CONTRATO DE TRABALHO
RESOLUÇÃO COM JUSTA CAUSA
FALTA DE PAGAMENTO DE RETRIBUIÇÃO
ESTADO DE EMERGÊNCIA
Sumário


Sumário (elaborado pela Relatora):

1. A declaração de estado de emergência com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, e consequente suspensão da actividade das rés empregadoras, a partir de 18/03/2020, com a inerente incapacidade de gerar receitas enquanto a situação se mantivesse, e que veio efectivamente a manter-se, justifica, pela sua anomalia, imprevisibilidade e imputabilidade a terceiro, um juízo de exclusão da censurabilidade da conduta daquelas no que tange à verificação, em 1 de Abril de 2020, de atraso de 1 dia no pagamento da retribuição de Março, o mesmo não sucedendo com o atraso de 32 dias no pagamento de parte da retribuição de Fevereiro.
2. Atendendo a que a trabalhadora se vinha mantendo ao serviço há 27 anos e 7 meses, sendo certo que, por vezes, os pagamentos das retribuições eram fraccionados, tanto assim que a quantia em falta veio a ser paga em 15/04/2020, a conduta culposa das empregadoras, atento o concreto valor (243,28 €) e atraso (32 dias), não evidenciava gravidade e consequências que justificassem a ruptura da relação laboral pela trabalhadora com direito a indemnização, nos termos dos arts. 394.º, n.ºs 1 e 2, al. a) e 396.º do Código do Trabalho.
3. A impossibilidade objectiva, não culposa, de pagamento das retribuições vencidas posteriormente à suspensão da actividade das rés empregadoras, por força da declaração do estado de emergência, constituía justa causa de resolução do contrato de trabalho, mas sem direito a indemnização, nos termos do art. 394.º, n.ºs 1 e 3, al. c) do Código do Trabalho.

Alda Martins

Texto Integral


1. Relatório

A. C. intentou acção declarativa de condenação, com processo comum, contra Empreendimentos Turísticos X, Lda. e Empreendimentos Turísticos Y, Lda., pedindo a condenação das rés a pagarem-lhe a quantia total de 36.188,28 €, assim discriminada:

a) 32.102,45 € a título de indemnização prevista no art. 396.º do Código do Trabalho;
b) 150,00 € a título de acerto referente ao mês de Fevereiro de 2020;
c) 872,00 € a título de salário do mês de Março de 2020;
d) 1.754,00 € a título de férias e subsídio de férias vencido a 01/01/2020;
e) 581,33 € a título de proporcionais de férias e subsídio de férias relativos ao ano da cessação do contrato;
f) 290,65 € a título de proporcionais de subsídio de Natal referente ao ano da cessação do contrato;
g) 437,85 € a título de horas de formação que a autora nunca teve e que se convertem em créditos exigíveis dos últimos três anos.

Alega, em síntese, que foi contratada pela primeira ré em 01/09/1992, para prestar trabalho, sendo à data da cessação do contrato secretária de direcção e auferindo a retribuição mensal de 722,00 €, acrescida de subsídio de alimentação variável e de 150,00 € mensais pagos em dinheiro, sem menção no recibo de vencimento. Apesar de inicialmente contratada apenas pela primeira ré, passou a trabalhar na sede da segunda e a fazer mensalmente a sua facturação e praticar uma série de actos para ela, sendo esta quem passou a transferir-lhe a retribuição, desde Março de 2018, muito embora nunca lhe tenha sido comunicada qualquer transmissão. Por força da falta de pagamento de retribuições, resolveu com justa causa o contrato de trabalho com efeitos a 01/04/2020, pretendendo a condenação das rés no pagamento das retribuições em falta, indemnização pela resolução com justa causa e os outros créditos laborais que identifica.
A ré Empreendimentos Turísticos X, Lda. contestou, admitindo a existência do contrato de trabalho invocado e negando o pagamento de 150,00 € adicionais. Sustenta a inexistência de justa causa por à data do envio da carta de resolução ainda não terem decorrido 60 dias desde a data de vencimento das retribuições cuja falta de pagamento é invocada. Mais alega que aquela falta de pagamento não decorreu de culpa sua, antes da situação económica que estava a atravessar. Reconhece ser devedora à autora da quantia de 2.731,75 € de férias e subsídio de férias vencidos em 01/01/2020 e proporcionais de férias e subsídios de férias e de Natal do ano da cessação, mas invoca a compensação de tal valor com o da indemnização por falta de aviso prévio, por força da ilicitude da resolução do contrato de trabalho, no valor de 1.444,00 €. Termina, pedindo a procedência parcial da acção, com a compensação dos créditos recíprocos nos termos invocados.
A ré Empreendimentos Turísticos Y, Lda. contestou, arguindo a sua ilegitimidade por nunca ter celebrado qualquer contrato de trabalho com a autora e impugnando toda a matéria de facto alegada na petição inicial. Termina, pedindo a sua absolvição da instância ou a improcedência da acção.
No despacho saneador, julgou-se improcedente a excepção de ilegitimidade passiva da ré Empreendimentos Turísticos Y, Lda. e dispensou-se a selecção da matéria de facto.

Realizada a audiência de julgamento, pelo Mmo. Juiz a quo foi proferida sentença, que terminou com o seguinte dispositivo:
«Assim, e nos termos expostos, julgo a ação parcialmente procedente por provada e, consequentemente, condeno as rés Empreendimentos Turísticos X, Lda. e Empreendimentos Turísticos Y, Lda. a pagarem à autora A. C. as seguintes quantias:
a) 722,00€ a título de salário do mês de março de 2020;
b) 1.444,00€ a título de férias e subsídio de férias vencido a 01/01/2020;
c) 541,50€ a título de proporcionais de férias e subsídios de férias e de Natal relativos ao ano da cessação do contrato;
d) 624,00€ a título de horas de formação profissional não prestada.
Custas por autora e rés na proporção do respetivo decaimento, nos termos do disposto no art.º 527.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil, sendo 90,79% para a autora e 9,21% para as rés – sem prejuízo do apoio judiciário concedido à autora.»

A autora veio interpor recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:
«1. Vem o tribunal a quo, julgar parcialmente procedente o pedido da autora, absolvendo os rés quanto ao montante devido a título indemnizatório, fundamentando na não existência de culpa das rés nos factos que levaram à resolução.
2. Dispõe o art. 394.º do Código do Trabalho que ocorrendo justa causa, o trabalhador pode fazer cessar imediatamente o contrato.
3. Tratando-se de uma justa causa culposa assiste ao trabalhador o direito à indemnização pela quebra do vínculo laboral, conforme o nº1 do art. 396.º do Código do Trabalho.
4. Para efeitos de averiguação da culpa do empregador há que que distinguir consoante o atraso no pagamento da retribuição não atinja os 60 dias ou atinja 60 ou mais dias
5. Quer isto dizer que, “pensamos que se trata de uma presunção juris et de jure, portanto não afastável por prova em contrário, mas que não exclui a possibilidade de qualificar como culposas outras situações de incumprimento da obrigação retributiva, ainda que a falta de pagamento não perdure por 60 dias (…)”.
6. Em sentido semelhante, “importa, no entanto, não olvidar que: i) a culpa do empregador presume-se, ao abrigo do disposto no art. 799.º, n.º 1, do C.Civil, nos termos do qual «incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua»”
7. In casu, importa referir que não obstante não ter ocorrido um atraso no pagamento da retribuição superior a 60 dias a culpa do empregador se presume nos termos gerais do art. 799.º do Código Civil, admitindo prova em contrário (como sucede com os demais comportamentos susceptíveis de integrarem justa causa culposa).
8. Em conformidade com as regras gerais relativas ao ónus da prova, compete ao trabalhador provar a existência do comportamento do empregador subsumível a qualquer uma das alíneas referidas no n.º 2 do art. 394.º, ou outro que, não estando ali expressamente previsto, viole os seus direitos e garantias, por força do art. 342.º, n.º 1, do Código Civil, e que importe por isso a justa causa da resolução do contrato.
9. E, em sentido oposto, cumpre à entidade patronal demonstrar que esse comportamento não procede de culpa sua, nos termos do art. 799.º do mesmo diploma legal.
10. Ora, não se compreende como considera o tribunal a quo, que as rés lograram ilidir a presunção de culpa que sobre elas impendia.
11. Dando, para tal, como provado que as recorridas nos primeiros meses do ano sofreram de constrangimentos financeiros.
12. Todavia, somos a entender que não basta a mera invocação pelo empregador/recorridas de problemas de tesouraria para afastar o juízo de censura ético-jurídico em que se traduz a culpa pela falta de pagamento pontual das prestações salariais.
13. Os trabalhadores, como se sabe, organizam a sua vida e os seus compromissos em função do montante e da data em que a retribuição lhes é paga; têm prazos certos para satisfazer esses compromissos e cumprir as obrigações relacionadas com o pagamento da renda ou da prestação da casa, com a alimentação, com a educação dos filhos e outras despesas fixas que não se compadecem, de modo algum, com a prática seguida pela recorrida, constituindo tal incumprimento reiterado lesão grave dos seus interesses.
14. Esta instabilidade provocada pelo comportamento das rés, infere-se do ponto I, dos fatos provados: “o estabelecimento das rés fechou a 17/03/2020 em virtude do estado de emergência que assolou o país, tendo os trabalhadores sido mandados para casa sem saber quando iriam receber as quantias ainda em dívida, nem quando regressariam ao trabalho”.
15. Por outro lado, é frequente, as empresas com salários em atraso, invocarem como causas de justificação do facto e de exclusão de culpa “dificuldades de tesouraria” ou “constrangimentos financeiros”.
16. Mas não basta a invocação de que o objecto social das recorridas é a realização de eventos, e por isso, tradicionalmente nos primeiros meses do ano a procura desses serviços ser mais baixa, o que origina constrangimentos financeiros, para afastar o juízo de censura ético-jurídico em que se traduz a culpa.
17. Expressões como “dificuldades de tesouraria” ou “constrangimentos financeiros” são inconclusivas e de concreto nada esclarecem, configurando, quando muito, uma mera “difficultas praestandi” e não uma impossibilidade efectiva de pagar.
18. Além de que, esses problemas de tesouraria podem, eles próprios, ter resultado de condutas culposas da própria Ré ou do seus sócios, e para afastar a mencionada presunção de culpa era essencial que a mesma demonstrasse, em termos concretos, em que consistiram esses problemas de tesouraria qual a sua génese, que não contribuíram para o seu surgimento, nem para o seu agravamento e que adoptaram todas as diligências que lhes eram exigíveis para remover esses problemas e pôr termo a essa situação para poder efectuar o pagamento pontual da retribuição aos seus trabalhadores.
19. Como resulta dos autos, as dificuldades económicas vivenciadas pelas recorridas foram meramente alegadas por estas, não tendo sido de nenhuma forma concretizado, desde logo por recurso a quaisquer elementos contabilísticos, ou outros meios de prova.
20. Ademais tais constrangimentos financeiros foram refutados em diversos testemunhos no decurso da sessão de julgamento, desde logo pela recorrente e a testemunha R. F.,
21. Pelos testemunhos facilmente se conclui, que ao contrário do que pretende fazer crer a recorrida, o volume de negócios dos primeiros meses do ano, não foram assim tão diminutos que justificassem o não pagamento atempado dos salários à recorrente.
22. Ainda, por forma a afastar a culpa da actuação das recorridas, considerou o tribunal que as dificuldades financeiras destas vieram agravar-se com a pandemia provocada pela Covid-19, e pelo consequente encerramento das suas instalações por decisão governamental.
23. Ora, salvo melhor opinião, tal não pode ter provimento, desde logo, porque só a 18 de Março de 2020 o estado de emergência foi decretado em Portugal, através do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de Março.
24. Quando as retribuições em atraso e aqui em litígio reportam-se a momento anterior, aos meses de Fevereiro e Março de 2020.
25. Não se pode, aqui, concordar com o tribunal a quo, quando dá por não provados os factos constantes nos pontos 6 e 7 da sentença, isto é, desde há vários anos, os salários e transferências nunca tivessem data certa de pagamento, nem o fossem de forma integral.
26. Também nos causa estranheza, quando num momento dá o tribunal tais factos como não provados, e logo se seguida os entende por provadas, ao afirmar em sede de motivação “da prova produzida ficou a convicção de que por vezes os pagamentos eram efectivamente fraccionados”.
27. O raciono lógico do tribunal é, neste ponto e salvo o devido respeito por melhor opinião, ambíguo, pouco claro e até contraditório.
28. Mas dúvidas não poderiam restar quanto aos atrasos e fraccionamentos das remunerações, pois tal resulta da prova produzida nos vários depoimentos no decorrer do julgamento.
29. A prática reiterada das recorridas no não pagamento pontual da retribuição à recorrente ou o seu pagamento faseado também foi confirmado pela testemunha A. F. e pela testemunha R. F. ex-marido da recorrente.
30. O pagamento pontual da retribuição do trabalho um dever essencial do empregador (arts. 127º, al. b) e 278º, n.º 4 do CT) e constituindo a retribuição o meio de subsistência por excelência do trabalhador e do seu agregado familiar, é evidente que o não cumprimento desse dever acarreta sempre graves prejuízos e transtornos, sobretudo quando estejam em causa atrasos sucessivos ou falta de pagamento da retribuição, ou pela natural instabilidade financeira que acarreta o pagamento faseado dos salários, como sucedia no caso em apreço.
31. E portanto, também neste ponto, não resta senão entender que a actuação das rés não é outra senão culposa.
32. Cumpre ainda referir, que o tribunal dá por não provados, no ponto 2, que a recorrida recebesse a quantia de 150€ em dinheiro, valor que até 2013 vinha estipulado no recibo de vencimento a título de subsídio de transporte e um extra a somarao subsídio de alimentação.
33. Mas dúvidas não poderiam restar quanto à existência de tal valor, pois o mesmo resulta da prova produzida nos vários depoimentos no decorrer do julgamento.
34. Senão, vejamos quer o depoimento de parte da Autora, aqui recorrente, e da testemunha A. F..
35. Ainda que houvesse alguma dúvida, o juiz deve, no caso de entender que os factos ocorreram de forma diversa da descrita, ou entender que tais testemunhos são insuficientes e que faltam meios de prova que na sua perspectiva são essenciais, convidar as partes a juntar prova adicional ou complementar, isto é, convidá-los a carrear para o processo os elementos de prova que considera em falta para o fim em vista.
36. Assim, por imposição do princípio do inquisitório, consagrado no artigo 411.º do Código do Processo Civil, é um poder vinculado que impõe ao juiz, o dever jurídico de determinar, oficiosamente, as diligências probatórias complementares necessárias à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, independentemente, de solicitação das partes.
37. Tal imposição é independente e autónoma da posição que as partes tenham tomado quanto à selecção de meios de prova e da possibilidade, que tenha havido, de indicação do concreto meio em causa, bastando que objectivamente se revele necessário à realização dos referidos fins.
38. O princípio da investigação exige que o tribunal se empenhe no apuramento da verdade material, não só atendendo a todos os meios de prova relevantes que os sujeitos processuais lhe proponham, mas também, independentemente dessa contribuição, ordenando, oficiosamente, a produção de todas as provas cujo conhecimento se lhe afigure essencial ou necessário à descoberta da verdade e, portanto, que o habilitem a proferir uma sentença justa.
39. Por outro lado, de harmonia com o disposto no artigo 436.º, do C.P.C., “Incumbe ao tribunal, por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer das partes, requisitar informações, pareceres técnicos, plantas, fotografias, desenhos, objectos ou documentos necessários ao esclarecimento da verdade”.
40. Todavia, e com maior enfoque na sequência da reforma de 95/96, a lei veio atribuir mais e maiores poderes ao julgador, formulando exigências de cooperação entre as partes entre si e entre estas e o Tribunal, em ordem a alcançar a verdade e uma decisão justa.
41. “Jamais o Juiz pode ver naquela iniciativa probatória (das partes) um alibi para a sua própria inércia. O critério no artº. 411º coloca a questão ao nível da necessidade das diligências para o apuramento da verdade e para a justa composição do litígio. Verificando-se o pressuposto da necessidade, o Juiz tem o dever oficial de agir”.
42. Ora, salvo melhor opinião, e face a tudo quanto fora supra exposto, não nos resta dúvidas em afirmar que as recorridas não conseguiram ilidir a presunção de culpa, pelo que a sua conduta tem de considerar-se culposa.
43. E consequentemente, tem de concluir-se que a trabalhadora recorrente resolveu com justa causa, pela falta culposa de pagamento da retribuição, o contrato de trabalho que o vinculava à recorrida, justa causa esta que lhe confere o direito a uma indemnização, o que se pugna pelo presente recurso.»
As rés apresentaram resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência.
O recurso foi admitido como apelação, com efeito meramente devolutivo.
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, pelo Ministério Público foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.
Vistos os autos pelas Exmas. Adjuntas, cumpre decidir.

2. Objecto do recurso

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil –, as questões que se colocam a este Tribunal, por ordem da sua precedência lógica, são as seguintes:

- impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
- direito a indemnização por resolução do contrato de trabalho com justa causa.

3. Fundamentação de facto

Os factos provados são os seguintes:

A) A autora foi admitida ao serviço da primeira ré no dia 1 de Setembro de 1992, com a categoria profissional de “estagiária do 1.º ano (escriturária)”, com o salário de 45.000$00;
B) Actualmente, devido à progressão da sua carreira, encontrava-se com a categoria profissional de “Secretária de Direcção”, recebia a título de salário a quantia de 722,00 € brutos, acrescidos de um subsídio de alimentação de 5,30 € por cada dia efectivo de trabalho;
C) Sempre a autora recebeu em cheque ou em numerário, até que, desde o mês de Março de 2018, passou a receber o seu salário por transferência bancária da conta da segunda ré, pese embora o recibo de vencimento ser da primeira ré;
D) A 13/03/2020, a autora recebeu a quantia de 500,00 € (em numerário) relativa ao mês de Fevereiro;
E) Embora tendo sido contratada para trabalhar para a primeira ré e trabalhando para esta, na verdade a autora trabalha na sede da segunda ré e fazendo mensalmente a sua facturação, lançando facturas para a contabilidade, assinando guias, recebendo clientes e mercadorias, enviando e trocando e-mails com orçamentos através do e-mail: ac@.....pt;
F) Por carta registada datada de 01 de Abril de 2020 (recebida pela primeira ré), a autora declarou a esta “resolver o (…) contrato de trabalho”, “uma vez que se encontram em mora o pagamento dos salários dos meses de Fevereiro e Março de 2020” (documento junto a fls. 17, que aqui se dá por integralmente reproduzido);
G) Após o envio daquela carta, a autora recebeu em 15/04/2020 uma transferência da segunda ré no valor de 243,28 €;
H) A autora não recebeu o seu salário referente ao mês de Março;
I) O estabelecimento das rés fechou a 17/03/2020, em virtude do estado de emergência que assolou o país, tendo os trabalhadores sido mandados para casa sem saber quando iriam receber as quantias ainda em dívida, nem quando regressariam ao trabalho;
J) Em Março de 2017, após o fecho de uma outra sociedade, denominada de “…center”, cuja gerência pertencia também ao sócio gerente da primeira ré, esta foi transferida para a sua actual sede;
K) Sede esta que também é a sede da segunda ré;
L) A partir desta data, a autora começou a trabalhar nas instalações das duas rés, recebendo ordens, quer do gerente de uma, quer do gerente de outra;
M) Atendendo telefones, fazendo facturação, enviando e-mails e recebendo clientes e fornecedores, em nome da segunda ré;
N) Os fornecedores da segunda ré eram os mesmos que os da primeira ré, tal como os clientes, à excepção dos clientes de casamentos, baptizados e comunhões que eram eventos pontuais;
O) A autora, relativamente à primeira ré, apenas faz o lançamento anual de uma factura relativamente ao imobilizado da empresa e facturas mensais da Eletricidade … e …., sendo que todo o trabalho que faz é relativo à segunda ré;
P) A autora não gozou nem recebeu as férias e subsídio de férias vencidas em 01/01/2020;
Q) A autora não recebeu os proporcionais de férias e subsídio de férias relativos ao ano 2020;
R) A autora não recebeu os proporcionais de subsídio de Natal relativos ao ano 2020;
S) A autora, durante todo o tempo que trabalhou, nunca teve qualquer formação profissional;
T) A autora também remeteu por email a carta de resolução, tendo-a enviado para …@....com.pt e para …@.....pt às 10:45 horas do dia 1 de Abril de 2020;
U) A primeira ré tem como objecto social, entre outros, a realização de eventos, nomeadamente, casamentos, baptizados, festas de aniversário;
V) Tradicionalmente, nos primeiros meses de cada ano, a procura destes serviços é muito baixa;
W) O que causa alguns constrangimentos financeiros à empresa, como muito bem sabe a autora;
X) Tendo no ano de 2020 esta situação sido agravada com a pandemia provocada pela Covid-19;
Y) Que levou, inclusivamente, ao encerramento das suas instalações por decisão governamental;
Z) O que lhe provocou um enorme constrangimento financeiro;
AA) A autora nunca aceitou transferir-se para a contestante, como fizeram outros trabalhadores da Empreendimentos Turísticos X, Lda..
BB) Por vezes, os pagamentos das retribuições eram fraccionados (aditamento nos termos do ponto 4.1.)

4. Apreciação do recurso

4.1. Importa, em primeiro lugar, apreciar a impugnação que a Recorrente faz da decisão sobre a matéria de facto.
Estabelece o art. 662.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe «Modificabilidade da decisão de facto», no seu n.º 1, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Por sua vez, o art. 640.º, que rege sobre os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, dispõe do seguinte modo:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
(…)

Deste regime resulta que, sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões, nos termos dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º do mesmo diploma, e acrescendo que há específicos ónus a cumprir no que tange à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, por força do citado art. 640.º, o recorrente deve:

- especificar inequivocamente no corpo das alegações os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios que, no seu entender, impunham uma decisão diversa, e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, bem como, tratando-se de depoimentos, as passagens da gravação respectivas;
- e indicar sinteticamente nas conclusões, pelo menos, os pontos da matéria de facto que pretende ver alterados e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Ora, ainda que de modo pouco claro, parece decorrer do recurso, designadamente das suas conclusões, que a Apelante pretende que sejam considerados como não provados os seguintes factos dados como provados:
W) O que causa alguns constrangimentos financeiros à empresa, como muito bem sabe a autora;
Z) O que lhe provocou um enorme constrangimento financeiro.
Já de modo explícito e inequívoco, a Recorrente pretende ainda que sejam considerados como provados os factos dados como não provados pelo tribunal recorrido sob os n.ºs 2, 6 e 7, a saber:
2) Que, por acordo entre si e a primeira ré, a autora recebesse a quantia de 150,00 € (cento e cinquenta euros), em dinheiro, valor este que até 01/03/2013 vinha estipulado no recibo de vencimento a título de subsídio de transporte e um extra a somar ao subsídio de alimentação;
6) Que, há já vários anos, reiteradamente, a autora nunca recebesse o seu vencimento a tempo e horas, nem de forma integral, sendo o mesmo pago parcialmente durante o mês e passando muitas das vezes para o mês seguinte;
7) Que nunca a autora tenha sido interpelada por quem quer que seja para ser transferida para outra empresa, tal como aconteceu com alguns dos seus colegas.

A decisão do tribunal recorrido, quanto aos pontos de facto em apreço, foi motivada na sentença nos seguintes termos:
«Para a resposta à matéria de facto acima proferida, o tribunal baseou-se na prova documental e testemunhal e nos depoimentos e declarações de parte produzidos, do modo que seguidamente se descreve, tendo apenas considerado dos articulados a parte que continha factos e não meras alegações conclusivas ou de direito.
(…)
Quanto aos 150,00€ adicionais que a autora alegava que receberia, absolutamente nenhuma prova consistente foi feita. A autora afirmou-o nas suas declarações de parte, mas sem qualquer outro meio de prova que corroborasse tal afirmação, não tendo sido junto (ou requerida a sua junção pelas rés) qualquer recibo que atestasse o que era alegado no art.º 3.º da petição inicial. O marido da autora (A. F.), por seu turno, limitou-se a dizer que a autora “recebia um valor por fora”, mas de forma muito genérica e vaga, não sabendo sequer concretizar com exatidão o montante que seria. Por outro lado, na carta de resolução (fls. 17) a autora nada diz quanto a esse suposto adicional e pede apenas créditos com base na retribuição de 722,00€, o que não se compreende caso efetivamente auferisse aqueles 150,00€ adicionais. Assim, na ausência de qualquer outro elemento de prova que permitisse formar uma convicção segura quanto a tal facto, teve o tribunal de o dar como não provado.
(…)
Sobre os atrasos e fracionamento dos pagamentos das retribuições, não apresentou a autora qualquer consistente dos factos concretos alegados nos arts. 6.º e 7.º da petição inicial, sendo que o poderia ter feito facilmente, tendo em conta que (ao contrário do alegado quanto ao pagamento referido no art.º 5.º do mesmo articulado) não alega que tais pagamentos fossem feitos em numerário. Da prova produzida ficou a convicção de que por vezes os pagamentos eram efetivamente fracionados (não só o marido da autora o referiu, mas também a testemunha M. I., funcionária há dois anos, admitiu que por vezes isso aconteceria), mas não foi apresentada prova bastante que permitisse dar como provado que sempre isso aconteceu ou qual a frequência com que aconteceria (também não tendo as rés, por seu turno, demonstrado que nessas ocasiões o fosse a pedido da autora).
(…)
Por último, quanto aos fracos resultados dos primeiros meses do ano e aos constrangimentos ocorridos no início do ano passado, a situação pandémica que assolou o mundo e levou ao confinamento geral de meados de março de 2020 é um facto notório, sendo que das regras da experiência decorre também que os meses de inverno, imediatamente posteriores às festas de final de ano, são os menos fortes no que toca a eventos. O filho da autora (R. F.), que também prestava serviços nos eventos organizados pelas rés) elencou os serviços que efetuou nos meses de janeiro a março de 2020 (recorrendo ao que disse ser o registo que tinha no seu telemóvel), de tal relato tendo resultado uma média de um serviço por semana, mas o certo é que efetivamente (como autora e rés confirmaram) mesmo antes da decisão governamental havia sido decidido fechar as instalações da ré por falta de serviços, sendo natural face às regras da experiência que com a incerteza que desde o início do ano de 2020 se sentia por força da propagação do vírus, muitos eventos não tenham sido confirmados ou não tenham mesmo chegado a ser marcados, tudo tendo contribuído para a consideração como provada da factualidade alegada nesse sentido.»
No que respeita aos pontos de facto constantes das alíneas W) e Z), a Recorrente alicerça a sua pretensão nas suas próprias declarações de parte e no depoimento da sua testemunha R. F., seu filho e que também prestava serviços à ré.
Ora, a autora confirmou que os meses de Janeiro, Fevereiro e Março são maus para eventos, que não se fazem, ficando a restauração a trabalhar, apenas conseguindo concretizar um evento em tais meses de 2020, com 150 pessoas – o do “dia da mulher”, em Março –, e referir “festas de aniversário e umas bodas de ouro” em Fevereiro, sem outra concretização.
Quanto à testemunha R. F., começou por referir, espontaneamente, os serviços realizados de Julho a Outubro de 2020, “depois de acabar o confinamento”, e os da época natalícia de 2019, e só mediante insistência é que se lembrou do evento do “dia da mulher”, e, depois de consultar as suas anotações no telemóvel, que teve mais 10 serviços, entre Janeiro e Março de 2020.
Estes depoimentos, bem como os restantes que foram prestados, confirmam inteiramente o que foi dado como provado sob as alíneas V), X) e Y), isto é, que, tradicionalmente, nos primeiros meses de cada ano, a procura dos serviços de realização de eventos, nomeadamente casamentos, baptizados e festas de aniversário, é muito baixa, tendo no ano de 2020 esta situação sido agravada com a pandemia provocada pela Covid-19, que levou, inclusivamente, ao encerramento das instalações das rés por decisão governamental.
Ora, de tal factualidade, não impugnada, e que, aliás, está conforme às regras da experiência, infere-se, de acordo também com estas regras, nos termos dos arts. 349.º e 351.º do Código Civil, a consequência lógica de que ocorreram redução de receitas / constrangimentos financeiros, aliás confirmados pelas testemunhas das rés nos seus depoimentos, ainda que não quantificados.
Em face do exposto, conclui-se que o silogismo subjacente à decisão do tribunal quanto aos pontos de facto constantes das alíneas W) e Z) é adequado e convincente, não sendo negado e antes confirmado pelos meios de prova indicados pela Apelante.
No que respeita à factualidade não provada sob o ponto 6), a Recorrente alicerça a sua pretensão nas suas declarações de parte e nos depoimentos das testemunhas R. F., seu filho, e A. F., seu ex-marido, bem como na alegada contradição constante da motivação apresentada pelo julgador.
Ora, compulsadas aquelas declarações de parte, na parte especificada pela Apelante, delas resulta a mera referência à ocorrência de pagamentos faseados das retribuições, sem qualquer concretização de datas ou valores, o mesmo sucedendo com os depoimentos testemunhais referidos, não tendo sido apresentada qualquer prova documental, designadamente extractos bancários, que facilmente comprovariam os valores transferidos e respectivas datas. Trata-se de meio de prova na inteira disponibilidade da autora, e que pela sua natureza sigilosa exigia a intermediação da mesma na sua obtenção, pelo que, nada tendo sido requerido, cabia-lhe em exclusivo avaliar o interesse na junção e diligenciar por tanto.
Assim, afigura-se inteiramente válida a apreciação efectuada pelo tribunal recorrido de que «[d]a prova produzida ficou a convicção de que por vezes os pagamentos eram efetivamente fracionados (não só o marido da autora o referiu, mas também a testemunha M. I., funcionária há dois anos, admitiu que por vezes isso aconteceria), mas não foi apresentada prova bastante que permitisse dar como provado que sempre isso aconteceu ou qual a frequência com que aconteceria (também não tendo as rés, por seu turno, demonstrado que nessas ocasiões o fosse a pedido da autora).»
Não obstante, aderindo a esta fundamentação, justifica-se que a alteração pretendida seja acolhida parcialmente, no sentido de que, por vezes, os pagamentos das retribuições eram fraccionados (aditamento introduzido supra no local próprio).
Relativamente à factualidade não provada sob o ponto 7), é irrelevante para a questão de direito suscitada no recurso e a Recorrente não indicou quaisquer meios de prova para justificar a sua alteração, parecendo que foi invocada por mero lapso.
Quanto ao facto não provado sob o ponto 2), a Apelante invoca apenas as suas próprias declarações de parte e o depoimento do seu ex-marido, acima identificado, os quais, sem serem corroborados por outros meios de prova mais credíveis, se afiguram claramente insuficientes para afastarem a declaração confessória da autora ínsita na carta de resolução do contrato de trabalho, não só omitindo a verba em apreço, como indicando e calculando os créditos e a indemnização alegadamente em dívida sem a terem em conta.
Improcede, pois, a pretensão da Apelante também nesta parte.

4.2. Posto isto, vejamos se, ao contrário do que entendeu o tribunal recorrido, a autora tem direito a indemnização por resolução do contrato de trabalho com justa causa.
No art. 394.º do Código do Trabalho de 2009 (diploma a que se reportam todos os preceitos doravante indicados sem outra especificação) configuram-se duas situações de desvinculação, por iniciativa do trabalhador, ocorrendo justa causa, respeitando ambas a situações anormais e particularmente graves em que deixa de ser exigível que aquele permaneça ligado à empresa por mais tempo: a primeira reporta-se a fundamentos subjectivos, por terem na sua base um comportamento culposo do empregador, dando lugar a indemnização (arts. 394.º, n.º 2 e 396.º); a segunda reporta-se a fundamentos objectivos, por não terem na sua base um comportamento culposo do empregador, não conferindo direito a indemnização (art. 394.º, n.º 3).
Em qualquer das situações, está subjacente ao conceito de justa causa (que o art. 394.º não define, mas que a doutrina e a jurisprudência têm desenvolvido) a impossibilidade definitiva da subsistência do contrato de trabalho, tal como é empregue no âmbito do despedimento promovido pelo empregador (1).
Acresce que, nos termos do n.º 4 do art. 394.º, a justa causa será apreciada pelo tribunal em conformidade com o disposto no n.º 3 do art. 351.º, com as necessárias adaptações, ou seja, deverá o tribunal atender ao grau de lesão dos interesses do trabalhador, ao carácter das relações entre as partes e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes.
O mencionado n.º 2 do art. 394.º indica, de forma exemplificativa, os comportamentos do empregador que podem constituir justa causa de resolução do contrato por parte do trabalhador, com direito a indemnização, desde logo, na alínea a), a falta culposa de pagamento pontual da retribuição.
Por outro lado, em conformidade com as regras gerais relativas ao ónus da prova, compete ao trabalhador provar a existência do comportamento do empregador subsumível a qualquer uma das alíneas referidas no n.º 2 do art. 394.º, ou outro que, não estando ali expressamente previsto, viole os seus direitos e garantias, por força do art. 342.º, n.º 1, do Código Civil, e à entidade patronal demonstrar que esse comportamento não procede de culpa sua, nos termos do art. 799.º do mesmo diploma legal.
Não obstante, o n.º 5 do art. 394.º especifica que se considera culposa a falta de pagamento pontual da retribuição que se prolongue por período de 60 dias, ou quando o empregador, a pedido do trabalhador, declare por escrito a previsão de não pagamento da retribuição em falta, até ao termo daquele prazo.
Isto é, no que toca à situação da al. a) do n.º 2 do art. 394.º, há que distinguir consoante o atraso no pagamento da retribuição não atinja os 60 dias, caso em que a culpa do empregador se presume nos termos gerais do art. 799.º do Código Civil, admitindo prova em contrário (como sucede com os demais comportamentos susceptíveis de integrarem justa causa culposa), ou atinja 60 ou mais dias, caso em que a conduta se considera culposa, ou seja, não admitindo prova em contrário.

Assim, em suma, existe justa causa para o trabalhador resolver o contrato de trabalho, motivadamente e com direito a indemnização, desde que se verifiquem os seguintes elementos (2):

- comportamento da entidade empregadora enquadrável em qualquer das alíneas do n.º 2 do citado art. 394.º, ou outro de idêntica gravidade (elemento objectivo);
- que esse comportamento possa ser imputado à entidade empregadora a título de culpa (elemento subjectivo);
- que tal comportamento, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, em termos de não ser exigível ao trabalhador a conservação do vínculo laboral (elemento causal).

Finalmente, o art. 395.º estabelece que a declaração de resolução deve ser feita por escrito, com indicação sucinta dos factos que a justificam, nos 30 dias subsequentes ao conhecimento desses factos (n.º 1), prazo este que, no caso a que se refere o n.º 5 do art. 394.º, se conta a partir do termo do período de 60 dias ou da declaração do empregador (n.º 2).
Retornando ao caso em apreço, decorre da factualidade provada sob as alíneas B), D), F) e G) que, aquando da resolução do contrato de trabalho pela autora, através de carta registada datada de 1 de Abril de 2020, estavam em mora a quantia líquida de 243,28 €, relativa à retribuição de Fevereiro, e a totalidade da retribuição de Março, as quais, atendendo ao disposto no art. 278.º do Código do Trabalho, deviam ter sido pagas há, respectivamente, 32 dias e 1 dia.
Assim, atento o acima exposto, como o atraso no pagamento da retribuição não atingiu os 60 dias, a culpa das rés presume-se nos termos gerais do art. 799.º do Código Civil, admitindo prova em contrário.

Ora, com relevância, provou-se:

U) A primeira ré tem como objecto social, entre outros, a realização de eventos, nomeadamente, casamentos, baptizados, festas de aniversário;
V) Tradicionalmente, nos primeiros meses de cada ano, a procura destes serviços é muito baixa;
W) O que causa alguns constrangimentos financeiros à empresa, como muito bem sabe a autora;
X) Tendo no ano de 2020 esta situação sido agravada com a pandemia provocada pela Covid-19;
Y) Que levou, inclusivamente, ao encerramento das suas instalações por decisão governamental;
Z) O que lhe provocou um enorme constrangimento financeiro;
I) O estabelecimento das rés fechou a 17/03/2020, em virtude do estado de emergência que assolou o país, tendo os trabalhadores sido mandados para casa sem saber quando iriam receber as quantias ainda em dívida, nem quando regressariam ao trabalho.
Posto isto, julgamos que a declaração de estado de emergência com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública (3), e consequente suspensão da actividade das rés, a partir de 18/03/2020, com a inerente incapacidade de gerar receitas enquanto a situação se mantivesse, e que veio efectivamente a manter-se, justifica, pela sua anomalia, imprevisibilidade e imputabilidade a terceiro, um juízo de exclusão da censurabilidade da conduta das rés no que tange à verificação, em 1 de Abril de 2020, de atraso de 1 dia no pagamento da retribuição de Março, o mesmo não sucedendo com o atraso de 32 dias no pagamento de parte da retribuição de Fevereiro.
Na verdade, a factualidade enunciada não permite estabelecer qualquer ligação entre a falta de pagamento da parte restante desta retribuição na data devida – 28/02/2020 – e as consequências drásticas da declaração do estado de emergência, mas, quando muito, concluir que resultou do “tradicional” decréscimo da procura de serviços de eventos nos primeiros meses de cada ano, causador de alguns constrangimentos financeiros, pelo que, estando em causa circunstâncias previsíveis da actividade das rés, a responsabilidade pela incapacidade de as gerir devidamente deve ser-lhes imputada.
Assim, em suma, entendemos que na data da resolução do contrato de trabalho pela autora, em 1 de Abril de 2020, apenas se verificava falta culposa de pagamento de parte da retribuição de Fevereiro do mesmo ano, no valor líquido de 243,28 €, a qual deveria ter sido paga 32 dias antes.
Todavia, relembra-se que o direito do trabalhador a indemnização pressupõe, além dum comportamento do empregador enquadrável em qualquer das alíneas do n.º 2 do art. 394.º, ou outro de idêntica gravidade (elemento objectivo), e que o mesmo possa ser-lhe imputado a título de culpa (elemento subjectivo), ainda, que tal comportamento, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, em termos de não ser exigível ao trabalhador a conservação do vínculo laboral (elemento causal).
Isto é, “[a]s situações mencionadas no art. 394.º, 2, representam concretizações da ideia geral de justa causa de cessação do contrato de trabalho, pelo que os tribunais têm entendido, e bem, que além do comportamento culposo do empregador aí descrito é necessário que se verifique a característica básica do conceito de justa causa; ou seja, é preciso que o comportamento da entidade empregadora, «pela sua gravidade e consequências, torne prática e imediatamente impossível a manutenção da relação de trabalho»” (4).
Ora, atendendo a que a autora se vinha mantendo ao serviço há 27 anos e 7 meses, sendo certo que, por vezes, os pagamentos das retribuições eram fraccionados, tanto assim que a quantia em falta veio a ser paga em 15/04/2020, afigura-se-nos que a conduta culposa das rés, atento o concreto valor (243,28 €) e atraso (32 dias), não evidenciava gravidade e consequências que justificassem a ruptura da relação laboral pela trabalhadora.
Em suma, a concreta conduta culposa das rés, a saber, o atraso de 32 dias no pagamento de parte da retribuição de Fevereiro de 2020, no valor de 243,28 €, só por si, não é justificativa da impossibilidade prática e imediata de manutenção do contrato de trabalho, não se verificando o último dos requisitos acima aludidos – o causal – para que a resolução do contrato de trabalho pela Recorrente lhe confira direito a indemnização, nos termos dos arts. 394.º, n.ºs 1 e 2, al. a) e 396.º.
É certo que a impossibilidade objectiva, não culposa, de pagamento das retribuições vencidas posteriormente à suspensão da actividade das rés, por força da declaração do estado de emergência – cfr. a factualidade provada sob as alíneas I), X), Y), Z) –, também constituía justa causa de resolução do contrato de trabalho pela autora, mas sem direito a indemnização, nos termos do art. 394.º, n.ºs 1 e 3, al. c) do Código do Trabalho.
Em face do exposto, soçobra necessariamente o recurso.

4. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar a apelação improcedente, e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Apelante.

Em 2 de Junho de 2021

Alda Martins
Vera Sottomayor
Maria Leonor Barroso



1. Cfr. Albino Mendes Baptista, Estudos sobre o Código do Trabalho, 2.ª edição, pp. 25 e ss..
2. Cfr. Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, Almedina, 2014, pp. 1092-1093, e, a título exemplificativo, o Acórdão da Relação de Lisboa de 27 de Fevereiro de 2008, in www.dgsi.pt.
3. Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, D.R. n.º 55/2020, 3.º suplemento, Série I, de 2020-03-18.
4. Pedro Furtado Martins, Cessação do Contrato de Trabalho, Principia, 2012, p. 534.