NULIDADE PROCESSUAL
DECISÃO SURPRESA
VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
RECURSO
RECLAMAÇÃO
Sumário

i) Proferida decisão-surpresa, com violação do princípio do contraditório, em desrespeito pelo estatuído no art. 3º, nº 3, do NCPC, incorre-se numa nulidade processual, nos termos do art. 195º, nº 1, do mesmo diploma, e não numa nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, do art. 615º, nº 1, c), do referido código;
ii) Uma coisa é a nulidade processual, por ex. a omissão de um acto que a lei prescreva, relacionada com um acto de sequência processual, e por isso um vício atinente à sua existência, outra bem diferente é uma nulidade da sentença ou despacho, e por isso um vício do conteúdo do acto, por ex. a omissão de pronúncia, um vício referente aos limites; tão pouco se confundindo a dita nulidade com um erro de julgamento, que se caracteriza por um erro de conteúdo;
iii) “Das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se”, pelo que o recorrente devia ter arguido a respetiva nulidade perante o juiz da causa, e não interpor recurso, invocando aquela nulidade da sentença, já que não é invocável o esgotamento do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, o qual só ocorre quanto ao objecto da decisão, nem o trânsito em julgado se dando enquanto a arguição estiver pendente, para se dever entender que o juiz deixa de poder conhecer da nulidade oportunamente arguida; e se a nulidade vier a ser declarada, a sentença deixa de poder subsistir (art. 195º, nº 2, 1ª parte do NCPC);
iv) Quando um despacho judicial se pronuncia no sentido de não dever ser praticado certo acto prescrito por lei, a questão deixa de ter o tratamento das nulidades processuais para seguir o regime do erro de julgamento, por a infração praticada passar a ser coberta pela decisão proferida;
v) Desde que haja contestação, o juiz não pode, por força do disposto no art. 186º, nº 3, do NCPC, julgar inepta a petição, por falta de indicação da causa de pedir, se chegar à conclusão de que o R., naquele articulado interpretou corretamente a dita petição, e isto quer o mesmo R. tenha ou não suscitado a questão da ineptidão.

Texto Integral











I – Relatório

1. J..., residente em …, intentou ação declarativa contra A..., residente em …, pedindo que a mesma seja condenada a pagar-lhe a quantia de 88.107,84€, acrescida de juros desde a citação até integral pagamento, montante do seu enriquecimento ilegítimo à custa do autor, face ao termo da união de facto que tiveram de Junho de 2007 a Agosto de 2019.

Invocou, em suma, a vivência em união de facto entre ambos, a aquisição de um imóvel para “casa de férias”, adquirindo o autor o usufruto e a ré a nua propriedade, pelo valor total de 110.000€, sendo o valor da nua propriedade o de 71.500€, que só o autor pagou com dinheiro próprio, mais despesas inerentes de I. Selo, IMT e emolumentos. Suportou ainda uma dívida da ré à Autoridade Tributária, no montante de 9.608,81 €, mais 3 meses do vencimento da empregada de limpeza de uma casa da ré, no montante de 456 €, tendo, ainda, emprestado a quantia de 5.256,03 €, tudo no valor global que reclama, e por ele suportados no exclusivo interesse da ré. Terminada a união de facto entre ambos, verifica-se enriquecimento sem causa da ré à custa do autor, pois não há causa legítima para o mesmo.

A ré contestou, excecionando a ineptidão da p.i., por contradição entre o pedido e a causa de pedir, ao abrigo do art. 186º, nº 2, b), do NCPC, porquanto invoca o A. um mútuo mas depois pede a restituição com base em enriquecimento sem causa. Por impugnação disse que a compra do imóvel e pagamento de despesas inerentes foi feito por espírito de liberalidade do A., o mesmo acontecendo com o pagamento da dívida fiscal. O pagamento à empregada, que trabalhava na casa de morada de família, é uma despesa da vida em comum, não sendo restituível com base em enriquecimento sem causa. Não é verdade que o autor lhe tenha emprestado a quantia que refere, apenas lhe foi transferida para si por doação. Conclui inexistir enriquecimento sem causa. A haver tal enriquecimento estaria prescrito e a haver empréstimo seria inexigível, por falta de vencimento. Pediu, ainda, a condenação do A., como litigante de má fé, em multa e indemnização    

O autor (convidado pelo Tribunal para o efeito) respondeu, pronunciando-se sobre a prescrição, sobre a falta de vencimento e sobre a ineptidão da p.i. Neste âmbito mencionou que todos os pagamentos que efetuou foram com dinheiro próprio em benefício da ré e somente porque vivia em união de facto com ela, pressupondo que o mesmo se manteria, e referindo de facto um empréstimo (da quantia mencionada de 5.256,03 €), certo é que o mesmo não foi reduzido a escrito, pelo que teria de ser declarada a sua nulidade formal, restando a possibilidade de, subsidiariamente, pedir a devolução da quantia a título de enriquecimento sem causa. Não existe, pois, ineptidão. Caso se entenda haver ineptidão nesta parte, então deve haver lugar ao aperfeiçoamento do seu articulado, nos termos do art. 590º, nº 2, b), do NCPC, jamais á absolvição da instância.

*

Em despacho saneador, foi proferida sentença que, ao abrigo do disposto nos arts. 186º, nº 2, a), 278º, nº 1, b), e 577º, nº 1, b), do NCPC, determinou a absolvição da R. da instância.

2. O A. recorreu, concluindo que:

...

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida por nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 195.º do CPC ou, caso assim não se entenda (o que não se concede, meramente se equaciona) por ser ilegal, por força das nulidades procedimentais verificadas, designadamente, a que resulta da não realização da audiência prévia em manifesta violação do artigo 592.º, n.º 1, alínea b), do CPC a contrario, ou, novamente sem prescindir, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por Acórdão que julgue improcedente a excepção de ineptidão da petição inicial, nos termos da alínea a) e b) do n.º 2 do artigo 186.º do CPC.

3. Inexistem contra-alegações.

II – Factos Provado

As circunstâncias de facto apuradas são as que resultam do relatório supra.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Decisão surpresa (conclusões de recurso I. a VII.).

- Obrigatoriedade de convocação de audiência prévia (conclusões VIII. a X.).

- Ineptidão da p.i. (conclusões XI. a XIV. e XV. a XXIII.). 

 2. Na decisão recorrida escreveu-se que:

“De acordo com o disposto no artigo 186º do Código de Processo Civil, é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial, e diz-se inepta a petição inicial quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir ou quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.

(…)

Na presente ação, como referido, o pedido formulado autor consiste na condenação da ré na restituição da quantia global peticionada cujo valor global ascende a € 88.107,84 (oitenta e oito mil cento e sete euros e oitenta e quatro cêntimos), com base no instituto do enriquecimento sem causa.

No entanto, e também como referido, alega o autor como causa de pedir e assim conclui no aludido artigo 34º da PI, factos com os quais pretende demonstrar que as quantias que entregou à ré o foram a título de empréstimo, pretendendo agora a devolução dessas mesmas quantias.

Veio o Autor pronunciar-se pela não verificação da ineptidão da petição inicial, concluindo que, embora tenha alegado que entregou todas as quantias à Ré a título de empréstimo/mútuo, “como uma simples e correta leitura da p.i. permite perceber”, pois são “vários os pagamentos discriminados ao longo da petição inicial, invocando o A. claramente que os fez única e exclusivamente no interesse da R., não obstante terem sido satisfeitos com dinheiro próprio e pessoal do mesmo, designadamente:

- a totalidade do preço do imóvel descrito em 8 da p.i.;

- os emolumentos e encargos relacionados com a aquisição deste último (artigos 20 a 23 da p.i.)

- vencimento da empregada doméstica contratada pela R. atinente aos meses de Dezembro de 2018 e Maio e Junho de 2019, no valor mensal de €152 (26 da p.i. – esclarecendo o autor que, por lapso, neste artigo foi mencionado que a Sra. ... efetuava a limpeza da habitação sita em ..., mas na verdade prestava o seu serviço na casa de ...)”, e que “relativamente às quantias supra mencionadas, a causa de pedir encontra-se bem delimitada e transparente, não só pela terminologia usada, como também pelo raciocínio lógico construído ao longo da peça processual em causa: o A. suportou todos esses pagamentos, com dinheiro pessoal, fruto do seu trabalho, mas em benefício da R., apenas e tão somente porque vivia em união de facto com esta última. Por outras palavras, os pagamentos foram feitos no pressuposto da manutenção da união de facto. O que se traduz numa alegação manifestamente diferente de afirmar que as quantias foram emprestadas”. Alega o autor que “apenas relativamente à quantia mencionada em 29 da p.i. é usada, pelo A., a terminologia “emprestou”, assim, quando muito, este será o único pagamento em que é alegada a existência de um empréstimo, consubstanciado numa transferência no valor de €5.256,03 para a conta bancária da Ré.” Mais alega o autor (e com razão) que, “ainda que se considere que esta quantia foi mutuada, de acordo com o disposto no artigo 1143.º do CC, “o contrato de mútuo de valor superior a (euro) 25.000 só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado e o de valor superior a (euro) 2500 se o for por documento assinado pelo mutuário”. Sucede que, in casu, o contrato nunca foi reduzido a escrito, pelo que, sempre teria de ser declarada a nulidade, por falta de forma, do contrato de mútuo em causa”, sendo certo que tais factos não foram alegados na petição inicial, nem formulou o autor, a título subsidiário, pedido de condenação da Ré a restituir-lhe, a título de enriquecimento sem causa, a mencionada quantia por força dessa nulidade.

Analisada a petição inicial resulta efetivamente evidente uma insuficiência da alegação da matéria de facto, por vaga e verifica-se uma real contradição entre o pedido e a causa de pedir.

Com efeito, não especificou o autor os concretos factos que estiveram na origem da outorga da escritura de compra e venda e declaração nessa escritura da venda da nua propriedade à ré e usufruto ao autor, a razão pela qual o pagamento foi efetuado pelo autor, e a que título todas as demais quantias foram entregues à ré nem como calculou o autor o valor cujo pagamento peticionada.

Assim, da análise da petição inicial resulta evidente que embora invoque o autor o “empréstimo”, não esclarecendo os concretos termos do empréstimo e os termos da restituição, nem tão pouco se esta havia sido acordada e em que termos pelas partes, pretende ver reconhecido o seu direito à restituição das quantias peticionadas, não com base no mútuo, mas com fundamento no enriquecimento sem causa, não alegando os factos relativos ao concreto enriquecimento sem causa da Ré e relativamente a que factos.

Não pode assim deixar de se concluir que o pedido e a causa de pedir, são contraditórios entre si, o que impossibilita a ré de se defender devidamente, sendo, no caso concreto, a contradição entre o pedido e a causa de pedir insanável.

Nos termos do disposto no artigo 552º, n.º 1, al. d) do C.P.C., na petição com que propõe a ação, deve o autor expor os factos que servem de fundamento à ação. É o que se chama causa de pedir.

Diz-se inepta a petição quando falte a causa de pedir (artigo 186º, n.º 2, al. a) do CPC).

A nossa lei consagra a teoria da substanciação, segundo a qual o objeto da ação é o pedido, definido através de certa causa de pedir.

A causa de pedir é o facto jurídico de que emerge o direito do autor e fundamenta, portanto, a sua pretensão e traduzindo-se num facto concreto tem de ser invocada na petição, sem o que não pode ser apreciada na sentença.

Assim, a causa de pedir consiste no facto jurídico de que procede a pretensão material deduzida na ação e o autor tem necessariamente de a indicar sob pena de ineptidão da petição inicial, do que resulta a nulidade de todo o processado, nos termos do artigo 186º, n.º 1 do CP, com a consequente absolvição da instância- e a absolvição da instância - artigos 278º, nº 1, alínea b) e 477º, nº 1, alínea b), todos do Código de Processo Civil.

A causa de pedir tem de ser concretizada ou determinada, consistindo em factos ou circunstâncias concretas e individualizadas, não podendo apresentar-se como genérica (a entrega de quantias no âmbito de uma relação de união de facto).

O autor deve expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à ação. Neste sentido, Alberto dos Reis esclarece que "…a narração há-de conter, pelo menos, os factos pertinentes à causa e que sejam indispensáveis para a solução que o autor quer obter: os factos necessários e suficientes para justificar o pedido" (In Código Processo Civil Anotado , Vol II, pág. 351).

Tendo em conta o Principio do dispositivo, é sobre o autor, que invoca a titularidade de um direito, que cabe fazer a alegação dos factos de cuja prova seja possível concluir pela existência desse direito, tal como decorre do disposto no artigo 5 do CPC.

(…)

Não tendo, no caso dos autos, o Autor, alegado factos concretos que possam integrar a causa de pedir, condenação da ré no pagamento de uma determinada quantia com base no enriquecimento sem causa, em face da alegada entrega das quantias monetárias sem concretização de tais entregas e do animus das mesmas, verifica-se a falta desta e a contradição com o pedido e, consequentemente, a ineptidão da petição inicial, o que acarreta a nulidade de todo o processo.

A nulidade de todo o processo constitui exceção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância.

(…)

“1. A causa de pedir é o acto ou facto jurídico concreto donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer (legalmente idóneo para o condicionar ou produzir).

2. A petição inicial será inepta quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir (art.º 186º, n.º 2, alínea a) do CPC).

3. A figura da ineptidão da petição inicial (que implica que, por ausência absoluta de alegação dos factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir, o processo careça, em bom rigor, de um objecto inteligível) distingue-se e contrapõe-se à mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspecto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida.

4. Apenas nesta segunda situação a parte poderá/deverá ser convidada a completar o articulado, podendo ainda tal insuficiência ou incompletude vir a ser suprida em consequência da aquisição processual de tais factos concretizadores, se revelados no decurso da instrução - art.ºs 5º, n.º 2, alínea b) e 590º, n.º 4 do CPC.

5. Perante a completa falta de alegação de factos susceptíveis de integrar a causa de pedir, fica inviabilizado o conhecimento do mérito da causa e nenhum relevo poderá ser dado a posterior articulado que o autor decida apresentar visando “sanar” aquele vício.” (Acórdão TRC, de 14.11.2017, processo n.º 7034/15.9T8VIS.C1, consultável em www.dgsi.pt).

(…)

... Nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido (art.º 581º, n.º 4).

(…)

(…) A figura da ineptidão da petição inicial (que implica que, por ausência absoluta de alegação dos factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir, o processo careça, em bom rigor, de um objecto inteligível) distingue-se e contrapõe-se à mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspecto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida (implicando que a petição, caracterizando, em termos minimamente satisfatórios, o núcleo factual essencial integrador da causa petendi, omita a densificação de algum aspecto caracterizador ou concretizador de tal factualidade essencial).

E é só nesta segunda situação, de mera insuficiência de concretização factual relevante (de factualidade de que depende a procedência da pretensão do A.), que a parte poderá/deverá ser convidada a completar o articulado, podendo ainda tal insuficiência ou incompletude vir a ser suprida em consequência da aquisição processual de tais factos concretizadores, se revelados no decurso da instrução (art.º 5º, n.º 2, alínea b)), sendo que, persistindo mesmo assim a dita insuficiência concretizadora, a consequência de tal insuficiência da matéria de facto processualmente adquirida não será a anulação de todo o processo, mas antes a improcedência, em termos de juízo de mérito, da própria acção, por o A. não ter logrado, afinal, apesar das amplas possibilidades processuais de que beneficiou, alegar e provar cabalmente todos os elementos factuais constitutivos de que dependia o reconhecimento do direito por ele invocado…(Acórdão TRC, de 14.11.2017, processo n.º 7034/15.9T8VIS.C1 citado).”

No caso dos autos, peticiona o Autor que seja a ré obrigada a restituir “todo esse dinheiro ao A.”, mais concretamente €88.107,84 (oitenta e oito mil cento e sete euros e oitenta e quatro cêntimos).

No entanto, não alega o autor, para além da entrega de tais quantias, factos que permitam concluir pela existência do referido direito de restituição, sendo que teria de alegar e provar o facto jurídico do qual deriva o direito de restituição de que se arroga, não tendo sido alegados factos que constituam causa de pedir adequada para tal direito, apesar de os autores aludir que no âmbito da união de facto entregou tais quantias à ré, mas nada mais concretizando quanto à causa da entrega e obrigação de restituição, o mesmo relativamente ao contrato de compra e venda efetuado e obrigação da ré em compensar o autor.

Assim, a petição inicial, não definiu factualmente o núcleo essencial da causa de pedir invocada, padecendo de falta de causa de pedir, vício que gera a sua ineptidão e que, sendo de conhecimento oficioso, cumpre declarar, pois que não se mostra suscetível de ser suprido sem que ocorra uma alteração da causa de pedir, da matéria de direito que consubstancia o pedido e alteração do próprio pedido.

Assim, a falta da causa de pedir e a contradição entre o pedido e a causa de pedir, no caso concreto, considera-se insanável, não cabendo ao tribunal interpretar, averiguar e selecionar o contexto em que as entregas ocorreram, pois que tal ónus cabe ao autor, o que determina que não possa ser ocorrer qualquer convite com vista à sua supressão e aperfeiçoamento, pois que a mesma, a verificar-se, corresponderia à apresentação de uma nova petição inicial, suportada numa causa de pedir inexistente no momento da instauração da ação, sendo que o convite ao aperfeiçoamento da petição inicial apenas pode ser equacionado para as hipóteses em que a causa de pedir padece de simples deficiências que, no momento da decisão, possam vir a determinar a improcedência da ação, e não para as hipóteses de falta de causa de pedir como a que se verifica

Não tendo, no caso dos autos, o Autor, alegado factos concretos que possam integrar a causa de pedir, restituição de quantia com base no enriquecimento sem causa, verifica-se a falta desta e, consequentemente, a ineptidão da petição inicial, o que acarreta a nulidade de todo o processo.

A nulidade de todo o processo constitui exceção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância.

(…)

Faltando a causa de pedir, em face do pedido concreto formulado, não há lugar á prolação do despacho previsto no artigo 590º, n.º 2 do CPC, pois que não há que suprir a falta de pressupostos processuais nem de aperfeiçoar a petição inicial, nem a nulidade decorrente da ineptidão é suprível nem a petição inepta por falta de causa de pedir carece de ser aperfeiçoada, pois não se trata de irregularidade mas sim de nulidade.

De acordo com o disposto no artigo 592º, n.º 1, al. b) do CPC, a audiência prévia não se realiza quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, se tenham pronunciado as partes relativamente aos factos determinantes da absolvição da instância ou do pedido.

Não tendo o Autor alegado factos concretos que possam integrar a causa de pedir quanto à restituição da quantia global peticionada, verifica-se a falta desta e, consequentemente, julga-se inepta a petição inicial, o que acarreta a nulidade de todo o processo, nulidade essa que constitui exceção dilatória, determinando-se assim a absolvição da instância que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância.

Como referido, a ineptidão da petição inicial determina a nulidade de todo o processo, excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância.” – os sublinhados são da nossa autoria.

3. Relativamente à decisão surpresa, não há dúvida que ela ocorreu.

A R. esgrimiu com a ineptidão da p.i., mas apenas com base na contradição entre o pedido e a causa de pedir, como previsto no art. 186º, nº 2, b), do NCPC. O tribunal respeitando o contraditório deu a possibilidade de o A. responder, o que este fez. 

Mas depois – embora refira na sua fundamentação que tal contradição existia, como se verifica da transcrição que acima fizemos e das passagens que aí sublinhámos – acabou por decidir somente com base na falta de causa de pedir, prevista no mesmo artigo e número, mas a). Causa diversa, pois, da invocada pela R.

No entanto, embora se trate de uma ineptidão de conhecimento oficioso (arts. 186º, nº 1, 577º, b) e 578º do NCPC), devia ter concedido o contraditório ao A., o que não fez, em desrespeito pelo estatuído no art. 3º, nº 3, do mesmo código.

Incorreu, então, inequivocamente, numa nulidade processual, tal como decorre do art. 195º, nº 1, do mesmo diploma, e tal como defende o apelante.

Onde divergimos do recorrente é no passo seguinte que o mesmo dá, ao defender que a sentença recorrida, face a tal nulidade processual, é nula por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 1, d), daquele código. Trata-se de 2 realidades distintas.

Uma coisa é a nulidade processual, por ex. a omissão de um acto que a lei prescreva, relacionada com um acto de sequência processual, e por isso um vício atinente à sua existência, outra bem diferente é uma nulidade da sentença ou despacho, e por isso um vício do conteúdo do acto, por ex. a omissão de pronúncia, um vício referente aos limites (vide a límpida exposição de Lebre de Freitas, em Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais…, 4ª Ed., págs. 23/29). Tão pouco se confundindo a dita nulidade com um erro material da decisão ou um erro de julgamento, que se caracteriza por um erro de conteúdo.

Não aceitamos, por isso, que uma nulidade processual possa gerar uma nulidade da sentença.

Ora, de acordo com o conhecido aforismo “das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se”, pelo que o recorrente devia ter arguido a respectiva nulidade perante o juiz da causa, como resulta dos arts. 197º, nº 1, e 199º, nº 1, do indicado código, e não interpor recurso.

O apelante defende, contudo, que neste tipo de situação, em que se detecta uma nulidade que está colada à prolação da sentença o meio de reagir próprio é o recurso. Isto com base na argumentação que retira do Ac. Rel. Lisboa, de 10.9.2020, Proc.12841/19.08T8LSB, em www.dgsi.pt, aresto este que por sua vez se baseia na desenvolvida por Abrantes Geraldes (em Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª Ed., págs. 26/30), e que o recorrente acompanha de perto e que é a seguinte:

(…) a questão nem sempre encontra resposta tão evidente noutros casos, designadamente quando é cometida nulidade de conhecimento oficioso ou em que o próprio juiz, ao proferir a sentença, omite uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com o respeito pelo princípio do contraditório destinado a evitar decisões-surpresa. – idem.

- A sujeição ao regime das nulidades processuais, nos termos dos arts. 195º e 199º levaria a que a decisão que deferisse a nulidade se repercutisse na invalidação da sentença, com a vantagem adicional de tal ser determinado pelo próprio juiz, fora das exigências e dos encargos (inclusive financeiros) inerentes à interposição do recurso. – idem.

- Porém, tal solução defronta-se com o enorme impedimento constituído pela regra praticamente

inultrapassável, ínsita no art. 613º, norma a que presidem razões de certeza e de segurança jurídica que levam a que, proferida a sentença (ou qualquer outra decisão), esgota-se o poder jurisdicional, de modo que, sendo admissível recurso, é exclusivamente por esta via que pode ser alcançada a revogação ou modificação do teor da decisão. – idem.

- (…) Por conseguinte, num campo de direito adjectivo em que devem imperar factores de objectividade e de certeza no que respeita o manuseamento dos mecanismos processuais, parece mais seguro assentar em que sempre que o juiz, ao proferir alguma decisão, se abstenha de apreciar uma situação irregular ou omita uma formalidade imposta por lei, a parte interessada deve reagir através da interposição de recurso sustentado na nulidade da própria decisão, nos termos do art. 615º, nº1, al. d). – idem.

- Afinal, designadamente quando a sentença traduza para a parte uma verdadeira decisão-surpresa (não precedida do contraditório imposto pelo art. 3º, nº3), a mesma nem sequer dispôs da possibilidade de arguir a nulidade processual correspondente à omissão do acto, sendo o recurso a via mais ajustada a recompor a situação integrando no seu objecto a arguição daquela nulidade.”.

Não subscrevemos, esta interpretação não convincente e utilitarista da aplicação do direito adjectivo, que desconsidera as normas cogentes. Curiosamente, reconhece que existe nulidade processual, que se poderia repercutir na sentença, mas depois manuseando, a nosso ver injustificadamente, os mecanismos processuais, dá um salto de 180 graus para a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia (do art. 615º, nº 1, d), do NCPC), no essencial com um único motivo: o de que existe impedimento de outra decisão pelo esgotamento do poder jurisdicional, nos termos do art. 613º, nº 1, do mesmo código. Só que não vemos, do estabelecido na lei processual, que assim tenha de ser.

Subscrevemos, por conseguinte, a tese de Lebre de Freitas (em CPC Anotado, Vol.1º, 2ª Ed., nota 8. ao anterior artigo 201º do CPC = ao atual art. 195º, pág. 374) mais ajustada aos ditames normativos, mais linear, mais objetiva e dotada de mais certeza jurídica, em síntese mais convincente, que professa que ocorrida uma nulidade processual, que nos termos do art. 201º, nº 2 (atual 195º, nº 2, 1ª parte), deva acarretar a nulidade da sentença, não é invocável o esgotamento do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, o qual só ocorre quanto ao objecto da decisão, nem o trânsito em julgado se dando enquanto a arguição estiver pendente, para se dever entender que o juiz deixa de poder conhecer da nulidade oportunamente arguida ! Certíssimo. E se a nulidade vier a ser declarada, evidentemente a sentença deixa de poder subsistir.

Adicionalmente, diga-se, a existir nulidade da sentença, por omissão de pronúncia esta derivaria de não ter acabado por conhecer da ineptidão da petição, por contradição entre o pedido e a causa de pedir, arguida pela R. Nulidade essa que só a R. teria interesse e legitimidade em arguir, o que não aconteceu como sabemos.

De todo o exposto deriva que o A. devia ter arguido a respetiva nulidade, no tribunal a quo, o que não levou a cabo, e não recorrer como fez, pelo que a referida nulidade solidificou-se, não podendo agora, em recurso, ser decretada.

Não procede, assim, o recurso nesta parte.          

4. Quanto à não realização da audiência prévia, apesar de o processo ter findado no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória, não invocada pela R., nem suscitada previamente pelo tribunal, e por isso não debatida nos articulados, e que, no entender do recorrente devia ter motivado a convocação de audiência prévia, o que não tendo ocorrido, importa a prática da nulidade processual prevista no art. 195º do NCPC, e mais uma vez de nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, a coberto do apontado art. 615º, nº 1, d). Argumentado, o apelante, também aqui, com o que retira do aludido Ac. da Rel. Lisboa, de 10.9.2020, aresto este que por sua vez se baseia na tese exposta no Ac. do STJ, de 23.6.2016, Proc.1937/15.8T8BCL (relatado por Abrantes Geraldes), e que o recorrente, mais uma vez, acompanha de perto e que é a seguinte:

É usual afirmar-se que a verificação de alguma nulidade processual deve ser objecto de arguição, reservando-se o recurso para o despacho que sobre a mesma incidir. Sendo esta a solução ajustada à generalidade das nulidades processuais, a mesma revela-se, contudo, inadequada quando nos confrontamos com situações em que é o próprio juiz que, ao proferir a decisão (in casu, o despacho saneador), omitiu uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com a falta de convocação da audiência prévia a fim de assegurar o contraditório.

(…)

- “Em tais circunstâncias, depara-se-nos uma nulidade processual traduzida na omissão de um acto que a lei prescreve, mas que se comunica ao despacho saneador, de modo que a reacção da parte vencida passa pela interposição de recurso da decisão proferida em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d), in fine, do CPC.- idem.”.

De novo estamos confrontados perante a dicotomia nulidade processual versus nulidade da sentença, nulidade última que já rejeitámos atrás existir.

A existir a apontada nulidade, falta de convocação de audiência prévia, então, de novo, estaríamos perante uma nulidade processual, que teria de seguir o caminho processual já acima apontado: arguição de nulidade processual perante o juiz a quo, o que não aconteceu, como sabemos.

No caso concreto em apreço, existe, porém, uma particularidade que importa salientar. É que a audiência prévia não se realizou, nos termos do art. 592º, nº 1, b), do NCPC, porque a Sra. Juíza assim expressamente o entendeu, como se pode ver do seguinte trecho da fundamentação, atrás transcrita, e que voltamos a transcrever:

“De acordo com o disposto no artigo 592º, n.º 1, al. b) do CPC, a audiência prévia não se realiza quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, se tenham pronunciado as partes relativamente aos factos determinantes da absolvição da instância ou do pedido.”.

Significa isto que o tribunal a quo despachou no sentido de não haver lugar a audiência prévia, daí que, a haver hipotética violação da lei, o tribunal incorreu num erro de julgamento e não numa nulidade processual, por omissão de prática de acto, de convocação da audiência prévia. Mas a ser assim, então o que se impunha à parte discordante era interpor recurso e não arguir nulidade processual perante o juiz a quo ou argui-la em recurso, baseada numa pretensa mas infundada nulidade da sentença.

Efectivamente, relembrando, outra vez, os acertados ensinamentos de L. Freitas (CPC citado, nota 7. ao indicado art. 195º, pág. 373), quando um despacho judicial se pronuncia no sentido de não dever ser praticado certo acto prescrito por lei, a questão deixa de ter o tratamento das nulidades para seguir o regime do erro de julgamento, por a infracção praticada passar a ser coberta pela decisão proferida (aqui sim, ficando esgotado quanto a tal decisão o poder jurisdicional).

Ora, como dissemos, o recorrente veio arguir uma nulidade processual, o que não tem cabimento, nem cabimento tem, igualmente, invocar tal nulidade processual em recurso, sustentada numa inexistente nulidade da sentença.

Improcede, assim, o recurso nesta parte.       

5. No respeitante à ineptidão da causa de pedir.

5.1. As conclusões de recurso do A., XI. a XIV., reportam-se à ineptidão da p.i., por contradição entre o pedido e a causa de pedir (art. 186º, nº 2, a), do NCPC). Que foi a ineptidão esgrimida pela R. Todavia o tribunal recorrido acabou por nada decidir neste âmbito.

Assim, é inútil pronunciarmos sobre tal aspecto, não havendo que o fazer, por não se tratar de uma verdadeira questão recursiva.

5.2. Já no que diz respeito à ineptidão conhecida e decretada, falta de causa de pedir, a sentença apelada nem sequer aflorou, minimamente que fosse, o que emerge do preceituado no art. 186º, nº 3, que reza assim:

“Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial”.

Como se explana no Ac. do STJ de 1.10.2003, Proc.02S3742, em www.dgsi.pt “Impede esta regra, no caso de haver contestação e pese embora a arguição da ineptidão, que o juiz, sem ouvir o autor, decrete de imediato a ineptidão da petição inicial e a consequente nulidade do processo com a absolvição (total ou parcial) do réu da instância.

Está este normativo em consonância com aquele segundo desiderato tradicionalmente associado à figura da ineptidão da petição inicial por falta ou ininteligibilidade da causa de pedir ou do pedido.

Se a petição inicial não foi liminarmente indeferida e o réu veio a contestar, verificando-se que interpretou convenientemente o pensamento do autor, esta sua actividade supre a ineptidão por falta de indicação do pedido ou da causa de pedir ou a ininteligível formulação daquele ou desta, de modo que nem o autor fica prejudicado no pedido, nem o réu no exercício do contraditório.

Apesar de se verificar a ineptidão, esta é "suprida ulteriormente pela actividade do réu" (13).

Desta disciplina legal da correcção do vício da petição inicial por omissão do pedido ou da causa de pedir estabelecida no nº. 3 do artº. 193º resulta que o acto processual (a petição inicial) pode valer com um sentido diverso do que resulta dos seus termos se o seu destinatário (aqui, a contraparte) os apreendeu na acepção que lhes quis dar o autor (14).

É que, como doutrina Alberto dos Reis (15), "Se, apesar da obscuridade ou ambiguidade do pedido ou da causa de pedir, o réu pôde elaborar a sua contestação, isso quer dizer que lhe foi possível interpretar de certa maneira o pedido ou a causa de pedir; tudo está agora em saber se a interpretação dada pelo réu é exacta ou, noutros termos, se o sentido atribuído ao pedido ou à causa de pedir corresponde fielmente aquilo que o autor quis exprimir (...) Se, ouvido o autor, este declarar que a sua petição tem o sentido que o réu lhe atribuiu, a obscuridade ou confusão fica desfeita. O pedido ou a causa de pedir passará a ter, por acordo das partes, a significação e o alcance expresso na contestação".

Mas, se a lei é clara para os casos em que o réu contesta e argui a ineptidão da petição inicial, coloca-se a questão de saber se deve igualmente aplicar-se esta doutrina nos casos em que o réu contesta e não levanta a questão da ineptidão, como sucedeu no caso "sub-judice".

Também seguindo a lição do Prof. Alberto dos Reis, que mantém actualidade, consideramos deverem tratar-se de modo igual as duas situações, aplicando-se por analogia o disposto no nº. 3 do artº. 193º a esta situação em que a questão da ineptidão não foi suscitada pelas partes e é objecto de análise pelo juiz, em cumprimento do dever oficioso que a lei lhe impõe.

Como refere este professor, "O que está na base do texto legal é esta ideia: se o réu pôde contestar, é porque atribuiu à petição determinado sentido; importa averiguar se esse sentido corresponde ao que o autor pretendeu exprimir; se corresponde, não há fundamento para declarar inepta a petição." (16).

Assim, e em qualquer dos casos, desde que haja contestação, o juiz não pode, por força do disposto no nº. 3 do artº. 193º do CPC, julgar inepta a petição inicial por falta de indicação da causa de pedir ou do pedido se chegar à conclusão de que o réu na contestação interpretou correctamente a dita petição (ouvindo para tanto o autor, se necessário) e isto quer o mesmo réu haja ou não suscitado a questão da ineptidão (17).”.

No nosso caso deparamo-nos com a situação referida no dito aresto em que a R. não suscitou a ineptidão decretada pelo tribunal, e o A. até nem foi ouvido, a tal respeito. Não se torna necessário, contudo fazê-lo (o mesmo acabou por ser ouvido agora nas suas alegações de recurso), dado a situação ser facilmente resolúvel.

Na verdade, a R. não ficou impossibilitada de se defender devidamente, pois depreendeu perfeitamente a causa de pedir, tanto assim que no seu articulado de contestação, como mais acima se enunciou no Relatório desta decisão, a mesma rebateu ponto por ponto a alegação do A. exposta na p.i., defendendo-se por impugnação e por excepção.

Com efeito, alegou que a compra do imóvel e pagamento de despesas inerentes foi feito por espírito de liberalidade do A., o mesmo acontecendo com o pagamento da dívida fiscal. O pagamento à empregada, que trabalhava na casa de morada de família, é uma despesa da vida em comum, não sendo restituível com base em enriquecimento sem causa. Não é verdade que o autor lhe tenha emprestado a quantia que refere, apenas lhe foi transferida para si por doação. Concluiu, depois inexistir enriquecimento sem causa, e a havê-lo estaria prescrito (e a haver empréstimo seria inexigível, por falta de vencimento).

Ou seja, a R. entendeu de forma cabal qual a causa de pedir invocada pelo A., que se consubstancia no facto de o mesmo alegar ter suportado os pagamentos em causa, com dinheiro pessoal, fruto do seu trabalho, mas também em benefício da R., mas apenas e tão-somente porque vivia em união de facto com esta última, ou seja, fê-lo no pressuposto da manutenção da união de facto.

Assim, a eventual ineptidão da p.i., por falta de causa de pedir mostra-se sanada, pelo que não podia ser decretada judicialmente como o foi.

A apelação, procede, portanto.    

6. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) Proferida decisão-surpresa, com violação do princípio do contraditório, em desrespeito pelo estatuído no art. 3º, nº 3, do NCPC, incorre-se numa nulidade processual, nos termos do art. 195º, nº 1, do mesmo diploma, e não numa nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, do art. 615º, nº 1, c), do referido código;

ii) Uma coisa é a nulidade processual, por ex. a omissão de um acto que a lei prescreva, relacionada com um acto de sequência processual, e por isso um vício atinente à sua existência, outra bem diferente é uma nulidade da sentença ou despacho, e por isso um vício do conteúdo do acto, por ex. a omissão de pronúncia, um vício referente aos limites; tão pouco se confundindo a dita nulidade com um erro de julgamento, que se caracteriza por um erro de conteúdo;

iii) “das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se”, pelo que o recorrente devia ter arguido a respectiva nulidade perante o juiz da causa, e não interpor recurso, invocando aquela nulidade da sentença, já que não é invocável o esgotamento do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, o qual só ocorre quanto ao objecto da decisão, nem o trânsito em julgado se dando enquanto a arguição estiver pendente, para se dever entender que o juiz deixa de poder conhecer da nulidade oportunamente arguida; e se a nulidade vier a ser declarada, a sentença deixa de poder subsistir (art. 195º, nº 2, 1ª parte do NCPC);

iv) Quando um despacho judicial se pronuncia no sentido de não dever ser praticado certo acto prescrito por lei, a questão deixa de ter o tratamento das nulidades processuais para seguir o regime do erro de julgamento, por a infracção praticada passar a ser coberta pela decisão proferida;

v) Desde que haja contestação, o juiz não pode, por força do disposto no art. 186º, nº 3, do NCPC, julgar inepta a petição, por falta de indicação da causa de pedir, se chegar à conclusão de que o R., naquele articulado interpretou correctamente a dita petição, e isto quer o mesmo R. tenha ou não suscitado a questão da ineptidão.

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, assim se revogando a decisão recorrida, e, em consequência, julga-se improcedente a exceção de ineptidão da p.i., por falta de causa de pedir (ou ininteligibilidade dela), ordenando-se que os autos prossigam os seus termos, para os efeitos tidos por convenientes na 1ª instância.

Sem custas.

                                                                     Coimbra, 3.5.2021

Moreira do Carmo