DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
Sumário

O despacho que declara deserta a instância tem mero efeito declarativo e os atos espontaneamente praticados pelas partes, após a deserção, mas antes do seu reconhecimento judicial, não impedem que a deserção seja efetivamente declarada.
(da responsabilidade do relator)

Texto Integral

Processo n.º 4842/09.3TBSTS.P2

Recorrentes – B… e C…

Recorridos - D… e outros


Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

Relator: José Eusébio Almeida;

Adjuntos: Carlos Gil e Mendes Coelho.


I – O despacho recorrido

1 - Nos presentes autos em que era autor E… e habilitandas as recorrentes B… e C…, sendo réus D… e outros foi proferido (assinado a 16.12.2020 e com data aposta de 17.12.2020) o despacho que se transcreve: “Decorre do artigo 277 alínea c) do CPC que a instância se extingue com a deserção. Por sua vez, o artigo 281 estatui, nos n.ºs 1 e 3, que a instância se considera deserta quando, por negligência das partes, o processo ou o incidente com efeito suspensivo, se encontrem a aguardar impulso processual há mais de seis meses. O artigo 138 n.º 1 prevê que o prazo judicial, estabelecido na lei ou fixado por despacho do Juiz é contínuo, mas suspende-se durante as férias judiciais, salvo se a sua duração foi igual ou superior a seis meses. Na sequência do falecimento do Autor E…, em 5 de Março (data do sistema) do corrente ano foi proferido despacho determinando a suspensão da instância até habilitação dos respetivos sucessores. A notificação foi realizada na referida data, produzindo os seus efeitos no subsequente dia 9. O artigo 7.º da Lei no 1-A/2020 de 9 de março determinou a suspensão dos prazos, o que se verificou no período compreendido entre 9 de março e 2 de junho. No entanto, descontando esse período, constata-se que o prazo de seis meses se esgotou no passado dia 3 de dezembro, sem que fosse praticado o ato processual de que dependia o prosseguimento dos presentes autos (o incidente de habilitação de herdeiros, correspondente ao apenso P), deu entrada somente a 11 de dezembro). Pelo exposto, impõe-se que se conclua e se declare a deserção da presente instância”.

II – Do Recurso

2 – Inconformadas, as habilitandas apelaram e, pretendendo a revogação do decidido, apresentaram as seguintes Conclusões:

2.1 - No dia 3.03.2020, a Mma. Juíza, por conhecimento funcional, ficou saber da morte do autor originário E… - cfr. conclusão citius ref.ª 412884265, e posterior Informação de Base de Dados ref.ª 412944054, de 4.03.2020;

2.2 - No seguimento, nos termos dos artigos 269 n.º 1 alínea a), 270 n.º 1 e 276 n.º 1 alínea a) do CPC, proferiu despacho a suspender a instância “(...) até trânsito em julgado da decisão da habilitação dos respetivos sucessores” - cfr. conclusão ref.ª 412944133;

2.3 - No dia 11.12.2020, as recorrentes, na qualidade de herdeiras legitimárias do falecido autor deduziram ao abrigo dos artigos 351 e ss do C.P.C. Incidente de habilitação de herdeiros - cfr. Requerimento (Início de Processo) ref.ª 27594376/Apenso O;

2.4 - As recorrentes até à data da apresentação do Incidente desconheciam o estado dos autos principais.

2.5 - A 15.12.2020, no Apenso O/Incidente de habilitação de herdeiros, proferiu-se despacho “Abra conclusão no processo principal” – ref.ª 420148280 do Apenso O;

2.6 - No dia 17/12/2020, o tribunal, nos autos principais proferiu sentença, na qual decidiu declarar a deserção da instância uma e vez que “(...) constata-se que o prazo de seis meses se esgotou no passado dia 16 de Novembro, sem que fosse praticado o ato processual de que dependia o prosseguimento dos presentes autos (o incidente de habilitação de herdeiros, correspondente ao Apenso P), deu entrada somente a 4 de dezembro)” – ref.ª 420233482, que se reproduz na sua totalidade para devidos efeitos.

2.7 - A Mma. Juíza concluiu pela deserção da instância por falta de impulso processual nos termos conjugados nos artigos 277 al. c), artigo 281, nos n.ºs 1 e 3, todos do CPC.

2.8 - A sentença ocorre após apresentação incidente de habilitação de herdeiros promovida pelas recorrentes, sendo certo, que, entre o despacho que determinou a suspensão da instância até à apresentação do incidente de habilitação pelos respetivos sucessores, ora recorrentes, os autos não registaram qualquer decisão judicial no sentido de ter sido proferida pelo tribunal a extinção da instância por deserção;

2.9 - Recorre-se assim dos fundamentos de direito que consubstanciam a sentença proferida – de 17.12.2020 - a qual, impunha uma decisão diferente: as recorrentes impulsionaram processualmente o andamento do processo por via da apresentação do incidente de habilitação de herdeiros, que levará à renovação da instância;

2.10 - A nível jurisprudencial é pacífico o entendimento que, tratando-se a deserção um ato “ope judicis”, as partes são livres de promover impulso processual, ainda que fora do tempo previsto por lei, enquanto não for proferido despacho de extinção da instância.

2.11 - Nesse sentido transcreve-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido no processo n.º 709/18.2T8BJA.E1 de 8.10.2020, disponível em dgsi: “Sumário - A deserção não se produz automaticamente, ope legis; depende de ato do juiz, produz-se ope judicis, visto que demanda uma sentença de declaração”, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido no processo n.º 3395/12.0TBLLE.E1 de 16.01.2020, consultável in dgsi: “Sumário - A deserção não se produz de direito, posto que deva ser declarada oficiosamente; depende de ato do juiz, produz- se ope judicis. A sentença de deserção tem, pois, alcance constitutivo. Enquanto não for proferida, é lícito às partes promover utilmente o seguimento do processo. (...) Decisão Texto Integral: (...) E enquanto a instância não for declarada extinta, segundo Alberto dos Reis, “as partes podem dar impulso ao processo, pouco importando que tenha estado parado durante mais de seis anos” (Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3.º, Coimbra Editora, Coimbra, 1946, p.440). (...) o efeito da inatividade das partes não se produz ipso jure. A nossa lei não declara, (...) que a deserção opera de direito os seus efeitos; pelo contrário, segundo o artigo 296, não basta o facto da inércia, é necessária uma sentença de extinção. (...) «A deserção não se produz de direito, posto que deva ser declarada oficiosamente; depende de ato do juiz, produz- se ope judicis. A sentença de deserção tem, pois, alcance constitutivo. Enquanto não for proferida, é lícito às partes promover utilmente o seguimento do processo» ( ob. cit., pp. 439-440). Daqui decorre, na verdade, que não tem sentido (nem a lei o quer) decretar a deserção depois de deduzido o incidente que, a ser procedente, levará à renovação da instância. Não que já tivesse cessado a causa da suspensão com a dedução do incidente [claro que não: veja-se o art. 276, n.º 1, al. a)] mas sim porque estando ele a correr os seus termos nada impedia que se permitisse o seu desfecho. Não havia que julgar deserta a instância depois da apresentação do requerimento de habilitação antes do despacho a julgar deserta a instância. A ser assim, teríamos de chegar à conclusão que, se o incidente não ficasse decidido no prazo de 6 meses, mesmo que estivesse já e atempadamente a ser tramitado, sempre a instância seria julgada deserta. Cremos não ser este o objetivo da lei tendo em conta o disposto no citado preceito legal bem como no art. 2.º, n.º 1. (...), o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/05/2016, proferido no proc. n.º 2/14.0TBVIS.C1, disponível em dgsi: “Sumário - 1. A deserção da instância declarativa opera, necessariamente, mediante decisão judicial e pressupõe a negligência das partes no impulsionamento do processo (carece de ser imputável às partes) (art. 281, do CPC) - a deserção não existe enquanto o juiz a não a declara no processo respetivo. 2. A sentença de deserção tem, pois, alcance constitutivo, pelo que enquanto não for proferida, é lícito às partes promover utilmente o seguimento do processo.”

2.12 - Com apresentação do incidente de habilitação de herdeiros, as recorrentes, antes de declarada a deserção da instância, não deixaram de promover utilmente o seguimento do processo, pelo que, salvo melhor opinião, fica desde logo sem efeito, nos termos supra expostos a pretensa e eventual inércia por parte das recorrentes, razão pela qual já não será sequer possível analisar a pretérita atuação daquelas no que pudesse consubstanciar a eventual negligência na promoção do regular andamento dos autos, cfr. o previsto no art. 281 do CPC;

2.13. Salvo melhor opinião, o tribunal, ao considerar deserta a instância, proferiu uma decisão ao arrepio da jurisprudência, bem como carece de cobertura legal;

2.14 – A sentença viola, ou no mínimo fez uma incorreta apreciação dos princípios e disposições legais previstas nos artigos 6.º, 277, al. c), 281 e 282 do CPC devendo a final ser revogada, por não se verificarem os pressupostos previstos na lei para que ocorra a deserção da instância, e ser ordenado consequentemente o prosseguimento dos autos, tudo conforme tempestivamente peticionado.

3 - Os recorridos responderam e, sustentando a manutenção do despacho, concluem:

A - Não parecem restar dúvidas de que “A deserção da instância depende da verificação dos seguintes pressupostos: (1) paragem do processo por mais de seis meses, por ter sido omitida a prática do ato de que dependia o seu prosseguimento (respeitante ao próprio processo, ou a incidente de que dependia o prosseguimento da ação principal); (2) Ser essa omissão devida à negligência da parte que tinha o ónus da sua prática, isto é, dever o ato ser praticado por si e ter a sua omissão um carácter censurável”.

B - “A apreciação da negligência revelada pela parte deve ser feita objetivamente em face dos dados conferidos pelo processo.”

C - Ora, o processo esteve parado por mais de seis meses, sem qualquer causa justificativa.

D - O despacho que ordena a suspensão da instância diz expressamente “até trânsito em julgado da decisão de habilitação de herdeiros”.

E - Não é o simples requerimento de habilitação de herdeiros, entrado após terem decorrido os seis meses de paralisação do processo, que faz interromper a suspensão da instância.

F - De outra forma ocorre lesão da parte contrária, pois a decisão de deserção teria de ocorre logo que decorrido o prazo de mais seis meses.

4 – O recurso foi recebido nos termos legais e, na Relação, nada foi alterado ao pertinentes despacho, tendo-se dispensado os Vistos e nada se observando que obste à apreciação do mérito da apelação, cujo objeto, atentas as conclusões das apelantes, consiste em saber se o despacho recorrido deve ser revogado, uma vez que o impulso processual das apelantes (ao requererem a sua habilitação), embora ocorrido depois de seis meses, foi-o antes do despacho que determinou a deserção da instância.


III – Fundamentação

III.I – Fundamentação de facto


5 - O teor do despacho impugnado e as conclusões apresentadas pelas apelantes evidenciam toda a factualidade bastante à apreciação do recurso.

III.II – Fundamentação de Direito

6 – Mostrando-se definido o objeto do recurso (ponto 4.) e não estando em causa, como decorre das conclusões das apelantes, que as mesmas não impulsionaram o processo nos seis meses subsequentes à notificação decorrente do falecimento do primitivo autor e da suspensão da instância, o que está em causa é saber se, ainda assim, o despacho que declarou a deserção da instância deve ser revogado, uma vez que as apelantes deduziram o incidente de habilitação de herdeiros antes da prolação desse despacho.

7 – Efetivamente, nem na ação nem no recurso as apelantes invocam qualquer causa ou razão que afaste a negligência, objetivamente considerada, que decorre da sua inércia, prolongada por mais de seis meses.

8 – Mas sustentam, repetimos, que antes do despacho que declarou deserta a instância ainda podiam, embora volvidos os seis meses, praticar o ato, evitando a deserção e, em abono do seu entendimento, citam três acórdãos, todos consultáveis em dgsi: um primeiro da Relação de Coimbra, datado de 17.05.2016 (relator, Desembargador Fonte Ramos) e dois outros, datados de 16.01.2020 e 8.10.2020, ambos da Relação de Évora (relatados pelo Desembargador Paulo Amaral).

8 – Efetivamente, segundo o entendimento seguido nos citados acórdãos – citando, por sua vez, o pensamento de Alberto do Reis [cfr. Comentário ao Código de Processo Civil, Volume III, Coimbra Editora, 1946, págs. 439/440] a deserção implica uma decisão judicial com efeito constitutivo e, por isso, enquanto a mesma não for judicialmente declarada a inércia da parte ainda não releva ou, dito de outro modo, pode ainda praticar o ato omitido.

9 – A deserção da instância tem em vista “que não se mantenham em curso nos tribunais processos que podem ser considerados inúteis e causadores de aglomeração de causas que podem demonstrar inviabilidade de produzirem efeitos práticos” e, por isso, “estabelece-se um princípio geral de deserção da instância quando a instância se encontre parada por mais de seis meses por negligência das partes, ou seja, daquela que tem interesse em obter uma decisão judicial”.[1]

10 – Certo é que a deserção depende de decisão judicial, ainda que consistente em simples despacho (artigo 281, n.º 4 do Código de Processo Civil – CPC), ou seja, e diferentemente do que ocorria no regime processual anterior, a instância não se considera deserta “independentemente de qualquer decisão judicial”, mas, ainda assim, a decisão é “meramente declarativa”[2].

11 – Em nosso entendimento, o despacho que declara deserta a instância é meramente declarativo. Seguimos, assim, o que ficou dito no acórdão da Relação de Lisboa de 20.12.2016 (relator, Desembargador Luís Filipe Pires de Sousa, dgsi) : “Na explicitação de Paulo Ramos de Faria, O Julgamento da Deserção da Instância Declarativa, Breve Roteiro Jurisprudencial, http://julgar.pt/wp-content/uploads/2015/04/O-JULGAMENTO-DA-DESER%C3%87%C 3%83º-DA-INST%C3%82NCIA-DECLARATIVA-JULGAR.pdf, a conduta negligente consubstancia-se na omissão que não resulta de facto de terceiro (estranho à parte) ou de força maior que impede o demandante de praticar o ato. Deste modo, a assunção pelo demandante de uma conduta omissiva que, necessariamente, não permite o andamento do processo, estando a prática do ato omitido apenas dependente da sua vontade, é suficiente para caracterizar a sua negligência. Tal conduta omissiva e negligente só «cessará com a prática do ato que, utilmente, estimule a instância, ou com a superveniência de uma circunstância que subtraia à vontade da parte a possibilidade da sua prática.» - Ibidem, p. 6. A decisão que declara a deserção da instância tem efeito declarativo e não constitutivo. Conforme refere Ramos de Faria, Ibidem, pp. 13-14, «A circunstância de a lei estabelecer que determinado facto deve ser judicialmente declarado, isto é, julgado verificado, não converte este julgamento na causa dos efeitos que, na verdade, são produzidos pelo facto declarado. Ou seja, concretizando na deserção da instância, o julgamento desta, isto é, o seu reconhecimento não é, óbvia e logicamente, um seu pressuposto. Os pressupostos da deserção são a paragem do processo, por inércia das partes, e o decurso do tempo; o seu efeito (não o efeito do seu julgamento) é a extinção da instância (art. 277.º, al. c)).

O julgamento da deserção traduz-se no reconhecimento judicial da verificação do seu primeiro requisito – paragem do processo por inércia das partes – por seis meses e um dia. É aqui que ocorre a deserção; é aqui que os seus pressupostos constitutivos se reúnem. O juízo exigido pela norma contida no n.º 4 do art. 281.º é, neste sentido, meramente declarativo. O facto jurídico processual extintivo da instância não é interpretado (praticado) pelo juiz, ao contrário do que ocorre com o julgamento (art. 277.º, al. a)), resultando tal extinção, sim, diretamente da deserção declarada pelo tribunal – isto é, da deserção julgada verificada, por verificados estarem os seus pressupostos de facto. Confrontando os enunciados das als. a) e c) do art. 277.º, nota-se que a lei não estabelece que a instância se extingue por força do julgamento da deserção, embora ele seja necessário para que esta tenha repercussões processuais. Desta asserção, que, em boa verdade, nos parece apodítica, retira-se que, após a ocorrência da deserção e antes de ser ela judicialmente reconhecida, os atos putativamente processuais espontaneamente praticados pelas partes são potencialmente desprovidos do seu efeito jurídico processual típico. Tais atos não são idóneos a impedir o julgamento de deserção da instância. A ideia de que o demandante ainda pode praticar um ato redentor após a deserção, mas antes de ela ser declarada, assim impedindo o seu conhecimento, tem cabimento num sistema que, ao contrário do que ocorre com o nosso, tenha um fundamento subjetivo, apoiando-se na renúncia presumida à lide (vontade de abandono) – presunção esta que é serodiamente ilidida com o referido ato.» [sublinhados nossos].

12 – Como se diz – e se concorda – os atos praticados depois do decurso do prazo de seis meses não impedem a deserção da instância, mesmo que só posteriormente (posteriormente à prática desses atos, bem se vê) haja sido proferido o despacho que declarou deserta a instância.

13 – Pelas razões ditas e atendendo ao concreto objeto da apelação, o recurso revela-se improcedente, cabendo às apelantes o pagamento das respetivas custas, atento o seu decaimento.


IV - Dispositivo

Pelas razões ditas, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso e, em conformidade, confirma-se a decisão proferida na primeira instância.

Custas pelas apelantes.

Porto, 24.05.2021

José Eusébio Almeida

Carlos Gil

Mendes Coelho

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[1] José António de França Pitão/Gustavo França Pitão, Código de Processo Civil Anotado, Tomo I, Quid Juris, 2016, pág. 348.

[2] Paulo Ramos de Faria/Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Código de Processo Civil – Os artigos da reforma, Volume I, 2.ª Edição, Almedina, 2014, pág. 273. Sobre a natureza declarativa ou constitutiva do despacho que declara deserta a instância, cfr. José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª Edição, Coimbra Editora, págs. 555/556.