INCIDENTE DE REVISÃO DA INCAPACIDADE
REQUERIMENTO INICIAL
FALTA DE IMPUGNAÇÃO DE FACTOS ALEGADOS
CONTRATO DE SEGURO
PROVA
ACIDENTE DE TRABALHO
REPARAÇÃO DOS DANOS
DIREITOS INDISPONÍVEIS
Sumário

I - No incidente de revisão da incapacidade por acidente de trabalho, a falta de impugnação dos factos alegados no requerimento inicial tem o efeito cominatório da admissão dos mesmos.
II - O contrato de seguro de acidente de trabalho é um negócio jurídico formal, pelo que a sua prova só pode fazer-se mediante a junção da respectiva apólice, não sendo admissível prova por admissão por falta de impugnação.
III - No campo da reparação emergente de acidente de trabalho, os direitos dela decorrentes têm natureza indisponível, pelo que se impõe fazer intervir, ainda que oficiosamente, em incidente de revisão de incapacidade, sem processo prévio, nos termos do nº 8 do art. 145º do CPT, a entidade empregadora quando se apure que não fora transferida a responsabilidade infortunística pela totalidade da remuneração auferida pelo sinistrado.

Texto Integral

Processo nº 722/20.0Y7PRT.P1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
B…, residente na Rua …, nº …, Casa .., Porto, com o patrocínio do Ministério Público, deduziu o presente incidente de revisão, por acidente de trabalho, ocorrido em 22 de Junho de 2018, sendo entidade responsável a Companhia de Seguros C…, S.A., com sede na Rua …, .., Em Lisboa.
Consta do auto de participação o seguinte: “foi vítima de um acidente de trabalho ocorrido em 22 de Junho de 2018, em Viana do Castelo, ao serviço da entidade patronal D… – Empresa de Trabalho Temporário, Lda, com sede na Rua …, loja ., ….-… …, mediante a remuneração de € 730,00 x 14 meses + 4,77 x 22 dias x 11 meses de subsídio de alimentação + € 4,21 x 22 dias x 11 meses de prémio de compensação + horas extras de valor variável e que ocorreu nas seguintes circunstâncias: Descrição do acidente: ao descer de um andaime magoou-se no tendão de aquiles. A entidade patronal tem a sua responsabilidade por acidentes de trabalho transferida para a Companhia de Seguros C… – Apólice ……… – Processo nº ………. Teve alta definitiva em 25 de Setembro de 2018, curado sem desvalorização. Presentemente sente-se pior das lesões sofridas, nomeadamente mais dores, pelo que deseja ser submetido a perícia médico-legal pertinente. Seguidamente, o Exmo. Magistrado ordenou que a presente participação fosse enviada à Secretaria-geral para registo e posterior distribuição como processo de EXAME DE REVISÃO, nos termos do artigo 145º, nº 8, do C. P. Trabalho.”
A seguradora foi notificada “para se pronunciar sobre o pedido de revisão”.
A seguradora apresentou requerimento, referindo: “vem aos autos à margem identificados, em cumprimento do notificado, informar V. Exa. que nada tem a opor ao pedido de revisão do sinistrado”.
Realizou-se exame médico no INML, tendo sido emitido parecer referindo que o sinistrado padece de uma incapacidade permanente parcial de 1%.
Notificadas as partes, nada foi requerido.
Foi seguidamente proferido despacho, no qual se decidiu a final: “Termos em que julgo o presente incidente de revisão procedente, por provado e, em consequência, decido fixar em 1,5% (considerando o fator de bonificação de 1.5) o grau de incapacidade permanente parcial do sinistrado B…, com efeitos a partir da data da entrada do pedido de revisão, a que corresponde a pensão anual e vitalícia de €130,13 (cento e trinta euros e treze cêntimos). Mais determino que se proceda ao cálculo do respetivo capital de remição, a cargo da Companhia de Seguros C…, SA.”
Inconformada, interpôs a seguradora o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1. Vem a presente apelação interposta da douta sentença de fls., que, na sequência de pedido de revisão formulado pelo sinistrado, o declarou afectado de uma incapacidade permanente parcial de 1,50% desde 28/09/2020 e, por considerar que este auferia uma retribuição de 730 € x 14 (salário base) + 4,77 € x 22 dias x 11 meses (subsídio de alimentação) + 4,21 € x 22 dias x 11 meses (prémio de compensação), num total anual de 12.393,16 €, condenou a ora apelante a pagar-lhe o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de 130,13 €, devida desde 28/09/2020 (dia do pedido de revisão).
2. Salvo o devido respeito, esta decisão deve ser revogada, por enfermar de erro de interpretação e aplicação da lei aos factos, ao considerar que a ora apelante é responsável pelo pagamento do capital de remição daquela pensão, calculada com base na retribuição ali referida.
3. Com efeito, a Mta Juíza recorrida deu como provado que o sinistrado auferia a retribuição de 730 € x 14 (salário base) + 4,77 € x 22 dias x 11 meses (subsídio de alimentação) + 4,21 € x 22 dias x 11 meses (prémio de compensação), num 
total anual de 12.393,16 € unicamente com base na “PARTICIPAÇÃO DE ACIDENTE DE TRABALHO” nº ……… efectuada pelo sinistrado em 28/09/2020 perante o Digno Magistrado do Ministério Público, desacompanhada de qualquer documento que suportasse a afirmação do sinistrado quanto à existência do seguro, quanto à remuneração por ele auferida e quanto à remuneração que teria sido transferida para a seguradora de acidentes de trabalho,
4. Em virtude de a ora apelante, quando notificada apenas para se pronunciar quanto ao pedido de revisão, ter declarado nada ter a opor a esse pedido de revisão, não se pronunciando quanto à responsabilidade pela reparação do acidente, designadamente quanto ao montante da remuneração transferida.
5. A ora apelante não se referiu nesse requerimento à remuneração auferida pelo sinistrado, nem à remuneração que para si fora transferida, uma vez que não fora para tal notificada e aguardava que, depois de efectuado o exame de revisão, houvesse lugar a uma tentativa de conciliação para esse efeito, uma vez que não existia qualquer processo judicial em que tivessem já sido apurados a ocorrência e circunstâncias do acidente, a remuneração auferida pelo sinistrado e a respectiva transferência, total ou parcial, para a seguradora de acidentes de trabalho.
6. Além disso, a ora apelante não foi advertida de qualquer efeito cominatório da não pronúncia quanto à remuneração que o sinistrado afirmava auferir, nem para se pronunciar quanto à retribuição transferida, pelo que da não pronúncia da apelante quanto a essas questões não se pode retirar a conclusão de que esses factos se devem ter por confessados,
7. Até porque quanto a esses factos a referida participação era omissa ou, pelo menos incompleta, uma vez que da afirmação “A entidade patronal tem a sua responsabilidade por acidentes de trabalho transferida para a Companhia de Seguros C… – Apólice ……… – Processo nº ………” dela constante não se pode concluir qual o montante da retribuição transferido (sendo frequente, até, que haja parcelas dessa remuneração não transferidas),
8. E nem sequer é referido pelo sinistrado qual o montante exacto da sua 
retribuição (além de referir as parcelas que a Mta Juiz deu como provadas, o sinistrado referiu ainda que auferia também “horas extras de valor variável”) – facto que, por não ser pessoal da apelante, nunca se poderia considerar confessado por esta –, nem qual o montante dessa retribuição que estaria abrangida pelo seguro de acidentes de trabalho que identificou.
9. Aliás, e em rigor, nem se poderia ter dado como provada a existência do contrato de seguro alegado pelo sinistrado, uma vez que não está junta aos autos qualquer apólice de seguro.
10. E se é verdade que esse contrato de seguro foi celebrado, também é verdade que esse contrato de seguro vigora na modalidade de prémio variável/folhas de férias, sendo pessoas e remunerações seguras as que constam das folhas de férias mensalmente remetidas pela tomadora de seguro à ora apelante,
11. E que na folha de férias em poder da ora apelante quando da eclosão do acidente que vitimou o sinistrado constava que este auferia uma remuneração mensal base de 580,00 €, acrescida de 4,77 € diários (22 dias, em 11 meses) a título de subsídio de alimentação, não auferindo as parcelas remuneratórias que declarou na participação de acidente de trabalho/pedido de revisão ou, se as auferia, estas não estavam integralmente transferidas para a ora apelante.
12. Assim, a Mta Juiz recorrida não poderia nunca ter desde logo dado como provados os factos relativos à retribuição auferida pelo sinistrado e aos montantes transferidos para a seguradora, atribuindo efeito confessório ao facto de a apelante não se ter oposto quando chamada a pronunciar-se sobre o pedido de revisão formulado pelo sinistrado, uma vez que a ora apelante não foi notificada (e deveria até ter sido citada, uma vez que se tratava da primeira intervenção no processo judicial) com a advertência de qualquer cominação quanto à não pronúncia relativamente à retribuição e transferência de responsabilidade, designadamente de que estes factos seriam considerados provados se não fossem impugnados.
13. Mas mesmo que fosse de aplicar essa cominação – o que se admite, sem conceder, como mera hipótese de trabalho – esta nunca teria o condão de tornar confessados factos que não fosse pessoais da apelante ou não alegados concretamente, a saber: o montante exacto da remuneração auferida pelo sinistrado (uma vez que este refere, sem concretizar, que também auferiria “horas extras de valor variável” e a sua entidade patronal não teve qualquer intervenção no presente processo) e o montante efectivamente transferido pelo contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado com a ora apelante.
14. Assim, e independentemente do apuramento da real retribuição do sinistrado (que, obviamente, seria relevante para determinar a necessidade de intervenção no processo da respectiva entidade patronal, consoante essa retribuição se encontrasse, ou não, totalmente transferida para a seguradora), o certo é que a única prova quanto à retribuição do sinistrado coberta pelo contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado entre a entidade patronal do sinistrado e a ora contestante é a que resulta do contrato de seguro e da folha de férias agora juntos, pelo que terá de se considerar provado que é no montante anual de 9.274,34 € (= 580,00 x 14M + 4,77 € x 22D x 11M) a retribuição do sinistrado transferida para a ora apelante e pela qual deve ser calculada a sua responsabilidade pela reparação do acidente de trabalho em causa nos autos.
15. Não se pondo em causa a IPP de 1,5% fixada ao sinistrado, a ora apelante só poderá ser responsável pelo pagamento do capital de remição de uma pensão calculada com base nessa incapacidade de 1,5% e na retribuição anual transferida de 9.274,34 €), ou seja, no capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de 97,38 €, desde 29/09/2020 (dia seguinte ao da entrada do pedido de revisão).
16. Ao dar como provado que o sinistrado auferia uma remuneração de 730 € x 14 (salário base) + 4,77 € x 22 dias x 11 meses (subsídio de alimentação) + 4,21 € x 22 dias x 11 meses (prémio de compensação), num total anual de 12.393,16 €, sem considerar o montante variável relativo a horas extra – contrariando assim o carácter indisponível do direito do sinistrado à reparação integral do acidente de trabalho –, e que esse montante estava integralmente transferido para a ora apelante, e ao decidir, em consequência, que a ora apelante é responsável pelo pagamento ao sinistrado do capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de 130,13 €, devida desde 28/109/2020 (dia da entrada do pedido de revisão), calculada com base na retribuição de 730 € x 14 (salário base) + 4,77 € x 22 dias x 11 meses (subsídio de alimentação) + 4,21 € x 22 dias x 11 meses (prémio de compensação), num total anual de 12.393,16 €, a douta sentença recorrida violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos arts. 12º, 47º-1-c), 48º-3-c), 50º-2 e 71º da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, o disposto no art. 57º do C. Processo do Trabalho e no art. 574º do C. Processo Civil,
17. Pelo que essa decisão deve ser revogada e substituída por outra que julgue que ora apelante apenas é responsável pelo pagamento ao sinistrado do capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de 97,38 €, devida desde 29/09/2020 (dia seguinte ao do pedido de revisão), calculada com base na retribuição anual transferida de 9.274,34 € (530,00 € x 14M + 4,77 € x 22d x 11M).
18. Caso assim se não entenda, considerando-se que não é essa a retribuição por que responde a ora apelante, por se entender não ter sido feita prova desse facto, terá então de considerar-se também como não provada a remuneração fixada na douta decisão recorrida e, até, existência de um contrato de seguro de acidentes de trabalho que abrangesse o sinistrado, por não existir no processo qualquer outra prova da existência de um seguro de acidentes de trabalho além das declarações do sinistrado, não sujeitas a contraditório, com advertência da cominação aplicável.
19. Neste caso, a decisão de que a ora apelante é responsável pelo pagamento ao sinistrado do capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de 130,13 €, devida desde 28/09/2020 (dia do pedido de revisão), calculada com base na retribuição de 730 € x 14 (salário base) + 4,77 € x 22 dias x 11 meses (subsídio de alimentação) + 4,21 € x 22 dias x 11 meses (prémio de compensação), num total anual de 12.393,16 € teria violado, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos arts. 8º, 21º, 47º-1-c), 48º-3-c), 50º-2, 71º e 75º-1 da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, bem como o disposto no art. 5º do C. Processo do Trabalho e no art. 574º do C. Processo Civil,
20. Pelo que essa decisão deve ser revogada e substituída por outra que julgue que não existe qualquer contrato de seguro de acidentes de trabalho abrangendo o sinistrado celebrado com a ora apelante e que a absolva do pedido.
21. Quando ainda assim se não entenda, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que ordene o prosseguimento do processo para apuramento da remuneração efectivamente auferida pelo sinistrado à data do acidente de trabalho e qual a percentagem dessa remuneração transferida para a ora apelante.
A seguradora juntou documentos com as alegações de recurso.
O Ministério Púbico, representando o sinistrado, não alegou.
O Ilustre Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal teve vista nos autos, não tendo emitido parecer devido ao patrocínio do sinistrado.
Admitido o recurso e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Como se sabe, o âmbito objectivo dos recursos é definido pelas conclusões do recorrente (artigos 635º, nº 3 e 4, e 639º, nº 1, do CPC, por remissão do art. 87º, nº 1, do CPT), importando assim decidir quais as questões naquelas colocadas.
A questão colocada consiste em determinar se podia o Tribunal dar como provado que havia sido transferida para a seguradora recorrente a responsabilidade por acidente de trabalho, pelos valores constantes do auto de participação, por falta de oposição da mesma.

II. Fundamentação de facto
Importa considerar a factualidade descrita no relatório supra, e ainda que foi considerada na decisão recorrida a seguinte matéria: “Dos autos resulta a seguinte factualidade, com interesse à decisão:
1. Em 22 de junho de 2018, ao serviço da sua entidade empregadora, o sinistrado sofreu acidente do qual resultou lesão ao nível da perna esquerda (rotura parcial da junção miotendinosa distal gémeo medial).
2. O sinistrado teve alta definitiva em 25 de setembro de 2018, curado sem desvalorização.
3. A responsabilidade infortunística decorrente do acidente em causa encontrava-se transferida da entidade empregadora do sinistrado, mediante contrato de seguro da modalidade de acidentes de trabalho, para a ”Companhia de Seguros C…, SA” no que respeita ao salário anual de €12.393,16 (€ 730,00 x 14 meses + 4,77 x 22 dias x 11 meses de subsídio de alimentação + € 4,21 x 22 dias x 11 meses de prémio de compensação).
4. O sinistrado nasceu em 16-09-1970.
5. O sinistrado formulou pedido de revisão em 28/09/2020.
6. O sinistrado sofreu agravamento do seu estado, padecendo atualmente de uma incapacidade permanente parcial de 1%.
Motivação:
Notificada para se pronunciar sobre o pedido de revisão, a entidade responsável nada opôs, pelo que se consideraram provados por acordo os factos aludidos pelo sinistrado, constantes dos pontos 1 a 4.
O facto provado em 5 resulta dos autos.
O facto provado em 6 resulta do teor do relatório do INML que não foi posto em causa, não havendo qualquer motivo para divergir das conclusões do mesmo.”

III. O Direito
Questão prévia: junção de documentos
A recorrente veio juntar a apólice de seguro e a folha de férias referente ao sinistrado, com as alegações de recurso.
Nos termos do art. 651º, nº 1, do CPC, as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.
Por sua vez, estatui-se no art. 425º que, depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.
No caso, a recorrente invoca que foi surpreendida com a decisão, uma vez que aguardava diligências posteriores do Tribunal, nomeadamente uma tentativa de conciliação, onde pudesse esclarecer e demonstrar os valores cuja responsabilidade infortunística fora para si transferida pelo contrato de seguro.
A propósito considerou-se no acórdão do STJ de 18 de Abril de 2006, processo 06A844, acessível em www.dgsi.pt, “Se a apresentação ocorre em sede de recurso, para além das situações de impossibilidade, o documento não é intempestivo “no caso da junção apenas se tornar necessária, em virtude do julgamento proferido “no juízo “a quo” (artigos 524º e 706º nº 1 do Código citado). Quanto a este ponto, (...) diz o Prof. A. Varela que o “legislador quis cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença, ou pelo objecto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes da decisão ser proferida”. (in “Manual de Processo Civil”, 1984, p. 517). Diz ainda este Mestre: “E o documento torna-se necessário só por virtude desse julgamento (e não desde a formulação do pedido ou a dedução da defesa), quando a decisão se tenha baseado em meio probatório inesperadamente junto por iniciativa do tribunal ou em preceito jurídico com cuja aplicação as partes justificadamente não tivessem contado.” (R.L.J, 115º, 95). Teve adesão do Ac. STJ de 24/10/95. Nesta linha, também o Cons. Amâncio Ferreira (in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 6ª Ed., 209) embora, lucidamente, refira que, actualmente, o nº 3 do artigo 3º da lei adjectiva, em muito limita a ultima hipótese, perante o contraditório impeditivo de decisões surpresa. Contraditório, dizemos, mais, também quanto a qualquer meio de prova, “máxime” se oficiosamente carreada. Dai que a necessidade da junção face ao decidido pela 1ª instância não deva ser apreciada apenas no quadro de prova inesperada ou de fundamentação de direito surpresa, mas casuisticamente e considerando a lide em concreto.”
No mesmo sentido o acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 15 de Fevereiro de 2016, processo 651/13.3TTVNG.P1, igualmente acessível em www.dgsi.pt.
Neste termos, tendo a junção dos documentos como fundamento a prova da incorrecta decisão da matéria de facto quanto ao valor remuneratório coberto pelo seguro, admite-se a junção dos mesmos.

Do mérito do recurso
Alega a apelante: “a ora apelante não foi advertida de qualquer efeito cominatório da não pronúncia quanto à remuneração que o sinistrado afirmava auferir, nem para se pronunciar quanto à retribuição transferida, até porque nisso a referida participação era omissa, uma vez que da afirmação “A entidade patronal tem a sua responsabilidade por acidentes de trabalho transferida para a Companhia de Seguros C… – Apólice ……… – Processo nº ………” não se pode concluir qual o montante da retribuição transferido, sendo frequente, até, que haja parcelas dessa remuneração não transferidas. Aliás, e em rigor, nem se poderia ter dado como provada a existência do contrato de seguro alegado pelo sinistrado, uma vez que não está junta aos autos qualquer apólice de seguro. (...) esse efeito cominatório quanto aos factos alegados nunca teria o condão de tornar reais factos não alegados concretamente, a saber: o montante exacto da remuneração auferida pelo sinistrado (uma vez que este refere, sem concretizar, que também auferiria “horas extras de valor variável” e a sua entidade patronal não teve qualquer intervenção no presente processo) e o montante efectivamente transferido pelo contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado com a ora apelante.”
Nos termos do art. 145º do CPT: 1 - Quando for requerida a revisão da incapacidade, o juiz manda submeter o sinistrado a perícia médica. 2 - O pedido de revisão é deduzido em simples requerimento e deve ser fundamentado ou vir acompanhado de quesitos. 3 - O local de realização da perícia médica é definido nos termos da lei que estabelece o regime jurídico da realização das perícias médico-legais e forenses. 4 - Finda a perícia, o seu resultado é notificado ao sinistrado e à entidade responsável pela reparação dos danos resultantes do acidente. 5 - Se alguma das partes não se conformar com o resultado da perícia, pode requerer, no prazo de 10 dias, perícia por junta médica nos termos previstos no n.º 2; se nenhuma das partes o requerer, pode a perícia ser ordenada pelo juiz, se a considerar indispensável para a boa decisão do incidente. 6 - Se não for realizada perícia por junta médica, ou feita esta, e efectuadas quaisquer diligências que se mostrem necessárias, o juiz decide por despacho, mantendo, aumentando ou reduzindo a pensão ou declarando extinta a obrigação de a pagar. 7 - O incidente corre no apenso previsto na alínea b) do artigo 118.º, quando o houver. 8 - O disposto nos números anteriores é aplicável, com as necessárias adaptações, aos casos em que, sendo responsável uma seguradora, o acidente não tenha sido participado ao tribunal por o sinistrado ter sido considerado curado sem incapacidade.
A situação dos autos encontra-se prevista no nº 8 transcrito.
Conforme acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 17 de Maio de 2021, processo 4830/20.9T8VNG-A.P1, acessível em www.dgsi.pt, “Permite este normativo que quando não tenha havido participação do acidente ao tribunal por a entidade responsável ter considerado o sinistrado curado sem incapacidade, o incidente de revisão de incapacidade seja suscitado, considerando o sucedido após a alta dada por aquela entidade. (...) De referir que o propósito do legislador não foi que nestes casos se desse início a um processo de discussão da verificação da ocorrência de um acidente de trabalho, pois estamos claramente no âmbito de um incidente de revisão da incapacidade em juízo (a epígrafe do artigo não deixa qualquer dúvida), o que significa que se visa acolher situações supervenientes e não discutir aquelas que já foram antes avaliadas (no sentido também de que não foram oportunamente questionadas). Deste modo, a expressão “com as necessárias adaptações” tem tão só o significado de que, na medida em que não existiu um processo em juízo no qual possa correr termos o incidente como previsto nos números 1 a 7 do referido art.º 145º, há que adaptar a tramitação do incidente a essa realidade de não existir um processo prévio em juízo, o que não se confunde com a possibilidade de discussão de algo que está subjacente à consideração, como no caso em apreço, de existir período de ITA findo o qual o sinistrado ficou curado sem desvalorização, ou seja, não se confunde com a possibilidade de discutir a ocorrência de acidente de trabalho quando foi isso que determinou atribuir período de ITA e depois cura sem desvalorização.”
No caso, porém, a questão é distinta, uma vez que não ficou assente aquando do acidente e aceitação do mesmo pela seguradora, que diligenciou pelo tratamento do sinistrado e suportou os custos inerentes, qual o valor seguro. Assim, a questão teria que ser apreciada neste incidente de revisão, como foi, sendo certo que a seguradora se insurge agora relativamente ao modo como tal ocorreu.
O incidente de revisão, como resulta da própria designação, constitui um incidente da instância, como tal devendo ser tratado (conf. acórdão do STJ de 5 de Dezembro de 2018, processo 846/11.4TTLSB.1.L1.S2, acessível em https://jurisprudencia.csm.org.pt).
Nos termos do disposto no art. 293º, nº 3, do CPC, aqui aplicável por força do art. 1º, nº 2, al. a), do CPT, nos incidentes, a falta de oposição no prazo legal determina, quanto à matéria do incidente, a produção do efeito cominatório que vigore na causa em que o incidente se insere.
No que respeita aos acidentes de trabalho, prescreve o art. 128º do CPT que o réu é citado para contestar no prazo de 15 dias a contar da citação, ou da última citação, havendo vários réus, sendo-lhe entregue duplicado da petição inicial, acrescentando-se no art. 130º que, na falta de contestação de todos os réus, seguem-se, com as necessárias adaptações, os termos previstos no artigo 57º.
Por seu turno, prescreve este último preceito, no seu nº 1, que, se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se regularmente citado na sua própria pessoa, ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor e é logo proferida sentença a julgar a causa conforme for de direito.
Resulta destes preceitos que, contrariamente ao alegado pela seguradora ora recorrente, se verifica o efeito cominatório na falta de oposição ao requerimento inicial, que no caso foi substituído pelo auto de participação, sendo certo que de nada serve invocar agora a falta de citação, ou a nulidade da mesma, por falta de indicação de tal efeito cominatório aquando da notificação, por extemporaneidade, tendo-se as nulidades por sanadas, nos termos dos arts. 189º e 191º do CPC (veja-se José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, no Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 2001, pág. 265).
Isto não significa, porém, que se tenha por improcedente a apelação, uma vez que devem proceder os restantes fundamentos da mesma.
Analisando o aludido auto de participação, dele se extraem a invocação dos seguintes factos:
1. O sinistrado foi vítima de um acidente de trabalho ocorrido em 22 de Junho de 2018, em Viana do Castelo, ao serviço da entidade patronal D… – Empresa de Trabalho Temporário, Lda, com sede na Rua …, loja ., ….-… …;
2. O sinistrado auferia a remuneração de € 730,00 x 14 meses + 4,77 x 22 dias x 11 meses de subsídio de alimentação + € 4,21 x 22 dias x 11 meses de prémio de compensação + horas extras de valor variável;
3. Descrição do acidente: ao descer de um andaime magoou-se no tendão de aquiles;
4. A entidade patronal tem a sua responsabilidade por acidentes de trabalho transferida para a Companhia de Seguros C… – Apólice ……… – Processo nº ………;
5. Teve alta definitiva em 25 de Setembro de 2018, curado sem desvalorização;
6. Presentemente sente-se pior das lesões sofridas, nomeadamente mais dores.
Refere a recorrente que “não se pode concluir qual o montante da retribuição transferido, sendo frequente, até, que haja parcelas dessa remuneração não transferidas”, e com razão.
Efectivamente, o facto 2º (O sinistrado auferia a remuneração de € 730,00 x 14 meses + 4,77 x 22 dias x 11 meses de subsídio de alimentação + € 4,21 x 22 dias x 11 meses de prémio de compensação + horas extras de valor variável), no referido auto, não se encontra por alguma forma conexionado com o facto 4º (A entidade patronal tem a sua responsabilidade por acidentes de trabalho transferida para a Companhia de Seguros C… – Apólice ……… – Processo nº ………), sendo certo aliás que entre ambos se colocou um outro facto, com a descrição do acidente, que definitivamente os separa.
Assim, conforme sustenta a recorrente, o que se pode ter por admitido é que “a entidade patronal tem a sua responsabilidade por acidentes de trabalho transferida para a Companhia de Seguros C… – Apólice ……… – Processo nº ………”, mas não que essa transferência tenha ocorrido pelos valores remuneratórios indicados no mesmo auto.
Mais alega a recorrente que, “em rigor, nem se poderia ter dado como provada a existência do contrato de seguro alegado pelo sinistrado, uma vez que não está junta aos autos qualquer apólice de seguro”, e de novo com razão.
Embora a validade do contrato de seguro não dependa da observância de forma especial (art. 32º, nº 1, do regime jurídico do contrato de seguro, aprovado pelo art. 1º do Dec. Lei nº 72/2008, de 16 de Abril), certo é que o segurador é obrigado a formalizar o contrato num instrumento escrito, que se designa por apólice de seguro, e a entregá-lo ao tomador do seguro (nº 2 do mesmo art. 32º).
Daí que se conclua que o contrato de seguro é um negócio jurídico formal. Conforme se refere no acórdão do STJ de 11 de Julho de 2012, processo 443/06.6TTGDM.P21.S1, citando o acórdão da mesma Secção Social de 10 de Janeiro de 2012, proferido na revista n.º 57/08.6TTBCL.P1.S1, ambos disponível em www.dgsi.pt, “o contrato de seguro de acidentes de trabalho é um negócio jurídico formal, que, essencialmente, se traduz na emissão de um apólice, a qual é precedida da elaboração de uma proposta, limitando-se o tomador do seguro a preencher um impresso próprio, fornecido pela seguradora, devendo o contrato considerar-se celebrado se a seguradora expressamente o aceitar, o que se concretiza pela emissão da apólice, sendo que, no seguro a prémio variável, são consideradas pela seguradora as pessoas e as retribuições identificadas nas folhas de vencimentos que lhe são enviadas periodicamente pelo tomador do seguro.”
Tratando-se de um negócio jurídico formal, a sua prova só pode ser efectuada documentalmente, nos termos do disposto no art. 364º do CPC, não sendo admissível a admissão do seu conteúdo por falta de impugnação (veja-se, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 31 de Outubro de 2006, processo 5396/2006-1, e do Tribunal da Relação de Guimarães de 16 de Novembro de 2017, processo 969/13.5TBVRL.G1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
Daí que se impusesse que a Mma. Juíza “a quo” ao abrigo do disposto no art. 145º, nº 6, do CPT, notificasse a recorrente seguradora para juntar aos autos a apólice de seguro, antes de proferir decisão.

Por outro lado, conforme igualmente alerta a recorrente, importa determinar qual a efectiva remuneração do sinistrado, nomeadamente o valor da remuneração variável, não especificado no auto de participação, sendo certo que, face ao teor dos documentos juntos pela mesma com as alegações de recurso, haverá seguramente necessidade de fazer intervir nos autos a entidade empregadora, enquanto responsável pelo resultante da remuneração não transferida.
Conforme se salienta no acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 4 de Novembro de 2019, processo 1989/16.3T8AVR.P1, acessível em www.dgsi.pt, “No campo da reparação emergente de acidente de trabalho, prevista na Lei 98/2009, de 04.09, os direitos dela decorrentes têm natureza indisponível como decorre do disposto no art. 78º do citado diploma, o qual dispõe que: “[o]s créditos provenientes do direito à reparação estabelecida na presente lei são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis e gozam das garantias consignadas no Código do Trabalho”. E, bem assim, no art. 12º da citada Lei, nos termos do qual: “1. É nula a convenção contrária aos direitos ou garantias conferidos na presente lei ou com eles incompatível. 2. São igualmente nulos os actos e contratos que visem a renúncia aos direitos conferidos na presente lei. 3. (…)” Por outro lado, essa irrenunciabilidade, e consequente indisponibilidade, estende-se também à questão da determinação da entidade responsável pela reparação, não podendo o titular do direito à reparação prescindir do direito de que porventura possa ser titular em relação a alguma das entidades que pudessem eventualmente vir a ser responsabilizadas (seguradora ou empregadora).”
Nos termos do art, 662º, nº 2, al. c), do CPC, a Relação deve, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.
Assim, deverá proceder a apelação, anulando-se a decisão a fim de o Tribunal fazer intervir a entidade empregadora, para que se esta e a seguradora se possam pronunciar quanto ao valor de retribuição em função do qual estava transferida a responsabilidade infortunística relativamente ao sinistrado à data do acidente de trabalho, e fazer juntar aos autos a prova necessária da mesma, prosseguindo os autos os seus necessários termos, sempre com observância do contraditório, nomeadamente em relação ao processado sem intervenção da entidade patronal, decidindo-se depois em conformidade.
Nestes termos, procede a apelação.

IV. Decisão
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, anulando-se a decisão sob recurso, devendo o Tribunal, oficiosamente, fazer intervir a entidade empregadora, e fazer juntar aos autos a prova necessária da remuneração do sinistrado e valor transferido através do seguro de acidentes de trabalho, prosseguindo os autos os seus necessários termos, decidindo-se depois em conformidade.
Sem custas atenta a isenção do sinistrado e a falta de oposição do mesmo.

Porto, 14 de Julho de 2021
Rui Penha
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes