2, al. b))”[41], consagrando este preceito todos os factos a expor na decisão da matéria de facto (cfr. nº1, 2 e 3, de tal artigo) .
E importa referir, ainda, que a “maleabilidade ou plasticidade que a enunciação dos temas da prova confere à instrução não dispensa o juiz de, no momento em que proceder ao julgamento da matéria de facto, indicar com precisão os factos provados e não provados”[42], em obediência ao estatuído no nº 4, do art. 607º.
E na exposição dos factos, quer dos provados quer dos não provados “o juiz não deve orientar-se por uma preconcebida solução jurídica do caso, antes deve assegurar a recolha de todos os factos que se mostrem relevantes em função das diversas soluções plausíveis da questão de direito” pois “não é de excluir que, apesar de o concreto juiz entender que basta um determinado enunciado de factos provados ou não provados para que a ação proceda ou improceda, o tribunal superior, em sede de recurso, divirja daquela perspetiva e considere outras soluções dependentes do apuramento de outros factos. Em tais circunstâncias, melhor será que o juiz, de forma previdente, use um critério mais amplo, inscrevendo na matéria de facto provada e não provada todos os elementos que possam ter relevo jurídico, evitando ou reduzindo as anulações de julgamento decretadas ao abrigo do art. 662º, nº2, al. c), in fine[43].
Têm, pois, de ser analisados, para efeitos de serem considerados provados ou não provados, os factos alegados pelas partes, nos articulados da causa para, após, e com a necessária segurança e ponderação se encontrar a justa solução jurídica do caso.
Devem, assim, os autos prosseguir os seus ulteriores termos.
Destarte, procedendo a apelação, cumpre anular a decisão, com a consequência de, em primeira instância, se dever retomar a fase anterior, desde logo com notificação às partes do despacho proferido a fls 97 e de que o processo se encontra apenso para consulta e pronúncia, em 10 dias, designadamente quanto a “prejudiciadidade” e “caso julgado”, devendo, oportunamente, ser recolhida a matéria de facto dos autos, segundo as várias soluções plausíveis para a questão de direito, em cumprimento do estatuído nos arts. 595º a 597º, do CPC.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação procedente e, em consequência, anulam a decisão recorrida, com a consequência de, em primeira instância, se dever retomar a fase anterior, desde logo com notificação às partes do despacho proferido a fls 97 e de que o processo se encontra apenso para consulta e pronúncia, em 10 dias, designadamente quanto a “prejudiciadidade” e “caso julgado”, ordenando o prosseguimento dos ulteriores termos processuais.
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Custas pela apelada, pois que ficou vencida – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.

Porto, 7 de junho de 2021
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
António Eleutério
________________
[1] FREITAS, Lebre de (1992). “Inconstitucionalidades do Código de Processo Civil”, em Revista da Ordem dos Advogados, 1992, I, pp. 35 a 38.
[2] FREITAS, José Lebre de; Redinha, João; Pinto, Rui (1999). Código de Processo Civil (anotado), vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, pág 8.
[3] Freitas, 2006:115 a 118
[4] REGO, Carlos Lopes do (2004). Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª ed., vol. I. Coimbra: Almedina, pág 32
[5] cfr. Ac. do STJ de 04/05/99, proc. nº 99057,in dgsi.net
[6] cfr, neste sentido Ac. do STJ de 15/10/2002, proc. nº 02A2478, Ac. da RL de 11/03/2008, proc. nº 2051/2008-7, Ac. da RL de 21/05/2009, proc. nº 1490/04.8TBPDL.L1-6 e Ac da RP de 10/01/2008, proc. 0736877, todos in dgsi.net
[7] Ac. RC de 13/11/2012, proc. 572/11.4TBCND.C1,in dgsi.net
[8] Ac. RC de 20/9/2016, proc. 1215/14.0TBPBL-B.C1, in dgsi.net
[9] Ac. do STJ de 27/9/2011, proc. 2005/03.0TVLSB.L1.S1, in dgsi.net
[10] Acs. STJ. de 14/05/2002, Proc. 02A1353; de 24/02/2015, Proc. 116/14.6YLSB, ambos in dgsi.pt
[11] Ac. STJ. 27/09/2011, Proc. 2005/03.0TVLSB.L1.S1, in dgsi.pt.
[12] Ac. RC de 13/11/2012, proc. 572/11.4TBCND.C1,in dgsi.net
[13] Ac. RC de 20/9/2016, proc. 1215/14.0TBPBL-B.C1, in dgsi.net
[14] Cfr. Acs STJ de 13/1/2005: proc. 04B4031 e Ac RP de 10/01/2008, processo nº 0736877, in dgsi.pt
[15] Acs. STJ. de 13/01/2005, Proc. 04B4031; RP de 18/06/2007, Proc. 0733086, in dgsi.pt
[16] Ac. RL de 9/10/2014, proc. 2164/12.1TVLSB.L1-2, in dgsi.net
[17] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª Edição Almedina, pág 735
[18] Cfr. Ac. do STJ de 1/4/2014, Proc. 360/09: Sumários, Abril /2014 e Ac. da RE de 3/11/2016, Processo 1070/13:dgsi.Net.
[19] Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277, in base de dados da DGSI.
[20] Ac. RE, de 3/11/2016, Proc. 1774/13.4TBLLE.E1.dgsi.net, citado in Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª ed., Março/2017, pág. 922
[21] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 348.
[22] Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª ed., Coimbra Editora, pág. 332.
[23] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 735
[24] Ibidem, pág 736
[25] Ibidem, pág 736
[26] Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, vol. II, Almedina, pág. 370; Lebre de Freitas, in ob. cit., pág. 332; Abílio Neto, in Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª ed., Março/2017; pág. 906, e Acs. STJ. de 14/11/2006, Proc.06A1986; de 17/04/2017, Proc. 07B418; R.C. de 16/10/2012, Proc. 127963/11.1YIPRT.C1; RG. de 14/05/2015, Proc. 853/13.2TBGMR.G1, todos in base de dados da DGSI.
[27] Ac. STJ de 2/6/2016, Proc. 781/11 e António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Idem, pág. 737
[28] Ac. STJ de 5/4/2016, Proc. 128/13, Sumários Abril/2016, pág 8, Abílio Neto, in Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª ed., Março/2017; pág. 921
[29] Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277, in base de dados da DGSI.
[30] Ac. RP de 22/2/2021, proc. 3738/18.2T8AVR.P1, in dgsi.pt
[31] Ac. RP de 25/1/2021, proc. 17469/19.2T8PRT.P1, e, ainda, no mesmo sentido, Acs. RG de 5/1/2017, proc. 1703/15.0T8BCL.G1 e de 11/7/2017, proc. 114815/16.8YIPRT.G1, estes últimos in dgsi.pt.
[32] Cfr. seguindo, também, esta orientação, a jurisprudência uniforme dos nossos Tribunais Superiores, designadamente a que se segue, acessível in dgsi.pt:
-Ac. do STJ de 18/12/2012, proc. 1345/10.7TVLSB.L1.S1, onde se considerou que “seja na selecção dos factos assentes, seja na selecção dos factos controvertidos, o juiz deve ter em conta todos os factos relevantes segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito e não apenas os factos que relevam para a solução da questão de direito que tem como aplicável” e que “ na fase do despacho saneador, não pode o juiz decidir de acordo com os factos então assentes e que tem por suficientes para a solução jurídica que considera correcta, desprezando factos ainda controvertidos e relevantes para uma solução jurídica diversa sustentada por parte da jurisprudência”;
-Ac. RL de 3/12/2020, proc. 4711/18.6T8LRS-A.L1-2, onde se entendeu que “Em sede de prolação de despacho saneador, não sendo caso de emissão de despacho de aperfeiçoamento e sendo os factos alegados pelo autor inábeis a deles extrair o efeito jurídico por ele pretendido, o juiz deverá, ainda assim, em princípio, elencar os factos que considere provados”, “Se o juiz do Tribunal recorrido - considerado estar em condições de conhecer de imediato do mérito da causa - elencou em sede de fundamentação que a genérica alegação factual do autor, nos moldes que reproduziu, mesmo que se viesse a provar, não conduziria à procedência da pretensão do autor, não se verifica a nulidade da al. b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC no saneador-sentença assim proferido” e, ainda, “O conhecimento imediato do mérito no despacho saneador só é legítimo se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes segundo as soluções plausíveis da questão de direito”;
- Ac. RP de 22/5/2019, proc. 3610/18.6T8MTS.P1, onde se decidiu “O conhecimento do mérito no despacho saneador pressupõe que não existam factos controvertidos indispensáveis para esse conhecimento, ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito” e que, face a isso, “apesar do juiz se considerar habilitado a conhecer do mérito da causa segundo a solução que julga adequada, com base apenas no núcleo de factos incontroversos, caso existam factos controvertidos com relevância para a decisão, segundo outras soluções também plausíveis de direito, deve abster-se de conhecer, na fase de saneamento, do mérito da causa”;
- Ac. da RG de 16/2/2017, proc. 4716/15.9T8VCT-A.G1, onde se escreve “O conhecimento imediato do mérito da causa no despacho saneador, permitido na alínea b) do n.º 1 do artigo 595º do CPC, só poderá acontecer (i) quando toda a matéria de facto se encontre provada por confissão expressa ou tácita, por acordo ou por documentos, (ii) quando seja indiferente, para qualquer das soluções plausíveis, a prova dos factos que permanecem controvertidos, e (iii) quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental” e, assim, “mostrando-se ainda controvertidos factos alegados pelo Autor que, com relevância, contendem com a causa de pedir subjacente aos pedidos sobre os quais o Tribunal decidiu pronunciar-se no despacho saneador, estava vedado àquele Tribunal conhecer imediatamente, nessa fase processual, do mérito desses pedidos”.
[33] E só essas, como refere Teixeira de Sousa, local citado: “Se, mesmo que fosse formulado um convite ao autor para aperfeiçoar a sua petição inicial, a acção haveria de improceder, não pela falta de esclarecimento de um facto constitutivo, mas pela falta de um facto constitutivo integrante da causa de pedir, é claro que não tem sentido dirigir esse convite”.
[34] Lebre de Freitas, in “A Acção Declarativa Comum, à luz do Código revisto, pág. 37.
[35] Cf. Ac. da RL de 17/12/2001 publicado em www.dgsi.pt.
[36] Ac. da Relação de Coimbra de 2-07-2013 publicado em www.dgsi.pt.
[37] Paulo Pimenta, in “Processo civil declarativo”, págs. 256/7.
[38] Paulo Pimenta, in “Processo civil declarativo”, págs. 257; cfr. Lebre de Freitas, in “A acção declarativa comum à luz do CPC de 2013”, pág. 186.
[39] V., por exemplo, que o tribunal recorrido concluiu, sem que isso decorra da matéria de facto e sem qualquer produção de prova, que “… a vedação com acrílico ou vidro temperado até oferece uma segurança maior do que a rede de malha porque não permite que as crianças a trepem e ampara uma eventual queda eleva (?) a altura da varanda. Aliás a opção pela colocação de uma rede de malha não foi inocente porquanto em termos económicos o seu custo é bastante inferior à solução autorizada pelo condomínio e esta terá sido, certamente, um dos motivos senão o motivo para se ter optado por esta solução. Por outro lado, são absolutamente irrelevantes as “opiniões” emitidas pelas câmaras municipais porquanto nos encontramos no âmbito da autonomia privada (…)”.
[40] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª Edição, pág 503
[41] Ibidem, pág.725
[42] Ibidem, pág 725
[43] Ibidem, pág 744 e seg