CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA
PERDA DE VANTAGEM
Sumário

I – A Constituição da República Portuguesa protege, no seu artº 62º, nº 1, o direito à propriedade privada. Da conjugação deste artigo da lei fundamental com o artº 1305º do C. Civil decorre que o direito de propriedade da vítima de um crime prevalece necessariamente sobre o interesse de política criminal do Estado em ver declarada a perda, a seu favor, das vantagens do crime. Nesta medida, consideramos que, na concorrência entre o pedido de indemnização por danos patrimoniais fundado na prática de um crime e a pretensão do Estado na declaração de perda a seu favor das vantagens do mesmo, este último não deverá merecer deferimento, ao menos até à parte em que coincidem a perda do lesado e a vantagem do agente do crime.
II - O Estado não pode, sequer, instrumentalizar, em seu favor, o direito de propriedade privada do lesado, adquirindo os bens mesmo contra a vontade do lesado. Mesmo desapossado dos bens pelo agente do crime, o lesado não deixa de ser o legítimo proprietário dos mesmos, pelo que, na hipótese, v. g., de declarar expressamente prescindir deles em favor do agente do crime (numa palavra: oferecendo-lhes), não pode o Estado, no âmbito da sua pretensão punitiva e na prossecução da sua política criminal, sobrepor-se a esta vontade do lesado, na medida em que tal solução seria claramente inconstitucional, em face do referido artº 62º, nº 1 da CRP (que protege o direito de transmissão em vida do direito à propriedade). Não pode o Estado, por isso, contrariar o eventual desejo do lesado pela prática de um crime em agraciar o criminoso com os seus bens. Isto é válido, por exemplo, nas situações em que, tendo o lesado deduzido no processo criminal um pedido de indemnização, vem a desistir do pedido, no decurso do processo.
III - As situações em que não existe um elo de ligação facilmente apreensível entre as vantagens patrimoniais do crime e as correspondentes desvantagens, v. g., quando estão em causa “victimless crimes” ou crimes em que está em causa um número indeterminado de lesados, representam o domínio indisputado do instituto da perda de bens a favor do Estado, não apenas aliás, da perda clássica, como, sobretudo, da perda ampliada de bens.
IV - A interpretação mais adequada ao pensamento legislativo quanto ao instituto da perda de bens ou vantagens a favor do Estado é que este perdimento deve comprimir-se quando em presença do instituto concorrente do pedido de indemnização pelo lesado e deve expandir-se quando este se desinteressa do seu património, perdido para o agente do crime. Há que compatibilizar desta forma os dois institutos, de forma a que se não traduzam numa dupla penalização para o agente.

Texto Integral

Processo nº 5183/16.5T9PRT.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO
Nos autos de Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que corre termos no Juízo Local Criminal do Porto - Juiz 7, Comarca do Porto, com o nº 5183/16.5T9PRT, foi submetido a julgamento o arguido B…, tendo a final sido proferida sentença, depositada em 20.01.2021, que condenou o arguido:
- pela prática de um crime de abuso de confiança p. e p. no artº. 205º nºs 1 e 4 al. b) do Cód. Penal, na pena de 2 anos de prisão;
- pela prática de um crime de falsificação de documento p. e p. nos artºs. 256º nº 1 als. a), d) e e), e 255º al. a) do Cód. Penal, na pena de 6 meses de prisão;
- pela prática de um crime de falsidade informática p. e p. no artº 3º nºs 1 e 2 da Lei nº 109/2009 de 15.09, na pena de 10 meses de prisão;
- operado o cúmulo jurídico das referidas penas parcelares foi o arguido condenado na pena única de 2 anos e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de quatro anos, sob condição de, durante esse período, pagar à demandante o montante acordado nos termos da transação efetuada nos autos, comprovando semestralmente o pagamento das prestações.
- foi ainda julgado improcedente o pedido, formulado pelo Mº Pº, de declaração de perda a favor do Estado do valor de € 34.900,00.
Inconformado, o Ministério Público interpôs o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. A douta sentença proferida considerou improcedente a perda de vantagem patrimonial requerida pelo Ministério Público, no valor de € 34,900,00, nos termos do artº 110º nº 1 al. b) e 4 do Código Penal.
2. O Ministério Público requereu a perda de vantagem do crime na perspetiva óbvia de que tudo o que é obtido através de prática de crime deverá ser restituído, de que o crime não compensa.
3. Fê-lo porquanto é insustentável a economia criminal, devendo considerar-se que todas as vantagens obtidas com a prática do crime deverão ser restituídas ao Estado, independentemente do pedido de indemnização cível deduzido pelo ofendido.
4. O direito ao pedido de indemnização civil não pode contender ou substituir o direito de o Estado ser de imediato reintegrado na sua esfera patrimonial com os bens/direitos/vantagens que lhe foram subtraídos com a prática do crime.
5. A douta sentença violou o disposto nos artigos 110º nºs 1 a 4 do Código Penal devendo ser substituída por outra que decrete a perda da vantagem patrimonial obtida pelo arguido com a prática do crime, conforme requerido pelo Ministério Público.

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Na 1ª instância o arguido respondeu às motivações de recurso, concluindo que lhe deve ser negado provimento.
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Neste Tribunal da Relação do Porto a Srª. Procuradora-Geral Adjunta limitou-se a apor o seu visto.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
A sentença sob recurso considerou provados os seguintes factos: transcrição
1. O arguido foi funcionário do banco C… desde Julho de 2007 até 16 de Fevereiro de 2016, data em que o contrato de trabalho cessou por despedimento com justa causa;
2. À data dos factos, o arguido exercia as suas funções de assistente comercial, na agência daquele banco sita na … – …, na Rua …, nº …, Loja .., no Porto, balcão número ….;
3. Para o exercício das suas funções foi-lhe atribuído acesso ao sistema informático em uso no banco C…, bem como credenciais para acesso aos registos das contas bancárias dos clientes, para proceder a alterações nesses registos e à movimentação das contas bancárias através da respetiva aplicação informática;
4. Bem como lhe foi atribuído, a título exclusivo e pessoal, o número mecanográfico …… a fim de proceder a operações no sistema do banco, o que era acompanhado de uma password individual, da responsabilidade e conhecimento exclusivo do funcionário;
5. Em data não concretamente apurada, mas que se situa em Setembro e Outubro de 2015, o arguido decidiu aproveitar-se do acesso que tinha ao sistema informático do banco e às contas bancárias de clientes do banco e proceder a movimentos e simular a realização de operações bancárias, tais como a mobilização de depósitos a prazo, levantamentos em numerário, resgate antecipado total de seguros de capitalização e subscrições de fundos imobiliários, à revelia dos seus titulares, para se apoderar de quantias monetárias que não lhe pertenciam e que estavam depositadas nessas contas bancárias;
6. Para tanto, o arguido resolveu fazer uso do sistema informático do banco e introduzir informações inverídicas nos dados das contas bancárias dos clientes do banco, para processar operações bancárias a que tinha acesso apenas pelo exercício das suas funções e introduzir ordens de mobilização, resgate, pagamento e levantamento avulso em numerário, como se as mesmas tivessem sido ordenadas pelos titulares das quantias;
7. Para atingir esse objetivo, o arguido através da introdução de dados inverídicos no sistema informático do banco gerava falsas ordens de mobilização dos montantes que os clientes possuíam nas contas bancárias, em depósitos a prazo ou em fundos, para depósitos à ordem nas suas contas bancárias e criar falsas ordens de levantamento avulso em numerário, como se tivessem sido determinados pelos respetivos titulares e deste modo se apropriar das respetivas quantias;
8. No exercício das suas funções e por ordem da cliente D…, no dia 31 de Agosto de 2015, o arguido introduziu no sistema informático do banco, a ordem de Resgate Antecipado Total do Seguro de Capitalização Novo Aforro Familiar, com o certificado n.º …-……, no montante de € 39.964,69 (trinta e nove mil, novecentos e sessenta e quatro euros e sessenta e nove cêntimos), que no dia 7 de Setembro de 2015 foi creditado na conta de depósito à ordem solidária com o NUC (Número Único de Contrato) …….;
9. Sabedor desse facto, nesse mesmo dia 7 de Setembro de 2015, pelas 14h09m56s, o arguido fazendo uso do número mecanográfico que lhe foi atribuído, acedeu ao sistema informático de gestão de contas do banco C…, aos dados da conta de depósito à ordem solidária com o NUC ……., domiciliada no balcão …. – …, co-titulada pelas clientes D… e E… e ao ficheiro onde se encontravam guardados os dados relativos a esse NUC, com vista a apropriar-se das quantias que estas clientes possuíam nas suas contas bancárias;
10. De seguida, a partir dessa conta solidária, o arguido procedeu ao levantamento avulso do montante de €10.000,00 (dez mil euros), com a devida cobrança de despesas, que fez seu;
11. Este levantamento avulso em numerário, originou a emissão do respetivo talão de levantamento correspondente que o arguido induziu a ofendida D… a assinar, sem que esta contudo, tivesse conhecimento ou autorizado tal operação;
12. O arguido procedeu à referida mobilização e levantamento da referida quantia sem o conhecimento e contra a vontade das suas titulares, visando exclusivamente apropriar-se da mesma, fazendo-a sua e gastando-a em seu proveito;
13. Na mesma data e conta, entre as 14h17m52 e as 14h19m31s, o arguido cumprindo ordens da cliente D… procedeu à inserção no sistema do banco das ordens para subscrição inicial e de duas subscrições de reforço do F… (Capitalização) – Classe A, no montante de € 9.998,26 (nove mil, novecentos e noventa e oito euros e vinte e seis cêntimos);
14. Na mesma data, o arguido à revelia da cliente D…, acedeu ao sistema informático do banco e deu ordem de emissão para aquela cliente de novo Contrato de Adesão (Termo de Autorização) aos Serviços C… Net/C… Direto para gerar um novo acesso aqueles serviços, do qual apenas o arguido era o único conhecedor e, desse modo, anular o antecedente;
15. Efetivamente, pese embora o arguido tenha induzido a cliente a assinar o respetivo termo, esta desconhecia as finalidades do mesmo tendo ficado impedida de aceder aos Serviços C… Net/C… Direto por ser desconhecedora do novo acesso;
16. De igual modo, à revelia e sem o conhecimento da cliente, o arguido acedeu ao sistema informático do banco e deu ordem para alteração do formato dos documentos de correspondência, nos quais se incluem extratos integrados emitidos por referência à conta de depósito à ordem com o NUC ……., de papel para digital;
17. Estas alterações visavam impedir que a cliente tivesse acesso aos dados da conta e conhecesse a situação real da sua conta;
18. Ainda na execução desse plano, no dia 18 de Setembro de 2015, pelas 14h09m56s, o arguido fazendo uso do número mecanográfico que lhe foi atribuído, acedeu ao sistema informático de gestão de contas do banco C…, aos dados da conta de depósito à ordem solidária com o NUC ……., domiciliada no balcão …. – …, co-titulada pelas clientes D… e E… e ao ficheiro onde se encontravam guardados os dados relativos a esse NUC, com vista a apropriar-se das quantias que estas clientes possuíam nas suas contas bancárias;
19. Nesse dia, pelas 14h09m56s, o arguido introduziu no sistema informático do banco, a ordem de Mobilização do Depósito a Prazo Depósito Especial C… 3 Anos, a que corresponde a conta produto .-………......, no montante de € 10.000,00 (dez mil euros) para a conta depósito à ordem solidária com o NUC …….;
20. Depois, pelas 14h57m38s e pelas 14h58m05s, a partir dessa conta solidária, o arguido procedeu a dois levantamentos avulsos em numerário, cada um no montante de € 4.950,00 (quatro mil, novecentos e cinquenta euros), perfazendo o montante global de € 9.900,00 (nove mil e novecentos euros), com a devida cobrança de despesas, que fez seu;
21. Estes levantamentos avulsos em numerário, originaram a emissão dos respetivos talões de levantamento correspondentes que não foram assinados pelas clientes;
22. O arguido procedeu à referida mobilização e levantamento das referidas quantias sem o conhecimento e contra a vontade das suas titulares, visando exclusivamente apropriar-se das mesmas, fazendo-as suas e gastando-as em seu proveito;
23. No dia 14 de Outubro de 2015, o arguido entregou à cliente D… um documento em tudo idêntico a um extrato bancário, mas que havia sido por si forjado, conforme documento de fls. 318 a 321, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os legais e devidos efeitos, com vista a ocultar as operações por si efetuadas, nomeadamente que havia procedido ao levantamento da quantia de € 9.900,00 (nove mil e novecentos euros) fazendo constar no campo Aplicações de Prazo Fixo, o montante de € 91.625,47 (noventa e um mil, seiscentos e vinte e cinco euros e quarenta e sete cêntimos), quando o valor real era de € 81.625,47 (oitenta e um mil, seiscentos e vinte e cinco euros e quarenta e sete cêntimos);
24. No dia 23 de Setembro de 2015, pelas 12h19m50s, com o intuito de repor na conta de depósito à ordem solidária com o NUC ……., o montante de € 10.000,00 (dez mil euros) por si debitado no dia 7 de Setembro de 2015, o arguido procedeu ao depósito em numerário sob a referência F… do montante de €10.000,00 (dez mil euros) naquela conta;
25. Ainda na execução desse plano, no dia 9 de Outubro de 2015, o arguido fazendo uso do número mecanográfico que lhe foi atribuído, acedeu ao sistema informático de gestão de contas do banco C…, aos dados da conta de depósito à ordem solidária com o NUC .-……., domiciliada no balcão …. – …, co-titulada pelos clientes G… e H… e ao ficheiro onde se encontravam guardados os dados relativos a esse NUC, com vista a apropriar-se de quantias que estes clientes possuíam nas suas contas bancárias;
26. Assim, nesse dia 9 de Outubro de 2015, pelas 14h35m37s, o arguido introduziu no sistema informático a ordem de mobilização de depósito a prazo no montante de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) relativo ao depósito a prazo a que corresponde a conta produto n.º .-………...... C… Depósito Especial C… 2 anos, para a conta de depósito à ordem com esse NUC;
27. De seguida, pelas 14h38m21s, o arguido procedeu ao levantamento avulso da quantia previamente mobilizada no montante de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), com a devida cobrança de despesas, que fez sua;
28. A mobilização deste montante de depósito a prazo para depósito à ordem e respetivo levantamento avulso em numerário, originou a emissão de talões de mobilização e de levantamento correspondentes que o arguido guardou sem serem assinados pelos clientes;
29. O arguido procedeu à referida mobilização e levantamento da referida quantia sem o conhecimento e contra a vontade dos seus titulares, visando exclusivamente apropriar-se da mesma, fazendo-a sua e gastando-a em seu proveito;
30. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente;
31. O arguido sabia que ao atuar da forma descrita através dos referidos levantamentos avulsos em dinheiro, apoderava-se da quantia de € 44.900,00 (quarenta e quatro mil e novecentos euros), que apenas lhe estava disponível por via das suas funções de funcionário bancário, bem sabendo que atuava contra a vontade e em prejuízo quer dos titulares das contas bancárias, quer da instituição bancária para quem prestava serviços;
32. Pese embora o arguido tenha devolvido uma parcela desse montante, o certo é que ainda se encontra na sua posse e na sua disponibilidade o montante de € 34.900,00 (trinta e quatro mil e novecentos euros), não sendo conhecido o destino que lhe deu;
33. O arguido quis apropriar-se das referidas quantias monetárias, como fez, apesar de bem saber que as mesmas estavam depositadas nas contas bancárias da instituição bancária C… para a qual trabalhava e que as mesmas não se destinavam a integrar o seu património, bem sabendo que ao forjar as ordens de mobilização e levantamentos avulsos para assim assumir a disponibilidade dos montantes respetivos no seu património, agia sem o consentimento e contra a vontade dos seus titulares;
34. Ao atuar da forma descrita alterando informaticamente, com dados inverídicos e forjados, o formato dos documentos de correspondência de papel para digital e introduzindo falsas ordens de mobilização de depósitos e aplicações financeiras, através do sistema informático em uso na instituição financeira C…, agiu o arguido com o propósito conseguido de introduzir dados informáticos que sabia não corresponderem à verdade com o intuito de se apropriar dos valores que foram objeto dos referidos levantamentos avulsos;
35. O arguido agiu com o propósito conseguido de obter as referidas quantias, com o consequente empobrecimento do património da instituição bancária e dos titulares das contas, através do convencimento que os dados introduzidos no sistema informático e os documentos apresentados eram genuínos e determinou assim que lhe fosse concedido acesso às quantias de que pretendia apropriar-se, causando-lhes um prejuízo equivalente aos montantes apropriados;
36. O arguido sabia que as suas condutas são proibidas e punidas por lei.
37. O arguido até ao cometimento dos factos em apreço teve um percurso profissional exemplar;
38. No ano de 2015 o arguido iniciou-se no jogo de apostas online, iniciando com apostas de € 50,00, mas que foram aumentando ao longo do tempo, começando a jogar cada vez mais e com valores mais avultados;
39. Começou a isolar-se em casa para poder ver os jogos e apostar, acabando o seu comportamento por refletir-se nas relações pessoais, familiares, sociais e profissionais, afastando-se da família e amigos;
40. O seu afastamento e isolamento, aliados a gastos descontrolados, foram denunciados pela sua companheira à família;
41. O arguido aceitou ajuda e começou a frequentar um grupo de jogadores anónimos;
42. O arguido afirmou-se arrependido dos factos cometidos.
43. À data dos factos de que vem acusado o arguido apresentava sinais e sintomas próprios do diagnóstico de Jogo Patológico, e estava capaz de avaliar a ilicitude dos seus atos e de se determinar de acordo com essa avaliação, sendo por isso imputável;
44. Do certificado do registo criminal do arguido nada consta;
45. O arguido vive em casa arrendada com uma companheira, empregada bancária. Atualmente o arguido trabalha no departamento de contabilidade de uma empresa de automóveis. Frequentou o curso de Gestão de Empresas, que não concluiu;
46. Tem um filho com 12 anos do seu anterior relacionamento que vive num regime de guarda partilhada.
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A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: transcrição
A convicção do tribunal fundou-se no conjunto da prova produzida em julgamento, a qual se encontra integralmente documentada e valorada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal.
O arguido de modo digno e correto confessou os factos de que está acusado, reconhecendo os mesmos e demonstrando arrependimento pela sua prática.
Explicou que os factos foram cometidos na sequência de ter adquirido o vício do jogo online, cujos valores das apostas se foram tornando cada vez mais elevados, levando- o a perder quantias cada vem mais avultadas. Cometeu os factos em apreço para “financiar” o jogo, sem que conseguisse repor as quantias de que se apoderou. Na sequência de a sua companheira ter contado aos seus familiares próximos o que se passava, acabou por procurar ajuda junto dos jogadores anónimos, contando com o apoio significativo do seu pai, entretanto falecido, nomeadamente de natureza económica. Depôs ainda sobre a sua atual situação pessoal e profissional.
As testemunhas de acusação I…, médica e companheira do falecido pai do arguido durante cerca de 14 anos, e J…, professora e sua ex-companheira, entre os anos de 2006 a 2014, e mãe do seu filho, prestaram um depoimento sincero e coerente.
Ambas testemunharam uma alteração de comportamento do arguido quando começou a jogar online o que foi percecionado pela companheira do arguido logo que o mesmo começou a passar muito tempo na internet, acabando por se aperceber que o arguido fazia apostas de jogo online. Porque esse comportamento começou a ser constante e a ter um impacto significativo na vida em comum, nomeadamente do ponto de vista económico, decidiu avisar a família do que se passava e separou-se do arguido, sendo que já não vivia com o mesmo quando foram praticados os factos em discussão nos presentes autos.
A testemunha I… explicou que sempre teve o arguido como pessoa cordata, simpática e honesta, mas a determinada altura passou a ter um comportamento diferente, menos participativo na dinâmica familiar e mais afastado da família e sempre a usar o telemóvel. Foi um choque para a testemunha e para o pai do arguido quando tiveram conhecimento da dimensão do problema de jogo online em que o arguido estava envolvido, e sempre lhe deram todo o apoio, nomeadamente, o falecido pai do arguido, inclusivamente a nível económico.
Finalmente o tribunal valorou o conjunto da prova documental reunida nos autos, a saber: documentos de fls. 10 a 90 e 141 a 282, extratos de fls. 318 a 325, informação nº ………/../.. da Direção de Auditoria e Inspeção do C… constante do Apenso junto aos autos; relatório do exame médico-legal de Perícia Psiquiátrica de fls. 514 a 523, do qual resulta que o arguido padece de Jogo Patológico e é criminalmente imputável e certificado do registo criminal do arguido junto a fls. 540 e do qual nada consta.
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Quanto ao pedido formulado pelo Mº Público de declaração de perda de vantagens no montante global de € 34.900,00, refere-se na sentença recorrida:
«A Digna Magistrada do Ministério Público requereu a declaração de perda de vantagens nos termos do disposto no artigo 110º, nº 2, 3 e 4 do Código Penal, concluindo pela declaração de perda do montante global de € 34.900,00.
Estabelece o citado artigo 110º, nº 1 que:
1 - São declarados perdidos a favor do Estado:
a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
Por seu turno estabelece o nº 6 da citada norma que o ali disposto não prejudica os direitos do ofendido.
O arguido nada disse.
No caso em apreço verifica-se que o arguido B… se apoderou de uma quantia monetária que não lhe era devida em prejuízo do assistente/demandante Banco C….
Seguindo de perto o Ac. do STJ de 03.10.2002, disponível em www.dgsi.pt, “a essência ou a significação político - criminal do que no artigo 111º, do Código Penal se estipula (particularizando, de algum modo, a filosofia que, no geral, informa a regulamentação da perda de instrumentos, produtos e vantagens, inserto no Capítulo VIII DO Título III – Das consequências Jurídicas do facto), alcança-se a partir de uma tonalidade ampla a conferir ao termo “vantagem” (encarada esta ao lado dos objetos, instrumentos, produtos e direitos relacionados com o ilícito praticado ou deste oriundos) ou seja numa perspectiva abrangente, quer da recompensa dada ou prometida ao agente delitivo, quer de todo e qualquer benefício patrimonial que resulte do crime (facto ilícito) em que, através dele ou por via dele, haja sido conseguido.
E a alguma distinção (ou, melhor dizendo, a diferenciação em capítulo daqueles que rege o destino do ilicitamente obtido) apercebível no confronto entre o regime de perda (a favor do Estado) relativo a objetos, instrumentos e produtos, por um lado e o regime de perda de vantagens (ainda a favor do Estado) por outro, encontra plausível justificação, mesmo que sob a égide de um escopo, no fundo, comum; a legitimar a perda dos objetos, instrumentos e produtos do crime acha-se, em primeira linha, a sua perigosidade (e decorrente adequação) imediata ou potencial para a prática de crimes, ao passo que a perda de vantagens assenta, primacialmente, num desiderato ditado, não só por razões de prevenção geral da criminalidade ou da conveniência da criminalidade ou da conveniência de uma acrescida censura ao desvalor das condutas desenvolvidas mas, sobretudo, pela necessidade de se estabelecer uma efetiva (normativamente efetiva) objetividade à ideia tradicional (porém sempre atual e perdurável) de que se o crime não compensa, importa que se obste e é fundamental que se impeça que, na prática, compense ou possa compensar.
“Sendo certo que nenhuma disposição legal retira propriamente imperatividade à perda a favor do Estado, prevista na primeira parte do seu n.º 2 do artigo 111º, do Código Penal e sendo igualmente certo que tal imperatividade pode ser condicionada na sua abrangência pelos “direitos do ofendido”, parecerá que a tutela desses direitos terá forçosamente de derivar (ou de depender, em termos de efetivação prática) de uma comprova (inequívoca e prévia) de que o agente do crime (e demandado cível) não satisfará de “ motu próprio” ou não se encontrará em condições de satisfazer a reparação a que, por decisão judicial, ficou adstrito.
O que, no fim de contas, se reconduz - certo sendo que o Estado apenas deixará de dispor integralmente do que tiver revertido a seu favor nos precisos termos em que esse acervo deva ser indispensável a cobrir o dano sofrido pelo lesado e importando, ainda, que a reversão das vantagens para o mesmo lesado deva pautar-se por uma exata correspondência ao valor do prejuízo por aquele suportado (e a que tenha ficado com direito) – por um lado, à verificação de que o autor de facto ilícito não reparará o prejuízo que causou (reparação a que foi condenado) e ao apuramento, por outro, do valor real daquilo que haja de consubstanciar a matéria patrimonial sobre que vai incidir o direito à reparação”.
Escrevem João Conde Correia e Hélio Rigor Rodrigues, em texto publicado em Abril de 2015 na Revista Julgar On Line, que: “A vantagem patrimonial obtida pelo autor de um crime de furto corresponde, inversamente, ao prejuízo patrimonial da vítima, colocando – como já referimos – o problema da articulação prática entre o confisco das vantagens do crime e o eventual pedido de indemnização civil.
Quando os bens que consubstanciam o benefício patrimonial obtido forem restituídos ao lesado (v.g. o automóvel subtraído), no decurso do processo ou na decisão final, o confisco previsto no artigo 111.º do Código Penal apenas operará se a vantagem for superior àqueles (v.g. o valor da sua utilização no período em que esteve na posse do arguido) ou o ofendido, por um qualquer motivo válido, não aceitar a restituição. O Estado não pode confiscar os bens do lesado, devendo limitar-se a restituí-los ao seu legítimo proprietário (art. 186.º, n.º 1, do CPP), assim anulando a vantagem obtida. Voltar a confiscá-la (restituição mais perda) seria uma verdadeira violação do ne bis in idem. Aliás, em bom rigor, como já não há vantagem, também não há nenhum conflito prático entre o confisco e um eventual pedido de indemnização civil (v.g. para recuperar os danos causados com a má utilização da viatura), cujas regras também são, igualmente, desnecessárias, porque se trata de restituir «o seu a seu dono» (suum cuique tribuere).
Voltando ao caso em apreço verifica-se que o arguido se apoderou de uma quantia pertencente a clientes do Banco C…, que lhes restitui tais quantias, ficando o banco desapossado do valor de 34.900,00, pelo cometimento pelo arguido de um crime de abuso de confiança, falsificação de documentos e falsidade informática.
Sucede que o Banco C…, S.A. – Sociedade Aberta deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, peticionando a condenação do demandado a pagar-lhe as quantias em causa, acrescida dos respectivos juros.
Tal pedido de indemnização foi objeto de uma transação entre as partes, devidamente homologada por sentença (fls. 493 a 496).
Ou seja, já foi determinada a restituição ao ofendido das quantias monetárias que consubstanciam o benefício patrimonial obtido, pelo que terá que improceder e o pedido de declaração a favor do Estado do valor € 34.900,00, nos termos do disposto no artigo 110º do Código Penal.»
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III - O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
Como resulta das motivações do recurso e das respetivas conclusões, o recorrente delimita o objeto do recurso à questão de saber se deve declarada a perda a favor do Estado de vantagem patrimonial obtida pelo arguido com a prática do crime, quando o arguido foi condenado a pagar ao ofendido o prejuízo por este sofrido, de valor superior à aludida vantagem (reclamada pelo Mº Público), como condição de suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado.
Não se trata de saber se há, efetivamente e em abstrato, lugar à declaração de perda de vantagens, mas sim como harmonizar este instituto com os direitos do lesado, atento o disposto no artº 110º nº 6 do Cód. Penal.
Com efeito, dispõe o artº 110º do Cód. Penal, sob a epígrafe "perda de produtos e vantagens" que:
«1 - São declarados perdidos a favor do Estado:
a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
2 - O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.
3 - A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado.
4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
5 - O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.
6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.[3] »
De notar que, independentemente de se entender que o regime de perdimento de instrumentos, produtos e vantagens previsto nos artºs. 109º a 11º do Cód. Penal é aplicável a todos e quaisquer crimes previstos na parte especial do Código Penal e que os sistemas normativos especiais, relativos à perda de bens a favor do Estado, como os previstos nos artºs 35º e ss. da Lei nº 15/93, de 22/01 (“Lei da Droga”) e na Lei nº 5/02, de 11/01, são aplicáveis à criminalidade organizada e económico-financeira, não deixa de ser empiricamente observável, que este instituto da perda de bens a favor do Estado ou confisco se perfila com maior acuidade ou, porventura, apenas se torna relevante, neste último tipo de criminalidade que, entre outras particularidades, tende a desligar o elo de conexão normalmente facilmente apreensível, existente entre as vantagens do crime e as correspondentes desvantagens. Ou seja, no tipo de criminalidade altamente organizada e económico-financeira, as vantagens patrimoniais alcançadas pelos agentes do crime provêm, ou de uma miríade de ofendidos ou de ofendidos que nenhum interesse têm em reclamar a recuperação de tais vantagens ou têm poucas possibilidades de o fazer, v. g., e respetivamente, tráfico de estupefacientes, corrupção ou tráfico internacional de pessoas ou pornografia de menores. Estão em causa crimes em que, ou há um número indeterminável de lesados, ou há “victimless crimes”, em que os lesados nenhum interesse têm em desapossar os criminosos dos seus proventos ou em que as vítimas estão numa tal posição de fragilização ou mesmo fisicamente deslocados dos locais onde os crimes se repercutem, v. g., fraude com meios de pagamento por usurpação de identidade ou pornografia de menores através da internet. Perde-se, assim, a natural ligação e fácil apreensão da deslocação patrimonial de um ofendido para um agente do crime que normalmente existe na criminalidade tradicional, por oposição à criminalidade organizada e/ou “internacional”.
Onde existe esta ligação entre um lesante e um lesado patrimonial, não tem o Estado, normalmente, qualquer interesse em intervir para desapossar o agente do crime dos seus proventos, pois o lesado é quem tem o interesse e motivação para esse desiderato (em sentido aproximado, Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime” Ed. Notícias, de onde se extraem, na pág. 633, as seguintes considerações: “À primeira vista, a consagração da perda das vantagens como providência de carácter criminal parece absurda: em princípio, com efeito, ela resulta automaticamente das regras da responsabilidade civil (nomeadamente sob a forma de restituição em espécie) ... Sem deixar de reconhecer-se, em todo o caso, que, sempre que tenha havido pedido civil conexo com o processo penal, poucas serão as hipóteses em que a perda das vantagens poderá vir a ser decretada utilmente”.
Também explorando esta linha de raciocínio, o Ac. TRG de 01.12.14[4], de cujo sumário consta “Não há fundamento legal (nomeadamente nas normas do art. 111º nºs 1 e 4 do Cod. Penal) para que o autor de um furto seja condenado a pagar ao Estado um montante equivalente ao valor da vantagem patrimonial que obteve com a prática do crime, mesmo nos casos em que o ofendido não deduziu pedido de indemnização civil.” Conclui-se na fundamentação deste acórdão toda a sua tese inspiradora: “Bem ou mal, na economia dos nossos direitos penal e processual penal, só os lesados podem reclamar ser compensados pelos prejuízos diretamente decorrentes da prática de um crime. O perdimento de bens visa outros fins, diferentes da “substituição” do Estado aos direitos dos lesados”.
Mesmo para quem entenda que, quando o lesado não manifesta interesse em desapossar o agente do crime dos proventos que com ele obteve, a aplicação do regime de perda de bens a favor do Estado se pode aplicar irrestritamente, temos, por outro lado, que atentar no disposto no artº 110º, nº 6 do C. Penal, onde se dispõe “O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido”. É na conjugação destas duas normas (nºs 1 e 6 do artº 110º do C. Penal) que reside o busílis da questão: como conciliar este aparente afã do Estado em desapossar os agentes do crime de todas as vantagens patrimoniais adquiridas, com o direito que o Estado também reconhece ao lesado de exercitar os seus direitos?
Ora, que direitos reconhece a lei ao lesado?
Desde logo, manifestamente, o direito a exigir do agente do crime e autor do facto ilícito criminal, uma indemnização pelos seus prejuízos patrimoniais, nos termos previstos no artº 483º e ss. do C. Civil e 71º e ss. do C. P. P. Penal. Em que medida é que este direito se compatibiliza com a declaração de perda das vantagens do crime a favor do Estado? É fácil afirmar, como tem feito alguma jurisprudência recente dos Tribunais superiores, que à declaração de perda de bens a favor do Estado é rigorosamente indiferente a dedução de pedido de indemnização pelo lesado. Se é assim, como se conciliam, na prática, essas duas realidades? Como proceder quando o lesado e o Estado se precipitam a requerer a mesma coisa: que o agente do crime perca, em seu favor, as vantagens do crime? O Cód. Penal não responde, minimamente, a esta questão, cabendo ao intérprete, por isso, conciliar estas duas vertentes da perda: é que, a restituição ao lesado dos bens com que o criminoso se avantajou faz perder interesse prático ao artº 110º do C. Penal, na medida em que o provimento na ação indemnizatória já logra ou tende a lograr integralmente o objetivo, a ratio legis do artº 110º do Cód. Penal: a mensagem preventiva geral que a comunidade não irá admitir que o agente do crime mantenha na sua posse as vantagens patrimoniais obtidas. É que ofenderia a mais elementar consciência jurídica que o agente do crime fosse obrigado a indemnizar o lesado e a devolver ao Estado as vantagens do crime, coincidentes com essa lesão!
O artº 130º nº 2 do C. Penal aparenta estabelecer a primazia do direito do Estado sobre o direito do lesado, ao estabelecer que, nos casos não cobertos pela legislação especial em que o Estado assegura a indemnização às vítimas de crimes, o Tribunal pode atribuir ao lesado, a requerimento deste e até ao limite do dano causado os instrumentos, produtos ou vantagens declarados perdidos a favor do Estado, ao abrigo do disposto nos artºs 109º a 111º do C. Penal. Daqui parece poder inferir-se que existiria um direito primacial do Estado a ser investido na propriedade dos bens, a que se seguiria a satisfação de um direito secundário do lesado a ser ressarcido com o produto dos seus bens. Não nos parece, contudo, que este artigo da lei deva ser lido desta forma. De facto, o lesado não tem interesse ou vantagem em exercitar o direito que esta norma lhe concede, quando já deduziu um pedido de indemnização com esse mesmo objeto. A norma em causa deverá ser interpretada como restringindo-se aos casos em que o lesado não deduziu no processo pedido de indemnização.
A Constituição da República Portuguesa protege, no seu artº 62º, nº 1, o direito à propriedade privada. Da conjugação deste artigo da lei fundamental com o artº 1305º do C. Civil decorre que o direito de propriedade da vítima de um crime prevalece necessariamente sobre o interesse de política criminal do Estado em ver declarada a perda, a seu favor, das vantagens do crime. Nesta medida, consideramos que, na concorrência entre o pedido de indemnização por danos patrimoniais fundado na prática de um crime e a pretensão do Estado na declaração de perda a seu favor das vantagens do mesmo, este último não deverá merecer deferimento, ao menos até à parte em que coincidem a perda do lesado e a vantagem do agente do crime.
Mais, consideramos que o Estado não pode, sequer, instrumentalizar, em seu favor, o direito de propriedade privada do lesado, adquirindo os bens mesmo contra a vontade do lesado. Mesmo desapossado dos bens pelo agente do crime, o lesado não deixa de ser o legítimo proprietário dos mesmos, pelo que, na hipótese, v. g., de declarar expressamente prescindir deles em favor do agente do crime (numa palavra: oferecendo-lhos), não pode o Estado, no âmbito da sua pretensão punitiva e na prossecução da sua política criminal, sobrepor-se a esta vontade do lesado, na medida em que tal solução seria claramente inconstitucional, em face do referido artº 62º, nº 1 da CRP (que protege o direito de transmissão em vida do direito à propriedade). Não pode o Estado, por isso, contrariar o eventual desejo do lesado pela prática de um crime em agraciar o criminoso com os seus bens. Isto é válido, por exemplo, nas situações em que, tendo o lesado deduzido no processo criminal um pedido de indemnização, vem a desistir do pedido, no decurso do processo. Mais difícil é a resposta à questão da decisão de perda das vantagens do crime a favor do Estado nas situações em que o lesado não deduz pedido de indemnização, desinteressando-se dos seus direitos patrimoniais lesados.
Afigura-se-nos incontroverso que as situações em que não existe um elo de ligação facilmente apreensível entre as vantagens patrimoniais do crime e as correspondentes desvantagens, v. g., quando estão em causa “victimless crimes” ou crimes em que está em causa um número indeterminado de lesados, representam o domínio indisputado do instituto da perda de bens a favor do Estado, não apenas aliás, da perda clássica, como, sobretudo, da perda ampliada de bens.
Entendemos por isso que a interpretação mais adequada ao pensamento legislativo quanto ao instituto da perda de bens ou vantagens a favor do Estado é que este perdimento deve comprimir-se quando em presença do instituto concorrente do pedido de indemnização pelo lesado e deve expandir-se quando este se desinteressa do seu património, perdido para o agente do crime.
Não faz, por isso, o menor sentido o deferimento judicial de ambas as pretensões, quando se conjugam num mesmo processo, pois que o objeto de uma é coincidente com o objeto da outra, ou seja, a condenação do demandado a pagar ao lesado aquilo em que aquele se locupletou à custa deste, coincide com a sanção do arguido ao perdimento das mesmas quantias a favor do Estado. Resultando dos autos que a instituição bancária lesada não se desinteressou do seu património, tanto mais que deduziu pedido de indemnização civil em montante até superior ao reclamado pelo Mº Público, também se não justifica o recurso ao instituto de perda de vantagens a favor do Estado.
Independentemente da questão de saber se, no caso concreto, poderia ou não haver lugar à declaração de perda de vantagens, por ser discutível se as quantias que o arguido fez suas constituem uma vantagem indevida ou antes o exaurimento do próprio crime de abuso de confiança, o certo é que o arguido não pode ser desapossado duplamente daquilo de que só se apossou em singelo.
Há que compatibilizar desta forma os dois institutos, de forma a que se não traduzam numa dupla penalização para o agente.
Com a imposição ao arguido da obrigação de pagar ao demandante Banco C…, S.A. o montante acordado na transação efetuada nos autos, no valor global de € 37.242,43, correspondente aos valores com que se locupletou, como condição para a suspensão da execução da pena de prisão, o cumprimento da referida condição coloca o arguido na situação patrimonial em que estaria se não tivesse praticado o facto ilícito típico, pelo nada mais há a confiscar.
Razão por que improcede o recurso.
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IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando consequentemente a sentença recorrida.
Sem tributação.
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Porto, 07 de julho de 2021
(Elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários)
Eduardo Lobo
Castela Rio
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Sublinhado nosso.
[4] Proferido no Processo nº 218/11.0GACBC.G1, Des. Fernando Monterroso, disponível in www.dgsi.pt