SOCIEDADES COMERCIAIS
PRESTAÇÃO DE TIR
Sumário

I – A figura do Administrador de Insolvência tem alcance ao nível da questão patrimonial da empresa. Portanto, a representação do administrador da insolvência circunscreve-se aos aspectos de natureza patrimonial que interessem à insolvência; quanto aos restantes aspectos, nomeadamente, os que se referem à responsabilidade criminal da sociedade, que ainda não se encontra extinta, a representação continua a ser dos seus gerentes ou administradores.
II – Corolário, pois, o de que a notificação para prestação de Termo e Identidade e Residência (que assume uma dimensão criminal) apenas possa ser prestado por quem for constituído arguido.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


                                                                                                                                                                                                                                                      
O administrador da insolvência da sociedade arguida SSCP, S.A., AS, não se conformando com o despacho que considerou validamente prestado o TIR por si prestado em representação da sociedade insolvente, vem dele interpor recurso para este tribunal, sendo que na respectiva motivação formulou as seguintes conclusões:
1. O despacho ora em Recurso, é nulo, pois viola claramente o artigo 196° do CPP, no qual é determinado que medidas de coação só podem ser aplicadas a arguidos.
2. O aqui Recorrente, não é arguido nestes autos, não é representante legal da sociedade "SSCP, esta sim arguida nestes autos.
3. Os poderes de representação do administrador da insolvência circunscrevem-se aos efeitos de carácter patrimonial que interessam à insolvência, da qual são afastados os órgãos sociais. Nos restantes aspectos, particularmente os criminais, a representação da insolvente continua a pertencer aos seus órgãos sociais, gerentes ou administradores.
4. A declaração de insolvência de uma sociedade não a faz desaparecer, mantendo a sua personalidade jurídica e a sua capacidade judiciária. E são os seus órgãos que respondem pela matéria crime.
5. As sociedades gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem (artigo 5.º do CSC), a declaração de insolvência da sociedade é causa da sua dissolução (artigo 141.º do CSC), mas a sociedade só se considera extinta pelo registo do encerramento da liquidação (artigo 160°, n. 2 do mesmo CSC e art 30, n. 1, al. t) do CRC, Código do Registo Comercial.
6. Mesmo após a sua extinção, “o respectivo património responde pelas multas e indemnizações em que aquela for condenada" - artigo 1279, n. 2 do Código Penal.
7. Assim, o administrador de insolvência não representa no processo penal a sociedade insolvente arguida, sendo esta representada pelos representantes legais existentes à data da declaração de insolvência, mantendo-se os mesmos em funções após aquela declaração nos termos do disposto no art. 82.º, n.º 1 do CIRE.
8. Face ao estatuido no artigo 82.° ns. 1 e 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, os órgãos sociais do devedor mantêm-se em funcionamento após a declaração de insolvência e durante a pendência do processo de insolvência, o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir:
9. As acções de responsabilidade que legalmente couberem, em favor do próprio devedor, contra os fundadores, administradores de direito e de facto, membros do órgão de fiscalização do devedor e sócios, associados ou membros, independentemente do acordo do devedor ou dos seus órgãos sociais, sócios, associados ou membros;
10. As acções destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de insolvência;
11. As acções contra os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente.
12. E, nos termos do disposto no art. 81°, ns. 1 e 4 do mesmo Código da Insolvência, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência, o qual assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.
13. Daqui decorrem, de forma transparente, duas consequências: que os poderes de representação do administrador da insolvência circunscrevem-se aos efeitos de carácter patrimonial que interessam à insolvência, da qual são afastados os órgãos sociais; e que nos restantes aspectos, particularmente os criminais, a representação da insolvente continua a pertencer aos seus órgãos sociais, gerentes ou administradores.
Termos em que pelo que se deixou dito, e que V. Exas., doutamente suprirão, revogando-se o Douto Despacho, e dando sem efeito a medida de coação de Termo de Identidade e Residência aplicada ao aqui Recorrente, suprindo as Nulidades invocadas, farão como sempre,



O recurso foi admitido para subir imediatamente, em separado, com efeito devolutivo.

Respondeu o Digno Procurador Adjunto, manifestando-se pela procedência do recurso.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta no sentido da procedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

            É este o despacho recorrido:


A prestação de Termo de Identidade e Residência por parte da sociedade (….), não obstante a douta promoção que antecede e o que é referido pelo Exmo. Administrador de Insolvência no TIR prestado a fls. 1995, sem prejuízo da diligência que se irá determinar infra (e é promovida), acautela todas as soluções plausíveis de direito, na medida em que “A notificação em questão, no caso de sociedades comerciais já declaradas insolventes, quando está em causa, como é óbvio, a sua própria responsabilidade criminal, pode ser feita na pessoa da administrador da insolvência (cfr. Tiago Milheiro, Da Punibilidade nos Crimes de Abuso de Confiança Fiscal e de Abuso de Confiança contra a Segurança Social, Julgar, Maio – Agosto de 2010, EASJP, pág. 81)”, apud Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11 de outubro de 2017, proferida nos autos 2500/15.9T9CBR.C1, disponível in www.dgsi.pt.
Considera-se assim validamente prestado o TIR da sociedade SSCP, SA, na pessoa do administrador da Insolvência.
*
Com urgência, proceda nos termos promovidos, relativamente ao TIR a prestar na pessoa do representante legal JF relativamente à sociedade SSCP, SA.”
D.n.

Cumpre decidir:


O recorrente insurge-se contra o despacho recorrido pois entende que enquanto administrador da insolvência da sociedade arguida “SSCP, S.A.” não representa a mesma em processo penal. Assim, que o despacho recorrido é nulo, porquanto viola o consignado no art. 196º, do Código de Processo Penal, uma vez que as medidas de coacção apenas podem ser aplicadas a quem é arguido, o que não sucede relativamente ao recorrente, pois que este não é representante legal da sociedade arguida SSCP, S.A. mas apenas administrador no processo de insolvência da mesma.
Tem razão o recorrente.
Por despacho judicial exarado em 1/10/2020 foi ordenado que se procedesse à prestação de novo TIR da sociedade arguida SSCP, S.A. para além do mais, na pessoa do ora recorrente, enquanto administrador da insolvência e representante legal desta sociedade.
Nessa sequência, em 15 de Outubro de 2020, veio a ser tomado TIR à dita sociedade arguida na pessoa do recorrente, enquanto administrador da insolvência e representante legal da mesma neste processo penal.
Dispõe o artº 82º do CIRE que:
1 - Os órgãos sociais do devedor mantêm-se em funcionamento após a declaração de insolvência, não sendo os seus titulares remunerados, salvo no caso previsto no artigo 227.º
2 - Os titulares dos órgãos sociais podem renunciar aos cargos logo que procedam ao depósito de contas anuais com referência à data da decisão de liquidação em processo de insolvência.
3 - Durante a pendência do processo de insolvência, o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir:
a) As acções de responsabilidade que legalmente couberem, em favor do próprio devedor, contra os fundadores, administradores de direito e de facto, membros do órgão de fiscalização do devedor e sócios, associados ou membros, independentemente do acordo do devedor ou dos seus órgãos sociais, sócios, associados ou membros;
b) As acções destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de insolvência;
c) As acções contra os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente.
4 - Compete unicamente ao administrador da insolvência a exigência aos sócios, associados ou membros do devedor, logo que a tenha por conveniente, das entradas de capital diferidas e das prestações acessórias em dívida, independentemente dos prazos de vencimento que hajam sido estipulados, intentando para o efeito as acções que se revelem necessárias.
5 - Toda a ação dirigida contra o administrador da insolvência com a finalidade prevista na alínea b) do n.º 3 apenas pode ser intentada por administrador que lhe suceda
6 - As ações referidas nos n.ºs 3 a 5 correm por apenso ao processo de insolvência.
Portanto, daqui poderemos salientar que a notificação para prestação de Termo e Identidade e Residência assume uma dimensão criminal e só pode ser prestado por quem for constituído arguido (artº 196º do CPP).
A figura do Administrador de Insolvência tem alcance ao nível da questão patrimonial da empresa, como decorre do artigo 81.º, do CIRE.
Portanto a representação do administrador da insolvência circunscreve-se aos aspectos de natureza patrimonial que interessem à insolvência, quanto aos restantes aspectos, nomeadamente, os que se referem à responsabilidade criminal da sociedade, que ainda não se encontra extinta, a representação continua a ser dos seus gerentes ou administradores.
Conforme refere o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque a «A extinção da pessoa colectiva não implica a extinção da respectiva responsabilidade criminal. A extinção do procedimento criminal contra a pessoa colectiva só se verifica com o registo do encerramento da sua liquidação, porquanto as penas pecuniárias devem ser levadas em conta no momento da sua liquidação. Isto é, a declaração de falência da sociedade não pode ser equiparada à morte para efeitos da extinção do procedimento criminal (acórdão STJ, de 12.10.2006, in CJ, Acs. do STJ, XIV, 3, 207, acórdãos do TRP de 10.3.2004, in CJ XXIX, 2, 201; de 29.6.2005, in CJ XXX, 3, 219 e de 9.5.2007, in CJ XXXII, 3, 205).
 Por tudo o exposto, verificamos que no caso a sociedade comercial recorrente, tendo sido declarada falida, no momento em que se processa a notificação na pessoa dos seus sócios (os co-arguidos) e no momento em que é condenada pela prática do crime, continuava a manter intacta a responsabilidade criminal de pessoa colectiva, até porque a mesma continua a ter actividade, tendo sido aprovado e homologado um plano que prevê o pagamento integral de todos os créditos, sendo, assim, seguro não se ter ainda verificado o registo do encerramento da sua liquidação.
A ser assim, e estando delimitadas as funções do administrador de insolvência para a área patrimonial, por igualdade de motivos, ou até por maioria de razão, tendo a área penal um carácter de responsabilidade pessoal dos seus agentes, também se nos afiguram correctas as notificações feitas nos termos do artigo 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT.
Portanto, o administrador da insolvência passa, a representar o devedor, mas tal representação circunscreve-se aos aspectos de carácter patrimonial. Como se decidiu no acórdão da Relação de Coimbra, citado pelo MP, “(…) um dos aspectos que extravasa o âmbito das questões patrimoniais relativas à insolvência são todas aquelas relativas a processos crime e, assim, a todas estas questões, a representação da sociedade caberá, portanto, ao respectivo gerente (…)”
Na verdade, a responsabilidade criminal é sempre pessoal e, portanto, radica na actuação física dos representantes sociais das empresas, sendo estes representantes (e não o administrador da insolvência) que devem ser notificados para efeitos da prestação de Termo de Identidade e Residência.
Notificar o administrador da insolvência para, como representante da insolvência prestar TIR sai fora da natureza patrimonial das suas funções. 

Do exposto julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, dando-se sem efeito a medida de coacção, Termo de Identidade e Residência, aplicada ao recorrente.

Sem Custas.

Coimbra, 9 de Junho de 2021

Alice Santos (relatora)

Belmiro Andrade (adjunto)