PROCESSO DE EXECUÇÃO
PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
DIREITO À HERANÇA
DIREITO À MEAÇÃO
VENDA DE DIREITOS
VENDA DE BENS
HIPOTECA
CREDOR HIPOTECÁRIO
CADUCIDADE
PATRIMÓNIO COMUM DO CASAL
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
Sumário

I) A venda em processo de execução ou processo de insolvência do direito à meação ou do direito à herança onde se integre um imóvel onerado com hipoteca não determina a caducidade dessa garantia e não confere ao credor hipotecário qualquer preferência de pagamento relativamente ao produto da venda daqueles direitos.
II) Em relação ao produto dessa venda, tal credor terá que ser classificado e graduado como credor comum.
III) Não existe qualquer obstáculo legal à venda dos bens que integram o património comum do casal quando os direitos de ambos os cônjuges sobre esse património estão apreendidos em processos de insolvência diferentes.
IV) Efectuada a venda referida em III), o produto da venda dos bens substitui-se ao direito apreendido em cada uma das insolvências, razão pela qual a graduação dos créditos não poderá ser feita em relação ao direito que estava apreendido, mas sim em relação à parcela do produto da venda dos bens a que se reportava esse direito que venha a reverter para cada uma das insolvências.
V) Sendo vendido um imóvel integrado no património comum que está onerado com hipoteca, essa venda implicará a caducidade das hipotecas sobre ele incidentes, com a consequente transferência dos direitos correspondentes a essas garantias para o produto da venda do bem em questão, mantendo os titulares desses direitos de garantia, em relação ao produto dessa venda, a mesma preferência no pagamento que lhes era dada pela garantia que detinham sobre o bem vendido, razão pela qual, em sede de graduação de créditos, os créditos hipotecários têm ser classificados como “créditos garantidos” em relação ao produto da venda do prédio.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

No âmbito dos autos de insolvência de M…, melhor identificada nos autos, a Sr.ª Administradora de Insolvência veio apresentar a relação de créditos reconhecidos onde incluiu, entre outros, um crédito do Banco B…, SA, no valor de 592.779,80€ e um crédito da P…, SA, no valor de 36.414,09€, que classificou como garantidos por gozarem de hipoteca sobre o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 4576.

Por despacho de 29/09/2020 determinou-se a notificação da Sr.ª AI para esclarecer a situação, uma vez que aquilo que havia sido apreendido era o quinhão hereditário da devedora em determinada herança e as hipotecas não incidiam sobre esse direito.

Na sequência desse facto, a Sr.ª Administradora veio rectificar a lista de créditos, passando a qualificar os aludidos créditos como “comuns”.

Notificadas as referidas credoras para se pronunciarem sobre a matéria, as mesmas vieram pronunciar-se nos seguintes termos:

- Encontrando-se apreendido apenas o Direito e Acção que a devedora tem na herança ilíquida e indivisa de H…, nada têm a opor quanto à classificação dos seus créditos como comuns;

- Sucede, todavia, que a devedora M… é, também, titular da meação dos bens constantes na herança supra referida, uma vez que todo o património foi adquirido na constância do matrimónio e eram casados no regime da comunhão de adquiridos, pelo que deverá essa meação se apreendida;

- Caso se proceda à apreensão dessa meação, os créditos do B… e da  P… deverão ser classificados como garantidos sobre o imóvel descrito sob o nº 4576.

Informam ainda que a referida herança foi declara insolvente no processo nº 4896/19.4T8CBR, a correr termos no Juiz 2 do Juízo de Comércio de Coimbra, tendo em tal processo sido apreendida a meação do Autor da Herança.

A Sr.ª Administradora respondeu, dizendo que a apreensão efectuada abrangia todos os direitos da Insolvente sobre a herança, incluindo a sua meação, nada mais havendo a apreender. Mais disse que, na sua perspectiva, assistia razão aos credores pelo que os referidos créditos deveriam ser classificados como garantidos sobre o imóvel em causa.

As referidas credoras vieram insistir pela apreensão da meação da devedora, tendo sido determinado – por despacho de 21/01/2021 – que se procedesse a tal apreensão.

Foi então proferida sentença onde se decidiu julgar verificados os créditos reconhecidos pela Sr.ª Administradora da Insolvência e graduar esses créditos nos seguintes termos:

1. Em primeiro lugar: os credores titulares de créditos comuns, na proporção dos seus créditos, se a massa for insuficiente para a respectiva satisfação integral:

(a) A…, resultante de livrança, com natureza comum o montante de € 70 827,37 (setenta mil, oitocentos e vinte e sete euros e trinta e sete cêntimos);

(b) ESTADO (Autoridade Tributária e Aduaneira), resultante de impostos, coimas e custas, com natureza comum o montante de € 42 147,73 (quarenta e dois mil euros, cento e quarenta e sete euros e setenta e três cêntimos);

(c) BANCO B…, S.A., resultante de livrança, com natureza comum o montante de € 501 800,10 (quinhentos e um mil e oitocentos euros e dez cêntimos);

(d) M… – COMUNICAÇÕES E MULTIMÉDIA, S.A., resultante de serviços com natureza comum o montante de € 977,26 (novecentos e setenta e sete euros e vinte e seis cêntimos);

(e) P… , SA, resultante de livrança, com natureza comum o montante de €31 340,45 (trinta e um mil, trezentos e quarenta euros e quarenta e cinco cêntimos);

2. Em segundo lugar: os credores titulares de créditos subordinados de acordo com a ordem prevista no artigo 48.º, do CIRE, rateadamente se necessário entre os créditos previstos numa mesma alínea:

(a) A…, resultante de livrança, com natureza subordinada o valor de € 94 726,90 (noventa e quatro mil e setecentos e vinte e seis euros e noventa cêntimos);

(b) ESTADO (Autoridade Tributária e Aduaneira), resultante de impostos, coimas e custas, com natureza subordinada o valor de € 36 536,86 (trinta e seis mil e quinhentos e trinta e seis euros e oitenta e seis cêntimos);

(c) BANCO B…, S.A., resultante de livrança, com natureza subordinada o valor de € 90 979,70 (noventa mil e novecentos e setenta e nove euros e setenta cêntimos);

(d) P…, SA, resultante de livrança, e com natureza subordinada o valor de € 5 073,64 (cinco mil e setenta e três euros e sessenta e quatro cêntimos).

Discordando dessa decisão, o Banco B… S.A. veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…)


/////

II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações das Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se os seus créditos (garantidos por hipoteca constituída sobre determinado imóvel) devem (ou não) ser graduados para ser pagos como créditos garantidos no âmbito do presente processo de insolvência, tendo em conta:

i) que foram aqui apreendidos o direito da Insolvente à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu cônjuge e o direito de meação da Insolvente no património conjugal;

ii)  que o direito à meação do cônjuge da Insolvente foi também apreendido no âmbito da insolvência da herança aberta pelo respectivo óbito;

iii)  que a Sr.ª Administradora da Insolvência veio informar os autos que a liquidação do activo estava a prosseguir no sentido de os imóveis que integram aquele património comum serem vendidos conjuntamente por ambas as insolvências com posterior divisão do produto das vendas.


/////

III.

Matéria de facto

As Apelantes começam por sustentar que, em face do requerimento apresentado pela Sr.ª Administradora de Insolvência, em 26/02/2021, no apenso da liquidação, deverá ser aditado à matéria de facto – por ser relevante para a decisão – o seguinte facto: os presentes autos prosseguiram os seus termos no sentido da liquidação do activo, sendo que se vai realizar a venda em conjunto da totalidade dos bens imóveis apreendidos com o processo de insolvência n.º 4896/19.4T8CBR.

Conforme resulta dos autos, a Sr.ª Administradora apresentou efectivamente (em 26/02/2021) um requerimento (no âmbito da liquidação do activo) com o seguinte teor:

“Em 25 de Setembro de 2020 o Sr. Administrador de Insolvência Dr. A…, nomeado no Processo nr. 4896/19.4T8CBR em que foi decretada insolvente a Herança Ilíquida e Indivisa Aberta Por Óbito de H…, tendo conhecimento da insolvência de M…, viúva do Sr. H…, veio junto da aqui signatária, no âmbito do processo de liquidação do ativo, informar que, salvo melhor opinião, era de todo o interesse realizar a venda conjunta da totalidade dos imóveis apreendidos em ambos os processos.

Mais informou que no âmbito do processo de insolvência da Herança nomeou como encarregada da venda dos imóveis, a entidade S… - Leilões e Vendas Judiciais, Lda., tendo já sido desenvolvidas várias diligências de venda.

O imóvel urbano com o nr. de artigo 4903, encontra-se ocupado por uma Escola de Condução e a renda está a ser transferida para a conta da Massa insolvente da Herança, sendo que aquando do término do processo, metade desse valor será entregue à massa insolvente de M….

A promoção da venda dos bens está dependente da recolha fotográfica para poder ser publicada.

Até ao momento não foi possível proceder à recolha devido a insolvente M… ter informado a signatária que o seu filho e companheira deste, que reside consigo se encontrem infetados com o vírus Covid 19 e em isolamento profilático.

Face ao exposto a A.I. encontra-se a diligenciar no sentido da liquidação do ativo”.

É certo, portanto, que a Sr.ª Administradora está a providenciar – em conjunto com o Administrador de insolvência da Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de H…– pela venda dos imóveis que integram o património comum sob o qual incidem os direitos da Insolvente que foram apreendidos nestes autos, tendo juntado já, no âmbito daquele apenso, o relatório de avaliação de cada um dos imóveis urbanos. É certo, portanto, que aquilo que vai ser vendido não são os direitos da Insolvente sobre o património comum que aqui foram apreendidos; o que vai ser vendido – pelas duas insolvências conjuntamente por intermédio dos respectivos administradores – são os concretos imóveis que integram aquele património com a posterior repartição do produto da venda por ambas as insolvências. Esse facto – como veremos mais adiante – tem relevância para a decisão e terá que ser considerado, aditando-se por isso aos factos que foram enunciados pela sentença recorrida.

Tais factos são, portanto, os seguintes:

1. O Administrador de Insolvência apresentou a lista de créditos reconhecidos, que aqui se dá por reproduzida:

Identificação do Credor
Mandatário
Natureza do crédito (…)
Reclamado
Valor reconhecido

Capital, Juros, Total
(…)

(…)(…)Fundamento
%
1.A…
(…)
Comum165 554.2770 827.37
94 726.90
165 554.27
(…)(…)Livrança Processo nº (…)
18.93
2.Autoridade Tributária e Aduaneira
(…)
Comum78 684.59
42 147.73
36 536.86
78 684.59
(…)(…)IRS, IMI, Coimas e encargos contraordenação, Custas
9.00
3.Banco B…, SA
(…)
Comum592 779.80
501 800.10
90 979.70
592 779.80
(…)(…)Empréstimo
67.79
4.M… – COMUNICAÇÕES E MULTIMÉDIA, S.A.,
(…)
Comum977.26
977.26
0.00
977.26
(…)(…)Serviços
0.11
5.P…, SA
(…)
Comum36 414.09
31 340.45
5 073.64
36 414.09
(…)(…)Empréstimo
4.16
Totais874 410.01
647 092.91
227 317.10
874 410.01
(…)(…)
100.00

2. Encontram-se apreendidos o direito à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do cônjuge da Insolvente e direito de meação do património conjugal, cujos patrimónios têm como objecto:

Prédio 1. Prédio urbano composto por edifício de rés-do-chão e primeiro andar, destinado a comércio, com área total de 90,00 m2, sito na Rua …., nº …, da união das freguesias de …. concelho de …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo nº 4903 (este artigo proveio do artigo urbano nº 5811 da extinta freguesia de ….), descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de …. sob o n.º 4576/19990827, com o valor patrimonial de € 84.614,54;

Prédio 2. Prédio urbano composto por casa de habitação, com três pisos, e logradouro, com área coberta de 251,39 m2, e área descoberta de 1.229, 11 m2, sito na Avenida …., nº …., da união das freguesias de …., concelho de …., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo nº 5651 (este artigo proveio do artigo urbano nº 7097 da extinta freguesia de ….), descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de …. sob o n." 9927/20200707, com o valor patrimonial de € 474.862,57;

Prédio 3. Prédio urbano composto por casa de habitação de rés-do-chão, com área total de 49,00 m2, sito em …., da união das freguesias de …., concelho de …., a confrontar a norte com Antecedente, a sul e nascente com …., e a poente com …., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo nº 1337 (este artigo proveio do artigo urbano nº 694 da extinta freguesia de ….), descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de …. sob o n,? 2920/19931013, com o valor patrimonial de € 29.993,25;

Prédio 4. Prédio rústico composto por terra de semeadura, com laranjeiras e oliveiras, com área de 1.440,00 m2, sito em …., da união das freguesias de …, concelho de …, a confrontar a norte e sul com Estrada, a nascente com …., e a poente com Herdeiros de …, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo nº 3841 (este artigo proveio do artigo rústico nº 4624 da extinta freguesia de …), descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de … sob o n." 6112/20070228, com o valor patrimonial de € 78,18;

Prédio 5. Prédio rústico composto por terra de semeadura com oliveiras, laranjeiras e vinha, com área de 4.900,00 m2, sito …., da união das freguesias de …., concelho de …., a confrontar a norte com …., a sul com …, a nascente com Próprio e .., e a poente com Avenida, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo nº 3555 (este artigo proveio do artigo rústico nº 4259 da extinta freguesia de ….), não descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de …., com o valor patrimonial de € 101,07;

Prédio 6. Prédio rústico composto por vinha e semeadura, com área de 3.520,00 m2, sito em …, da união das freguesias de …, concelho de Coimbra, a confrontar a norte com … a sul com …., a nascente e poente com Estrada, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo nº 3837 (este artigo proveio do artigo rústico nº 4616 da extinta freguesia de ….), não descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Coimbra. com o valor patrimonial de € 48,00;

3. O B… – .Banco, S.A. por força da fusão ocorrida em 07-12-2012 passou a denominar-se Banco B…, S.A.;

4. Encontra-se constituída e registada hipoteca sobre o prédio urbano identificado como «Prédio 1» no auto de apreensão e descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de …. sob o n.º 4756/19990827, cuja certidão predial se dá aqui por reproduzida, para garantia do bom pagamento e liquidação de todas e quaisquer obrigações e ou responsabilidade assumidas ou a assumir pela sociedade «F…» a favor dos credores Banco B…, S.A. e P…, S.A:, nas quotas de 92,96% e 7,04% , respectivamente.

5. Conforme informação prestada pela Sr.ª Administradora e dada a circunstância de, no âmbito da insolvência decretada relativamente à Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de H… (cônjuge da Insolvente), ter sido apreendido o direito à meação que o autor da herança detinha no património conjugal, a liquidação do activo nos presentes autos está a prosseguir no sentido de os imóveis que integram o património sobre o qual incidem os direitos aqui apreendidos (direito à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do cônjuge da Insolvente e direito de meação do património conjugal) serem vendidos conjuntamente por ambas as insolvências com posterior divisão do produto das vendas.


/////

IV.

Analisemos agora as demais questões colocadas no recurso.

Encontrando-se apreendidos nos presentes autos de insolvência os direitos da Insolvente à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu cônjuge e à meação do património conjugal onde se insere, além de outros imóveis, um imóvel que está onerado com uma hipoteca a favor das Apelantes e em garantia dos seus créditos que foram aqui reconhecidos, coloca-se a questão de saber como devem ser graduados estes créditos em relação ao produto da venda.

A decisão recorrida entendeu – e decidiu – que esses créditos têm que ser classificados e graduados, na presente insolvência, como “créditos comuns” – sem consideração, portanto, pela referida hipoteca – uma vez que a apreensão não incidiu directamente sobre o prédio sobre o qual incide essa garantia, mas sim sobre direitos sobre patrimónios comuns (a herança e o património conjugal). Não existia, portanto, qualquer hipoteca sobre os concretos direitos aqui apreendidos – a hipoteca incidia sobre bem diverso – e, portanto, nenhuma preferência poderia ser concedida aos aludidos credores.

Na perspectiva das Apelantes, os seus créditos terão que ser graduados como garantidos por força da referida hipoteca.

Vejamos então.

A análise e a solução a dar à questão terão que tomar em conta o disposto nos arts. 686.º, n.º 1, e 824.º do CC, onde se determina, por um lado, que a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo e, por outro lado, que os bens vendidos em execução – e obviamente também em processo de insolvência – são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo, transferindo-se para o produto da venda dos respectivos bens os direitos de terceiro que caducarem nos termos referidos e por força da venda efectuada.

É certo, portanto, que o direito de preferência do credor hipotecário não pode ser prejudicado pela saída do bem da esfera patrimonial do devedor; ou a hipoteca acompanha o bem, mantendo-se a garantia e a preferência por ela concedidas ainda que no património do terceiro que adquire o bem ou, caso a hipoteca se extinga por força da transmissão do bem hipotecado – como acontece nos casos de venda em processo de execução ou de insolvência –, o direito do credor hipotecário transferir-se-á para o produto da venda do bem, mantendo, portanto, sobre o produto da venda a mesma preferência que tinha sobre o bem hipotecado.

Em termos gerais, poderemos dizer que está correcta a posição adoptada na decisão recorrida.

Na verdade, o direito à meação e o direito à herança são direitos que incidem sobre uma quota ideal de determinado património ou universalidade (o património comum do casal e a herança) e que não incidem sobre cada um dos bens concretos que integram esse património; a apreensão e venda desses direitos não equivale, portanto, à apreensão e venda – autónoma e individualizada – de cada um dos bens que integram a herança ou o património comum do casal.

Nessas circunstâncias, a hipoteca constituída sobre um determinado imóvel que integra aqueles patrimónios não confere ao respectivo credor qualquer preferência relativamente ao produto da venda que seja efectuada do direito à meação ou à herança, na medida em que o bem sobre o qual incide a hipoteca (bem imóvel) não corresponde ao bem que está a ser – ou foi – vendido (o direito à meação e à herança). Importa notar, aliás, que, conforme dispõe o art. 690.º do CC, nem sequer seria admissível a constituição de hipoteca sobre a meação dos bens comuns do casal ou sobre quota de herança indivisa e, portanto, sob pena de se violar (ainda que indirectamente) essa proibição, não poderia ser concedida, em relação ao produto da venda desses direitos, qualquer preferência por força de hipoteca constituída em relação a determinado imóvel integrado no património comum ou na herança indivisa. E, precisamente porque o bem apreendido e vendido não corresponde ao imóvel hipotecado, mas sim ao direito à meação e à herança, a venda destes direitos no âmbito de processo de execução ou insolvência não implica, nos termos do art. 824.º do CC, a caducidade da hipoteca que incida sobre bem imóvel que esteja integrado nessa meação ou herança; essa hipoteca acompanhará o direito, mantendo-se a garantia e a preferência que lhe são inerentes.

Concluimos, portanto, que a venda, em processo de execução ou processo de insolvência, do direito à meação ou do direito à herança onde se integre um imóvel (ou mais do que um) onerado com hipoteca não determina a caducidade dessa hipoteca nos termos do art. 824.º do CC e não confere ao credor hipotecário qualquer preferência de pagamento relativamente ao produto da venda daqueles direitos; tal credor terá, portanto, que ser classificado e graduado em relação ao produto dessa venda como credor comum.

Neste sentido tem decidido, aliás, a nossa jurisprudência, destacando-se nesse sentido as seguintes decisões:

O Acórdão da Relação de Coimbra 07/02/2017 (processo n.º 1230/14.3T8ACB-B.C1)[1] em cujo sumário se lê:

Embora certos credores estejam garantidos por hipoteca sobre imóveis determinados integrantes daquele património comum, tal garantia não incide sobre o apreendido direito à meação, com a consequência de os créditos desses credores haverem, neste plano, de ser tidos como comuns e como tal objeto de graduação”;

A Decisão Sumária da Relação de Coimbra de 14/02/2012 (processo n.º 88/11.9TBMGL-E.C1)[2] em cujo sumário se lê:

A credora hipotecária titular de hipoteca constituída sobre imóvel integrante da meação conjugal do insolvente, não goza da preferência conferida pela hipoteca no pagamento pelo produto da venda da meação conjugal do insolvente”;

O Acórdão da Relação de Coimbra de 24/09/2013 (processo n.º 1260/12.0TBGRD-A.C1)[3], em cujo sumário se lê:

Em caso de venda do direito da meação do insolvente no património comum do ex-casal, a hipoteca da Recorrente não é afectada, porque não é o imóvel sobre o qual a mesma incide que é vendido. Quem adquire tal direito adquire uma parte do património comum no qual se integra um imóvel hipotecado. Apesar do direito passar para outro titular, o bem imóvel hipotecado continua a responder pela satisfação do crédito garantido, pois tal resulta da natureza da hipoteca enquanto direito real de garantia e da sequela que lhe anda associada (…)  O crédito da Recorrente terá de ser tido como comum, por existir apenas um único bem apreendido que é o direito à meação do insolvente no património comum do casal”;

O Acórdão da Relação de Guimarães de 30/10/2008 (processo n.º 2007/08-1)[4] em cujo sumário se lê:

Apreendido o direito de meação do falido relativo a um bem imóvel garantido com hipoteca a favor do credor reclamante, o crédito deste tem natureza comum, não beneficiando da preferência inerente àquela garantia”;

O Acórdão da Relação de Guimarães de 17/10/2019 (processo n.º 4052/18.9T8VNF-B.G1)[5] em cujo sumário se lê:

Incindindo a apreensão sobre o quinhão hereditário pertencente ao insolvente na herança ilíquida e indivisa aberta por morte do seu cônjuge e o seu direito à meação no património comum do casal extinto, o que será vendido serão esses direitos e não o imóvel hipotecado, pelo que o credor hipotecário não beneficia de preferência na graduação do seu crédito, sendo um mero credor comum”;

O Acórdão da Relação do Porto 29/04/2014 (processo n.º 378/12.3TBVLP-A.P1)[6], em cujo sumário se lê:

Estando apreendido para a massa insolvente o direito à meação do insolvente no património comum do casal formado por ele e pelo seu cônjuge, e dele fazendo parte um imóvel hipotecado, o conteúdo exacto do referido direito só se determinará no caso de separação de bens, após efectivação da liquidação do passivo do casal e partilha dos bens comuns, por força do disposto nos art.ºs 1715.º n.º 1, al. d), do C.Civil e 141.º n.º 1, al. b) e n.º 3, do CIRE (…) O crédito reclamado e reconhecido do credor detentor de hipoteca sobre o bem imóvel não goza de qualquer garantia real sobre o bem assim apreendido para a massa insolvente, devendo ser graduado como comum”.

Sucede, no entanto, que, apesar de estar aqui apreendido o direito à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do cônjuge da Insolvente e o direito de meação da Insolvente no património conjugal, não serão esses direitos que se perspectiva virem a ser vendidos, mas sim os imóveis que integram esse património comum.

Com efeito e conforme se referiu supra, a herança aberta por óbito do cônjuge da Insolvente (H…) também foi declarada insolvente e foi aí apreendido o direito que ele detinha no património conjugal. Ou seja, ambas as meações no referido património estão apreendidas, ainda que em processos de insolvência diferentes, e os respectivos administradores estão a diligenciar conjuntamente pela venda dos imóveis cujo produto da venda irá ser repartido por ambas as insolvências.

Ora, se é certo que a graduação de créditos é feita, por norma, com referência aos bens apreendidos por serem esses os bens que irão ser vendidos no âmbito do processo de insolvência, a verdade é que nem sempre será assim.

Com efeito, ao contrário do que parece ter sido considerado, por exemplo, no Acórdão da Relação de Coimbra de 07/02/2017 (proferido no processo n.º 1230/14.3T8ACB-B.C1)[7], não nos parece que exista qualquer obstáculo legal à venda dos bens que integram o património comum do casal quando os direitos de ambos os cônjuges sobre esse património estão apreendidos em processos de insolvência diferentes.

E o disposto no art. 743.º, n.º 2, do CPC – aplicável à insolvência por força do disposto nos arts. 17.º do CIRE – é a prova disso ao determinar que, quando em execuções diversas sejam penhorados todos os quinhões no património autónomo (como acontece no caso dos autos em que todos os quinhões no património estão apreendidos em duas insolvências) ou todos os direitos sobre o bem indiviso, realiza-se uma única venda, no âmbito do processo em que se tenha efectuado a primeira penhora, com posterior divisão do produto obtido. Pretendendo-se com essa norma evitar a subsistência da indivisão ou compropriedade e tornar mais fácil e rentável a venda a efectuar, parece que ela comportará a possibilidade de vender, individual ou conjuntamente, os concretos bens que integram o património autónomo.

Por outro lado, e independentemente da norma em questão, parece que nada obstaria a que ambos os administradores entendessem vender – em conjunto – os concretos bens que integram o património autónomo integralmente apreendido em ambas as insolvências, nos mesmos termos em que os titulares desse património o poderiam fazer caso o mesmo não estivesse apreendido, na certeza de que essa venda será sempre mais fácil e mais rentável do que a venda que incidisse sobre cada um dos direitos referentes ao património comum.

Nessas situações, o produto da venda dos bens substitui-se ao direito apreendido em cada uma das insolvências e, portanto, a graduação dos créditos não poderá ser feita em relação ao direito que estava apreendido (que não é vendido enquanto tal), mas sim em relação à parcela do produto da venda dos bens a que se reportava esse direito que venha a reverter para cada uma das insolvências, já que é o produto da venda destes bens – e não o produto da venda do direito apreendido – que irá ser utilizado para dar pagamento às dívidas da massa e aos créditos sobre  a insolvência.

Ora, sendo vendido directamente – em processo de execução ou em processo de insolvência – um imóvel integrado no património comum que está onerado com hipoteca, essa venda implicará a caducidade das hipotecas sobre ele incidentes, nos termos previstos no art. 824.º, n.º 2, do CC, com a consequente transferência dos direitos correspondentes a essas garantias para o produto da venda do bem em questão, mantendo os titulares desses direitos de garantia, em relação ao produto dessa venda, a mesma preferência no pagamento que lhes era dada pela garantia que detinham sobre o bem vendido. E tal situação não poderá deixar de ser considerada na graduação de créditos que venha a ser efectuada, não só porque é com referência ao produto da venda (sobre o qual incide aquela preferência) que terá que ser feita graduação, mas também porque, a ser de outro modo, os referidos credores ficariam prejudicados e perderiam a sua garantia, uma vez que a hipoteca caducaria por força da venda e os mesmos não usufruíram de qualquer preferência emergente dessa garantia, sob o pretexto de que o bem aqui apreendido não era o imóvel; ou seja, não obteriam aqui qualquer preferência no pagamento e tão pouco a poderiam vir a obter posteriormente no património do terceiro que adquirisse o imóvel, uma vez que a hipoteca caducaria com a venda.

Concluímos, portanto que, não obstante o facto de estarem apreendidos, na presente insolvência, o quinhão hereditário da Insolvente na herança ilíquida e indivisa aberta por morte do seu cônjuge e o seu direito à meação no património comum do casal, se a venda incidir directamente sobre o imóvel hipotecado – por decisão conjunta dos administradores das insolvências ou nos termos do citado art. 743.º, n.º 2 –, o produto da venda desse imóvel que, na sequência da repartição a efectuar, venha a reverter para os presentes autos substitui-se ao direito apreendido; nessa situação, a graduação de créditos terá que ser feita com referência ao produto da venda do imóvel e, portanto, com respeito pela preferência concedida pelas hipotecas que sobre ele incidiam e que, por efeito da caducidade das hipotecas, se transfere para o produto da respectiva venda.

Nessas circunstâncias, se a venda vier efectivamente a incidir sobre os imóveis que integram o património comum – como se perspectiva acontecer em face da informação prestada pela Sr.ª Administradora, mas ainda não é certo porque a venda ainda não está concretizada –, os créditos das Apelantes terão que ser classificados como “créditos garantidos” em relação à parcela – que venha a reverter para a presente insolvência – do produto da venda do prédio descrito na Conservatória sob o n.º 4756 (sobre o qual incide hipoteca em garantia dos seus créditos) e terão que ser graduados em relação ao produto da venda desse imóvel para ser pagos em primeiro lugar, de acordo com  a preferência que lhes é conferida pela referida hipoteca.

Impõe-se, portanto, alterar a decisão recorrida no sentido de, prevenindo a possibilidade de venda do imóvel (possibilidade que está efectivamente perspectivada nos autos), assegurar a graduação dos créditos com respeito pela hipoteca que sobre incide.


******

(…)

V.
Em face do exposto e, no pressuposto de que os bens imóveis irão ser vendidos nos termos indicados pela Sr.ª Administradora de Insolvência (supra enunciados), decide-se:
► Revogar a decisão recorrida na parte em que qualificou e graduou os créditos das Apelantes (Banco B…, S.A. e P…, S.A.) apenas como créditos comuns;
► Qualificar esses créditos como créditos garantidos em relação ao produto da venda do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 4756 que venha a reverter para os presentes autos, até ao montante máximo garantido pela hipoteca, tendo em conta as quotas e proporções de cada um dos créditos nessa hipoteca (92,96% e 7,04% para o Banco B… e para a P…, respectivamente) e com o limite de juros relativos a três anos (art. 693.º, n.º 2, do CC);
► Graduar os créditos nos seguintes termos:
1. Em relação ao produto da venda do referido prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 4756, serão pagos, em primeiro lugar, os créditos garantidos do Banco B…, S.A. e P…, S.A. (até ao montante máximo garantido pela hipoteca, tendo em conta as quotas e proporções de cada um dos créditos nessa hipoteca – 92,96% e 7,04% para o Banco  B… e para a P…, respectivamente – e com o limite de juros relativos a três anos), após o que serão pagos os demais créditos nos termos e em conformidade com o decidido em 1.ª instância;
2. Em relação ao produto da venda dos demais imóveis, os créditos serão graduados e pagos em conformidade com o estabelecido na sentença recorrida.

Na eventualidade de não vir a ser consumada a venda (que está projectada) dos concretos imóveis e de virem a ser vendidos os direitos apreendidos (os direitos da Insolvente à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu cônjuge e à meação do património conjugal), manter-se-á, em relação ao produto dessa venda, a graduação dos créditos nos exactos termos que constam da sentença recorrida.
 
Custas a cargo da massa insolvente
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                  (Maria João Areias)

                                              (José Avelino Gonçalves)                    


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