INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
REENVIO DO PROCESSO
Sumário

A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela civil quantitativamente e nos seus pressupostos, porém, processualmente, é regulada pelo Código de Processo Penal, ou seja, em processo penal vigoram os princípios da investigação e da livre apreciação da prova, mesmo em relação ao pedido de indemnização cível.
Ora, para obtenção de elementos, também importantes para a decisão, caso a demandante não os tenha apresentado, bastava ao Tribunal a quo determinar a sua apresentação ou solicitá-los, sendo que nada fez, nem justificou ou fundamentou porque o não fez.
Padecendo a decisão recorrida de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos prevenidos no artigo 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal, e determinado o reenvio do processo para novo julgamento, restrito a matéria definida, se as partes não oferecerem meios de prova nesse sentido, tem o Tribunal o dever de a apurar como resulta do disposto no artigo 340º, do mesmo compêndio legal – cfr. ainda artigo 426º, nº 1, do mesmo Código.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal (1ª Subsecção) do Tribunal da Relação de Évora:
I

No âmbito do processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, nº 200/13.3 GACTX, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Competência Genérica do Cartaxo, mediante acusação do Ministério Público, precedendo pedido de indemnização civil, (deduzido pela ofendida/demandante, MMCC) e contestação [na qual, em síntese, oferece o merecimento dos autos], foi submetido a julgamento o arguido JJSC, (devidamente identificado nos autos), e por sentença proferida em 31.10.2019 foi decidido:

“(…)

1. Julgo a acusação pública totalmente procedente por totalmente provada e, em consequência:

a) Condeno o arguido, JJSC, pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artº 143º, nº 1 do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de €5,00 (cinco euros);

b) Condeno o arguido nas custas do processo – artº 514.º, n.º 1 do Cód. Proc. Penal, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC (artºs 374.º e 513.º do Cód. Proc. Penal e art.º 8.º, n.º 5 do Regulamento das Custas Processuais).

2. Julgo totalmente improcedente por não provado o pedido de indemnização cível deduzido pela Demandante, MFMCC e, em consequência, absolvo o Demandado, JJSC, do pedido de indemnização civil.

Custas cíveis a cargo da Demandante - [cfr. artigos 523.º do Código de Processo Penal e 527º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil].

(…)”.

Inconformada com esta decisão, dela recorreu a ofendida/demandante, extraindo da respectiva motivação de recurso as seguintes conclusões:

“a) O arguido / demandado vinha acusado da prática de 1 crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art.º 143.º n.º 1 do C. P.;

b) A ora recorrente deduziu pedido de indemnização cível;

c) Do julgamento o Tribunal resultaram como provados os seguintes factos:

“1. No dia 20 de Março de 2013, o arguido e a ofendida MFMCC eram trabalhadores da empresa …, sita em …, ….

2. Naquele dia, pelas 8 horas e 30 minutos, no interior da referida empresa, o arguido disse à ofendida “sai daqui ó mulher” e, em simultâneo, empurrou o corpo da ofendida, provocando a sua queda no chão.

3. A ofendida sofreu traumatismo do membro inferior esquerdo com fractura dos ossos da perna, pelo que teve necessidade de receber tratamento médico-cirúrgico.

4. À data do exame médico – 24/03/2014 -, a ofendida mantinha material de osteossíntese que poderia ser retirado.

5. Tais lesões determinara-lhe um período de 336 (trezentos e trinta e seis) dias de doença, todos com afectação da capacidade para o trabalho.

6. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, ao agredir a ofendida da forma supra descrita, querendo com a sua conduta molestar o corpo da mesma, como fez.

7. Mais sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal. Mais se provou que:

8. O arguido encontra-se reformado por invalidez, beneficiando de uma reforma mensal de €415,00.

9. Vive com a mulher, em casa própria.

10. De habilitações literárias, tem o 4.º ano de escolaridade.

11. O arguido não tem antecedentes criminais registados.

Do Pedido de Indemnização Civil

12. A ofendida estava à data dos factos, medicada com Dormonoct 1 mg e Lexotan 3 mg para tratamento do distúrbio ansioso/estado e ansiedade; perturbação depressiva, erro de refracção, bócio, alteração dos lípidos e excesso de peso.

13. A ofendida fracturou os dedos da mão direita (D2-D5), na sequência de um traumatismo acidental em casa, há cerca de 20 anos, com tratamento conservador e fisioterapia.

14. A demandante foi sujeita a intervenção cirúrgica para aplicação de material de osteossíntese, no dia 21.03.2013.

15. A demandante esteve 10 dias hospitalizada.

16. Durante esse período, de imobilização total, foi sujeita a vários tratamentos.

17. Após tal período, regressou a casa onde permaneceu acamada por mais 90 dias.

18. Durante tal período somente saía da sua cama para se deslocar à cozinha tomar refeições, fazer a sua higiene, para consultas médicas e tratamentos de fisioterapia.

19. Nessas deslocações necessitava da ajuda da filha e do marido.

20. A Demandante à data dos factos tinha 68 anos de idade.

21. A Demandante deslocou-se por 3 vezes a Lisboa, duas de ambulância e uma de táxi.

22. Ao Hospital de Santarém e ao Centro de Saúde, foi a 24 consultas, renovar, pensos, aonde se deslocava em veículo próprio.

23. Foi ainda a 28 sessões de fisioterapia, que iniciaram em 0.07.2013 e terminaram a 24.10.2013.

24. Do Hospital de Santarém a casa da demandante distam 19 km.

25. A Demandante retirou o material de osteossíntese a 29.05.2014, tendo para tal sido hospitalizada por um dia.

26. A Demandante trabalhava para a sociedade denominada …, com a categoria profissional de trabalhadora de limpeza.

27. Auferindo um salário ilíquido de € 454,69, acrescido de subsidio de alimentação de€ 36,40. 28. Sendo o salário liquido de 456,98.

29. A Demandante despendeu com ambulância e medicamentos, a quantia de € 71,08.

30. A Demandante ficou com as seguintes sequelas:

a) Sequelas notórias:

- cicatriz na perna esquerda;

b) Sequelas não perceptíveis:

- impossibilidade de permanecer de pé por períodos superiores a 2 horas;

31. A Demandante suportou em consultas e tratamentos, o montante de € 201,90.

32. Correu termos pelo Tribunal do Trabalho de Santarém – J1, com o n.º …, processo de acidente de trabalho pelos factos em causa nestes autos.”

d) Com base em tal factualidade, o Tribunal a quo decidiu:

1- Julgar “…a acusação pública totalmente procedente por totalmente provada e, em consequência: …” foi o arguido condenado pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física;

2- Julgar “… totalmente improcedente por não provado o pedido de indemnização cível deduzido …” pela ora recorrente e, consequentemente, absolver o demandado;

3- Condenar a demandante nas custas cíveis.

Para a absolvição do demandado militou a tese defendida pelo Tribunal a quo da inexistência de nexo causal entre o acto ilícito – empurrão – que levou à condenação do arguido e os danos reclamados pela recorrente.

e) Para a absolvição do demandado entendeu o Tribunal a quo que não haveria nexo causal entre o ilícito – empurrão – que levou à condenação do arguido e os danos reclamados pela recorrente;

f) Conforme consta da acusação deduzida: “Em consequência da conduta do arguido, a ofendida sofreu traumatismo do membro inferior esquerdo com fractura dos ossos da perna, pelo que teve necessidade de receber tratamento médico – cirúrgico.”

g) A recorrente foi sujeita a perícia médica que, junta aos autos através de Ofício de 04/09/2017, com a Referência CITIUS …, concluiu o seguinte:

“- A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 24/10/2013;

- Défice Funcional Temporário Total fixável num período de 16 dias;

- Défice Funcional Temporário Parcial fixável num período 236 dias;

- Repercussão Temporáia na Atividade Profissional Total fixável num período total de 252 dias;

- Quantum Doloris fixável no grau 4/7;

- Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 3 pontos;

As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares;

- Dano Estético Permanente fixável no grau 4/7;

- Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 3/7.”

h) Tendo ainda registado – pág. 2 a final – que:

“Com base nos elementos que nos foram remetidos efectuaram-se as seguintes considerações médico-legais:

1 – Os elementos disponíveis permitem admitir a existência de nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano (fratura metafisária da tíbia esquerda) …”

i) A ora recorrente foi ainda sujeita a perícia anterior (29/09/2016) de cujo relatório, na rubrica “Exame Objectivo”, consta o seguinte (Pág. 5):

- “2. Lesões e/ou sequelas relacionáveis com o evento

A examinada apresenta as seguintes sequelas:

 Apresenta duas cicatrizes grosseiramente paralelas e que distam entre si cerca de 1 cm, lineares, verticais, hipocrónicas e com 21,5 cm de comprimento que se estendem desde a face externa do joelho esquerdo até ao terço médio da face anterior da perna. Na extremidade distal das cicatrizes tem uma massa arredondada, mole, indolor à palpação, com cerca de 1,5 cm de diâmetro. …

 Joelho: Crepitação com mobilidade passiva de ambos os joelhos, sem limitação da extensão, com limitação nos últimos graus de flexão por dor desencadeada na região cicatricial. …”

j) O Tribunal a quo desconsiderou em absoluto – embora os referencie na “Motivação da Decisão de Facto “ – tais conclusões insitas nos aludidos relatórios de perícia médico-legal.

l) Sem, porém, fundamentar – como lhe competia – a razão dessa mesma desconsideração.

m) Tais perícias foram feitas ao abrigo do disposto no art.º 163.º n.º 1 do C.P.P. que o que importa que se presumam subtraídas à livre apreciação do julgador;

n) Deveria o Tribunal a quo ter dado como assentes os factos relativos às sequelas e lesões invocadas pela ora recorrente, conforme descritos nos citados relatórios periciais ou, em alternativa, ter justificado técnicas e cientificamente a sua não valoração.

o) Não o tendo feito violou o disposto no art.º 163.º n.º 31 e 2 do C.P.P.

p) O Tribunal a quo justifica da seguinte forma a não inclusão nos factos provados: “Quanto aos factos a que aludem as alíneas d) a i), assim resultaram não provados por falta de prova suficiente e consistente quanto aos mesmos, sendo que dos relatórios médicos, e sobretudo do relatório de perícia de avaliação do dano corporal em direito civil datado de 29.09.2016, constante a fls. 341 dos autos, não resultam as sequelas e o grau de incapacidade permanente alegado pela Demandante.”

r) Não justificando, porém, o facto de não haver julgado provado, no limite, as conclusões constantes do relatório pericial junto aos autos a 04/09/2017 (Ref.ª …) no que respeita ao:

- Quantum doloris fixado em 4 na escala de 1 a 7;

- Défice funcional permanente, fixado em 3%;

- Esforço suplementar exigido à recorrente no exercício da sua actividade profissional;

- Dano estético, fixado em 4 numa escala de 1 a 7;

- Repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer, fixado em 3 numa escala de 1 a 7.

- Deveria ainda ter atendido, à dimensão das cicatrizes (21,5 cm) e à existência de crepitação e “limitação nos últimos graus de flexão por dor …”, conforme consta do relatório pericial junto aos autos a 11/10/2016 (Ref.ª 3276962).

s) Sem no entanto o Tribunal a quo justificar ou fundamentar as razões cientificas que o levaram a concluir que uma fractura dos dedos da mão, há mais de 20 anos, “… indica fragilidade óssea da ofendida.”

t) O Tribunal a quo entendeu, igualmente na “Motivação da Decisão de Facto” que:

- Em suma, não tendo ficado demonstrado que o empurrão/encontrão foi dado com violência (a ofendida não o referiu, tendo antes dado a entender que o resultado foi além da intenção do arguido e por conseguinte o empurrão terá sido leve, temos que concluir necessariamente que o resultado da queda da ofendida ao chão – perna partida -, não é imputável ao arguido.”

- “Por último a pequena dimensão do espaço envolvente/portaria também terá contribuído em parte para que a perna, ficasse debaixo do corpo da ofendida, que terá caído desamparado, e com todo o seu peso, que não foi amortecido com qualquer força que a ofendida fizesse. Importa também dizer que o trabalho da ofendida estava no fim (ela tinha ido despejar o lixo) e por conseguinte, tendo lavado o chão, o mesmo podia ainda não estar seco e estar escorregadio.”, e que “Ou seja, e como se vê, muitas foram as circunstâncias que contribuíram para o resultado da queda da ofendida ao chão – as lesões sofridas pela mesma.”

u) E na apreciação da “Responsabilidade civil do arguido / demandado”, que:

- “Assim, as lesões terão surgido por causas alheias ao arguido, designadamente porque a ofendida não se conseguiu proteger na queda porque, tomando medicação para distúrbios de ansiedade e perturbação depressiva, tem a capacidade de reacção diminuída não tendo feito qualquer força para amortecer a queda, a pequena dimensão do espaço envolvente/portaria, não permitindo que o corpo tivesse espaço para caír sem sobreposições, a circunstância do chão ter sido lavado e poder não o estar ainda seco o que causa também quedas desamparadas/sem controlo, entre outras. Ou seja, e como se vê, muitas foram as circunstâncias que contribuíram para que a Demandante, tivesse caído da forma como caíu e tivesse partisse a perna.”

- “Assim, não tenho duvidas de que o arguido com o seu próprio corpo deu um encontrão à ofendida e que esta, de seguida, caíu ao chão. Que com a sua conduta molestou o corpo da ofendida, uma vez que esta caíu. Mas queria o arguido partir-lhe uma perna? Ou previu, sequer que tal lesão pudesse ocorrer na sequência do seu encontrão? A resposta só pode ser negativa. Com efeito, ficou por demonstrar que o arguido tivesse, em algum momento, previsto que do empurrão por si praticado viesse a resultar numa perna partida à ofendida, motivo pelo qual se deu como não provado que a lesão da ofendida foi consequência da conduta do arguido.”

v) O Tribunal a quo incorre em erro por confusão entre culpa (e a sua graduação) e resultado.

x) O Tribunal a quo faz defender o nexo de causalidade da culpa, ou melhor do dolo quando tal solução não é a acolhida pelo regime estabelecido no artigo 563.º do Cód. Civil.

z) O Tribunal a quo entendeu que, por parte do demandado, se verificou a prática de um “facto voluntário”, ilícito, culposo e danoso.

aa) Para, pelas razões supra referidas, excluir o nexo de causalidade entre o dano e o facto.

bb) Foi o demandado que, com o seu comportamento criminoso (e doloso) deu azo à queda da recorrente.

cc) Esta na sequência da queda fracturou os ossos (tíbia e perónio) da perna esquerda.

dd) Ainda assim, entende o Tribunal a quo que o comportamento do demandado não foi responsável pelos danos e lesões sofridas pela demandante uma vez que tais danos e lesões não foram pretendidos pelo arguido.

ee) Conforme decidiu o STJ em Ac. de 08/10/2014, no Proc. n.º 4028/10.4TTLSB.L1.S1: 1-… há que fazer apelo à teoria da causalidade adequada, consagrada no artigo 563° do Código Civil, teoria segundo a qual para que um facto seja causa de um dano é necessário que, no plano naturalístico ele seja condição sem a qual o dano não se teria verificado e que, em abstracto ou em geral, seja causa adequada do mesmo, traduzindo-se, essa adequação, em termos de probabilidade fundada nos conhecimentos médicos, de harmonia com a experiência comum, atendendo às circunstâncias do caso;”

ff) E no mesmo sentido, o STA em Ac. de 16/03/2006, publicado a 18/10/2006, no Proc. n.º 297/05-11: “I - O artigo 563.º do Código Civil consagra a teoria da causalidade adequada, devendo adoptar-se a sua formulação negativa correspondente aos ensinamentos de Ennecerus-Lehmann, segundo a qual a condição deixará de ser causa do dano sempre que seja de todo indiferente para a produção do dano e só se tenha tornado condição dele em virtude de outras circunstâncias extraordinárias.”

gg) Ou seja, no caso em apreço, para efeitos da sua responsabilidade civil, importa reflectir e responder a uma simples questão:

- A recorrente teria sofrido as lesões que sofreu e ficado a enfermar das sequelas pericialmente fixadas caso o demandado não a tivesse empurrado?

hh) A resposta é, evidentemente, negativa.

ii) É este o regime fixado no art.º 563.º do Cód. Civil.

jj) Ao ter decidido como decidiu, o Tribunal a quo incumpriu o citado art.º 563.º do Cód. Civil.

ll) O Tribunal a quo considerarou que existiram outros factores que contribuíram para a queda da recorrente (diminuída capacidade de reacção, pequena dimensão do espaço envolvente, possibilidade de o chão se encontrar escorregadio)

mm) Tal interpretação é, na opinião da recorrente, errada pois não consta do elenco dos factos provados quaisquer outras razões, fundamentos ou circunstâncias agravantes para a queda da recorrente;

nn) Tendo ficado provado que a queda desta última se deveu, únicamente, em consequência do comportamento do arguido que “… empurrou o corpo da ofendida, provocando a sua queda no chão.” (2. Dos factos provados);

oo) A mera possibilidade – já que nenhum facto está provado a esse propósito – da concorrência de outros factores ou circunstâncias que poderiam agravar o resultado da actuação do demandado, não poderá justificar o afastamento do nexo de causalidade;

pp) Os autos contêm em si todos os elementos que permitem a V.ªs Ex.ªs, Venerandos Desembargadores, não só revogar a sentença na parte que absolve o arguido do pedido de indemnização civil deduzido, substituindo-a por Acórdão que, atendendo aos factos provados e aos constantes das perícias a que se alude no presente, determine que os danos, lesões e sequelas sofridas pela recorrente foram causados pela conduta ilícita do demandado, condenando-o no pagamento da indemnização que for fixada.

Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA”.

Admitido o recurso e notificados os devidos sujeitos processuais, não foi apresentado qualquer articulado de resposta.

Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal.

Foi efectuado o exame preliminar.

Foi realizada a Conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II

Como é sabido, o âmbito do recurso – seu objecto e poderes de cognição – afere-se e delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as previstas no artigo 410º, nº 2, do aludido diploma, as cominadas como nulidade da sentença (cfr. artigo 379º, nºs 1 e 2, do mesmo Código) e as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cfr. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, do Código de Processo Penal; a este propósito v.g. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28.12.1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25.06.1998, in B.M.J. nº 478, pág. 242, de 03.02.1999, in B.M.J. nº 484, pág. 271 e de 12.09.2007, proferido no processo nº 07P2583, acessível em www.dgsi.pt e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).

Acresce que, no âmbito dos poderes de cognição do Tribunal, este “não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”, como claramente decorre do preceituado no artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4º, do Código de Processo Penal.

Por outro lado, importa não olvidar que se o recorrente não retoma nas conclusões da respectiva motivação as questões que desenvolveu no corpo da motivação, porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso, o Tribunal ad quem só conhecerá das questões que constam das conclusões.

Porque assim, vistas as conclusões do recurso em apreço, verificamos que as questões suscitadas são as seguintes (agora ordenadas segundo um critério de lógica e cronologia preclusivas):

(i) – Se a decisão recorrida padece de nulidade, nos termos do estatuído no artigo 379º, nº 1, alínea a), com referência ao nº 2, do artigo 37º, ambos do Código de Processo Penal;

(ii) – Se a decisão recorrida padece dos vícios a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, designadamente dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova;

(iii) – Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de direito no tocante à (in)verificação dos pressupostos legais da responsabilidade civil e de atribuição de indemnização cível pelos prejuízos sofridos à ofendida/demandante.

III

Com vista à apreciação das suscitadas questões, a sentença recorrida encontra-se fundamentado nos seguintes termos (a cuja transcrição se procede na necessária medida ao conhecimento das elencadas questões):

“(…)

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A) Factos Provados

Da instrução e discussão da causa e com interesse para a boa decisão da mesma resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 20 de Março de 2013, o arguido e a ofendida MFMCC eram trabalhadores da empresa …, sita em …, ….

2. Naquele dia, pelas 8 horas e 30 minutos, no interior da referida empresa, o arguido disse à ofendida “sai daqui ó mulher” e, em simultâneo, empurrou o corpo da ofendida, provocando a sua queda no chão.

3. A ofendida sofreu traumatismo do membro inferior esquerdo com fractura dos ossos da perna, pelo que teve necessidade de receber tratamento médico-cirúrgico.

4. À data da realização do exame médico – 24/03/2014 –, a ofendida mantinha material de osteossíntese que poderia ser retirado.

5. Tais lesões determinaram-lhe um período de 336 (trezentos e trinta e seis) dias de doença, todos com afectação da capacidade para o trabalho.

6. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, ao agredir a ofendida da forma supra descrita, querendo com a sua conduta molestar o corpo da mesma, como fez.

7. Mais sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal.

Mais se provou que:

8. O arguido encontra-se reformado por invalidez, beneficiando de uma reforma mensal de €415,00.

9. Vive com a mulher, em casa própria.

10. De habilitações literárias, tem o 4.º ano de escolaridade.

11. O arguido não tem antecedentes criminais registados.

Do Pedido de Indemnização Civil

12. A ofendida estava à data dos factos, medicada com Dormonoct 1 mg e Lexotan 3 mg para tratamento do distúrbio ansioso/estado e ansiedade; perturbação depressiva, erro de refracção, bócio, alteração dos lípidos e excesso de peso.

13. A ofendida fracturou os dedos da mão direita (D2-D5), na sequência de um traumatismo acidental em casa, há cerca de 20 anos, com tratamento conservador e fisioterapia.

14. A demandante foi sujeita a intervenção cirúrgica para aplicação de material de osteossíntese, no dia 21.03.2013.

15. A demandante esteve 10 dias hospitalizada.

16. Durante esse período, de imobilização total, foi sujeita a vários tratamentos.

17. Após tal período, regressou a casa onde permaneceu acamada por mais 90 dias.

18. Durante tal período somente saía da sua cama para se deslocar à cozinha tomar refeições, fazer a sua higiene, para consultas médicas e tratamentos de fisioterapia

19. Nessas deslocações necessitava da ajuda da filha e do marido.

20. A Demandante à data dos factos tinha 68 anos de idade.

21. A Demandante deslocou-se por 3 vezes a Lisboa, duas de ambulância e uma de táxi.

22. Ao Hospital de Santarém e ao Centro de Saúde, foi a 24 consultas, renovar, pensos, aonde se deslocava em veículo próprio.

23. Foi ainda a 28 sessões de fisioterapia, que iniciaram em 0.07.2013 e terminaram a 24.10.2013.

24. Do Hospital de Santarém a casa da demandante distam 19 km.

25. A Demandante retirou o material de osteossíntese a 29.05.2014, tendo para tal sido hospitalizada por um dia.

26. A Demandante trabalhava para a sociedade denominada …, com a categoria profissional de trabalhadora de limpeza.

27. Auferindo um salário ilíquido de € 454,69, acrescido de subsidio de alimentação de€ 36,40.

28. Sendo o salário liquido de 456,98.

29. A Demandante despendeu com ambulância e medicamentos, a quantia de € 71,08.

30. A Demandante ficou com as seguintes sequelas:

a) Sequelas notórias:

- cicatriz na perna esquerda;

b) Sequelas não perceptíveis:

- impossibilidade de permanecer de pé por períodos superiores a 2 horas;

31. A Demandante suportou em consultas e tratamentos, o montante de € 201,90.

32. Correu termos pelo Tribunal do Trabalho de Santarém – J1, com o n.º …, processo de acidente de trabalho pelos factos em causa nestes autos.

B) Factos Não Provados

Com relevância para a boa decisão da causa, não resultaram provados os seguintes:

a) A queda da ofendida ao chão, aludida em 2, foi causada, exclusivamente, pela acção do arguido.

b) Os factos aludidos em 3. foram consequência da conduta do arguido.

c) O arguido agiu com o intuito concretizado de produzir a lesão (perna partida) verificada.

d) A Demandante apresenta as seguintes sequelas:

- encurtamento da pena esquerda;

- entortamento da perna esquerda;

- inchaço ocasional do pé esquerdo.

- impossibilidade de ajoelhar;

- dores ao nível do joelho, pé e perna;

- dor permanente na costura da cicatriz;

- dormência permanente da perna esquerda.

- impossibilidade de subir superfícies mais ingremes, por ex. num escadote;

e) As sequelas determinaram uma IPP não inferior a 20 % para a actividade em geral superior a 6% para o trabalho habitual.

f) A Demandante ficou impedida de fazer caminhadas e de andar a pé.

g) Durante o período em que perdurou a sua incapacidade para o trabalho a demandante deixou de auferir o montante de € 5.026,78.

h) A Demandante sofreu um prejuízo de € 355,68 em deslocações.

i) Que a cicatriz que a Demandante tem na perna esquerda tem cerca de 40 cm;

j) A Demandante passou a ser uma pessoa diferente, pautando seu estado de espirito habitual pela tristeza, melancolia, isolamento e imobilismo.

C) Motivação da Decisão de Facto

A fixação dos factos provados teve por base a globalidade da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente, no depoimento do arguido, nas declarações da ofendida e das testemunhas inquiridas, na parte em que foram unânimes os depoimentos, nos documentos juntos aos autos, designadamente, a documentação clinica de internamento e de alta, o auto de exame médico de fls. 46 a 48, os recibos comprovativos dos pagamentos das despesas médicas de fls. 200 a 227, os recibos de salário de fls. 229 e 230, o recibo dos Bombeiros Voluntários de Santarém de fls. 231, os recibos de farmácia de fls. 232 a 234, a informação clinica de fls. 276 a 284, de fls. 266 a 381 a 398, o relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito civil de fls. 341 a 344 e de fls. 359 a 360, fotografias de fls. 413 442, relatório pericial de fls. 452 a 454, informação clinica de fls. 461 e 462 e relatório de ocorrência de fls. 462 a 463.

Advertido do direito ao silêncio, o arguido optou por prestar declarações, impugnando a veracidade dos factos descritos na acusação, negando a prática dos factos ali relatados. Com efeito negou peremptóriamente que tenha empurrado a ofendida, tendo apresentado uma versão dos factos que se revelou muito pouco credível, pois relatou ter sido a ofendida que simulou a queda para depois o acusar e dessa forma o prejudicar, tendo-lhe dito que já lhe tinha feito a folha (sic), pois há muito que a relação entre ambos não era boa pois a ofendida deixava-lhe a secretária sempre desarrumada, nunca colocando os papeis nos mesmos sítios onde os encontrava.

A testemunha, MFMCC, ofendida começou logo por confirmar que, de facto, a relação entre arguido e ofendido já não estava bem. Mais relatou que nesse dia, o arguido em vez de lhe dar a folha de ponto a atirou para cima da secretária, e porque a mesma foi projectada cerca de um metro, a ofendida teve que se debruçar em cima da secretária para apanhar a folha, altura em que, encontrando-se debruçada, o arguido lhe deu um encontrão, após se ter posicionado ao seu lado, ao mesmo tempo que lhe dizia sai daqui ó mulher, tendo caído de seguida. Referiu ainda que o arguido quando lhe deu a mão para se levantar disse-lhe “levante-se sua fingida”, acrescentando que “ele nunca pensou que desse isto”.

Assim, para prova dos factos constantes do ponto 1 o Tribunal atendeu ao teor das declarações do arguido, da ofendida e de todas as testemunhas inquiridas que o afirmaram de forma unânime.

Quanto aos factos aludidos nos pontos 3 a 5, atendeu-se aos documentos médicos supra mencionados.

No que concerne ao facto constante do ponto 2, assim foi considerado, não obstante o arguido o ter negado, desde logo porque não é minimamente credível, até pelos próprios motivos invocados pelo arguido de que a ofendida o queria “tramar”. Poderia admitir-se esta possibilidade, apenas, se por perto estivesse alguém. Não estando ninguém, é mesmo absurdo que uma pessoa com a idade da ofendida se atire para o chão, por muita vontade que tivesse e acredita-se que tivesse, de prejudicar o arguido, face ao temperamento que evidenciou em audiência, tendo-se rido, em determinada altura do seu depoimento, parecendo que sente gosto em que o arguido esteja a responder criminalmente. Apesar desta enorme animosidade da ofendida, as suas declarações acabaram por ser credíveis até porque compatíveis com as regras da experiência comum e consentâneas com o estado da relação entre arguido e ofendida. Quanto a este facto, o Tribunal não atendeu aos depoimentos das demais testemunhas inquiridas porquanto nenhuma delas presenciou os factos, tendo sido notória a colagem das mesmas à versão do arguido, resultante da enorme simpatia que nutrem pelo mesmo, que nos tempos livre é chefe de escuteiros, ao contrário do que sentem pela ofendida de quem, mencionaram, quererem distância, como relatou a testemunha AMLCF que referiu que “não havia problema com a D. F porque eu cortei logo” e a testemunha MFACC, que chorando, relatou a sua relação complicada com a ofendida. Por outro lado, o Tribunal, ao contrário do Ministério Público e da Ofendida, também não deu relevância extraordinária ao relatório de ocorrência dos Bombeiros Voluntários junto aos autos após a penúltima sessão de julgamento, porque a descrição que ali se faz da ocorrência foi feita com base nas declarações da própria ofendida e por conseguinte não veio aquele documento acrescentar nada à prova produzida. Repare-se que ali consta: “após a assistência e imobilização da vítima e estando já dentro da ambulância a vitima informou que tinha sido agredida e pretendia a presença da GNR, pois tinha sido a agressão que originou a queda”.

Quanto ao elemento subjectivo do tipo de ilícito a que aludem os pontos 6 e 7, não tenho duvidas de que o arguido empurrou a ofendida e que esta caíu ao chão. A acção do arguido, demonstrada, foi esta. É claro que podia ter dito à ofendida para sair dali. Não o fez, tendo optado por lhe dar um encontrão, sabendo que dessa forma molestava o corpo da ofendida o que conseguiu, sabendo que não o podia fazer por ser proibida e punida tal conduta.

Para prova dos factos insertos nos pontos 12 a 32, resultam do depoimento da testemunha JCMS, cônjuge da ofendida e da testemunha IMC, filha da ofendida, que prestaram quanto a estes factos depoimentos credíveis. Atendeu-se ainda a toda a prova documental junta aos autos, quanto estes factos.

No que respeita aos antecedentes criminais do arguido, a convicção do Tribunal atendeu ao teor do Certificado de Registo Criminal junto aos autos.

Quanto às condições pessoais dos arguidos atendeu-se às declarações dos mesmos nas quais se fez fé.

No que concerne aos factos não provados, assim foi considerado porque não foi produzida prova suficiente e/ou consistente quanto aos mesmos.

No que respeita aos factos a que aludem as alíneas a) a c), assim foram considerados, porque a própria ofendida que foi a única pessoa que presenciou a prática dos factos admitiu que o arguido nunca pensou que desse nisto. Ou seja, para a ofendida, e agora passado todo este tempo, e apesar da animosidade que se fez ainda sentir em relação ao arguido, ainda assim, referiu, de forma absolutamente espontânea que a intenção do arguido nunca foi a de lhe partir uma perna, referindo apenas que o arguido lhe deu um encontrão, assim designando a acção do arguido. Quanto ao resultado da queda, não olvidemos que ofendida estava debruçada sobre a mesa a tentar apanhar o papel (folha de ponto) que o arguido atirou para cima da secretária e por conseguinte não estando à espera do encontrão e não estando com os pés bem assentes no chão (porque ninguém está, segura, nesta posição), esta posição da ofendida terá contribuído também ela para a queda. Um parenteses para referir que esta postura física da ofendida, por si só, indicia que algo se passou imediatamente antes deste facto a envolver a culpa da ofendida, pois ninguém faz este esforço para apanhar um papel se não tivesse contribuído para esta reacção do arguido (atirar o papel para cima da secretária ao invés de o dar em mão à ofendida). Óbviamente, se não fosse assim, teria feito intervir a hierarquia).Por outro lado e ainda quanto ao resultado, não obstante não haver registos que a ofendida sofre de osteoporose, a verdade é que há 20 anos na sequência de um traumatismo acidental fracturou os dedos da mão direita, o que indicia fragilidade óssea da ofendida, aliada à circunstância da mesma já ter à data dos factos , 68 anos de idade, o que como sabemos, nos retira algumas defesas nas quedas, sem esquecer por último, que a ofendida toma medicação para distúrbios de ansiedade e perturbação depressiva, o que retira também capacidade de reacção. Por último a pequena dimensão do espaço envolvente/portaria também terá contribuído em parte para que a perna, ficasse debaixo do corpo da ofendida, que terá caído desamparado, e com todo o seu peso, que não foi amortecido com qualquer força que a ofendida fizesse. Importa também dizer que o trabalho da ofendida estava no fim (ela tinha ido despejar o lixo) e por conseguinte, tendo lavado o chão, o mesmo podia ainda não estar seco e estar escorregadio. Aliás no boletim de Exame Médico da Companhia de Seguros …, no âmbito do processo de acidente de trabalho, consta que a ofendida escorregou (o que como sabemos causa quedas descontroladas). Ou seja, e como se vê, muitas foram as circunstâncias que contribuíram para o resultado da queda da ofendida ao chão – as lesões sofridas pela mesma.

Em suma, não tendo ficado demonstrado que o empurrão/encontrão foi dado com violência (a ofendida não o referiu, tendo antes dado a entender que o resultado foi além da intenção do arguido e por conseguinte o empurrão terá sido leve, temos que concluir necessariamente que o resultado da queda da ofendida ao chão – perna partida -, não é imputável ao arguido.

Quanto aos factos a que aludem as alíneas d) a i), assim resultaram não provados por falta de prova suficiente e consistente quanto aos mesmos, sendo que dos relatórios médicos, e sobretudo do relatório de perícia de avaliação do dano corporal em direito civil datado de 29.09.2016, constante a fls. 341 dos autos, não resultam as sequelas e o grau de incapacidade permanente alegado pela Demandante. Quanto aos valores dos prejuízos, resultaram não provados porque, tendo a queda ocorrido no local de trabalho e tendo as testemunhas referido tratar-se de acidente de trabalho, e tendo corrido, de facto, no Tribunal do Trabalho de Santarém processo judicial por acidente de Trabalho, ficou por demonstrar que as quantias que reclama nesta acção não lhe foram pagas, parcial ou totalmente, no âmbito daquele processo pela seguradora de acidentes de trabalho ou pela Segurança Social decorrente de baixa por doença, pelo que não se demonstrou qual o concreto valor do prejuízo da Demandante, ainda não ressarcidos, quanto a retribuições não pagas, desconhecendo-se igualmente por falta de prova documental qual o valor das deslocações.

No que concerne ao facto constante da alínea j) assim foi considerado porque as declarações do marido e da filha da ofendida, acabaram por ser infirmadas pelas fotografias juntas pelo Réu, de onde resulta que a ofendida, sob o ponto de vista social, fará uma vida normal, aliás como também resulta da perícia.

Aqui chegados, e conjugando as declarações do arguido e da ofendida, temos por certo que o arguido queria a ofendida longe da sua secretária e dos seus papeis. Esta por sua vez, no momento do encontrão, nas suas palavras encontrava-se debruçada por cima da secretária para tentar chegar à folha de ponto.

Assim, não tenho duvidas de que o arguido com o seu próprio corpo deu um encontrão à ofendida e que esta, de seguida, caíu ao chão. Que com a sua conduta molestou o corpo da ofendida, uma vez que esta caíu.

Mas queria o arguido partir-lhe uma perna? Ou previu, sequer que tal lesão pudesse ocorrer na sequência do seu encontrão?

A resposta só pode ser negativa.

Com efeito, ficou por demonstrar que o arguido tivesse, em algum momento, previsto que do empurrão por si praticado viesse a resultar numa perna partida à ofendida, motivo pelo qual se deu como não provado que a lesão da ofendida foi consequência da conduta do arguido.

(…).”.

IV

Com vista à apreciação das editadas primeira e segunda questões, [(i) e (ii)], trazidas ao conhecimento deste Tribunal ad quem, vejamos.

Importa, antes de mais, recordar que o dever de fundamentação das decisões judiciais decorre, desde logo, do preceituado no artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, ao dispor que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.”. E, a lei processual penal, hoje entendida como direito constitucional aplicado, no seu artigo 97º, nº 5, estatui que, “Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”. Acresce que o dever de fundamentação das decisões judiciais constitui, nos modernos Estados de Direito, um dos pressupostos do chamado “processo equitativo” (que se traduz, sinteticamente, em três exigências: i) informação ao acusado, de modo detalhado, acerca da natureza e dos motivos da acusação, para que dela se possa defender; ii) um procedimento leal, sem influências externas na formação do juízo; iii) um juiz imparcial, que exerça a função em posição de terciaridade relativamente aos interesses objecto do processo e não dê a alguma das partes tratamento de favor ou de desfavor.), a que aludem os artigos 6º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (que no seu nº 1, estatui “Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.”) e 20º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa (que dispõe “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.”).

Como refere o Professor Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 3ª Edição, Editorial Verbo, 2009, pág. 289, “A fundamentação dos actos é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias. Permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina.”.

O acto decisório sentença (ou acórdão, se proferido por um tribunal colegial) tem uma fundamentação especial como resulta do disposto no artigo 374º, do Código de Processo Penal que, sob o título “Requisitos da sentença”, dispõe:

“1. A sentença começa por um relatório, que contém:

a) As indicações tendentes à identificação do arguido;

b) As indicações tendentes à identificação do assistente e das partes civis;

c) A indicação do crime ou dos crimes imputados ao arguido, segundo a acusação, ou pronúncia, se a tiver havido;

d) A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada.

2. Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

3. A sentença termina pelo dispositivo que contém:

a) As disposições legais aplicáveis;

b) A decisão condenatória ou absolutória;

c) A indicação do destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime, com expressa menção das disposições legais aplicadas;

d) A ordem de remessa de boletins ao registo criminal;

e) A data e as assinaturas dos membros do tribunal.

4. A sentença observa o disposto neste Código e no Regulamento das Custas Processuais em matéria de custas.”.

E, conforme estatui o artigo 379º, do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Nulidade da sentença”:

“1. É nula a sentença:

a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;

b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;

c) Quando o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

2. As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 414.º, n.º 4.

3. Se, em consequência de nulidade de sentença conhecida em recurso, tiver de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido, o recurso que desta venha a ser interposto é sempre distribuído ao mesmo relator, excepto em caso de impossibilidade.”.

Assim, a sentença, que sabidamente se compõe de três partes, o relatório, a fundamentação e o dispositivo ou decisão stricto sensu, há-de, na fundamentação, nos termos do nº 2, do supra transcrito artigo 374º, proceder à enumeração dos factos provados e não provados, à exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. Ou, dito de outro modo, ordenadamente, na fundamentação, a sentença começará pela descrição dos factos provados e não provados (a qual, para ser facilmente compreensível, deve obedecer à lógica de quem descreve um episódio da vida real), seguida da exposição dos motivos de facto com exame crítico das provas que conduziram à formação da convicção do julgador, após o enquadramento jurídico - penal da matéria de facto apurada (em ordem a concluir se o arguido cometeu ou não o crime por que vem acusado), se existem causas de exclusão da ilicitude da conduta ou da culpa do mesmo e, por fim, concluindo-se que o arguido praticou o facto punível, seguir-se-á a escolha e a determinação da medida concreta da pena.

Produzida toda a prova em audiência de julgamento, na fase de deliberação, deve pois o Tribunal valorar os factos descritos na acusação ou na pronúncia, havendo-a, juntamente com os que constam do pedido de indemnização civil, tendo sido enxertado na acção penal, e da contestação, caso tenha sido oferecida pelo arguido e/ou demandado e aqueles que resultaram da discussão da causa, como preceituado no artigo 368º, nº 2, do Código de Processo Penal.

E, por isso, a sentença, na sua fundamentação fáctica, deve conter a “enumeração dos factos provados e não provados”, os quais, em princípio, terão de compreender, a um ou outro título, todos os factos decorrentes daquela elencada origem. Enumerar os factos é especificá-los ou contá-los um a um, o que corresponde a dizer que o Tribunal tem de especificar todos e cada um dos factos alegados pela acusação e pela defesa, bem como os que tiverem resultado da discussão da causa, relevantes para a decisão, como provados ou não provados, como, aliás, sempre decorreria do próprio dever de apreciar, descriminada e especificamente todos os factos, imposto pelo citado comando do nº 2, do artigo 368º.

Deste modo, fórmulas genéricas e imprecisas, são ineficazes, porque não dão a indispensável garantia de que todos os factos relevantes alegados, que não surgem descriminados na decisão sobre a matéria de facto, foram considerados nos termos legais. Contudo, nesta vertente, como vem reiteradamente acentuando o Supremo Tribunal de Justiça, o cumprimento do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, não impõe a enumeração dos factos provados e não provados que sejam irrelevantes para a caracterização do crime e/ou para a medida da pena, sendo certo que essa irrelevância deve ser vista com rigor, em função do factualismo inerente às posições da acusação e da defesa e bem assim aos contornos das diversas possibilidades de aplicação do direito ao caso concreto – seja quanto à imputabilidade, seja relativamente à qualificação jurídico-criminal dos factos, seja quanto às consequências jurídicas do crime, designadamente quanto à espécie e medida da pena –, tendo em conta os termos das posições assumidas pela acusação e pela defesa e os poderes de cognição oficiosa que cabem ao Tribunal – cfr., entre outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.01.1999, proferido no processo nº 1216/98, sumariado na www.dgsi.pt/jstj e publicado na integra no Boletim Interno nº 27.

Como, a propósito, escreve o Juiz Conselheiro Sérgio Poças, em “Da sentença penal – fundamentação de facto”, “Revista Julgar”, nº 3, Setembro - Dezembro 2007, pág. 24 e segs, “O tribunal, como resulta nomeadamente do disposto nos artigos 339.º, n.º 4, 368.º, n.º 2, e 374.º, n.º 2, do CPP, deve indagar e pronunciar-se sobre todos os factos que tenham sido alegados pela acusação, pela contestação ou que resultem da discussão da causa e se mostrem relevantes para a decisão. Ou seja, ainda que para a solução de direito que o tribunal tem como adequada para o caso, se afigure irrelevante a prova de determinado facto, o tribunal não pode deixar de se pronunciar sobre a sua verificação/não verificação - o que pressupõe a sua indagação -, se tal facto se mostrar relevante num outro entendimento jurídico plausível.

É que em impugnação por via de recurso pode vir a ser considerado pelo tribunal ad quem que o facto sobre o qual o tribunal a quo especificadamente não se pronunciou por entender ser irrelevante, é afinal relevante para a decisão, o que determinará a necessidade de novo julgamento, ainda que parcial, com todas as maléficas consequências consabidas.

Sejamos claros: indagam-se os factos que são interessantes de acordo com o direito plausível aplicável ao caso; dão-se como provados ou não provados os factos conforme a prova produzida.

A pronúncia deve ser inequívoca: em caso algum pode ficar a dúvida sobre qual a posição real do tribunal sobre determinado facto.

Na verdade, se sobre determinado facto não há pronúncia expressa (o tribunal nada diz), pergunta-se: o tribunal não se pronunciou, por mero lapso?

Não se pronunciou porque não indagou o facto? Não se pronunciou porque considerou o facto irrelevante? Não se pronunciou porque o facto não se provou?

Face ao silêncio do tribunal todas as interrogações são legítimas.

Das duas, uma: ou o facto é inócuo para a decisão e o tribunal, com fundamentação sintética, di-lo expressamente e não tem que se pronunciar sobre a sua verificação/não verificação, ou, segundo um entendimento jurídico plausível, é relevante e nesse caso deve pronunciar-se de acordo com a prova produzida. (…).”.

Mas, na sua fundamentação fáctica, a sentença deve conter, ainda, a motivação da decisão de facto, com exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e fundamentar tal decisão.

Como afirma Marques Ferreira, in “Meios de Prova”, “Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal”, pág. 228 e segs, “exige-se não só a indicação das provas ou meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal mas, fundamentalmente, a exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão.

Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência.

A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente, permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame lógico ou racional que lhe subjaz, pela via do recurso, conforme impõe inequivocamente o art. 410.º, n.º 2 (…).

E extraprocessualmente, a fundamentação deve assegurar pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade.”.

Neste conspecto, o preceituado no nº 2, do mencionado artigo 374º, está, pois, intimamente ligado ao estatuído no artigo 127º, do Código de Processo Penal.

De harmonia com o ali consagrado princípio da livre apreciação da prova, o julgador é livre ao apreciar as provas, porém, tal apreciação está, como afirma o Professor Cavaleiro Ferreira, em “Curso de Processo Penal”, vol. I, pág. 211, “vinculada aos princípio em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório”.

“No entanto, a livre convicção do juiz não se confunde com a sua convicção íntima, caprichosa e emotiva, dado que é o livre convencimento lógico, motivado, em obediência a critérios legais, passíveis de motivação e de controlo, na esteira de uma “liberdade de acordo com um dever”, que o processo penal moderno exige, dever esse que axiologicamente se impõe ao julgador por força do princípio do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana.

A livre convicção não pode ser vista em função de qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes deve perspectivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento.

Isto é, na outorga, não de um poder arbitrário, mas antes de um dever de perseguir a chamada verdade material, verdade prático-jurídica, segundo critérios objectivos e susceptíveis de motivação racional. [cfr. Prof. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal, Vol. I, pág. 202-206].

Vigorando na nossa lei adjectiva penal um sistema de persuasão racional e não de íntimo convencimento, instituiu o legislador mecanismos de motivação e controle da fundamentação da decisão de facto, dando corpo ao princípio da publicidade, em termos tais que o processo - e, portanto, a actividade probatória e demonstrativa -, deva ser conduzido de modo a permitir que qualquer pessoa siga o juízo, e presumivelmente se convença como o julgador. [cfr. Prof. Castro Mendes, “Do Conceito de Prova em Processo Civil”, pág. 302].

A obrigação de fundamentação respeita à possibilidade de controle da decisão, de forma a impedir a avaliação probatória caprichosa ou arbitrária e deve ser conjugada com o sistema de livre apreciação da prova.

É, pois, na fundamentação da sentença, sua explicitação e exame crítico que se poderá avaliar a consistência, objectividade, rigor e legitimidade do processo lógico e subjectivo da formação da convicção do julgador.

Não é suficiente a mera indicação das provas, sendo necessário revelar o processo racional que conduziu à expressão da convicção.

«Com efeito, só assim o decisor justifica, perante si próprio, a decisão (o momento da exposição do raciocínio permite ao próprio apresentar e conferir o processo lógico e racional pelo qual atingiu o resultado), e garante a respectiva comunicabilidade aos respectivos destinatários e terceiros (dando garantias acrescidas de que a prova juridicamente relevante foi não só correctamente recolhida e produzida, mas também apreciada de acordo com cânones claramente entendíveis por quem quer).

Assim que baste que apenas um dos referidos passos do juízo devido seja omitido, para que se esteja a prejudicar a tutela judicial efectiva que tem de ser garantida como patamar básico da convivência social, impossibilitando ou diminuindo a justificação e compreensibilidade do decidido» [cfr. Paulo Saragoça da Mata, “A livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, pág. 261-279].

Só motivando nos moldes descritos a decisão sobre matéria de facto, mesmo vendo a questão do prisma do decisor, é possível aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso o exame do processo lógico ou racional que subjaz à formação da referida convicção, para que seja permitido sindicar se a prova não se apresenta ilógica, arbitrária, contraditória ou violadora das regras da experiência comum.” – cfr. Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra de 08.02.2012, proferido no processo nº 38/10.0 TAFIG.C1, disponível em www.dgsi.pt/jtrc..

“Não definindo a lei em que consiste, ou como deve ser efectuado o exame crítico das provas, esse exame tem de assentar em critérios de razoabilidade, de forma completa e clara, que permita avaliar o processo lógico-formal, o raciocínio analítico-crítico efectuado pelo tribunal na ponderação e correlacionamento das provas, no sentido de objectivamente se poder credibilizar a decisão de facto tomada nos termos em que ficou decidida. Tendo em conta os princípios da oralidade e da imediação na actividade de produção da prova, a lei não exige que em relação a cada facto se autonomize específica fundamentação, nem que em relação a cada prova se faça uma descrição dinâmica da sua produção. O que a lei exige é que não basta uma mera referência dos factos às provas, torna-se necessário um correlacionamento dos mesmos com as provas que os sustentam de forma a poder concluir-se quais as provas e, em que termos, por que razão, ou, com que fundamento, garantem que os factos aconteceram ou não da forma apurada.” – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.10.2007, proferido no processo nº 07P3399, in www.dgsi.pt/jstj..

Ou, como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.10.2007, proferido no processo nº 07P1779, disponível no sítio acima referido, “O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular - a fundamentação em matéria de facto - , mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito.

Só assim não será quando se trate de decidir questões que têm a ver com a legalidade das provas ou de decisão sobre a nulidade, e consequente exclusão, de algum meio de prova.

O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cfr., v. g., acórdão do Supremo Tribunal de 30 de Janeiro de 2002, proc. 3063/01).

O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte (acórdãos do Supremo Tribunal de 17 de Março de 2004, proc. 4026/03; de 7 de Fevereiro de 2002, proc. 3998/00 e de 12 de Abril de 2000, proc. 141/00).”.

Postos estes considerandos e à luz deles, da leitura da decisão recorrida no conspecto da decisão de facto dela constante, não podemos deixar de afirmar, desde já, padecer a mesma da apontada nulidade, por omissão e/ou insuficiência de fundamentação, nos seguintes aspectos:

Primo aspecto, da actuação exclusiva do arguido:

Da factualidade dada como provada consta, além do mais, que, “2- Naquele dia, pelas 8 horas e 30 minutos, no interior da referida empresa, o arguido disse à ofendida “sai daqui ó mulher” e, em simultâneo, empurrou o corpo da ofendida, provocando a sua queda no chão”.

Por seu turno, na factualidade dada como não provada, sob a alínea a), lê-se que, não se provou que “A queda da ofendida ao chão, aludida em 2, foi causada, exclusivamente, pela acção do arguido”.

Ora, se se provou que o arguido empurrou o corpo da ofendida, provocando a sua queda no chão e não se provou que essa queda ao chão fosse causada, exclusivamente, pela acção do arguido, então tal queda tinha de ter sido provocada, para além da actuação do arguido, por outra ou outras causas.

Vale isto por afirmar que não se sabe, porque o Tribunal a quo não o esclarece em absoluto, qual o grau de responsabilidade do arguido por essa queda. Com bem diz a recorrente, “(…) não consta do elenco dos factos provados quaisquer outras razões, fundamentos ou circunstâncias agravantes para a queda da recorrente (...)”.

Da leitura da fundamentação de facto negativa, quanto ao facto elencado sob a mencionada alínea a), não podemos deixar de frisar que a mesma contem afirmações conclusivas, sem qualquer suporte fáctico e sem indicar qual a razão da ciência. Senão vejamos:

“Quanto ao resultado da queda, não olvidemos que ofendida estava debruçada sobre a mesa a tentar apanhar o papel (folha de ponto) que o arguido atirou para cima da secretária e por conseguinte não estando à espera do encontrão e não estando com os pés bem assentes no chão (porque ninguém está, segura, nesta posição), esta posição da ofendida terá contribuído também ela para a queda”.

Mas porque é que os pés da ofendida e demandante não estavam bem assentes no chão? Só porque estava debruçada sobre a mesa? Qual o fundamento fáctico desta afirmação?

Mais, para o Tribunal a quo, a circunstância de “a ofendida tomar medicação para distúrbios de ansiedade e perturbação depressiva, retira também capacidade de reacção”, não se vislumbrando qual o suporte fáctico/científico de tal afirmação?!

Secundo aspecto, das lesões sofridas pela demandante:

Da factualidade dada como provada consta, ainda, no ponto “3. A ofendida sofreu traumatismo do membro inferior esquerdo com fractura dos ossos da perna, pelo que teve necessidade de receber tratamento médico-cirúrgico.”.

E não se provou que tais factos fossem consequência da conduta do arguido – cfr. alínea b) dos factos dados como não provados.

Em sede de fundamentação da referida matéria não provada, quanto às consequências da queda da ofendida ao chão, diz o Tribunal a quo que, “No que respeita aos factos a que aludem as alíneas a) a c), assim foram considerados, porque a própria ofendida que foi a única pessoa que presenciou a prática dos factos admitiu que o arguido nunca pensou que desse nisto. Ou seja, para a ofendida, e agora passado todo este tempo, e apesar da animosidade que se fez ainda sentir em relação ao arguido, ainda assim, referiu, de forma absolutamente espontânea que a intenção do arguido nunca foi a de lhe partir uma perna, referindo apenas que o arguido lhe deu um encontrão, assim designando a acção do arguido. Por outro lado e ainda quanto ao resultado, não obstante não haver registos que a ofendida sofre de osteoporose, a verdade é que há 20 anos na sequência de um traumatismo acidental fracturou os dedos da mão direita, o que indicia fragilidade óssea da ofendida, aliada à circunstância da mesma já ter à data dos factos , 68 anos de idade, o que como sabemos, nos retira algumas defesas nas quedas, sem esquecer por último, que a ofendida toma medicação para distúrbios de ansiedade e perturbação depressiva, o que retira também capacidade de reacção. Por último a pequena dimensão do espaço envolvente/portaria também terá contribuído em parte para que a perna, ficasse debaixo do corpo da ofendida, que terá caído desamparado, e com todo o seu peso, que não foi amortecido com qualquer força que a ofendida fizesse. Importa também dizer que o trabalho da ofendida estava no fim (ela tinha ido despejar o lixo) e por conseguinte, tendo lavado o chão, o mesmo podia ainda não estar seco e estar escorregadio. Aliás no boletim de Exame Médico da Companhia de Seguros …, no âmbito do processo de acidente de trabalho, consta que a ofendida escorregou (o que como sabemos causa quedas descontroladas). Ou seja, e como se vê, muitas foram as circunstâncias que contribuíram para o resultado da queda da ofendida ao chão – as lesões sofridas pela mesma.”.

Ora, se na fundamentação se diz que inexiste qualquer registo que a ofendida sofre de osteoporose, como é que o Tribunal a quo afirma que a circunstância de a mesma ter fracturado dois dedos há vinte anos, na sequência de um traumatismo, indicia fragilidade óssea da ofendida? Existe nos autos algum documento médico-pericial neste sentido ou qualquer prova pericial? Tal asserção não pode deixar de ser tida como uma mera suposição do Tribunal a quo.

Acresce a afirmação também proferida pelo Tribunal de primeira instância que “a pequena dimensão do espaço envolvente/portaria também terá contribuído em parte para que a perna, ficasse debaixo do corpo da ofendida, que terá caído desamparado, e com todo o seu peso, que não foi amortecido com qualquer força que a ofendida fizesse”, igualmente mera conjectura, mera possibilidade não objectivável.

E, mutatis mutandis quando afirma que “tendo a ofendida lavado o chão, o mesmo podia ainda não estar seco e estar escorregadio”. É uma afirmação hipotética, sem qualquer suporte fáctico.

O Tribunal a quo invoca que “no boletim de Exame Médico da Companhia de Seguros …, no âmbito do processo de acidente de trabalho, consta que a ofendida escorregou (o que como sabemos causa quedas descontroladas)”. É, também, uma conclusão sem suporte fáctico.

Mais, ainda para fundamentar que não ficou provado que a fractura dos ossos da perna foram consequência da actuação do arguido, diz o Tribunal recorrido que, “a própria ofendida que foi a única pessoa que presenciou a prática dos factos admitiu que o arguido nunca pensou que desse nisto. Ou seja, para a ofendida, e agora passado todo este tempo, e apesar da animosidade que se fez ainda sentir em relação ao arguido, ainda assim, referiu, de forma absolutamente espontânea que a intenção do arguido nunca foi a de lhe partir uma perna, referindo apenas que o arguido lhe deu um encontrão, assim designando a acção do arguido.

Em suma, não tendo ficado demonstrado que o empurrão/encontrão foi dado com violência (a ofendida não o referiu, tendo antes dado a entender que o resultado foi além da intenção do arguido e por conseguinte o empurrão terá sido leve, temos que concluir necessariamente que o resultado da queda da ofendida ao chão – perna partida -, não é imputável ao arguido”.

Mas qual a razão da ciência para concluir que o resultado da queda da ofendida ao chão - perna partida -, queda esta provocada por um empurrão (que terá sido leve), ainda que pudesse ter sido, concomitantemente, com outras circunstâncias, mas que não consta dos factos provados, não possa ter sido provocada por esse mesmo empurrão?

Diz a sentença que não ficou demonstrado que o empurrão foi dado com violência, mas um empurrão pressupõe sempre a necessidade de utilização de violência sobre a pessoa – v.g. “Grande Dicionário da Língua Portuguesa”, Tomo IV, pág. 379.

Tertio aspecto, da omissão dos factos constantes do relatório de perícia médica:

Alega a recorrente que o Tribunal a quo devia ter dado como provados os factos relativos às sequelas e lesões que invocou, conforme descritos nos relatórios periciais ou, em alternativa, ter justificado técnica e cientificamente a sua não valoração.

Afirma que em 29.09.2016 foi sujeita a perícia médica e na rubrica “Exame Objetivo” do relatório junto aos autos em 11.10.2016 (Ref.ª 3276962), consta:

“(…)

2. Lesões e/ou sequelas relacionáveis com o evento

A examinada apresenta as seguintes sequelas:

- Apresenta duas cicatrizes grosseiramente paralelas e que distam entre si cerca de 1 cm, lineares, verticais, hipocrónicas e com 21,5 cm de comprimento que se estendem desde a face externa do joelho esquerdo até ao terço médio da face anterior da perna. Na extremidade distal das cicatrizes tem uma massa arredondada, mole, indolor à palpação, com cerca de 1,5 cm de diâmetro. …

Joelho: Crepitação com mobilidade passiva de ambos os joelhos, sem limitação da extensão, com limitação nos últimos graus de flexão por dor desencadeada na região cicatricial. …”

E que foi submetida novamente a perícia médica – cfr. Ofício de 04.09.2017, com a Ref.ª Citius …, concluindo-se que:

“- A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 24/10/2013;

- Défice Funcional Temporário Total fixável num período de 16 dias;

- Défice Funcional Temporário Parcial fixável num período 236 dias;

- Repercussão Temporáia na Atividade Profissional Total fixável num período total de 252 dias;

- Quantum Doloris fixável no grau 4/7;

- Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 3 pontos;

- As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares;

- Dano Estético Permanente fixável no grau 4/7;

- Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 3/7.”.

Apreciando:

Quanto às sequelas, o Tribunal a quo considerou provado que:

“30. A Demandante ficou com as seguintes sequelas:

a) Sequelas notórias:

- cicatriz na perna esquerda;

b) Sequelas não perceptíveis:

- impossibilidade de permanecer de pé por períodos superiores a 2 horas;”

E não provado que:

“d) A Demandante apresenta as seguintes sequelas:

- encurtamento da pena esquerda;

- entortamento da perna esquerda;

- inchaço ocasional do pé esquerdo.

- impossibilidade de ajoelhar;

- dores ao nível do joelho, pé e perna;

- dor permanente na costura da cicatriz;

- dormência permanente da perna esquerda.

- impossibilidade de subir superfícies mais ingremes, por ex. num escadote;

e) As sequelas determinaram uma IPP não inferior a 20 % para a actividade em geral superior a 6% para o trabalho habitual.

f) A Demandante ficou impedida de fazer caminhadas e de andar a pé.

(…)

i) Que a cicatriz que a Demandante tem na perna esquerda tem cerca de 40 cm;”.

E na motivação de tal decisão de facto, diz o Tribunal a quo que:

“A fixação dos factos provados teve por base a globalidade da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente, no depoimento do arguido, nas declarações da ofendida e das testemunhas inquiridas, na parte em que foram unânimes os depoimentos, nos documentos juntos aos autos, designadamente, a documentação clinica de internamento e de alta, o auto de exame médico de fls. 46 a 48, os recibos comprovativos dos pagamentos das despesas médicas de fls. 200 a 227, os recibos de salário de fls. 229 e 230, o recibo dos Bombeiros Voluntários de Santarém de fls. 231, os recibos de farmácia de fls. 232 a 234, a informação clinica de fls. 276 a 284, de fls. 266 a 381 a 398, o relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito civil de fls. 341 a 344 e de fls. 359 a 360, fotografias de fls. 413 442, relatório pericial de fls. 452 a 454, informação clinica de fls. 461 e 462 e relatório de ocorrência de fls. 462 a 463.

(…)

Quanto aos factos aludidos nos pontos 3 a 5, atendeu-se aos documentos médicos supra mencionados.

(…)

Para prova dos factos insertos nos pontos 12 a 32, resultam do depoimento da testemunha JCMS, cônjuge da ofendida e da testemunha IMC, filha da ofendida, que prestaram quanto a estes factos depoimentos credíveis. Atendeu-se ainda a toda a prova documental junta aos autos, quanto estes factos”.

Ante a transcrita fundamentação de facto, a prova do ponto “30.” foi baseada em prova documental.

Quanto aos factos dados como não provados sob as alíneas d) a i) consta que “(…) assim resultaram não provados por falta de prova suficiente e consistente quanto aos mesmos, sendo que dos relatórios médicos, e sobretudo do relatório de perícia de avaliação do dano corporal em direito civil datado de 29.09.2016, constante a fls. 341 dos autos, não resultam as sequelas e o grau de incapacidade permanente alegado pela Demandante”.

Ora, no relatório pericial, datado de 29.09.2016, e no tangente a “Lesões e/ou sequelas relacionáveis com o evento” refere-se que a demandante, “Apresenta duas cicatrizes grosseiramente paralelas e que distam entre si cerca de 1 cm, lineares, verticais, hipocrónicas e com 21,5 cm de comprimento que se estendem desde a face externa do joelho esquerdo até ao terço médio da face anterior da perna”.

E tendo sido dado como provado no mencionado ponto “30.” que “a demandante apresenta como sequelas notórias – cicatriz na perna esquerda” e não provado que “a cicatriz que a Demandante tem na perna esquerda tem cerca de 40 cm”, é caso para perguntar, porque motivo o Tribunal não considerou nem a existência de duas cicatrizes paralelas nem a sua extensão de 21,5 cm como consta do relatório?

E no tangente ao joelho, diz tal relatório, “Joelho: Crepitação com mobilidade passiva de ambos os joelhos, sem limitação da extensão, com limitação nos últimos graus de flexão por dor desencadeada na região cicatricial. …”.

Com efeito, o Tribunal a quo apesar de ter aludido aos relatórios médicos, não teve em consideração o que deles consta, designadamente, “a extensão da cicatriz, o grau de mobilidade do joelho, a data da consolidação médico-legal das lesões, os períodos dos défices funcionais temporários total e parcial, a graduação do “quantum doloris” e o grau do dano estético.” – [sublinhado nosso].

Tratando-se de um juízo técnico-científico dos peritos, é a própria lei que estabelece como excepção ao princípio da livre apreciação da prova, daí que o Tribunal a quo deveria tê-lo acatado a não ser que dele divergisse, caso em que teria de fundamentar cientificamente a sua não inclusão ou divergência, o que aliás não sucedeu.

Não se olvide que o artigo 127º, do Código de Processo Penal dita que, “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente” e dispõe o artigo 163º, do mesmo compêndio legal, sob o título “Valor da prova pericial” que “1 - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador. 2 - Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.”.

Em função de tudo o que se deixa exposto, forçoso é concluir que pelas indicadas e dissecadas razões, a sentença recorrida mostra-se ferida de nulidade nos termos prevenidos nas disposições conjugadas dos artigos 379º, nº 1, alínea a) e 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.

Porém, no âmbito das invalidades cujo conhecimento ademais se impõe oficiosamente ao Tribunal ad quem, como se deixou editado, a sentença recorrida, padece ainda de vício prevenido no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.

Em comum aos três vícios aludidos nas alíneas do citado preceito legal, o vício que inquina a sentença em crise tem que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum. Quer isto significar que não é possível o apelo a elementos estranhos à decisão, como por exemplo quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, só sendo de ter em conta os vícios intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma – cfr. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 16ª ed., pág. 871, Simas Santos e Leal-Henriques, “Recursos em Processo Penal”, loc. supra mencionado.

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (vício a que alude a alínea a), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), ocorrerá, como ensina Simas Santos e Leal-Henriques, ob. e loc. citados, quando exista “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher.

Porventura, melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.

Ou, como vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, só existe tal insuficiência quando se faz a «formulação incorrecta de um juízo» em que «a conclusão extravasa as premissas» ou quando há «omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão»”.

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (vício a que alude a alínea b), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), consiste na “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.

Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. e loc. supra mencionados.

O erro notório na apreciação da prova (vício a que alude a alínea c), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), constituiu uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.

Ou, dito de outro modo, há tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. e loc. citados.

Um tal vício de erro notório na apreciação da prova não se verifica quando a discordância resulta da forma como o tribunal apreciou a prova produzida. O simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal e expressa na decisão recorrida não conduz ao aludido vício - cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19.09.1990, BMJ 399, pág. 260 e de 26.03.1998, processo nº 1483/97.

Apenas o primeiro nos importa.

Já deixámos afirmado que o facto de se ter dado como provado que o arguido empurrou o corpo da ofendida, provocando a sua queda no chão e de não se ter provado que essa queda ao chão fosse causada, exclusivamente, pela acção do arguido, questionando-se, então, se tal queda tinha de ter sido provocada, para além da actuação do arguido, por outra ou outras causas, desconhecendo-se o grau de responsabilidade do arguido por essa queda, tais asserções constantes da decisão recorrida, suscitam uma outra questão, ainda na sequência de, repete-se, não se ter dado provado que a queda da ofendida ao chão tivesse sido causada exclusivamente, pela acção do arguido, a saber:

Na produção do facto danoso terá concorrido algum facto, culposo ou não, da própria demandante?

A sentença não nos diz, pois não consta dos factos provados quaisquer outros fundamentos ou circunstâncias para a queda da recorrente.

Com efeito, não é, na verdade, indiferente à obrigação de indemnizar a posição do próprio prejudicado quanto ao dano sofrido.

Pode acontecer que o lesado tenha contribuído culposamente para a produção ou o simples agravamento dos prejuízos por ele sofridos e de que outrem seja responsável. Haverá então, conculpabilidade ou co-responsabilidade entre a pessoa obrigada a reparar um dano e a que tem direito a essa reparação.

Estatui o nº 1, do artigo 570º, do Código Civil, sob o título “Culpa do lesado”, que, “Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”.

E tal matéria é essencial para a decisão de direito, sendo certo que o Tribunal a quo não a investigou, o que vale por afirmar, que deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.

Também, no tocante à matéria concernente às sequelas de que a demandante ficou afectada, cabe referir o seguinte:

Para além do que ficou acima dito, quanto à não inclusão injustificada das sequelas constantes dos relatórios das perícias médicas, acontece que tendo corrido termos um processo de acidente de trabalho - cfr. ponto nº “32.” dos factos provados -, é nessa sede que se fixam as respectivas incapacidades, os períodos de incapacidades, e os montantes atribuídos a título de indemnização, pensões, prestações, subsídios e bem assim, os valores pagos com assistência médica e cirúrgica, tratamentos, hospitalização, transportes para tratamentos, observação ou comparência a actos judiciais.

E a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela civil quantitativamente e nos seus pressupostos, porém, processualmente, é regulada pelo Código de Processo Penal, ou seja, em processo penal vigoram os princípios da investigação e da livre apreciação da prova, mesmo em relação ao pedido de indemnização cível.

Ora, para obtenção de tais elementos, também importantes para a decisão, caso a demandante não os tenha apresentado, bastava ao Tribunal a quo determinar a sua apresentação ou solicitá-los ao mencionado processo ao Tribunal de Trabalho de Santarém, sendo que nada fez, nem justificou ou fundamentou porque o não fez.

Porque assim, sem necessidade de acrescidas considerações, resta concluir que, como se deixou elencado, a decisão recorrida também padece de outra invalidade, isto é, de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos prevenidos no artigo 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal, o que determina que o processo deva ser remetido para novo julgamento, a fim de se apurar a indicada factualidade, sendo certo que se as partes não oferecerem meios de prova nesse sentido, tem o Tribunal o dever de a apurar como resulta do disposto no artigo 340º, do mesmo compêndio legal – cfr. ainda artigo 426º, nº 1, do mesmo Código.

O apontado vício não prejudica que o Tribunal de primeira instância na nova sentença a elaborar deva atentar e não pode descurar a correcção das enunciadas nulidades.

Em face de tudo o que se deixa exposto, mostra-se prejudicada a apreciação da terceira elencada questão aportada ao conhecimento deste Tribunal ad quem – cfr. título III do presente aresto –, de harmonia com o disposto no artigo 608º, nº 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4º, do Código de Processo Penal.

V

Decisão

Nestes termos acordam em:

A) - Por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal, ao abrigo do estatuído nos artigos 426º, nº 1 e 426º- A, nº 1, ambos do aludido diploma, determinar o reenvio do processo para novo julgamento relativamente às questões (de facto) indicadas e consequentemente à questão (de direito) do reflexo que o apuramento daqueles factos tiver na apreciação da acção cível enxertada, sem prejuízo da correcção das indicadas nulidades.

B) - Não serem devidas custas.

[Texto processado e integralmente revisto pela relatora e assinado electronicamente por ambos os subscritores (cfr. artigo 94º, nºs 2 e 5, do Código de Processo Penal)]

Évora, 08.06.2021

Maria Filomena Valido Viegas de Paula Soares

J. F. Moreira das Neves