INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
DESPACHO SANEADOR
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
Sumário


I. Nos termos conjugados dos arts. 186.º, n.º 1, 200.º, n.º 2 e 595.º, n.º 3, do CPC: (i) a ineptidão da petição inicial gera a nulidade do processado, a qual deve ser oficiosamente conhecida no despacho saneador, se não o foi em momento anterior; (ii) a decisão, em sede de despacho saneador, sobre tal matéria, forma caso julgado formal se tiver havido pronunciamento concreto e específico sobre a mesma, e, inversamente, não forma caso julgado se o pronunciamento for de carácter genérico; (iii) não havendo lugar a despacho saneador, a nulidade por ineptidão da p.i. pode ser conhecida até à sentença.
II. No caso dos autos, ocorreu um pronunciamento genérico e não concreto pelo que, com o despacho saneador, não se formou caso julgado formal; contudo, precludiu a possibilidade de conhecimento da ineptidão da petição inicial, não podendo tal questão ser inovatoriamente apreciada em sede de recurso de apelação.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. Massa Insolvente da Alfaiataria Mestre Aviz, Sociedade Unipessoal, Lda. intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, com base em requerimento de injunção, contra Cenariomotriz, Sociedade Unipessoal, Lda.

Alegou, em síntese, que no âmbito da sua actividade comercial, a sociedade Alfaiataria Mestre Aviz, Sociedade Unipessoal, Lda. forneceu à sociedade R. um conjunto de mercadorias e materiais “constantes no seu objecto social”, entregues nas datas acordadas, fornecimentos esses titulados pelas facturas que discriminou.

Mais alegou que a R. apenas pagou parte dos valores facturados, encontrando-se ainda em dívida o valor de €33.973,14, acrescido dos juros de mora a contar da respectiva data de emissão.

Terminou pedindo a procedência da acção e, em consequência, a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de €33.973,14, acrescida dos juros de mora vencidos, no montante de €18.812,05, bem como de outras quantias, no montante de €153,00, e de taxa de justiça, no valor de €153,00.

A R. contestou, impugnando a factualidade alegada e pedindo a condenação da A. como litigante de má-fé. Alegou, em suma, não ser devedora de qualquer importância, considerando que a A. não identifica o “conjunto de mercadorias e materiais” que alegadamente foi vendido nem identifica as datas em que alegadamente foram entregues. E que não o faz por ter a consciência que o que alega no requerimento inicial não tem o mínimo de correspondência com a verdade.

Notificada, a A. veio juntar prova documental.

A R., por sua vez, no exercício do respectivo contraditório, veio impugnar os aludidos documentos.

Em 1 de Junho de 2020 foi proferida sentença, que decidiu:

«… julgo parcialmente procedente a presente acção e, em consequência, condeno a ré Cenariomotriz, Sociedade Unipessoal, Lda, a pagar à autora Massa Insolvente Alfaiataria Mestre Aviz, Sociedade Unipessoal, Lda a quantia de € 33.973,14 (trinta e três mil, novecentos e setenta e três euros e catorze cêntimos), acrescida de juros de mora, às taxas previstas na Portaria n° 277/2013, de 26.08, por força do disposto no art.º 102°, do Cód. Comercial, contabilizados o partir do citação e até integral pagamento, absolvendo-a do restante pedido.

Julga-se improcedente o pedido de condenação da autora como litigante de má-fé».

Inconformadas, ambas as partes interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do …, tendo a R. invocado, pela primeira vez, a ineptidão da petição inicial.

Por acórdão de 15 de Dezembro de 2020, foi decidido o seguinte:

«Nestes termos, acordamos em julgar a apelação da Ré procedente e, consequentemente, julgamos procedente a excepção dilatória invocada pela mesma, absolvendo-a, em consequência, da instância.»


2. Vem a A. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«1. O Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação …., doutamente composto por 19 páginas, resolve o litígio que separa as partes em 8 curtíssimos parágrafos, e que, em súmula, conclui pela ineptidão da petição inicial, absolvendo a Ré do pedido, pelas duas e seguintes ordens de razão:

i) O requerimento de injunção, não satisfaz, ainda que sucintamente – cfr. artº 10º nº 2 do DL 269/98), as exigências relativas à concretização da causa de pedir, nem mesmo se considerarmos o conteúdo das faturas que discriminou.

2. Porém, na opinião da autora, tal conclusão viola os factos do caso e o Direito material e adjetivo aplicável, motivo pelo qual se apresenta o presente recurso de revista

3. A resolução que este Colendo Tribunal a final irá proferir não poderá nunca deixar de ter em conta as vicissitudes processuais do presente processo

4. O Venerando Tribunal a quo decidiu em erro, pois é por demais evidente a suficiência da identificação e pormenorização da causa de pedir.

5. Ao contrário da decisão do Venerando Tribunal a quo, a Ré em momento algum impugnam a as faturas, por as mesmas não se encontrarem pagas.

6. A Autora evidencia com clareza na matéria de facto assente, para os quais aqui expressamente se remete, a Autora na sua petição inicial, nos parágrafos da injunção e requerimento provatório, de forma detalhada alegam os respetivos factos geradores do seu direito.

7. É assim ostensivamente evidente que decidiu em erro o Venerado Tribunal da Relação a quo quando afirmou não terem os Autores identificado o facto jurídico sobre qual deriva o seu direito.

8. A Autora identifica com clareza as faturas que não foram pagas.

9. O próprio Meritíssimo Juiz de 1ª Instância deu como assente a existência dessas faturas e que as mesmas não foram pagas pela Ré.

10. A Ré sabe que nunca procedeu ao pagamento daquelas faturas, tal não sendo mais do que uma manobra de não pagamento dados os laços familiares entre a antiga gerência da Autora e da gerência da Ré.

11. O acórdão sub judice viola o caso julgado que, de forma definitiva, já havia decido quanto à aptidão/ineptidão da petição inicial, e, de igual forma, sobre demais vícios ou nulidades quer do processo, quer das peças processuais em causa.

12. Por despacho saneador a fls…, o Ilustre Tribunal de 1ª Instância concluiu pela plena aptidão da petição inicial, não tendo a Ré invocado a existência de ineptidão da petição inicial, pelo contrário, mostraram perfeito conhecimento sobre o objeto dos autos, e não recorreram do douto despacho saneador.

13. Assim, a Ré não consideraram que havia ineptidão da petição inicial, o Meritíssimo Juiz de 1.ª Instância fez despacho saneador considerando não haver ineptidão da petição inicial

14. Posto isto, nos termos do Art. 510º nº 3, do CPC, tal decisão jurisprudencial, por não ter sido alvo de recurso por nenhuma das partes, e após o seu trânsito em julgado, passou a valer como caso julgado.

15. A jurisprudência deste Alto Tribunal, como não poderia deixar de ser, vai no sentido da existência de caso julgado formal relativamente à exceção dilatória de ineptidão da petição inicial, caso, tal como nos autos, tal exceção não seja alegada pela parte interessada na fase dos articulados ou não se apresente recurso do despacho saneador. Assim, e a título de exemplo, veja-se o teor dos Acórdãos melhor identificados em rodapé "33, "34, 35, 36, "37, "38, "39, "40, "41, 42, "43, "44, "45 (1)

16. É esmagadora a Jurisprudência no sentido de retirar à Relação o poder de, nesta fase processual, decidir pela ineptidão da petição inicial, havendo já caso julgado quanto a essa matéria. Pelo exposto, mostra-se claro que o Venerando Tribunal a quo violou o Art. 620.° do Código de Processo Civil, o que fundamenta, nos termos do Art. 674.°, n.° 1, alínea b), também do Código de Processo Civil, o presente recurso de revista.

17. Sem prescindir, mas o que só por mera cautela de patrocínio de concede, mesmo aceitando-se que a petição inicial possa padecer de ineptidão, mal decidiu o Venerando Tribunal a quo, pois nos termos dos Artºs 278.°, n.° 3, e 6.°, n.° 2, ambos do Código de Processo Civil, por se tratar de mera exceção dilatória, deveria ter ordenado a notificação dos Autores para virem corrigir a peça processual defeituosa.

18. Acrescente-se que, nos termos do Art. 590.°, n.° 2, alínea a), do Código de Processo Civil, o Venerando Tribunal a quo estava vinculado à obrigação de notificar os Autores para virem a juízo corrigir eventual exceção dilatória identificada.

19. Mesmo que o vício processual só tenha sido identificado nesta fase processual de recurso, isto é, largo tempo após o despacho saneador, tal não liberta o Julgador da obrigação legalmente imposta de cooperação com as partes, e, mais importante ainda, do princípio geral de direito que dá primazia às decisões de mérito sobre as decisões de forma. (Ac RC, de 14.05.2013, Proc. 2665/10.6TJCBR.C1, in www.dgsi.pt)

20. Concomitantemente ainda, o Venerando Tribunal a quo violou de forma absoluta do Art. 3.°, n.° 3, do Código de Processo Civil: "O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem."

21. Ora, o Venerando Tribunal a quo não deu oportunidade aos Autores para se pronunciarem sobre a exceção dilatória julgada procedente. A jurisprudencial nacional tem sido muito clara na obrigatoriedade imposta pelo Art. 3.°, n.° 3, do Código de Processo Civil, e a denominada proibição das decisões surpresa, tal e qual como a do Tribunal a quo. Veja-se, a título de exemplo" (2)

22."4. Decisão surpresa é aquela que comporta uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado no processo."3

23. E, especificamente quanto à excepção dilatória de ineptidão da petição inicial, aqui se invoca o seguinte acórdão: "I - O conhecimento oficioso, pelo juiz, da nulidade de todo o processado por ineptidão da petição inicial, realizado imediatamente após os articulados, sem que seja dada a oportunidade a qualquer das partes de se pronunciar sobre tal matéria de direito -decisiva para a sorte do pleito -, até então perfeitamente omitida nos autos, constituiu uma decisão surpresa, que ofende o princípio consignado no art° 3°, n° 3,do Cod. Proc. Civil." 24.A decisão a quo é um caso flagrante de violação do princípio do máximo aproveitamento dos atos processuais que conforma o nosso processo civil - apesar de tal princípio não constar expressamente de nenhum artigo do Código de Processo Civil, são vários os seus afloramentos, por exemplo: Artºs 6º, nº 2, 195º, nº 2, 595º, nºs 2, 3 e 4, 614º, e 615º, todos do Código de Processo Civil.

25. Foi extensa a prova produzida - documental e testemunhal -, foram numerosas as peças processuais escritas pelas partes, Ilustres Magistrados já gastaram em conjuntos várias horas a ouvir prova, analisar o processo e a escrever sentenças e acórdãos. Porém, todo este trabalho, de uma só vez e sem a devida moderação, é destruído por uma decisão absolutamente antagónica e conflituosa com todas as produzidas anteriormente.

26. Não pode ainda este Colendo Tribunal deixar de ter em conta a forma como o cidadão comum -o omnipresente bonus pater famílias.

27. Pelo exposto, mostra-se claro que o Venerando Tribunal a quo violou os Artºs 278.°, n.° 3, 6.°, n.° 2, 590.°, n.° 2, alínea a), e 3.°, n.° 3, todos do Código de Processo Civil e o princípio do máximo aproveitamento dos actos processuais, o que fundamenta, nos termos do Art. 674.°, n.° 1, alínea b), também do Código de Processo Civil, o presente recurso de revista.

28. Ora, mesmo aceitando-se a existência de deficiência na elaboração da petição inicial, o que só por mera cautela de patrocínio se concede, a Ré perceberam perfeitamente qual o alcance do peticionado pela Autora.

29. Basta a mera leitura da contestação da Ré para se perceber o alcance do seu conhecimento, para cujo teor se remete expressamente.

30. Cumpre analisar a Lei, chamando-se à colação o Art. 186.°, n.° 3, do Código de Processo Civil;

31. E a jurisprudência tem sido clara na sua interpretação:" nomeadamente aquela que tem defendido que, mesmo mantendo-se a ineptidão da petição inicial, se a parte contrária mostrar entendimento quanto aos factos em litígio, o processo deverá prosseguir os seus ulteriores termos - "5

32. Pelo exposto, e em conclusão, mostra-se claro que o Venerando Tribunal a quo violou o Art. 186.°, n.° 3, do Código de Processo Civil, o que fundamenta, nos termos do Art. 674.°, n.° 1, alínea b), também do Código de Processo Civil, o presente recurso de revista.

33. O sucedido nos presentes autos de igual forma contende com o que se prescreve na Constituição da Republica Portuguesa, em especial o seu Art. 20.°, nº 4:

34. Atente-se nas ilustres palavras de JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS: "O direito ao processo, conjugado com o direito à tutela jurisdicional efectiva, impõe, por conseguinte, a prevalência da justiça material sobre a justiça formal, isto é, sobre uma pretensa justiça que, sob a capa de «requisitos processuais», se manifeste numa decisão que, afinal, não consubstancia mais do que uma simples denegação de justiça.")

35. Entendimento este que, diga-se, é sufragado pela melhor jurisprudência nacional. A título de exemplo invoca-se aqui: "II - Quando uma petição inicial, embora imperfeita, é suficientemente explícita para permitir a qualquer declaratário normal colocado na posição do real declaratário (art. 236° do CC) ou a um diligente bom pai - e mãe - de família (art. 487° n.° 2 CC), compreender os contornos da relação material controvertida, mesmo que esses contornos não se encontrem claramente definidos, o Juiz do processo está vinculado ao dever de convidar a Autora a aperfeiçoar o seu articulado inicial, nos termos definidos no n.° 3 do art. 508° do CPC. III - Na verdade, sendo a função constitucional dos Juízes administrar a Justiça em nome do Povo (n.° 1 do art. 202° da Constituição da República Portuguesa), têm os mesmos que, dentro dos limites da Lei e obedecendo às regras previstas nos três números do art. 9º do CC - mas dando particular ênfase ao n.° 3 que faz apelo às «soluções mais acertadas» -, tudo para fazer dirimir/eliminar os conflitos que são submetidos aos seu julgamento, nomeadamente interpretando os normativos que consagram os direitos das partes e a validade dos seus actos sempre no sentido do alargamento desses direitos e nunca da sua restrição. IV - Era já esse o entendimento dos jurisconsultos da Roma Antiga que, bem antes de Cristo, proclamavam favorabilia amplianda, odiosa restringenda, brocardo que se encontra consubstanciado no princípio do máximo aproveitamento dos actos processuais das partes, de que o n.° 2 do art. 201° do CPC é um mero afloramento. V. Sendo também isso que se estipula no n.° 4 do art. 20° da Constituição da República Portuguesa, do qual resulta que o acesso dos cidadãos e demais entidades que interagem no comércio jurídico ao Direito deve ser facilitado e não dificultado ou restringido (Ac. RL, de 17.11.2009: Proc. 3417/08.9TVLSB.L1-1.dgsi.Net)."

36. Pelo exposto, mostra-se claro que o Venerando Tribunal a quo violou os Artºs 20º, n.°4, da Constituição da República Portuguesa e os princípios constitucionais da tutela jurisdicional efectiva e do direito o processo, o que também fundamenta, nos termos do Art. 674.°, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil, o presente recurso de revista.

37. Em síntese: não há ineptidão da petição inicial, mas se existir essa matéria já há muito foi julgada e transitou em julgado; se mesmo assim for este Colendo Tribunal decidir pela ineptidão, o Venerando Tribunal a quo deveria ter notificado a Autora para corrigir a petição inicial e se pronunciarem quanto à exceção; e, por último, mesmo que se entenda a ineptidão da petição inicial de tal modo grave e insanável, nos termos do Art. 186.°, n.° 3, do Código de Processo Civil, a mesma terá de se considerar sempre e forçosamente sanada»

Termina pedindo que seja dado provimento ao recurso, decidindo-se pela não ineptidão da petição inicial.

A Recorrida contra-alegou, concluindo nos termos seguintes:

«1 – O Acórdão recorrido não merece qualquer reparo nem censura, pelo que, deve ser confirmado na íntegra.

2 - Na sua oposição à injunção a recorrida suscitou a insuficiência da descrição dos factos que fundamentam a causa de pedir;

3 – Tendo sido dispensada nestes autos a realização da audiência prévia, não foi conhecida no despacho saneador a suscitada exceção;

4 – Pelo que, no seu recurso da sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, a recorrida alegou e concluiu pela ineptidão da petição inicial e consequentemente a absolvição da instância.

5 – A formulação da causa de pedir, tal como a fez a recorrente nestes autos, é o exemplo mais claro da ineptidão do requerimento inicial.

6 – A recorrida limita-se a alegar que forneceu “um conjunto de mercadorias e materiais constantes do seu objeto social, entregue nas datas acordadas;” sem identificar do objeto social, qualquer mercadoria ou material e nem sequer indicou as datas alegadamente acordadas. Foram fatos? Ou outras peças de vestuário?

7 – Contudo, não se conhece a identificação de uma única mercadoria ou material;

8 – Nem sequer é possível identificar a qualidade, quantidade e preço de alguma mercadoria ou material por remissão para algum documento, até porque, não estão juntas aos autos faturas;

9 - Contrariamente ao que vem alegado pela recorrente neste recurso, esta teve oportunidade de se pronunciar acerca da suscitada ineptidão em sede de contra-alegações do recurso de apelação.

10 – Não seria assim de notificar novamente a recorrente para se pronunciar acerca da possibilidade de se decidir pela procedência de uma das conclusões formuladas no recurso de apelação interposto pela apelante, aqui recorrida;

11 – O Acórdão recorrido conheceu de matéria que devia e podia conhecer face ao recurso interposto pela aqui recorrida;

12 – E, não se encontra violado o disposto no artº 3º nº 3 do Código de Processo Civil nem qualquer outra disposição.»

Termina pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.


3. Com relevância para apreciar as questões objecto de recurso vem provado o que consta do relatório supra.


4. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Assim, o presente recurso tem por objecto as seguintes questões, indicadas por ordem de precedência:

- Ocorre a violação da proibição das decisões-surpresa;

- Transitou em julgado a decisão do despacho saneador no sentido da não verificação de nulidades que obstem ao conhecimento do mérito da causa;

- De todo o modo, a petição inicial não é inepta;

- Se a petição inicial vier a ser considerada inepta, deve entender-se que, nos termos dos arts. 6.º, n.º 2 e 278.º, n.º 3, do CPC, devia ter sido formulado convite ao seu aperfeiçoamento;

- Em qualquer caso, ocorreu a sanação da eventual ineptidão da p.i., nos termos do art. 186.º, n.º 3, do CPC;

- A decisão do tribunal a quo viola os princípios constitucionais da tutela jurisdicional efectiva e do direito a um processo equitativo.


5. Alega a Recorrente que, ao ter decidido pela ineptidão da petição inicial sem previamente notificar a A. para exercer o contraditório, violou o tribunal ‘a quo’ a regra da proibição das decisões-surpresa, consagrada no art. 3.º, n.º 3, do CPC.

Compulsados os autos, constata-se que, nas alegações do recurso de apelação apresentado pela R., veio esta, para além de impugnar a matéria de facto e a decisão de direito, suscitar, pela primeira vez, a questão da ineptidão da petição inicial. Questão sobre a qual a A., ora Recorrente, optou por não pronunciar nas suas contra-alegações ao recurso de apelação.

Forçoso é, pois, concluir que não ocorreu a invocada violação da proibição das decisões-surpresa.


6. Pretende a Recorrente que, diversamente do juízo feito pelo tribunal a quo, a petição inicial não é inepta. A apreciação de tal questão ficará, porém, prejudicada se se considerar que, conforme alegado, se formou caso julgado formal sobre a decisão da mesma, ou, em qualquer caso, que tal questão não podia ser apreciada, inovatoriamente, pela Relação.

Vejamos.

Consideremos as normas do Código de Processo Civil relevantes para o efeito:

Artigo 186.º (Ineptidão da petição inicial)

«1 - É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.

2 - Diz-se inepta a petição:

a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;

b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;

c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.

3 - Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.

(...)».

Artigo 200.º (Quando deve o tribunal conhecer das nulidades)

«1. (...).

2. As nulidades a que se referem o artigo 186.º e o n.º 1 do artigo 193.º são apreciadas no despacho saneador, se antes o juiz as não houver apreciado; se não houver despacho saneador, pode conhecer-se delas até à sentença final.

(...)».

Artigo 595.º (Despacho saneador)

«1 - O despacho saneador destina-se a:

a) Conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente;

(...)

3 - No caso previsto na alínea a) do n.º 1, o despacho constitui, logo que transite, caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas; na hipótese prevista na alínea b), fica tendo, para todos os efeitos, o valor de sentença.

(...)».

Temos, pois, que a ineptidão da petição inicial gera a nulidade do processado, a qual deve ser oficiosamente conhecida no despacho saneador se não o foi em momento anterior. A decisão, em sede de despacho saneador, de tal matéria, forma caso julgado formal se tiver havido pronunciamento concreto e específico; inversamente, não forma caso julgado se o pronunciamento for de carácter genérico.

Não havendo lugar a despacho saneador a nulidade por ineptidão da p.i. pode ser conhecida até à sentença.

Procurando aplicar o regime legal ao caso dos autos, tenhamos presente que, no que ora importa, foi exarado o seguinte, no despacho saneador proferido em 11.11.2019:

«Não se verificam nulidades, excepções dilatórias ou quaisquer questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar ao conhecimento do mérito da causa».

Estamos perante um pronunciamento genérico e não concreto pelo que, nos termos do n.º 3 do art. 595.º do CPC, com o despacho saneador não se formou caso julgado formal sobre a questão da ineptidão da petição inicial. Contudo, de acordo com o regime do n.º 2 do art. 200.º do CPC, precludiu a possibilidade de conhecimento da dita questão, não podendo a mesma ser inovatoriamente apreciada em sede de recurso de apelação.

Assim sendo, perante a insuficiência da matéria de facto, apenas seria de ajuizar da improcedência da acção, sem prejuízo da ponderação do eventual suprimento de tal deficiência.


7. Tendo-se concluído que, ao conhecer inovatoriamente da ineptidão da petição inicial, desrespeitou o acórdão recorrido a norma processual do art. 200.º, n.º 2, do CPC, fica prejudicada a apreciação das demais questões recursórias, devendo os autos prosseguir, voltando ao Tribunal da Relação para apreciação das demais questões suscitadas em sede de apelação, cujo conhecimento ficou prejudicado pela declaração de nulidade por ineptidão da petição inicial.


8. Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se a decisão do acórdão recorrido e determinando-se o prosseguimento dos autos, com a baixa dos autos ao Tribunal da Relação para apreciação das demais questões suscitadas em sede de apelação, cujo conhecimento ficou prejudicado pela declaração, ora revogada, de nulidade por ineptidão da petição inicial.


Custas no recurso e na acção a final.


Lisboa, 14 de Julho de 2021


Nos termos do art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade das Exmas. Senhoras Conselheiras Maria Rosa Tching e Catarina Serra que compõem este colectivo.


Maria da Graça Trigo (relatora)