TRANSMISSÃO DA EMPRESA OU ESTABELECIMENTO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
FUNDAMENTOS
COMUNICAÇÃO
COMPENSAÇÃO
Sumário


1. O art. 286.º-A n.º 1 do Código do Trabalho, aditado pela Lei 14/2018, de 19 de Março, consagra dois fundamentos distintos de oposição do trabalhador à transmissão da posição do empregador no seu contrato: o 1.º, fundado no prejuízo sério para o trabalhador, nomeadamente por manifesta falta de solvabilidade ou situação financeira difícil do adquirente, embora não seja de exigir um prejuízo sério efectivo, mas um mero juízo de prognose sobre um prejuízo sério no futuro ; o 2.º, fundado na falta de confiança do trabalhador quanto à política de organização do trabalho do adquirente, que também envolve um juízo de prognose do trabalhador, mas de conteúdo subjectivo e indeterminado.
2. O que está em causa é o reconhecimento que o trabalho não é uma mercadoria (labour is not a commodity), e que o princípio geral da liberdade contratual envolve também a liberdade de escolha do parceiro da relação negocial, não devendo assim ser imposto ao trabalhador um empregador por ele não escolhido.
3. As normas contidas nos arts. 394.º n.º 3 al. d) e 286.º-A n.º 1 do Código do Trabalho, não apenas consagram uma nova justa causa objectiva de resolução do contrato de trabalho, consistente na “transmissão para o adquirente da posição do empregador no respectivo contrato de trabalho, em consequência da transmissão da empresa”, como ainda permitem ao trabalhador fazê-lo baseado numa mera conjectura acerca da política de organização do trabalho do adquirente.
4. O art. 396.º n.º 5 do Código do Trabalho, ao estabelecer a obrigação de pagamento de uma compensação por resolução do contrato com fundamento na transmissão da posição do empregador, não estabelece qualquer distinção entre os dois fundamentos de resolução do contrato de trabalho que o trabalhador pode invocar em caso de transmissão do estabelecimento, tanto mais que “a desconfiança na política de organização de trabalho se exprime, de algum modo, no receio de um prejuízo futuro.”
5. Poderá admitir-se que a resolução do contrato com fundamento em mera desconfiança do trabalhador acerca da política de organização de trabalho do adquirente mereça um juízo negatório da compensação, por abuso de direito, nomeadamente quando ocorreu regularmente o processo de informação e de consulta e foi atingido um acordo acerca das medidas a aplicar ao trabalhador na sequência da transmissão.
6. No entanto, não é possível formular esse juízo negatório da compensação quando a transmissão foi apresentada à trabalhadora como um facto consumado, com total omissão, pela transmitente e pela adquirente, dos deveres de informação e de consulta prévia da trabalhadora.
7. Nesta situação, quer a transmitente, quer a adquirente, são solidariamente responsáveis pelo pagamento da compensação. (sumário do relator)

Texto Integral

Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo do Trabalho de Faro, A… demandou O… e H…, pedindo a sua condenação solidária no pagamento da quantia de € 14.457,88, acrescida de juros contados desde a data da cessação do contrato de trabalho (13.07.2018) e até integral pagamento, sendo € 12.645,50 a título de compensação pela justa causa na resolução do contrato de trabalho, e o restante a título de férias e subsídios de férias e de Natal.
Tendo a acção sido contestada, realizou-se a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença condenando as Rés a pagarem solidariamente à A. as quantias de € 807,83, a título de férias vencidas, e de € 1.004,55, a título de proporcionais das férias e subsídios de férias e de Natal pelo trabalho prestado no ano de cessação do contrato, tudo acrescido de juros contados desde 13.07.2018.

Inconformada, a A. interpôs recurso. Das suas conclusões, apesar de não realizarem a síntese exigida pelo art. 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, podem ser surpreendidas as seguintes questões fundamentais:
A) A Recorrente considera incorrectamente julgados os n.ºs 6 e 16 da matéria de facto, que não poderiam ter sido dados como provados;
B) Das declarações de parte da Autora, confirmadas pelos depoimentos de parte das Rés, resulta provado que a Ré O…:
· ameaçou a A. de despedimento por aquela ter faltado no dia anterior (segunda-feira) para se deslocar à ACT (o que equivaleria a 3 dias de faltas, pelo que podia despedi-la naquele momento);
· comunicou à A. que lhe iria pagar o ordenado às prestações como a Ré H… lhe fazia;
· disse à A. que as férias que esta tinha por gozar e já marcadas seriam alteradas de acordo com o trabalho dela Ré O…, uma vez que esta trabalhava noutro sítio;
· disse à A. que esta já devia ter gozado 15 dias de férias, os quais a Ré O… só lhe daria se quisesse e que as alteraria de acordo com o trabalho desta (fora da lavandaria);
· disse à A. que ao sábado ia começar a abrir a lavandaria, o que levou a A. a supor que iria passar a trabalhar em tal dia pois a lavandaria encerrava habitualmente ao sábado e domingo e as Rés lhe haviam dito que trabalharia sozinha na lavandaria;
· por fim, disse também à A. que a lavandaria ia também prestar serviços de costura, o que levou a Autora a supor que iria passar também a prestar estes serviços, pois as Rés lhe haviam dito que trabalharia sozinha na lavandaria;
C) Deste modo, a Ré O… pretendia alterar os direitos da A. quanto ao pagamento pontual da sua retribuição, gozo e marcação de férias e horário de trabalho.
D) E pretendia também alterar a organização de trabalho na lavandaria (abertura aos sábados e prestação de serviços de costura para além dos serviços habituais de lavandaria).
E) Uma análise crítica da prova produzida (documental e declarações das partes) impunha que o Tribunal tivesse dado como provados os seguintes factos:
F) Ocorreu assim justa causa de resolução do contrato de trabalho, nos termos dos arts. 394.º n.º 3 al. d) e 286.º-A n.º 1 do Código do Trabalho.
G) A A. tem, assim, direito à compensação prevista no 396.º n.º 5 do Código de Trabalho.

Não foi oferecida resposta.
Já nesta Relação, o Digno Magistrado do Ministério Público emitiu o seu parecer.
Dispensados os vistos, cumpre-nos decidir.

Da impugnação da matéria de facto
Garantindo o sistema processual civil um duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, e consignando, desde já, que estão reunidos os pressupostos exigidos pelo art. 640.º n.º 1 do Código de Processo Civil para a apreciação da impugnação fáctica (estão especificados os concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, bem como os concretos meios probatórios que, na opinião da Recorrente, impõem decisão diversa, e ainda a decisão que, no seu entender, deve ser proferida acerca das questões de facto impugnadas), proceder-se-á à análise desta parte do recurso, no uso da referida autonomia decisória dos Tribunais da Relação na reapreciação da matéria de facto.
Fundamentalmente, a A. impugna os pontos 6 e 16 da matéria de facto, onde a sentença recorrida declarou provado o seguinte:
“6. Porém, no dia 6 de Julho de 2018, sexta-feira, as RR. comunicaram à A. que nesse dia H… tinha trespassado o estabelecimento a O… que o passaria a explorar a partir do dia 9 de Julho desse ano, que tudo ficaria igual, continuando o estabelecimento a prestar serviços de limpeza a seco, lavandaria e engomadoria, continuando a A. a exercer as funções que exercia, da mesma forma como até aí fazia, sozinha no estabelecimento como já fazia, com a mesma antiguidade, horário e direitos, bem assim que a R. O… assumiria e cumpriria o seu contrato de trabalho.
(…)
16. Pelo menos entre o dia 9 de Julho e 13 de Julho de 2018 O… passou a gerir o estabelecimento continuando a prestar os mesmos serviços que até aí prestava, sem alteração da organização de trabalho.”
A A. entende que ficaram demonstrados factos tendentes a demonstrar a alteração das suas condições de trabalho, argumentando que essa matéria resultaria das suas declarações de parte, e seria suportado nos depoimentos de parte das Rés e nos documentos anexos aos autos.
Pois bem, para além da A. ter admitido que as Rés lhe disseram no dia 06.07.2018 que as suas condições de trabalho iriam ficar iguais, ninguém mais confirmou o que a A. afirmou sobre o que se passou na terça-feira seguinte, a propósito de ameaças de despedimento e alterações na organização do trabalho (nem as Rés o confirmaram nos seus depoimentos).
Sucede que as declarações de parte não podem valer como prova de factos favoráveis se não tiverem o mínimo de corroboração por um qualquer outro elemento de prova isento e imparcial. Lebre de Freitas[1] escreve que “a apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, maxime se ambas as partes tiverem sido efectivamente ouvidas.”
Trata-se de um meio de prova cuja apreciação se faz segundo as regras normais de formação da convicção do juiz, o que implica que, em relação a factos favoráveis à parte interessada na procedência da causa, o juiz não deve ficar convencido apenas com o seu depoimento, carecendo de um mínimo de corroboração por outras provas isentas e independentes da parte.[2]
As declarações de parte constituem, pois, mero princípio de prova, não se mostrando bastantes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de certeza final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros meios de prova.[3]
Teixeira de Sousa[4] esclarece que “o princípio (ou começo) da prova é o menor grau de prova: ele vale apenas como factor corroborante da prova de um facto. Isto é, o princípio da prova não é suficiente para estabelecer, por si só, qualquer prova, mas pode coadjuvar, em conjugação com outros elementos, a prova de um facto.”
Notando que a prova documental que a A. apresentou nos autos também não permite infirmar a matéria de facto que a sentença recorrida lançou nos mencionados pontos 6. e 16. do elenco fáctico, resta julgar improcedente a impugnação da matéria de facto.
A matéria de facto provada permanece assim fixada, nos exactos termos que constam da sentença recorrida:
1. No dia 06 de Outubro de 1992 a A., na qualidade de segunda contratante, e H…, Lda. na de primeira, outorgaram o acordo constante de fls. 4 declarando que “(…) é celebrado nos termos da Lei do Trabalho em vigor um contrato de trabalho por tempo indeterminado que se rege pelas cláusulas seguintes:
PRIMEIRA: o segundo contratante compromete-se a colaborar com o primeiro no seu estabelecimento de lavandaria e tinturaria, sito em Gaveto Formado pela Rua deLoulé, exercendo a profissão de engomadora.
SEGUNDA: o ordenado mensal ilíquido é de quarenta e sete mil e quinhentos escudos (…)
TERCEIRA: o presente contrato terá início no dia 06 de Outubro de 1992 (…)”.
2. Em 01 de Junho de 2006, a H…, Lda., na qualidade de primeira outorgante, a ora A. na qualidade de segunda outorgante e H…, na qualidade de terceira outorgante, subscreveram o acordo de fls. 5 declarando “(…) por acordo entre as partes foi aceite transferir o vínculo laboral existente para uma nova entidade, denominada H…, (…) a partir do dia 01 de Junho de 2006. A nova entidade (…) assume todas as regalias e deveres que eram do outorgante, face ao outorgante, designadamente referente a antiguidade, direito a Férias, Subsidio de Férias e Subsidio de Natal. O Outorgante aceita dar continuidade na outorgante, ao contrato de trabalho anteriormente celebrado com o outorgante, mantendo como válidos os prazos devidamente contratados. (…)”.
3. O local de trabalho da Autora sempre foi, desde 06 de Outubro de 1992, o estabelecimento de lavandaria sito na Travessa …, em Loulé.
4. No dia 6 de Julho de 2018 H…, na qualidade de primeira contraente e O…, na qualidade de segunda, subscreveram o acordo de fls. 55 a 56 no qual declararam “(…) A Primeira Contraente é dona e legitima possuidora de um prédio de um estabelecimento comercial e industrial de lavandaria limpeza a seco (…). Pelo presente contrato o Primeiro Contraente transmite ao Segundo Contraente o Trespasse do estabelecimento (…) e este aceita nos termos acordados. (…) O presente contrato é feito com todos os elementos que integram o estabelecimento em toda a sua universalidade: incluindo a venda de todo o mobiliário e equipamentos e demais coisas pertencentes ao estabelecimento e nele existente nesta data (bens móveis, clientes, utensílios, mercadorias) bem como a cedência de todas as licenças, alvarás e de quaisquer outros direitos inerentes ao estabelecimento.(…) O Primeiro Contraente acorda com o Segundo Contraente neste contrato que se transfere para o mesmo na qualidade de trespassário todos os direitos e obrigações decorrentes do contrato de trabalho da empregada do estabelecimento, no que respeita aos créditos laborais que ainda não estão liquidados serão assegurados pelo trespassário, a antiguidade será mantida.(…) O Preço do Trespasse é de 10 000,00€. (…) O presente contrato começa a vigorar a partir da data 09/07/2018 (…)”.
5. As RR. não mostraram à A. o conteúdo do escrito referido em 4.
6. Porém, no dia 6 de Julho de 2018, sexta-feira, as RR. comunicaram à A. que nesse dia H… tinha trespassado o estabelecimento a O… que o passaria a explorar a partir do dia 9 de Julho desse ano, que tudo ficaria igual, continuando o estabelecimento a prestar serviços de limpeza a seco, lavandaria e engomadoria, continuando a A. a exercer as funções que exercia, da mesma forma como até aí fazia, sozinha no estabelecimento como já fazia, com a mesma antiguidade, horário e direitos, bem assim que a R. O… assumiria e cumpriria o seu contrato de trabalho.
7. O estabelecimento estava fechado ao sábado e domingo.
8. Por carta de 11 de Julho de 2018, constante de fls. 5 v.º, a A. comunicou à R. O… o seguinte:
“(…) Na sequência da transmissão da titularidade do estabelecimento onde trabalho actualmente, facto que me foi comunicado verbalmente na passada sexta-feira, dia 06 de Julho de 2018, venho pela presente, ao abrigo do disposto no Artigo 286.º-A do Código de Trabalho em vigor, exercer o direito de oposição à transmissão da posição do empregador no contrato de trabalho celebrado em 06 de Outubro de 1992, uma vez que a política de organização do trabalho da adquirente do estabelecimento não merece confiança.
Por força da referida oposição, ao abrigo do disposto no Artigo 394º nº3 al. d), venho também pela presente notificar V. Sª da minha intenção de resolver com justa causa o contrato de trabalho celebrado em 06 de Outubro de 1992 (…). Em face do exposto (…) informo que deixarei de prestar quaisquer funções na lavandaria a partir do próximo dia 13.07.2018 (…)”
9. A A. trabalhou até ao dia 13 de Julho de 2018, auferindo em tal data retribuição-base mensal de € 630,00.
10. Em 2018 a A. apenas gozou 6 dias de férias.
11. A título de subsídio de férias em 2018 a A. apenas recebeu a quantia de € 280,35.
12. Nenhuma das RR. pagou à A. a remuneração correspondente a 16 dias de férias vencidas em 01 de Janeiro de 2018 e não gozadas e respectivo subsidio de férias para além do referido em 11.
13. Nenhuma das RR. pagou à A. os proporcionais de férias, subsidio de férias e de natal relativos ao trabalho prestado em 2018.
14. Há pelo menos 5 anos que a 2.ª R. tinha anunciada a intenção de trespassar o estabelecimento, tendo proposto à A. a aquisição do mesmo o que esta recusou.
15. A A. sabia do referido em 14.
16. Pelo menos entre o dia 9 de Julho e 13 de Julho de 2018 O… passou a gerir o estabelecimento continuando a prestar os mesmos serviços que até aí prestava, sem alteração da organização de trabalho.

APLICANDO O DIREITO
Da resolução do contrato de trabalho com fundamento na transmissão da posição contratual de empregador
A trabalhadora comunicou a resolução do contrato de trabalho, invocando o disposto nos arts. 394.º n.º 3 al. d) e 286.º-A n.º 1 do Código do Trabalho, na redacção introduzida pela Lei 14/2018, de 19 de Março, já em vigor à data dos factos, afirmando que a política de organização do trabalho da adquirente do estabelecimento não lhe merecia confiança.
No Acórdão da Relação de Guimarães de 07.05.2020[5], defendeu-se que este fundamento – a falta de confiança – não está na livre disponibilidade do trabalhador, devendo este demonstrar que a causa invocada assume uma gravidade tal que torna inexigível a manutenção do vínculo, apesar de se tratar de uma causa objectiva de resolução do contrato de trabalho, constante do elenco do n.º 3 do art. 394.º. Deste modo, o trabalhador deveria demonstrar os factos concretos aptos a demonstrar a falta de confiabilidade da política de organização de trabalho da adquirente, devendo este fundamento ser apreciado “não de um ponto de vista subjectivo, mas de um ponto de vista objectivo, com base em factos concretos que a demonstrem, tendo em conta a perspectiva de um trabalhador médio, possuidor dos conhecimentos e na concreta situação do trabalhador em causa.”
Na doutrina, porém, têm sido manifestadas posições que apontam para a livre disponibilidade deste fundamento de resolução do contrato de trabalho.
Maria do Rosário Palma Ramalho[6] nota que está em causa “uma alegação absolutamente subjectiva, de conteúdo indeterminado, e que, de novo, implica um juízo de prognose do trabalhador, uma vez que antes de integrar a nova empresa ele não pode, verdadeiramente, conhecer a respectiva política de organização do trabalho. Assim, crê-se que, na prática, este requisito tem o efeito de tornar irrestrito o direito de oposição. Contudo, como o trabalhador tem que fundamentar a sua oposição (art. 286.º-A n.º 3, parte final), não se vê que fundamento poderá apresentar neste caso.”
Por seu turno, João Leal Amado[7] escreve que o fundamento da “ausência de confiança, trata-se de um sentimento, de uma crença, de algo emocional e do foro puramente interno do trabalhador, algo insusceptível, enquanto tal, de ser demonstrado ou desmentido em tribunal, de ser comprovado pelo trabalhador ou de ser contestado pelo empregador.”
Júlio Gomes[8] interroga-se, porém, sobre se a alegação de falta de confiança não deverá assentar em alguns indícios concretos, embora admita graves dificuldades na aferição deste requisito, pois não apenas está em causa um exercício de prognose, ou seja, uma conjectura acerca do que poderá acontecer, como o trabalhador pode estar colocado perante uma situação de absoluto desconhecimento dos factos essenciais relativos à política de organização do trabalho do adquirente, e ser precisamente esse desconhecimento o fundamento íntimo da sua desconfiança. Citemos a seguinte passagem do seu escrito, a propósito dos dois fundamentos previstos no art. 286.º-A n.º 1:
«O primeiro consiste no temor de um prejuízo sério – este ainda não se verificou, mas pode vir a ocorrer por causa da transmissão da posição de empregador. Exige-se aqui um exercício de prognose, referindo a lei alguns exemplos (“nomeadamente”) de situações em que essa prognose parece justificar-se. Trata-se, em todo o caso, nos exemplos propostos, de situações objectivamente graves como sejam a “manifesta falta de solvabilidade ou situação financeira difícil do adquirente”. Como se trata apenas de exemplos, parece-nos haver espaço para outras situações em que também se pode formular um juízo de prognose de prejuízo sério, como sucederá, por exemplo, com uma mudança significativa de local de trabalho. Mas esta exigência contrasta fortemente com a parte final do mesmo n.º 1: o trabalhador pode, no fim de contas, opor-se à transmissão da posição de empregador simplesmente por “a política de organização do trabalho deste não lhe merecer confiança”. Este último fundamento já foi classificado de subjectivo e insindicável. Com efeito, se for suficiente dizer “não confio na política de organização de trabalho” do transmissário, não se vê como é que se trata aqui de um genuíno fundamento. Dito por outras palavras de que é que adianta o trabalhador ter que referir um fundamento no escrito em que exerce o seu direito de oposição, se o fundamento em causa é totalmente incontrolável e arbitrário? No limite poderá o trabalhador “desconfiar” do que ignora por completo? Se o transmissário é, por hipótese, uma sociedade que só agora se constituiu poderá o trabalhador alegar que desconfia de uma política de organização do trabalho que ainda nem sequer existe? Perguntamo-nos, por isso, se a falta de confiança não terá que assentar em alguns indícios concretos que devam ser referidos, mencionados, tanto no caso de oposição, como no caso de resolução. Reconhecemos, no entanto, que se trata de uma questão muito delicada, tanto mais que a informação a que o trabalhador abrangido pela transmissão da unidade económica tem direito – e que lhe deve ser fornecida directamente pelo seu próprio empregador, o transmitente – não abrange, de acordo com a letra da lei, elementos sobre a política de organização de trabalho do transmissário, mas apenas sobre as medidas (que podem ser, obviamente, medidas de gestão de recursos humanos) por este planeadas.»[9]
Face aos termos como o art. 286.º-A n.º 1 do Código do Trabalho se encontra formulado, podemos afirmar que a lei consagra dois fundamentos distintos de oposição à transmissão da posição do empregador no seu contrato de trabalho: o 1.º, fundado no prejuízo sério para o trabalhador, nomeadamente por manifesta falta de solvabilidade ou situação financeira difícil do adquirente, embora não seja de exigir um prejuízo sério efectivo, mas um mero juízo de prognose sobre um prejuízo sério no futuro[10]; o 2.º, fundado na falta de confiança do trabalhador quanto à política de organização do trabalho do adquirente, que também envolve um juízo de prognose do trabalhador, mas de conteúdo subjectivo e indeterminado.
A lei poderia ter-se bastado pelo prejuízo sério como único fundamento do direito de oposição à transmissão do vínculo contratual: sempre envolveria um juízo de prognose, mas fundado em factos concretos e verificáveis, como são a falta de solvabilidade ou a situação financeira difícil. Não foi, porém, essa a opção do legislador, consagrando um segundo fundamento do direito de oposição, que o trabalhador poderá invocar, mesmo que não seja evidente o risco de prejuízo sério, e que se baseia apenas em algo do seu foro íntimo, uma opção pessoal, como tal insindicável pelo tribunal.
E existem motivos atendíveis que levariam o legislador a consagrar essa solução. Para além do exemplo que nos é dado pelos ordenamentos sueco e alemão, onde o direito de oposição não carece de qualquer fundamento[11], temos a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, emanada na sequência do caso Katsikas[12], segundo a qual o trabalhador deve ser livre de escolher a sua entidade patronal, não podendo ser obrigado a trabalhar para um empregador que não escolheu. Como se afirma no respectivo considerando 37, a directiva europeia – relativa à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas ou de estabelecimentos, ou de partes de empresas ou de estabelecimentos – não obsta a que um trabalhador empregado pelo cedente à data da transferência da empresa se oponha à transferência do seu contrato ou da sua relação de trabalho para o cessionário, na condição de que essa decisão seja por ele livremente tomada, cabendo aos Estados-Membros, quando o trabalhador exerce esse seu direito de não continuar a relação laboral com o cessionário, decidir o que sucede com o contrato de trabalho.
No fundo, o que está em causa é o reconhecimento que o trabalho não é uma mercadoria (labour is not a commodity, como a OIT proclamou na Declaração de Filadélfia de 1944), e que o princípio geral da liberdade contratual envolve também a liberdade de escolha do parceiro da relação negocial, não devendo assim ser imposto ao trabalhador um empregador por ele não escolhido[13], representando assim um “salto civilizacional”[14], tanto mais que, como também escreveu Júlio Gomes[15], «admitir a transmissão automática dos contratos de trabalho sem que o trabalhador a isso se possa recusar consiste não só numa negação frontal da sua autonomia privada, como mesmo da sua dignidade fundamental enquanto pessoa, convertendo-o, de algum modo, numa coisa, num componente do estabelecimento – perdoe-se-nos a crueza da imagem, mas estaríamos tentados a dizer numa “peça da mobília” –, exposto à sorte deste.»
Nesta linha, seguimos o entendimento que as normas contidas nos arts. 394.º n.º 3 al. d) e 286.º-A n.º 1 do Código do Trabalho, não apenas consagram uma nova justa causa objectiva de resolução do contrato de trabalho, consistente na “transmissão para o adquirente da posição do empregador no respectivo contrato de trabalho, em consequência da transmissão da empresa”, como ainda permitem ao trabalhador fazê-lo baseado numa mera conjectura acerca da política de organização do trabalho do adquirente.
Por outro lado, como reconhece Maria do Rosário Palma Ramalho[16], apesar do n.º 4 do art. 394.º do Código do Trabalho prever que também em relação às situações de justa causa objectiva previstas no n.º 3, os critérios de apreciação serão os da justa causa disciplinar, com as devidas adaptações, «a equiparação ao sistema de avaliação da justa causa disciplinar não é feliz, porque aqueles critérios são especialmente desadequados para as situações de justa causa objectiva contemplados nesta norma.»
A questão seguinte a dilucidar é se o trabalhador que resolve o contrato de trabalho invocando apenas a referida falta de confiança, terá, ainda assim, direito à compensação calculada nos termos do art. 366.º do Código do Trabalho, como determina o respectivo art. 396.º n.º 5, igualmente introduzido pela Lei 14/2018.
João Leal Amado responde negativamente, entendendo que a referida compensação apenas terá lugar se o trabalhador resolver o contrato com fundamento no “prejuízo sério” que lhe possa ser causado pela transmissão. Para este autor, no caso da resolução se fundar apenas na desconfiança, “a razão de ser da compensação já não se encontra presente, pelo que a despeito de a lei não distinguir as situações, pensamos que o intérprete procederá bem se as distinguir – e, ambas, repete-se, existirá justa causa de demissão, mas só na primeira tal demissão implicará o pagamento de uma compensação ao trabalhador.”[17]
Júlio Gomes[18] discorda. Citemos mais uma vez o seu ensinamento:
«Reconhecendo embora que o regime legal é muito duvidoso, não seguimos, neste ponto preciso, a argumentação do Autor.
Em primeiro lugar, a resolução não tem, tal como de resto o direito de oposição, em rigor, como fundamento um prejuízo sério que haja de ser compensado, bastando-se com a possibilidade de prejuízo sério (“possa causar-lhe prejuízo sério”). E também a desconfiança na política de organização de trabalho se exprime, de algum modo, no receio de um prejuízo futuro. Acresce que, como atrás já dissemos, nos parece que a desconfiança há de ter que se fundar em alguns indícios concretos, sob pena de não vermos qualquer utilidade em a lei exigir a indicação desse “fundamento”.
Importa, depois, ter presente que a novidade da alínea d) do n.º 3 do artigo 394.º consiste em prever que mesmo na sequência do exercício de um poder inteiramente lícito do empregador – a transmissão da unidade económica que acarreta, em princípio, a transmissão da posição de empregador nos contratos de trabalho dos trabalhadores abrangidos pela transmissão – há direito a uma compensação, caso o trabalhador opte pela resolução do contrato. Esta compensação parece ter a ver com a essencialidade que para o trabalhador pode assumir a identidade do empregador e as condições de trabalho por este proporcionadas, abrangendo, assim, qualquer um dos fundamentos previstos no n.º 1 do artigo 286.º-A.»
Anotando que o art. 396.º n.º 5 do Código do Trabalho não estabelece qualquer distinção entre os dois fundamentos de resolução do contrato de trabalho que o trabalhador pode invocar em caso de transmissão do estabelecimento, poderemos admitir que a resolução do contrato com fundamento em mera desconfiança do trabalhador acerca da política de organização de trabalho do adquirente poderá merecer um juízo de negação da compensação, por abuso de direito, nomeadamente quando ocorreu regularmente o processo de informação e de consulta e foi atingido um acordo acerca das medidas a aplicar ao trabalhador na sequência da transmissão.
Porém, notamos que, no caso em apreço, a A. invocou como fundamento a transmissão que lhe foi comunicada verbalmente no dia 06.07.2018, resolvendo o contrato porque “a política de organização do trabalho da adquirente do estabelecimento não merece confiança.”
Ora, a trabalhadora foi confrontada com o facto consumado da transmissão do estabelecimento, não tendo as Rés cumprido qualquer das obrigações de informação e de consulta, prévias à transmissão, previstas no art. 285.º n.º 7, e no art. 286.º n.ºs 1, 2, 3 e 4, ambos do Código do Trabalho.
De acordo com estes normativos, a transmitente e a adquirente deveriam ter informado a trabalhadora “sobre a data e motivos da transmissão, suas consequências jurídicas, económicas e sociais para os trabalhadores e medidas projectadas em relação a estes, bem como sobre o conteúdo do contrato entre transmitente e adquirente” (n.º 1 do art. 286.º), devendo esta informação ser prestada por escrito, antes da transmissão, em tempo útil, pelo menos 10 dias úteis antes da consulta (n.º 3), e consultar os representantes da trabalhadora “antes da transmissão, com vista à obtenção de um acordo sobre as medidas que pretendam aplicar aos trabalhadores na sequência da transmissão, sem prejuízo das disposições legais e convencionais aplicáveis a tais medidas” (n.º 4), não podendo a transmissão ter lugar antes de decorridos sete dias úteis após o termo do prazo para a designação da comissão representativa dos trabalhadores, se esta não tiver sido constituída, ou após o acordo ou o termo da consulta (n.º 7 do art. 285.º).
Notando que a violação de qualquer destas obrigações constitui contra-ordenação grave – n.º 12 do art. 285.º e n.º 9 do art. 286.º – surpreende, pela negativa, não apenas que as Rés não tenham informado previamente a trabalhadora acerca da transmissão do estabelecimento nem a tenham consultado acerca dos aspectos relevantes que esse facto teria para ela, como nem sequer lhe tenham prestado qualquer informação escrita acerca da transmissão, realizando o negócio e apresentando-o à trabalhadora como um facto consumado, como se a mudança da entidade empregadora fosse um facto perfeitamente irrelevante na sua relação laboral e a trabalhadora uma mera commodity, uma simples peça de equipamento vendida juntamente com a lavandaria.
Deste modo, consideramos que ocorreram factos concretos aptos a justificar o juízo íntimo de desconfiança da trabalhadora em relação às consequências que a transmissão da lavandaria teria na organização do seu trabalho, pelo que é fundado o seu pedido de pagamento da compensação prevista no art. 396.º n.º 5 do Código do Trabalho.
Quanto à responsabilidade pelo pagamento desta compensação, uma vez que se trata de uma resolução provocada por acto praticado por ambas as Rés – e com total omissão dos deveres de informação e de consulta da trabalhadora – entendemos que ambas responderão solidariamente, tanto mais que está em causa um crédito emergente da cessação do contrato de trabalho, verificado nos dois anos subsequentes à transmissão do estabelecimento (art. 285.º n.º 6).

DECISÃO
Destarte, concedendo provimento ao recurso, condenam-se ambas as Rés, solidariamente, a pagar à A., para além das quantias em que já foram condenadas na sentença recorrida, ainda a compensação de € 12.645,50, acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde 13.07.2018 e até integral pagamento.
Custas pelas Rés.
Évora, 27 de Maio de 2021

Mário Branco Coelho (relator)
Paula do Paço
Emília Ramos Costa
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[1] In A Acção Declarativa Comum, 3.ª ed., pág. 278.
[2] Neste sentido, cfr. o Acórdão da Relação do Porto de 20.11.2014 (Proc. 1878/11.8TBPFR.P2), em www.dgsi.pt.
[3] Vide o Acórdão desta Relação de Évora de 06.10.2016 (Proc. 1457/15.0T8STB.E1), no mesmo local.
[4] In As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lex – Edições Jurídicas, 1995, pág. 203.
[5] Proc. 5670/18.0T8BRG-A.G1, publicado em www.dgsi.pt.
[6] In Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 7.ª ed., 2019, págs. 694 e 695.
[7] In Transmissão da empresa e contrato de trabalho: algumas notas sobre o regime jurídico do direito de oposição, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 4010, Maio-Junho de 2018, págs. 290 e segs., encontrando-se a passagem citada na pág. 294.
[8] In Algumas reflexões críticas sobre a Lei n.º 14/2018, de 19 de Março, no Prontuário de Direito do Trabalho, 2018-I, págs. 75 e segs..
[9] Loc. cit., págs. 77 e 78.
[10] Maria do Rosário Palma Ramalho, loc. cit., pág. 694.
[11] Exemplos referidos por Pedro Oliveira, in Ainda sobre o direito de oposição do trabalhador no caso de transmissão de empresas, no Prontuário de Direito do Trabalho, 2020-I, pág. 304.
[12] Processos Apensos C-132/91, C-138/91 e C-139/91, com Acórdão proferido pelo TJUE em 16.12.1992.
[13] Maria do Rosário Palma Ramalho, loc. cit., pág. 692.
[14] Expressão de João Leal Amado, loc. cit., pág. 295.
[15] In O conflito entre a jurisprudência nacional e a jurisprudência do TJCE em matéria de transmissão do estabelecimento no Direito do Trabalho, publicado na RDES, 1996, págs. 77-188.
[16] Loc. cit., pág. 1006.
[17] Loc. cit., pág. 299.
[18] In Algumas reflexões críticas…, já citado, pág. 99.