IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DA RELAÇÃO
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
Sumário


I. Os poderes de reapreciação contidos no artigo 662º do Código de Processo Civil,  traduzem um verdadeiro e efetivo 2º grau de jurisdição sobre a apreciação da prova produzida, impondo-se, por isso, nos termos do artigo 607º, nº 4, ex vi artigo 663.º, n.º 2, ambos  do Código Processo Civil, que a Relação analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, conjugando-as entre si e contextualizando-as, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria convicção, sobre ela recaindo ainda o dever de fundamentação do juízo de valoração da prova que formulou sobre cada um dos pontos da matéria de facto em confronto, de modo a explicar e justificar a sua própria e autónoma convicção.

II. Não obstante o papel relevante da imediação na formação da convicção do julgador e de essa imediação estar mais presente no Tribunal da 1.ª Instância, daí não se retira que a convicção formada pelo julgador na 1ª instância deva, sem mais, prevalecer sobre o juízo probatório formado pelo Tribunal da Relação sobre cada um dos factos julgados em 1.ª instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, ambos do Código Processo Civil, em ordem a verificar a ocorrência de erro de julgamento.

Texto Integral



ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL




***


I. Relatório


1. AA e mulher, BB, intentaram declarativa com processo comum contra Caixa Económica Montepio Geral, pedindo que seja reconhecido que os mesmos são proprietários do imóvel descrito no artigo 1.° da petição inicial, que seja declarada a nulidade, a anulabilidade ou a ineficácia da hipoteca constituída sobre o referido imóvel e que seja determinado o cancelamento do registo desta hipoteca.

Alegaram, para tanto e em síntese, que, conforme lhes foi reconhecido por sentença proferida no processo nº.4436/03.... e já  transitada em julgado,  adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade sobre o dito imóvel e que a hipoteca que sobre ele incide e encontra-se registada a favor da ré é nula, por ter sido  constituída e registada por quem não podia dispor do bem, tendo aquela mesma sentença declarado nula a compra e venda outorgada entre o sujeito passivo da hipoteca e a sociedade Capaul – Investimentos Imobiliários, Lda.


2. A ré contestou, sustentando que a decisão referida pelos autores não lhe é oponível, porque é terceiro de boa-fé na relação controvertida, e concluindo pela improcedência da ação.

3. Os autores responderam, tendo AA e CC sido declarados habilitados a prosseguir os termos da demanda como sucessores da autora BB, entretanto falecida.


4. Procedeu-se à realização de audiência de Julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou a ação procedente e, consequentemente:

a) Condenou a ré Caixa Económica Montepio Geral a reconhecer que à data do registo da hipoteca a favor da ré o direito de propriedade sobre a fração designada pela letra “..”, correspondente ao ...ª andar direito-frente do prédio urbano sito no n.° .., ........., ......., concelho de ......, descrito na .. Conservatória do Registo Predial ....., com o n.° ..../....105  já era dos autores.

b) Declarou nula e de nenhum efeito a hipoteca voluntária a favor da ré que incide sobre o imóvel descrito em a).

c) Declarou nulo e de nenhum efeito o registo que incide sobre o imóvel descrito em a) Ap. 11 de 2002/11/08, onde se encontra registada a Hipoteca Voluntária a favor da de Caixa Económica Montepio Geral, para garantia de um empréstimo no valor de € 47.400,00.

d) Determinou o cancelamento do registo referido em c).


5. Inconformada com o assim decidido, a ré  interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação ….., por acórdão proferido a 02 de Maio de 2017, decidido anular  a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância, bem como todos os atos praticados desde a data da designação da Audiência, determinando, sem prejuízo de outros meios de prova julgados pertinentes, a renovação de toda a prova indicada pelas partes e a audição de DD, identificada nos autos, após que, deverá ser proferida nova decisão.


6. Repetido o julgamento em 1.ª Instância, foi proferida nova sentença que julgou a presente ação totalmente improcedente e, consequentemente, absolveu a ré Caixa Económica Montepio Geral do pedido.


7. Inconformados com esta decisão, dela apelaram os autores para o Tribunal da Relação ….., que, por acórdão proferido, em 15.09.2020, julgou procedente a apelação e, alterando a matéria de facto, revogou a sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância e, consequentemente:

a) Condenou a ré/apelada Caixa Económica Montepio Geral a reconhecer que à data do registo da hipoteca a seu favor, o direito de propriedade sobre a fração designada pela letra “..” - correspondente ao 2.ª andar direito-frente do prédio urbano sito no n.° 2, ......, ........, ........, concelho ....., descrito na ..ª Conservatória do Registo Predial ...., com o n.° ..../.....105  - já era dos AA./Apelantes;

b) Declarou nula e de nenhum efeito a hipoteca voluntária a favor da Ré/Apelada, que incide sobre o imóvel descrito em a);

c) Declarou nula e de nenhum efeito o registo que incide sobre o imóvel descrito em a: Ap. 11 de 2002/11/08, onde se encontra registada a Hipoteca Voluntária a favor da Caixa Económica Montepio Geral, para garantia de um empréstimo no valor de € 47.400,00;

d) Determinou o cancelamento do registo referido em c).


8. Inconformada com este acórdão, a ré dele interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

« I. O segmento “o Ponto 5 dos Factos Provados passe a integrar a matéria de Facto Não Provada sob a alínea a).” constitui uma determinação surpreendente e arbitrária.

II. Não resultou de qualquer exame crítico da prova produzida em audiência ou junta aos autos.

III. O tribunal a quo não analisou criticamente as provas nem especificou quaisquer fundamentos que reputasse de decisivos para a sua convicção.

IV. Tendo produzido uma decisão final, na verdade, sem especificação de facto.

V. Em clara violação do entendimento plasmado no primeiro Ac. da Relação …, datado de 2017.05.02: “Sempre se dirá, no entanto, e por forma a não inquinar uma segunda apreciação dessa matéria, que o único facto dado como Não Provado não tem qualquer substrato de facto que o possa sustentar. Aliás, a Motivação apresentada quanto ao mesmo é quase que contrária ao que é o circuito normal que qualquer entidade bancária prossegue para a concessão de um mútuo pelo que, nunca aquela materialidade poderia ser mantida nos termos em que o foi e com a Motivação ali apresentada.”,

VI. Em directo confronto com a decisão [fundamentada] da 1.ª instância, que considerou como facto provado: “5) Aquando da declaração do contrato de mútuo com hipoteca, a ré não tinha conhecimento de qualquer pretensão dos autores em como se consideravam proprietários da fração “..” identificada na alínea C).”.

VII. E ultrapassando as próprias questões apresentadas pelos autores nas suas conclusões, delimitadoras do próprio objecto do recurso.

VIII. A determinação indicada em I., teve directa influência na solução de direito aplicada ao afastar o cumprimento do único requisito em falta para a aplicação do artigo 291.º do Código Civil: a boa-fé.

IX. A nulidade da decisão indicada em I., deverá suportar diferente solução jurídica para o caso sub judice, determinando o reconhecimento do direito da recorrente à manutenção da sua hipoteca.

X. À semelhança da solução preconizada no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 2016.07.07 (Processo n.º 487/14.1TTPRT.P1.SI), não pode estar vedado ao STJ a verificação desta arbitrariedade que impõe uma solução jurídica construída sobre a transformação infundada de um facto provado em não provado, sem qualquer exame crítico prévio e escrutinável.

Por fim,

XI. O acórdão em crise, por não conter a assinatura de todos os juízes, viola igualmente a alínea a) do artigo 615.º do CPC.

XII. A decisão em crise, viola entre outros, os artigos 607.º, 615.º, alíneas a) e b) e 662.º do Código do Processo Civil ».

Termos em que requer seja revogado o acórdão recorrido.

9. Os autores responderam, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1. O Tribunal da Relação ….., no seu douto acórdão, deixou bem explícito que …« Nesta apreciação será considerada toda a prova carreada para os autos…», como é de lei e como concretizou fundadamente - e como resulta da leitura atenta do acórdão; e

2. Entre toda a prova carreada para os autos não está, nem consta em lado algum, a prova da boa fé do recorrente, maxime de que desconhecia a existência de um contrato de arrendamento entre a pessoa a quem emprestou dinheiro e os autores/proprietários do imóvel - o que o Tribunal recorrido não podia deixar de conhecer, apreciar e daí retirar as devidas consequências legais, exercendo um poder que a lei lhe confere e que não é sindicável por este alto Tribunal, uma vez que não ocorre nenhum dos requisitos que permitiriam essa revista.

3. Nunca prescindindo do que vem de dizer-se: o Tribunal recorrido teve ainda o cuidado adicional de consolidar as bases do seu acórdão na manifesta inoponibilidade da posição do Banco recorrente face aos autores.

4. Concluindo, oportunamente e acertadamente que os autores e o réu não são terceiros entre si, sendo assim inaplicável o artigo 291º do Código Civil como insiste o réu,

5. E à data da constituição da hipoteca já os autores eram proprietários da fracção, com os efeitos da aquisição por usucapião a retroagirem ao momento do início da posse.

6. O que, por si só, implica a nulidade da hipoteca e o consequente cancelamento do seu registo; existindo mesmo a impossibilidade legal de sobre o prédio ser constituída hipoteca.

7. Na definição assente na jurisprudência que é hoje letra de lei, Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si. – artigo 5º, n.º 4 do Código do Registo Predial.

8. Autores e réus não adquiriram de autor comum, não só porque a aquisição dos autores é originária, proveniente da usucapião; como o réu não é adquirente, pois limitou-se a constituir um direito real de garantia, e fê-lo sobre um putativo direito de propriedade da (sua) mutuária».

Termos em que pugna pela manutenção do acórdão recorrido.


10. Após os vistos, cumpre apreciar e decidir.



***



II. Delimitação do objeto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação dos recorrentes, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].


Assim, a esta luz, as questões a decidir consistem em saber se:


1ª- o acórdão recorrido enferma da nulidade prevista no art. 615º, nº1, al. a), do CPC, por não conter a assinatura dos Juízes Desembargadores Adjuntos. 


2ª- o Tribunal da Relação ao alterar a decisão sobre a matéria de facto violou o disposto no art. 605º, nº 7, do CPC.


***


III. Fundamentação


3.1. Fundamentação de facto


Factos Assentes, por resultarem de documentos autênticos:

A) Correu termos no extinto ..° Juízo Cível do Tribunal de Comarca e de Família e Menores ...... uma ação declarativa sob a forma ordinária com o n.° 4436/03......, em que foi autora e reconvinda DD e foram réus e reconvintes AA e BB (certidão de fls. 17-68).

B) Nesse processo foi proferida sentença, transitada em julgado em 24 de janeiro de 2013, decidindo:

“A) Julgar a ação improcedente e em consequência absolver os réus de todos os pedidos;

B) Julgar o pedido reconvencional procedente e em consequência:

a. Declarar adquirido por usucapião o direito de propriedade a favor de  AA e BB sobre a fração designada pela letra “..”, correspondente ao ..º andar direito-frente do prédio urbano, sito no n.° .. da ........., ........., ......., concelho ......, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial ......, com o n.° ….. do Livro B-sessenta e sete;

b. Declarar nulo, nos termos do art.° 892° do Código Civil o contrato de compra e venda outorgado entre a Autora e Capaul – Investimentos Imobiliários, Lda. por escritura pública em 27 de janeiro de 2003 no ..° cartório Notarial …..;

c. Condenar a Autora a reconhecer o direito de propriedade dos réus, sobre a fração “..” supra referida e a manutenção do contrato de arrendamento celebrado entre a Autora e o Réu e tendo por objeto a fração “..” supra mencionada. ” (certidão de fls. 17-68).

C) A fração “..” acima referida encontra-se atualmente descrita sob o número ..../....0105  da freguesia …… na ..ª Conservatória do Registo Predial ......, estando descrita a sua composição como “segundo andar direito frente -habitação” (certidão de fls. 69-70).

D) A aquisição a favor de AA e BB encontra-se registada a favor destes pela apresentação n.° 32 de 27 de abril de 2007, convertida em definitiva pela apresentação n.° 1061 de 4/6/2013 (certidão de fls. 69-70).

E) A fração autónoma “..” mostra-se descrita na matriz predial urbana da União de Freguesias .......... e ........ sob o artigo .. (certidão de fls. 71-72).

F) Sobre a fração autónoma “..” acima identificada mostra-se registada, pela apresentação n.° 11 de 8/11/2002 uma hipoteca voluntária a favor da “Caixa Económica Montepio Geral”, pelo capital de 47.400,00€, sendo 65.459,40€ o montante máximo assegurado (certidão de fls. 6970).

G) Por escritura pública outorgada em 27 de janeiro de 2003 no Cartório Notarial de Almada, denominada de “Compra e venda e mútuo com hipoteca” foram outorgantes “Capaul – Investimentos Imobiliários, Lda.”, DD, Caixa Económica Montepio Geral e EE, tendo os segundo e terceiro outorgantes ali declarado “que é celebrado o presente contrato de mútuo com hipoteca nos termos das cláusulas constantes do documento complementar anexo, que expressamente declaram conhecer e aceitar e que faz parte integrante da presente escritura, e ainda das seguintes cláusulas: (…) CLAUSULA TERCEIRA Para garantia do integral cumprimento das obrigações assumidas no presente contrato, a parte devedora constitui a favor da CEMG hipoteca voluntária sobre a fração autónoma acima identificada à qual atribuem o valor de sessenta e um mil quatrocentos e cinquenta euros. (…).” (certidão de fls. 92-107).

I) Em 8 de novembro de 2002, a sequência das inscrições sucessivamente em vigor no registo predial, relativamente à fração M identificada em C), então correspondente ao prédio n.° …… do Livro B-67, era a seguinte:

- Constituição de propriedade horizontal pela apresentação n.° 18 de 21/4/1978;

- Aquisição pela “Capaul – Investimentos Imobiliários, Limitada”, por compra, pela apresentação n.° 1 de 15/05/1985;

- Aquisição (provisória por natureza) por DD, por compra, pela apresentação n.° 10 de 8/11/2002;

- Hipoteca voluntária (provisória por natureza) a favor da Caixa Económica Montepio Geral, pelo capital de 47.400,00€, sendo 65.459,40€ o montante máximo assegurado (certidão de fls. 372-381).

Factos Provados em Audiência:

1) Por documento escrito datado de 10 de julho de 1987, cuja cópia consta de fls. 356v.° e 357 dos autos, AA deu de arrendamento a DD o 2° andar direito frente do prédio.

2) DD pagou rendas, que entregou a FF, em datas e montantes não apurados, tendo passado períodos superiores a um ano sem as pagar.

3) O autor pagou despesas correntes e com obras do condomínio do prédio respeitantes ao período temporal situado entre março de 1997 e o ano de 2003.

4) A ré negociou com DD a celebração do mútuo identificado na alínea G).

5) Os AA. praticaram atos de detenção e fruição da fracção “..” à vista de toda a gente, sem ininterrupção e oposição de ninguém.


*


Factos Não Provados:

a) Aquando da declaração do contrato de mútuo com hipoteca, a ré não tinha conhecimento de qualquer pretensão dos autores em como se consideravam proprietários da fração “..” identificada na alínea C). [ factos constantes do ponto 5 dos dados como provados pelo Tribunal de 1ª Instância e  considerados  não provados pelo Tribunal da Relação]

b) Que tenham sido os antepossuidores da fração “..”;

c) Que os autores tenham arrendado a fração “..” a outras pessoas, além de DD.


***



3.2. Fundamentação de direito


3.2.1. Conforme já se deixou dito, o objeto do presente recurso prende-se, essencialmente,  com a questão de saber se o  Tribunal da Relação, se o acórdão recorrido enferma da nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. a), do CPC, por não conter a assinatura dos Juízes Desembargadores que fizeram parte do Coletivo e se  o  Tribunal da Relação ao alterar a decisão sobre a matéria de facto violou o disposto no art. 605º, nº 7, do CPC.


3.2.1. Nulidade do acórdão recorrido

Sustenta a recorrente que o acórdão recorrido enferma da nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. a), ex vi art. 666º, nº 1, ambos do CPC, por não conter a assinatura de todos os juízes.

Carece, contudo, de qualquer razão, pois basta atentar na indicação constante da parte superior esquerda da primeira página deste acórdão bem como no teor da “Ata de Sessão e Julgamento”, datada de 15.09.2020, para facilmente se constatar que o mesmo foi assinado, pela Senhora Juíza Desembargadora Relatora e pelos Senhores Juízes Desembargadores Adjuntos.

Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, se julga improcedente a invocada nulidade.   


*


3.2.2. Violação do disposto no art. 605º, nº 7 do CPC por falta de análise crítica da prova. 

Argumenta a recorrente que o Tribunal da Relação ao considerar não provados os factos constantes do ponto 5 dos factos dados como provados pelo Tribunal de 1ª Instância, sem ter procedido a qualquer exame crítico da prova produzida em audiência ou junta aos autos e sem ter especificado os fundamentos  que reputou de decisivos para a formação da sua convicção, violou o disposto no art. 605º, nº 7 do CPC, constituindo, por isso, a alteração da decisão sobre este ponto da matéria de facto uma decisão surpreendente, arbitrária e em direto confronto com a decisão fundamentada da 1.ª instância.


Vejamos.


Como é sabido, no que concerne à reapreciação da decisão de facto, incumbe ao Tribunal da Relação formar a seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em 1.ª instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC, em ordem a verificar a ocorrência de erro de julgamento.

E, nesta matéria, cabe apenas ao Tribunal de revista ajuizar se o Tribunal da Relação, no desempenho daquela sua função, observou, quer a disciplina processual a que aludem os arts. 640º e 662º, nº 1, quer o método de análise crítica da prova prescrito no art. 607º, nº 4, aplicável por força o disposto no art. 663º, nº 2, todos do CPC, sem imiscuir-se na valoração da prova feita pelo Tribunal da Relação, segundo o critério da sua livre e prudente convicção.

Só quando o critério de valoração das provas seguido pelo Tribunal da Relação ofende uma disposição legal expressa que exija espécie de prova diferente para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova, ou ainda quando aquela apreciação ostente juízo de presunção judicial revelador de manifesta ilogicidade ou assente em   factos não provados, é que, nos termos  nos termos do artigo 674.º, n.º 3, do CPC, é permitido ao Tribunal de revista sindicar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, visto estarmos, nestes casos,  perante verdadeiros erros de direito  e,  nesta perspetiva, se integrarem na esfera de competência do Supremo Tribunal de Justiça [2].


No caso em apreço, o Tribunal de 1ª instância, deu como assente, no ponto 5 dos factos dados como provados na sentença,  que « Aquando da declaração do contrato de mútuo com hipoteca, a ré não tinha conhecimento de qualquer pretensão dos autores em como se consideravam proprietários da fração “..” identificada na alínea C) ».

E fê-lo com base na seguinte fundamentação:

« Quanto ao facto provado sob a alínea 5), é o que resulta, conjugadamente, dos depoimentos e documentos referidos quanto à alínea 4), e da circunstância de, previamente à celebração do mútuo com hipoteca, a fração “..” estar registada a favor da “Capaul” e não dos ora autores. Não existe qualquer elemento nos autos do qual resulte que o réu tenha alguma vez sido informado de que existia um contrato de arrendamento em que o autor figurava como senhorio. Nenhuma testemunha depôs nesse sentido. A testemunha DD disse, pelo contrário, que nunca tinha mencionado o Sr. AA junto do banco réu. Ora, de acordo com as regras da experiência comum, isto é prova bastante do facto desta alínea, porquanto se o Banco tivesse alguma suspeita da existência de um litígio quanto à propriedade da fração autónoma, ou até conhecimento do contrato de arrendamento junto aos autos, expectável seria que recusasse aprovar a proposta de crédito. Os bancos visam o lucro, são empresas altamente organizadas e especializadas na análise de documentos e na avaliação do risco na concessão de crédito, sendo sua prática a recusa de crédito em situações duvidosas, que periguem a garantia real exigida. As regras da experiência comum levam-nos a considerar credível o depoimento de DD, pois seria contrário aos interesses desta, no momento em que procurou um banco que lhe concedesse empréstimo, relatar factos que pudessem criar dúvidas e pôr em perigo a aprovação do empréstimo».


Por sua vez, o Tribunal da Relação, em sede de decisão da impugnação da matéria de facto, deu como não provados os factos constante daquele ponto 5, com base na seguinte fundamentação, que se transcreve apenas nas partes que consideramos relevantes:  

«Analisemos, pois, a prova existente nos autos, quer a documental quer a testemunhal, à luz das regras processuais que regulam esta matéria, nos termos enunciados pelo artigo 607.º, n.ºs 4 e 5 do Código de Processo Civil Revisto.

Nesta reapreciação será considerada toda a prova carreada para os autos e que, por sua vez e por parte do senhor Juiz do Tribunal de 1.ª Instância, teve presente os factos alegados pelas partes nos respetivos articulados e na Audiência Prévia, bem como aqueles de que é lícito ao tribunal conhecer, assim como os factos complementares ou concretizadores de outros oportunamente alegados e que tenham decorrido da instrução, e que foram considerados como relevantes para a resolução da ação – com exclusão dos factos que se mostraram inequivocamente desnecessários para tal efeito -, atentas as regras, gerais ou especiais, de distribuição do ónus da prova, e tendo sempre presente o quadro de soluções de direito plausíveis que o tribunal pudesse vir, a final, a considerar, nos termos do disposto no artigo 5.º, n.ºs 2 e 3 do citado diploma legal.

(…)

Independentemente da matéria de facto que consta do acórdão do STJ, proferido no âmbito do Proc. 4436/03......, já transitado em julgado (constante do Ponto A) dos Factos Provados), em que se reconheceu que os aqui AA./Apelantes adquiriram o direito de propriedade sobre a fração “..”, aqui em apreciação, por usucapião, declarando a nulidade do contrato de compra e venda dessa fração, que tinha sido celebrado entre DD e a Capaul, Lda, a verdade é que há prova mais que suficiente nestes autos para se determinar que estes factos passem a constar como Provados, neste processo.

Com efeito, analisando desde logo o conteúdo do contrato de arrendamento celebrado entre os aqui AA./Apelantes, na qualidade de senhorios, e a mencionada  DD, na qualidade de arrendatária, e onde consta como fiador o pai desta, ………., celebrado a 10 de Julho de 1987, temos que a posição de cada um dos intervenientes é ali claramente identificada – fls. 356 verso e 357 dos autos.

Acresce que este contrato de arrendamento teve a assinatura dos seus intervenientes reconhecida, por Notário, e apenas veio a findar com a entrega do locado, na sequência de ação de despejo instaurada pelo senhorio contra a inquilina, em 1998, com base na falta de pagamento de rendas - fls. 357 verso a 359 dos autos e Ponto 1 dos Factos Provados, corroborado pelas declarações apresentadas pela testemunha DD, como o próprio Tribunal de 1.ª Instância refere, na Motivação apresentada na sentença proferida.

O Ponto 2 dos Factos Provados é elucidativo a este respeito uma vez que ali claramente se afirma que DD entregava as rendas respeitantes a este arrendamento a FF.

Por sua vez, esta mesma fração – fração “..” a que nos temos vindo a referir -, na sequência da constituição da propriedade horizontal do prédio em que se encontra inserida (ocorrida a 21 de Abril de 1978), encontra-se inscrita a favor dos AA./Apelantes, na respectiva matriz predial urbana desde 24 de Janeiro de 2013, na sequência do trânsito em julgado da sentença proferida no âmbito do já mencionado Proc. 4436/03......, que ocorreu em 24 de Janeiro de 2013, na sequência de acórdão do STJ.

Esta fração encontra-se também registada provisoriamente na Conservatória do Registo Predial ...... a favor dos aqui AA./Apelantes, desde 27 de Abril de 2007. Este registo tornou-se definitivo em 04 de Junho de 2013, na sequência do trânsito em julgado do acórdão do STJ, acima identificado.

Todo o demais circunstancialismo ligado à não realização das escrituras públicas de algumas das frações adquiridas pelos aqui AA./Apelantes, entre as quais, a aqui fração “..”, foram explicadas pelo A. nas declarações prestadas em Audiência de Julgamento, nada havendo que as possa colocar em crise neste momento.

O simples facto de se considerarem como válidas e credíveis as declarações prestadas por uma parte, por si só, não pode ser impeditivo da sua aceitação como meio de prova, sob pena de não fazer qualquer sentido proceder à sua audição.

(…)

Podemos assim concluir que, tal como decorre do artigo 466.º, n.º 1, do Código de Processo Civil Revisto, é permitido às partes requererem a prestação de declarações que constitui um verdadeiro “direito à prova” no sentido de a parte deve ter acesso “à produção de todos os meios de prova que possam ser relevantes e admissíveis no caso concreto”, ressalvado que se encontra que tal prova está sujeita à livre apreciação do julgador.

Ora, de todo o conteúdo de tais declarações de parte, entroncadas que se encontram na prova documental existente nos autos, nada há que permita a sua não consideração em sede de prova validamente prestada, sendo certo que não foram apresentadas contra-alegações de recurso que pudessem demonstrar distinta consideração.

Assim sendo, da análise desta prova resulta como provada a qualidade de proprietário do imóvel aqui em análise – fração “..” -, em conformidade, aliás, com idêntica conclusão àquela que consta do Proc. 4436/03......, já acima referido.

Também como consta do Ponto 3 dos Factos Provados:

“O autor pagou despesas correntes e com obras do condomínio do prédio respeitantes ao período temporal situado entre março de 1997 e o ano de 2003”.

Ora, a prova realizada pelo Tribunal de 1.ª Instância quanto a esta materialidade sempre poria em causa, por contradição, a matéria dada como Não Provada na respectiva Alína c), que tem o seguinte conteúdo:

“Que os autores tenham pago qualquer despesa com reparações e manutenção da fração autónoma “..””.

Com efeito, a materialidade acima transcrita não pode, evidentemente, constar simultaneamente como Provada” e “Não Provada”.

Assim sendo, e tendo presente esta constatação e o conteúdo dos documentos apresentados a fls. 326 verso a 346 verso – que não foram objeto de impugnação, conforme se refere na Motivação da sentença em análise -, temos como comprovado que os AA./Apelantes suportaram o pagamento das despesas de condomínio desta fração, cuja administração era, naquela altura, realizada pela empresa de gestão de condomínios Gepur, Lda, que enviava os respetivos comprovativos ao proprietário, residente em ... .

Comprovado encontra-se ainda que os AA./Apelantes suportavam as despesas de conservação do prédio em que aquela fração se inseria.

Em face do exposto, determina-se que o facto constante do Ponto b) dos Factos Não Provados passe a integrar os Factos Provados e que a alínea c) daqueles Factos Não Provados seja eliminada por estar em contradição com o que consta do Ponto 3 dos Factos Provados, amplamente provado pelos documentos juntos ao processo.

Temos assim que, pelo menos desde 10 de Julho de 1987, que os aqui AA./Apelantes comportam-se perante terceiros, mormente perante a arrendatária deste imóvel, como proprietários da fração “..”, com quem tinha celebrado o contrato de arrendamento acima referido, facto que esta, seguramente, não podia ignorar. Se esta inquilina comunicou este facto, ou não, à aqui Ré/Apelada, Montepio Geral, é matéria que se ignora sendo incontornável que se trata de um facto cuja prova incumbia à aqui Ré/Apelada, enquanto facto extintivo do direito dos aqui AA./Apelantes – artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil.

O facto de o Montepio Geral desconhecer a existência de um contrato de arrendamento entre a mencionada DD e os aqui AA. é matéria que importava estar provada para a decisão a proferir neste processo, sendo certo que sempre seria inoponível aos aqui AA./Apelantes, como mais à frente se explicará. Certo é que, na ausência de tal prova, e segundo a repartição do ónus da mesma, a consequência sempre seria de se considerar que a Ré não actuou de boa-fé ao proceder ao registo do ónus e, consequentemente, não lhe pode ser reconhecido o direito à manutenção da hipoteca.

Assim sendo, determina-se que o Ponto 5 dos Factos Provados passe a integrar a matéria de Facto Não Provada sob a alínea a).»

Que dizer ?


Desde logo que, traduzindo os poderes de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto contidos no  art. 662º, do CPC, um verdadeiro e efetivo 2º grau de julgamento da matéria de facto, evidente se torna  não poder o Tribunal  da  Relação eximir-se, por um lado,  do dever de  realizar a  análise crítica dos meios de prova existentes nos autos, prescrito no art. 607º, nº 4,  aplicável por força o disposto no art. 663º, nº 2, todos do CPC,  conjugando, ente si, as provas indicadas em fundamento da impugnação e contextualizando-as, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar  a sua própria convicção.

E, por outro lado, do dever de fundamentação do juízo de valoração da prova que formulou sobre cada um dos pontos da matéria de facto em confronto, de modo a explicar e justificar a sua própria e autónoma convicção.

De realçar que, contrariamente ao que parece defender a recorrente, não obstante o papel relevante da imediação na formação da convicção do julgador e de essa  imediação estar mais presente no Tribunal da 1.ª Instância, daí  não se retira que a convicção formada pelo julgador na 1ª instância deva, sem mais, prevalecer sobre o juízo probatório  formado pelo Tribunal da Relação  sobre cada um dos factos julgados em 1.ª instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, ambos  do Código Processo Civil, em ordem a verificar a ocorrência de erro de julgamento.

Ora, no caso dos autos, basta atentar no despacho de fundamentação supra transcrito para  se concluir que o Tribunal da Relação,  não só realizou a  indispensável reapreciação e análise crítica dos meios de prova existentes nos autos, conjugando-os, entre si e com a demais factualidade dada como provada, como indicou as razões pelas quais considerou  como não provados os factos constantes no ponto 5 dos factos dados como assentes pelo Tribunal de 1ª Instância.

E sendo assim, evidente se torna não poder deixar de prevalecer  o juízo probatório  formado pelo Tribunal da Relação sobre tal factualidade, tanto mais que,  no  confronto entre a fundamentação do Tribunal da 1.ª instância e a do Tribunal da Relação, não se depreende que, na apreciação do ponto de facto em referência, o tribunal a quo tenha infringido qualquer norma legal nem se descortina  que a apreciação do Tribunal a quo colida com qualquer elemento concreto e específico resultante da imediação do juiz da 1.ª instância.   

Daí que, mantendo-se inalterada a decisão da matéria de facto que foi fixada pelo Tribunal da Relação, inexista motivo para questionar os efeitos jurídicos que o acórdão recorrido dela extraiu.

Improcedem, por isso, todas as razões da recorrente.


***


IV – Decisão


Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas da revista a cargo da recorrente.

Notifique.


***


Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade da Exmª. Senhora Conselheira Catarina Serra e do Exmº Senhor Conselheiro João Cura Mariano que compõem este coletivo.

***



Supremo Tribunal de Justiça, 14 de julho de 2021

Maria Rosa Oliveira Tching (relatora)

Catarina Serra

João Cura Mariano

________

[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[2] Neste sentido, cfr. Abrantes Geraldes, in, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018- 5ª Edição, pág.432.