I. O tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre as conclusões do recurso mas apenas sobre as questões que sejam – e na medida em que sejam – enunciadas em tais conclusões.
II. Tendo sido decididas as questões suscitadas no recurso e tendo sido ponderados os argumentos considerados relevantes, tivessem ou não sido suscitados pelas partes, não há qualquer omissão de pronúncia que determine a nulidade do Acórdão.
I. RELATÓRIO
Notificado do Acórdão proferido nesta Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em 27.05.2021, que negou provimento ao recurso de revista por ela interposto, vem agora a ré / reclamante, Fidelidade, Companhia de Seguros, S.A., arguir a nulidade daquele Acórdão por omissão de pronúncia com os seguintes fundamentos:
“1 - É sabido que o âmbito do recurso se delimita pelas conclusões.
2 - No caso dos autos, é sobre estas que o Supremo Tribunal teria de pronunciar.
3 - O tribunal não se pronunciou:
§ sobre a conclusão A), ou seja, a prova de incapacidade total e permanente para a profissão habitual e para qualquer outra actividade remunerada, que são factos constitutivos do direito do Autor ora recorrido e cuja prova não foi por ele efectuada na instância.
§ O tribunal não se pronunciou sobre as conclusões que vão de B) a E) e G), em primeira linha, sobre a qualificação do contrato de seguro de grupo estabelecido entre a recorrente Fidelidade e a Navigator. Na verdade, a recorrente defendeu que se não estava perante um contrato de adesão, pelas razões alegadas na minuta de recurso. Ora, a tipificação do contrato como de adesão foi o fundamento para se poder ter defendido (embora desacertadamente, pela razão que se vai expor seguidamente) o carácter abusivo da cláusula que obrigava a aferição da incapacidade do autor por médico indicado pela seguradora.
§ Também não se pronunciou sobre a conclusão N), em que se defendeu que a cláusula não é abusiva porque se não está perante um contrato de adesão, justamente porque o contrato tinha uma norma que relativizava a exigência desta cláusula.
§ Norma que retira o eventual carácter abusivo da cláusula decidido na 1ª instância, mesmo que se estivesse perante um contrato de adesão, hipótese peregrina que se exprime para destacar o enviesamento da sentença e do acórdão. Esta norma, como se alegou no recurso, permitia que as partes contratantes dirimissem as divergências recorrendo a peritos por si indicados (neste caso, os médicos, naturalmente, como peritos para as perícias de incapacidades). Assim sendo, como é, nada impedia que as partes, divergindo sobre a incapacidade, recorressem à arbitragem prevista na cláusula contratual, apresentando os médicos que entendessem.
Estamos assim, como se verifica em situações de concreta omissão de pronúncia, o que acarreta, a nosso ver, que V. Exªs apliquem, mutatis mutandis, o artigo 615 º n.º 1 d), declarando a nulidade do acórdão, aplicando-se o disposto no 665º, nº 1, ambos do CPC, substituindo a decisão da 1ª instância, após a sua revogação”.
No caso em apreço, a nulidade imputada ao acórdão é a nulidade por omissão de pronúncia, referida na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC. Segundo este preceito, a decisão é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Esta nulidade resulta da violação do dever imposto na norma do n.º 2 do artigo 608.º do CPC, nos termos da qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)”.
A consequência da nulidade é plenamente justificada, dado que a violação do dever se traduz, em rigor, em denegação de justiça.
Mas será que o Acórdão em causa enferma desta nulidade?
Antes de mais, é oportuno recordar que a ré Fidelidade veio interpor um recurso per saltum, ao abrigo do artigo 678.º do CPC.
Terminava a sua alegação com as seguintes conclusões:
“A) Quer ao abrigo do contrato de 1992 quer do de 2013, o autor não provou que se tenha verificado uma incapacidade total e permanente para a sua profissão habitual e uma incapacidade para exercer qualquer outra actividade remunerada, que são os factos constitutivos do direito que invocou e não provou. Tanto bastará para a acção soçobrar, revogando-se a sentença.
B) O contrato de seguro dos autos não é um contrato de adesão, é um contrato de seguro de grupo em que as partes contratantes são a Navigator como tomador do seguro e a Fidelidade como seguradora, em que o dever de informar compete ao tomador do seguro. O autor é mero beneficiário do contrato, não parte contratante com a seguradora. Portanto, a seguradora nunca poderá responder pelo incumprimento, mesmo que o contrato fosse de adesão.
C) Não havendo qualquer informação sobre um contrato de adesão, porque nada foi dito ao subscritor contratante, o contrato não tem conteúdo para ele, que nada ficou a saber. Portanto, o autor ou não foi informado de nada. O contrato não se lhe aplica.
D) O contrato dos autos não é de adesão. Se o fosse, o dever de informar competiria ao tomador do seguro que é a Ré Navigator. Só poderia ser da seguradora se o contrato o previsse, e não é o caso. Logo, se o dever fosse incumprido, as consequências do incumprimento impenderiam sobre quem tinha o dever de cumprir (violação do artigo 4º do DL 176/95, hoje com a mesma doutrina no DL 78/2008).
E) Não estamos perante um contrato de adesão e não lhe são aplicáveis quaisquer normas do DL 446/85. Ao contrário, são-lhe aplicáveis, as normas que as partes (o tomador do seguro, por um lado e a seguradora, por outro), quiseram livremente contratar. Quer o que contrataram em 1992 quer em 2013 vale como vontade das partes, sujeita à disciplina da liberdade contratual (405 do CC).
E)[1] Num contrato de adesão, se o aderente subscritor do contrato se limita a assinar, não lhe sendo dado qualquer informação sobre o contrato, o dever de informação violado conduz a que esse contrato, no seu todo, lhe não seja aplicável, pois nada foi informado e de nada tomou conhecimento; ou, em alternativa, se o subscritor tiver tomado conhecimento de cláusulas do contrato por informação que o tomador de seguro lhe disponibilizou por outra via e em outro momento que não o da subscrição, essa informação relevará nos exactos termos do que foi informado.
F) Na apólice dos autos, a ré Navigator é um verdadeiro tomador do seguro (DL 176/95) e não um mero intermediário que se limitasse a angariar aderentes para um contrato, uma espécie de testa de ferro entre os verdadeiros contratantes, os beneficiários/pessoas seguras e Seguradora. Na apólice dos autos, os beneficiários/pessoas seguros/aderentes nem suportavam qualquer prémio, nem participaram em negociações.
G) A apólice dos autos não configura um contrato de adesão, não lhe sendo aplicáveis quaisquer normas do DL 446/85. Ao contrário, são-lhe aplicáveis, as normas que as partes (o tomador do seguro, por um lado e a seguradora, por outro), quiseram livremente contratar. Quer o que contrataram em 1992 quer em 2013 vale como vontade livre e esclarecida das partes, sujeita à disciplina da liberdade contratual (405 do CC).
H) Valem, assim, as apólices que o autor juntou aos autos, com o teor contratual nelas expresso, sem a exclusão da doença das doenças do foro psicológico e psiquiátrico e com a inclusão de certificado multiusos.
I) O dever de informar compete ao tomador do seguro (DL 176/95, nº 1 e 4), salvo se a apólice o tiver transferido para o segurador, estando o dever de informar por parte da seguradora dependente do pedido do segurado na apólice, o que não fez..
J) A cláusula sobre o certificado multiusos, excluída na sentença, é válida e podia ser sempre pedida ao abrigo do contrato na versão de 1992.
L) A cláusula que excluiu as doenças do foro psicológico e psiquiátrico é válida e, como tal, constitui uma exclusão de garantia a partir de 2013.
N[2]) A cláusula que faz depender a incapacidade total e permanente do reconhecimento por médico da seguradora, no caso dos autos, não é abusiva porque não estamos perante um contrato de adesão e porque o contrato tem outra cláusula que prevê a arbitragem por peritos em caso de divergência entre as partes.
O) O DL 176/95 é uma norma especial que afasta a norma especial do DL 446/85, que embora especial é mais geral; se aquela norma impõe o dever de informar ao tomador não é defensável invocar esta para afastar tal dever do tomador e atribuí-lo à seguradora.
P) Além do que se diz nas alegações, foram violados o artigo 342 do CC (ónus da prova dos factos constitutivos), 405 do CC (liberdade contratual), o DL 446/85 (define o contrato de adesão e as consequências da exclusão e da nulidade de cláusulas não informadas), ( O DL 176/95 (norma especial relativa aos seguros de grupo que atribui o dever de infirmar ao tomador seguro)”.
Este recurso deu origem ao Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.2021, em cuja parte dispositiva pode ler-se o seguinte:
“Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se parcialmente a decisão recorrida, decidindo-se:
I. considerar que a falta de comunicação pelo tomador ao segurado das cláusulas constantes do presente contrato não afecta a sua eficácia no plano das relações entre a seguradora e o segurado;
II. considerar nula, por contrária ao princípio da boa fé, a cláusula constante do artigo 2.º, n.º 2, das Condições Especiais, que condiciona a possibilidade de a invalidez total e permanente ser atendida ao “reconhecimento pelo médico do segurador de que a pessoa segura está afetada duma invalidez total e permanente”;
III. condenar a ré e ora recorrente Fidelidade no pagamento ao autor e ora recorrido AA da quantia de capital de € 69.048,00, acrescida de juros de mora contabilizados à taxa legal de 4% ao ano, e vencidos, desde 22.06.2016, e vincendos, até efectivo e integral pagamento; e
IV. condenar a ré e ora recorrente Fidelidade nas custas da revista”.
É deste Acórdão que o autor reclama, arguindo a nulidade por omissão de pronúncia. Alega que o Tribunal não se pronunciou sobre determinadas conclusões.
Ao contrário do que parece pensar a ré / reclamante, o Tribunal não tem de pronunciar sobre conclusões, tem de se pronunciar apenas sobre questões. E, como se demonstrará de seguida, todas as questões suscitadas no recurso foram apreciadas e decididas.
Em primeiro lugar, veja-se que a questão essencial, tal como expressamente enunciada no Acórdão ora impugnado, era a de saber se a ré Fidelidade devia ser condenada na obrigação de pagamento ao autor de certa quantia no quadro do contrato de seguro dos autos. Ora, o que aparece enunciado na conclusão A) é a mesma questão, não obstante numa fórmula distinta (negativa) – é a questão de saber se o autor provou, como lhe competia, todos os factos constitutivos do direito (ao pagamento) que alega.
Não restam dúvidas de que esta questão foi (directamente) respondida no Acórdão, o que se pode ilustrar com a reprodução da seguinte passagem:
“Colhidos os dados de facto relevantes (cfr., sobretudo, factos provados 48 a 54) e o teor da documentação junta aos autos (cfr., sobretudo, documentos n.ºs 6 a 16 e 18), verifica-se que o autor logrou provar os factos constitutivos do direito indemnizatório de que se arroga (cfr. artigo 342.º, n.º 1, do CC) – que se encontra em invalidez total e permanente nos termos do artigo 1.º das Condições Gerais e estão reunidas as condições de que depende a consideração desta sua situação, quais sejam a “persistência da incapacidade total para o trabalho durante um período não inferior a seis meses sem interrupção [ou] dois anos nos casos de alienação mental ou perturbações psíquicas” e a “perda definitiva da capacidade de ganho superior a 2/3”, isto é, tudo quanto é exigido pelo artigo 2.º das Condições Especiais uma vez expurgado, como deve ser, do seu n.º 2.
Verifica-se, em suma, e tal como disse o Tribunal recorrido “(…) ter o autor comprovado devidamente que o seu estado de saúde é integrador quer do conceito de invalidez total e permanente, quer das condições de verificação necessária - não inválidas - para que tal invalidez seja de ter por coberta no seguro dos autos”.
À seguradora competia, em última análise, o ónus da prova de factos conducentes à exclusão da sua responsabilidade (cfr. n.º 2 do artigo 342.º do CC), nomeadamente a ocorrência da situação mencionada no artigo 3.º, n.º 8, das Condições Particulares (doença do foro psiquiátrico ou psicológico) em grau comprometedor da invalidez na percentagem contratualmente exigida, mas o certo é que, entre os factos provados, não há nenhum que seja determinante para aquela exclusão.
Quanto às restantes conclusões que, segundo a ré Fidelidade, teriam sido também indevidamente desconsideradas ou omitidas, elas não encerram, rigorosamente, questões mas sim argumentos, isto é, razões que a ré invocou para fazer valer as suas pretensões. Se não veja-se.
A ré Fidelidade alega que o Tribunal não se pronunciou sobre as conclusões B) a E) e G), relativa à não qualificação do contrato de seguro dos autos como contrato de adesão. Ora, nas conclusões B) a E) e G), a ré Fidelidade não enunciou nenhuma questão, limitou-se a aduzir argumentos favoráveis à conclusão da ausência de responsabilidade de sua parte: o contrato dos autos não se qualificaria como um contrato de adesão, logo, não lhe seria aplicável o regime das cláusulas contratuais gerais, logo, o autor não poderia invocar violação de um dever de informação por parte da seguradora.
A ré Fidelidade alega ainda que o Tribunal não se pronunciou sobre a conclusão N), respeitante à não qualificação do contrato de seguro dos autos como contrato de adesão e à existência no contrato de uma cláusula que prevê a arbitragem por peritos em caso de divergência entre as partes. Ora, mais uma vez, aquilo que a ré Fidelidade se limitou a fazer na conclusão N) foi aduzir argumentos de apoio à tese da sua desresponsabilização: não sendo o contrato dos autos um contrato de adesão e contendo uma cláusula daquele tipo, a cláusula que faz depender a incapacidade total e permanente do reconhecimento por médico da seguradora não seria abusiva.
Esta confusão – entre questões e argumentos – não é de todo inédita nem sequer pouco habitual. Como também a ré / reclamante Fidelidade parece também incorrer nesta indistinção, cumpre, mais uma vez, esclarecer: só existe o dever de o juiz decidir questões – as questões suscitadas pelas partes –; a falta de pronúncia sobre os argumentos não origina a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC [3].
Seja como for, sempre se diga que foram tidos em conta todos os argumentos considerados relevantes para a decisão da questão, independentemente de terem sido suscitados pelas partes. Foi, nomeadamente, ponderado o argumento respeitante à (in)aplicabilidade do regime das cláusulas contratuais gerais. Ainda assim, o raciocínio não seguiu o rumo esperado pela ré Fidelidade, tudo convergindo, em última análise, para uma decisão que lhe foi desfavorável – a da sua condenação no pagamento ao autor de certa quantia no âmbito do contrato de seguro doa autos. Quer dizer: embora se confirmasse que a seguradora não havia violado um dever de informação e que, portanto, as cláusulas contratuais eram, em princípio, oponíveis ao segurado, um fundamento de outra natureza (contrariedade ao princípio da boa fé) obrigava a considerar nula a cláusula que faz depender a incapacidade total e permanente do reconhecimento por médico da seguradora.
Chegados aqui, demonstrado que está que a questão do recurso foi respondida e que não subsiste qualquer outra questão pendente de resposta, não há como não confirmar o Acórdão reclamado.
Pelo exposto, indefere-se a presente reclamação e confirma-se o Acórdão reclamado.
Catarina Serra (relatora)
Cura Mariano
Fernando Baptista
Nos termos do artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1.05, declaro que o presente Acórdão tem o voto de conformidade dos restantes juízes que compõem este colectivo.
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[1] A repetição da alínea E) decorre das conclusões originais.
[2] A passagem para a alínea N) em vez de para a alínea M) decorre das conclusões originais.
[3] Como explica José Alberto dos Reis (Código de Processo Civil, Anotado, volume V, Coimbra, Coimbra Editora, 1984, p. 143), “[s]ão, na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzido pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (sublinhados do autor).