PRISÃO PREVENTIVA SEQUENTE A CONDENAÇÃO EM PENA DE PRISÃO EFETIVA
Sumário

A condenação em pena de prisão efetiva pela prática de crime vale como forte indiciação da prática do ilícito. Nada mais. E não constitui, só por si, fundamento para rever a situação coativa do arguido, muito menos para a aplicação da prisão preventiva e antecipação do cumprimento da pena.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório

1. No Juízo Local Criminal de Abrantes, do Tribunal Judicial da comarca de Santarém, procedeu-se a julgamento em processo comum VMSA, com os sinais dos autos, a quem foi imputada a prática, como autor, de um crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º, § 1.º e 2.º do Código Penal (CP), com referência aos § 4.º e 5.º do mesmo retábulo.

O arguido não apresentou contestação nem meios de prova.

A final o tribunal proferiu sentença, na qual condenou o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, na pena de 3 anos de prisão e nas penas acessórias de proibição de contactos com a vítima e obrigação de frequentar programas específicos de prevenção da violência doméstica (§ 4.º e 5.º do artigo 152.º CP), mais arbitrando, nos termos previstos nos artigos 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro e 82.º-A do Código de Processo penal (CPP), uma indemnização à vítima, que fixou em 3 000€, a liquidar em prazos ali concretamente determinados.

Na sentença o tribunal entendeu rever a situação coativa do arguido, o qual até então se encontrava sujeito às obrigações do Termo de Identidade e Residência (TIR). Ali logo se determinou a sua sujeição a prisão preventiva, por se considerar emergirem perigos de fuga, de continuação da atividade criminosa e de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas.

Na sessão de audiência marcada para a leitura da sentença, após a realização desta, o tribunal deu a palavra ao Ministério Público e ao arguido para se pronunciarem «sobre a eventual aplicação de prisão preventiva, nos termos do disposto no artigo 202.º, § 1.º, al. d) CPP», a que se seguiu despacho a determinar (outra vez) a prisão preventiva, com fundamento no perigo de fuga, perigo de continuação da atividade criminosa e perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas!

2. Inconformado com a medida de coação aplicada nestas circunstâncias recorre o arguido (1), apresentando as seguintes conclusões (transcrição):

«1.ª O tribunal ao quo procedeu à alteração da medida de coação aplicada ao arguido de TIR, substituindo-a por uma medida de prisão preventiva, nos termos do artigo 204.º do CPP, com base nas alíneas a) e b).

2.ª A decisão foi devidamente fundamentada, no entanto, entre o seu depósito e o presente recurso ocorreram circunstâncias inovadoras e de facto de maior relevância que impõem uma consideração distinta a aplicar ao arguido, designadamente, de necessidade e adequação da prisão preventiva.

3.ª Tais circunstâncias que seguidamente enumeraremos justificam antes como necessário e adequado ao arguido a aplicação de uma medida de coação de obrigação de permanência na habitação, nos termos do artigo 201.º do CPP.

4.ª A primeira circunstância inovadora – a institucionalização da ofendida no … - …, conforme despacho constante do sistema Citius com a referência … de 15.03.2021.

5.ª Facto, entre outros, que altera a ideia de perigo de continuação da atividade criminosa.

6.ª Segunda circunstância inovadora – O consentimento e apoio familiar de sua irmã MJSA a qual em caso de aplicação da medida de permanência na habitação, e que reside fora da do juízo local criminal de Abrantes, aceita acolher o arguido/recorrente na sua habitação propondo-se prestar todo o apoio social e legal necessário.

7.ª Não havendo, por isso, não só perigo da continuação da atividade criminosa como, também, perigo de fuga por o arguido passar a estar inserido familiarmente no agregado familiar de sua irmã.

8.ª Estas circunstâncias inovadoras justificam a aplicação do princípio da necessidade consagrado no artigo 193.º, n.º 1 do CPP em que o fim visado pela concreta medida de coação não pode ser obtido por um meio que onere os direitos do arguido.

9.ª A excecionalidade da prisão preventiva deve revestir uma proporção necessária ao acautelamento do perigo de fuga e ao perigo de continuação da atividade criminosa, que no presente caso pode ser perfeitamente obtida, em termos de objetivo, através da medida da permanência na residência.

10.ª E ainda, obtendo-se as demais obrigações, não só de afastamento do arguido da vítima, como também, do seu tratamento de patologia alcoólica, para o qual já deu o seu consentimento em sede de audiência de julgamento, e a que pode ser acrescentado frequência em programa de sensibilização e consciencialização para a problemática da violência doméstica.

11.ª E finalmente o apoio psiquiátrico aos seus problemas de saúde mental e/ou de saúde física.

12.ª Pelo que, em face do resumo supra exposto, a douta decisão que aplicou a medida de prisão preventiva ao arguido, violou o disposto nos artigos 193.º, 204.º, alíneas a) e c) e 212.º, todos do CPP, pela errada interpretação da sua aplicação.

13.ª Devendo, ao arguido se aplicada, a medida de permanência na habitação, artigo 201.º do CPP, por ser necessária, adequada e proporcional ao caso concreto, conjuntamente com a aplicação das medidas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de frequentar programa específico de prevenção de violência doméstica e ainda de tratamento para a problemática do álcool e das patologias de que padece o arguido/recorrente.

14.ª Em face do supra alegado e das conclusões proferidas, deverá ser revogada a medida de coação aplicada ao recorrente, de prisão preventiva, substituindo-a por medida de coação de permanência na habitação.

Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser revogada a medida de coação aplicada ao recorrente, de prisão preventiva, substituindo-a por medida de coação de permanência na habitação.»

3. O Ministério Público respondeu ao recurso, dizendo em síntese que:

- inexistem nos autos factos que demonstrem que o arguido dispõe de apoio e suporte familiar, uma vez que dos factos provados resultou o contrário;

– a institucionalização da vítima não se verificou, pelo que se mantêm inalterados os pressupostos que determinaram a aplicação daquela medida de coação;

- atenta a necessidade premente de proteger a vítima, ainda mais neste caso de extrema vulnerabilidade da mesma, somos do entendimento que bem andou o tribunal a quo ao determinar a prisão preventiva do arguido, porquanto é a medida necessária, adequada e proporcional às necessidades cautelar do caso concreto;

- a douta sentença não violou o disposto nos artigos 193.º e 204.º, alíneas a) e c) CPP;

- não há qualquer fundamento para revogar a douta decisão proferida.

4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público secundou a posição já sustentada na 1.ª instância, no sentido de o recurso não merecer provimento.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, o arguido não apresentou resposta.

6. Foi realizado o exame preliminar, os autos tiveram vistos e foram à conferência.

II – Fundamentação

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (2), estando suscitada uma só questão: se estão verificados os pressupostos da medida de coação aplicada ao recorrente (prisão preventiva).

1. Requisitos da alteração da medida de coação

De acordo com o disposto no artigo 194.º, § 1.º e 4.º CPP o juiz na fase de julgamento pode alterar a medida de coação, a qual implica, obrigatoriamente a audição do Ministério Público e do arguido, sendo que a falta de audição deste constitui nulidade, prevista no artigo 120.º, § 2.º, al. d) CPP.

Este dever de audição decorre dos princípios da imparcialidade, do contraditório e do processo equitativo, os quais têm assento normativo expresso nos artigos 2.º e 20.º, § 1.º e 4.º da Constituição, 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 41.º, § 1.º e 47.º, § 2.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (que constituem direito interno infraconstitucional, por força do disposto no artigo 8.º, § 2.º e 3.º da Constituição).

O processo equitativo é, por seu turno, uma decorrência do estado de direito, que pressupõe a efetividade dos direitos de defesa. Tem por corolário o acesso à jurisdição, pressupondo-se nesta os atributos de isenção (e confiança nessa isenção) face às partes, aos litígios e às paixões de toda a sorte.

Por sua vez o princípio do contraditório é um corolário da igualdade de todos perante a lei e, por força, das partes ou sujeitos processuais no processo, preconizando a possibilidade de estes poderem expor as suas razões antes de ser tomada decisão que os afete.

Vêm estas considerações a propósito de uma tramitação a vários títulos singular e, como se verá, vulneradora de direitos e garantias fundamentais pressupostas pelos princípios referidos, pois que, pese embora o presente recurso se reporte ao agravamento da situação coativa do arguido, oficiosamente determinada na fase de julgamento, não é indiferente para a análise que cumpre realizar o relato do que consta da sentença e da ata da última sessão de julgamento, no respeitante ao temário do recurso.

a) Da sentença:

Na pp. 25, a propósito do arbitramento de indemnização à ofendida, a Mm.a Juíza anuncia que irá prender preventivamente o arguido:

«(…) encontram-se inexoravelmente preenchidos os requisitos previstos neste regime, dado que a pena de prisão aplicada ao arguido e a aplicação da medida de coação de prisão preventiva colocam a vítima numa grave situação de carência económica, dado que só o arguido é que aufere rendimentos.»

Depois, na pp. 27, aludindo-se à necessidade de alterar a medida de coação a que o arguido se encontrava sujeito, diz-se que:

«aquando da sujeição do arguido à supra referida medida de coação, havia meros indícios da prática, pelos mesmos, de um crime de violência doméstica, atualmente, existe a certeza (o que é mais do que fortes indícios) da prática, em autoria material, dos factos constantes na acusação e de outros que entretanto se apurou em sede de audiência de julgamento, e que consubstanciam os elementos típicos de um crime de violência doméstica, pelo qual é condenado, nesta data, pela presente decisão, na pena de 3 (três) anos de prisão (…)»

A pp. 28, sob a epígrafe: «VIII - REVISÃO DA ESTATUTO PROCESSUAL DO ARGUIDO (MEDIDAS DE COAÇÃO)» consignou-se:

«O arguido encontra-se sujeito a termo de identidade e residência já prestado a fls. 55 dos presentes autos.

Está plenamente provado que o arguido não está inserido familiar, profissional e socialmente, não tem modo de vida definido, projetos sólidos para o futuro, nem pretende mudar o rumo da vida marginal que leva.

Por outro lado, se aquando da sujeição do arguido à supra referida medida de coação, havia meros indícios da prática, pelos mesmos, de um crime de violência doméstica, atualmente, existe a certeza (o que é mais do que fortes indícios) da prática, em autoria material, dos factos constantes na acusação e de outros que entretanto se apurou em sede de audiência de julgamento, e que consubstanciam os elementos típicos de um crime de violência doméstica, pelo qual é condenado, nesta data, pela presente decisão, na pena de 3 (três) anos de prisão.

Na verdade, realizado o julgamento, no qual foi ampla e solidamente apurada a factualidade, através da produção e discussão de toda a prova, com totais garantias e em pleno respeito pelo contraditório, o Tribunal tem um pleno convencimento sobre o efetivo cometimento, pelo arguido do grave crime pelo qual vai ser condenado.

Ao arguido acaba de ser aplicada uma pena de prisão efetiva pela prática de factos que constituem um crime de violência doméstica p. e p. artº 152º nº 1 al. b) e d), nº 2 do CP.

Conforme resulta da sentença que antecede, a conduta do arguido é grave e altamente perturbadora da vida da ofendida, nomeadamente em face dos factos 1 a 42, sendo muito provável que o arguido, perante a presente condenação inicie nova perseguição à ofendida, com quem vive maritalmente na mesma casa, podendo, inclusivamente, tentar tirar-lhe a vida, em face da sua postura adotada em julgamento e plasmada em ata de 28 de janeiro de 2021, a sua personalidade respaldada nos factos dados como provados em 43 a 51 e, essencialmente, por a vítima não ter capacidade intelectual de resistir às agressões (factos 26, 28, 29, 34 a 41). Tal perigo está agora potenciado pela aplicação de uma pena de prisão efetiva que poderá levar o arguido, atentas as características da sua personalidade, a intensificar e agravar a sua conduta em relação à ofendida.

É assim patente que existe perigo da continuação da atividade criminosa.

Mas, mais ainda, tem o Tribunal, neste momento, o pleno conhecimento dos completos contornos do grau de participação e do papel do arguido no cometimento do crime e uma perfeita noção sobre a respetiva personalidade avessa ao direito e modo de vida.

Para obstar a tal intenso perigo de continuação da atividade criminosa, o primeiro fortemente potenciado pela efetiva condenação na referida pena de prisão, nem sequer a simples obrigação de permanência na habitação (habitação que é a mesma que a vítima tem), ainda que vigiado eletronicamente, se revela suficiente.

Acresce que o arguido já sabia o teor dos factos considerados como provados, uma vez que foi notificado dos mesmos na última sessão de julgamento e na sessão agendada para a leitura, o arguido não compareceu à hora agendada, só se apresentando porque foi detido nos termos do art 116º, nº 2 do CPP.

Sem olvidar que o arguido, entretanto, mudou de residência e ainda não informou os autos, o que revela que não quer ser encontrado, pois tem a certeza da respetiva condenação. Todo este circunstancialismo leva a concluir que o arguido pretende eximir-se ao cumprimento da pena e, consequentemente, haver perigo de fuga, porquanto, pessoalmente notificado para o ato de leitura, o mesmo não compareceu, nem justificou a sua falta.

Pois na verdade, ninguém, razoavelmente, pode duvidar de que, o arguido condenado, na pena de 3 anos de prisão, não deixará de se sentir fortemente impelido a amedrontar a vítima, por a culpar do sucedido ou tentar-lhe tirar a vida.

Por outro lado, será gravemente perturbador da ordem e tranquilidade públicas, que alguém, como o arguido, que após ser condenado numa pena de prisão efetiva, por um crime de violência doméstica praticado ao longo de um tempo considerável tal como resulta dos factos provados e que, não obstante ser acusado e julgado, não aguardasse, em prisão preventiva, o trânsito em julgado da condenação. É que, só dessa forma, é possível repor na comunidade, o sentimento de segurança e tranquilidade.

Em suma, o que legitima a reapreciação da medida de coação são pois, não a decisão condenatória em si mesma, mas os factos típicos provados constantes desta decisão, a gravidade provada destes, a existência de um juízo de certeza sobre a culpa do agente na produção dos mesmos, tornando, assim, necessário o reexame da situação do arguido, para que fique sujeito às medidas de coação admissíveis e adequadas às exigências cautelares que o caso requer, neste momento e face a tal decisão (neste sentido: Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28/11/2006, proferido no nº 2525/06 da 1ª Secção Criminal, no processo comum coletivo nº 160/02.6JFLSB do 1º Juízo Criminal de Portimão).

O crime em causa, embora seja punido com pena de prisão até 5 anos, enquadra-se no âmbito da criminalidade violenta - artº 202º nº 2 al. b) e artº 1 al. j) do CPP.

É, por isso, possível a aplicação da medida de prisão preventiva.

Assim pelo exposto, nos termos dos artsº 191º, 193º, 202º nº1 al. b) e 204º al. a) a c) determino que o arguido aguarde os ulteriores trâmites processuais, nomeadamente trânsito em julgado da sentença, sujeito à medida de coação de prisão preventiva.» (este parágrafo encontra-se em negrito).

Anote-se que não se assinala qualquer incumprimento das obrigações da medida de coação vigente, porque nenhum houve. O foco situa-se no juízo de culpabilidade que acaba de ser feito e na pena aplicada.

b) Na ata da sessão da audiência em que foi lida a sentença consta o seguinte:

«(…)

De seguida, a Mm.ª Juíza de Direito procedeu à leitura da sentença, o que fez em voz alta.

*

Após a leitura da sentença e pela Mm.ª Juíza de Direito foi proferido o seguinte:

DESPACHO

Em face dos factos dados como provados na sentença, a sua personalidade atestada por perícia médico legal, bem como a incapacidade da vítima de resistir ao arguido e de o facto da vítima se encontrar numa situação de total vulnerabilidade, é entendimento do Tribunal alterar o estatuto coativo processual do arguido na presente diligência.

Pelo exposto, neste momento, confiro o direito ao contraditório quer ao M.P. quer ao arguido para se pronunciarem sobre a eventual aplicação de prisão preventiva, nos termos do disposto no are 202, n° 1 aI. d) do C.P.P.

Concedendo 15 minutos para o efeito.

Notifique.

(gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, da 14:39 às 14:39 horas).

*

Pelas 14:57 horas, retomou-se a audiência de julgamento e pela Mm." Juíza foi dada a palavra à Digna Magistrada do M.O P.O e à Ilustre Defensora do arguido para se pronunciarem sobre a eventual aplicação de prisão preventiva, nos termos do disposto no art.º 202, nº 1 al, d) do C.P.P ..

(gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, da 14:58 às 15:06 horas).

*

Pelo Ilustre Patrono da ofendida foi dito subscrever a douta promoção e o requerido pela Ilustre Defensora do arguido.

*

Após, pela Mm.ª Juiza foi proferido seguinte

DESPACHO

O arguido encontra-se sujeito a termo de identidade e residência já prestado a fls, 55 dos presentes autos.

Está plenamente provado que o arguido não está inserido familiar, profissional e socialmente, não tem modo de vida definido, projetos sólidos para o futuro, nem pretende mudar o rumo da vida marginal que leva.

Por outro lado, se aquando da sujeição do arguido à supra referida medida de coação, havia meros indícios da prática, pelos mesmos, de um crime de violência doméstica, atualmente, existe a certeza (o que é mais do que fortes indícios) da prática, em autoria material, dos factos constantes na acusação e de outros que entretanto se apurou em sede de audiência de julgamento, e que consubstanciam os elementos típicos de um crime de violência doméstica, pelo qual é condenado, nesta data, pela presente decisão, na pena de 3 (três) anos de prisão.

Na verdade, realizado o julgamento, no qual foi ampla e solidamente apurada a factualidade, através da produção e discussão de toda a prova, com totais garantias e em pleno respeito pelo contraditório, o Tribunal tem um pleno convencimento sobre o efetivo cometimento, pelo arguido do grave crime pelo qual vai ser condenado.

Ao arguido acaba de ser aplicada uma pena de prisão efetiva pela prática de factos que constituem um crime de violência doméstica p. e p. artº 152º nº 1 al, b) e d), n° 2 do CP.

Conforme resulta da sentença que antecede, a conduta do arguido é grave e altamente perturbadora da vida da ofendida, nomeadamente em face dos factos 1 a 42, sendo muito provável que o arguido, perante a presente condenação inicie nova perseguição à ofendida, com quem vive maritalmente na mesma casa, podendo, inclusivamente, tentar tirar-lhe a vida, em face da sua postura adotada em julgamento e plasmada em ata de 28 de janeiro de 2021, a sua personalidade respaldada nos factos dados como provados em 43 a 51 e, essencialmente, por a vítima não ter capacidade intelectual de resistir às agressões (factos 26, 28,29,34 a 41). Tal perigo está agora potenciado pela aplicação de uma pena de prisão efetiva que poderá levar o arguido, atentas as características da sua personalidade, a intensificar e agravar a sua conduta em relação à ofendida.

É assim patente que existe perigo da continuação da atividade criminosa.

Mas, mais ainda, tem o Tribunal, neste momento, o pleno conhecimento dos completos contornos do grau de participação e do papel do arguido no cometimento do crime e uma perfeita noção sobre a respetiva personalidade avessa ao direito e modo de vida.

Para obstar a tal intenso perigo de continuação da atividade criminosa, o primeiro fortemente potenciado pela efetiva condenação na referida pena de prisão, nem sequer a simples obrigação de permanência na habitação (habitação que é a mesma que a vítima tem), ainda que vigiado eletronicamente, se revela suficiente.

Acresce que o arguido já sabia o teor dos factos considerados como provados, uma vez que foi notificado dos mesmos na última sessão de julgamento e na sessão agendada para a leitura, o arguido não compareceu à hora agendada, só se apresentando porque foi detido nos termos do art 116°, nº 2 do CPP. Sem olvidar que o arguido, entretanto, mudou de residência e ainda não informou os autos, o que revela que não quer ser encontrado, pois tem a certeza da respetiva condenação. Todo este circunstancialismo leva a concluir que o arguido pretende eximir-se ao cumprimento da pena e, consequentemente, haver perigo de fuga, porquanto, pessoalmente notificado para o ato de leitura, o mesmo não compareceu, nem justificou a sua falta.

Pois na verdade, ninguém, razoavelmente, pode duvidar de que, o arguido condenado, na pena de 3 anos de prisão, não deixará de se sentir fortemente impelido a amedrontar a vítima, por a culpar do sucedido ou tentar-lhe tirar a vida.

Por outro lado, será gravemente perturbador da ordem e tranquilidade públicas, que alguém, como o arguido, que após ser condenado numa pena de prisão efetiva, por um crime de violência doméstica praticado ao longo de um tempo considerável tal como resulta dos factos provados e que, não obstante ser acusado e julgado, não aguardasse, em prisão preventiva, o trânsito em julgado da condenação. É que, só dessa forma, é possível repor na comunidade, o sentimento de segurança e tranquilidade.

Em suma, o que legitima a reapreciação da medida de coação são pois, não a decisão condenatória em si mesma, mas os factos típicos provados constantes desta decisão, a gravidade provada destes, a existência de um juízo de certeza sobre a culpa do agente na produção dos mesmos, tornando, assim, necessário o reexame da situação do arguido, para que fique sujeito às medidas de coação admissíveis e adequadas às exigências cautelares que o caso requer, neste momento e face a tal decisão (neste sentido: Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28/11/2006, proferido no n° 2525/06 da 1ª Secção Criminal, no processo comum coletivo nº 160/02.6JFLSB do 1° Juízo Criminal de Portimão).

O crime em causa, embora seja punido com pena de prisão até 5 anos, enquadra-se no âmbito da criminalidade violenta – artº 2020 n° 2 al. b) e artº 1 al. j) do CPP.

É, por isso, possível a aplicação da medida de prisão preventiva.

Assim pelo exposto, nos termos dos arts.º 191º, 193º, 202º nº 1 al. b) e 204º al. a) a c) determino que o arguido aguarde os ulteriores trâmites processuais, nomeadamente trânsito em julgado da sentença, sujeito à medida de coação de prisão preventiva.»

Quer a sentença quer a ata da sessão da audiência são documentos autênticos, pelo que nenhuma dúvida se suscita relativamente à tramitação que deles resulta, a qual, em síntese, foi a seguinte:

- sem que houvesse violação de qualquer das obrigações coativas vigentes a Mm.a Juíza decidiu alterar a medida de coação na sentença (o que fez), porque o arguido foi condenado numa pena de prisão efetiva;

- na sessão da audiência marcada para leitura da sentença, leu-a (nela constando o que se deixou extratado);

- e seguidamente comunicou aos sujeitos processuais que entendia dever alterar a medida de coação; e, aludindo ao «contraditório», deu a palavra ao Ministério Público e ao arguido para «se pronunciarem sobre a eventual aplicação de prisão preventiva»;

- depois proferiu despacho, pelo qual sujeitou o arguido à medida de coação de prisão preventiva.

Em suma: deu a palavra ao Ministério Público e ao arguido para se pronunciarem sobre uma decisão já tomada (já constante da sentença lida nos instantes anteriores), lavrando de seguida nova decisão!

Esta assentou numa alegada «certeza» da culpabilidade (que o não é efetivamente porquanto a decisão condenatória era recorrível - como foi), dali resultando na prática que a alteração do estatuto coativo do arguido serviu apenas para antecipação do cumprimento de pena relativamente a condenação não transitada em julgado!

A nulidade supra referida não foi suscitada (artigo 120.º, § 2.º, al. d) CPP), razão pela qual este tribunal não pode dela conhecer, mas o lastro que se deixou expresso é de referência obrigatória, pois torna mais clara a total falta de fundamento de toda a decisão sobre a aplicação da prisão preventiva ao arguido, como se verá.

A decisão recorrida a que nos reportamos é, claro está, necessariamente, a que consta da ata da audiência, uma vez que do ponto de vista formal a «determinação» feita no § 7.º da página 28 da sentença não foi levada ao «dispositivo» (que é o lugar próprio para a afirmação das decisões tomadas pelo tribunal).

2. Requisitos da prisão preventiva

A Constituição erigiu o direito à liberdade como direito fundamental (artigo 27.º, § 1.º), em harmonia com o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da Constituição), estatuindo que tal direito apenas poderá ser restringido na medida do necessário, em face de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (artigo 18.º, § 2.º da Constituição).

A par do direito à liberdade a Constituição afirma também o princípio da presunção de inocência dos arguidos (artigo 32.º, § 2.º e 27.º, § 1.º) (3), sem prejuízo de admitir (de prever a existência de) as medidas de coação, as quais constituem, necessariamente, uma restrição à liberdade pessoal de quem a elas é sujeito, tendo por finalidade satisfazer exigências cautelares exclusivamente processuais (i. e. garantia do bom andamento do processo e o efeito útil da decisão final).

Mas justamente porque incidem sobre pessoas presumivelmente inocentes, a sua aplicação deve revestir-se das devidas cautelas, sendo essa a razão pela qual estão sujeitas a estritas prescrições de legalidade (ou tipicidade), de necessidade, de adequação e de proporcionalidade, princípios estes que deverão orientar todas as decisões judiciais que lhes respeitem.

A aplicação das medidas de coação pressupõe, desde logo, a verificação de um fumus comissi delicti, isto é, de um juízo de indiciação da prática de crime, visando satisfazer exigências cautelares exclusivamente processuais, que resultem da verificação, em concreto, de algum dos perigos - pericula libertatis - previstos nas alíneas do artigo 204.º do CPP (com exceção do Termo de Identidade e Residência). Com o que vale dizer ser ilegítima qualquer outra finalidade que se lhes queira assacar, de natureza substantiva, retributiva, preventiva, ou mesmo de proteção do arguido (contra reações populares p. ex.) (4).

No que especialmente concerne à prisão preventiva, justamente por ser a que mais fortemente restringe a liberdade das pessoas, só pode ser aplicada quando, para acautelar as referidas necessidades processuais, as outras medidas legalmente previstas se revelarem inadequadas ou insuficientes, prevendo a lei (artigo 202.º, § 1.º do CPP) que só possa aplicar-se quando:

«a) houver fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão com máximo superior a 5 anos;

b) houver fortes indícios de prática de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta;

c) houver fortes indícios de prática de crime doloso de terrorismo ou que corresponda a criminalidade altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;

d) houver fortes indícios de prática de crime doloso de ofensa à integridade física qualificada, furto qualificado, dano qualificado, burla informática e nas comunicações, recetação, falsificação ou contrafação de documento, atentado à segurança de transporte rodoviário, puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;

e) houver fortes indícios da prática de crime doloso de detenção de arma proibida, detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias em locais proibidos ou crime cometido com arma, nos termos do regime jurídico das armas e suas munições, puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;

f) se tratar de pessoa que tiver penetrado ou permaneça irregularmente em território nacional, ou contra a qual estiver em curso processo de extradição ou de expulsão»;

e se verifique algum (qualquer um) dos perigos previstos no artigo 204.º do CPP (5):

«a) Fuga ou perigo de fuga;

b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou

c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.»

Aqueles princípios e estes requisitos são inteiramente aplicáveis ao crime de violência doméstica, sem qualquer exceção nem favor.

O conceito de «fortes indícios» da prática de certo tipo de ilícitos, como requisito da prisão preventiva, aponta para um grau de medida de consistência probatória geradora de uma forte probabilidade de condenação do arguido.

Figueiredo Dias e Nuno Brandão (6) referem que o legislador terá considerado «que um juízo indiciário desta natureza implica para o juiz que as aplica um convencimento positivo de tal modo intenso sobre a existência de indícios da culpabilidade do arguido que deixa ele de poder ser visto como estando plenamente capaz de decidir a causa, em julgamento ou recurso, sem uma predisposição no sentido da condenação.» Haverá, pois, fortes indícios da prática de uma infração criminal quando se encontra sólida e inequivocamente comprovada a existência do ilícito e ocorrem suspeitas sérias, precisas e concordantes da sua imputação ao arguido (7).

Os autos – e em particular a sentença já proferida - indiciam inequívoca e fortemente a autoria, pelo arguido VA, de um crime de violência doméstica agravado, previsto no artigo 152.º, § 1.º e 2.º CP. De tal modo que o próprio tal não questiona, propondo, aliás, que lhe seja aplicada (em vez da prisão preventiva) a medida de coação de permanência na habitação, prevista no artigo 201.º CPP, conjuntamente com «as medidas de proibição de contacto com a vítima, de frequentar programa específico de prevenção de violência doméstica e ainda de tratamento para a problemática do álcool e das patologias de que padece o arguido/recorrente»!

Não obstante a forte indiciação da prática do referido ilícito, importará clarificar que a afirmação de que «atualmente existe a certeza (o que é mais do que fortes indícios) da prática, em autoria material dos factos constantes da acusação e de outros que entretanto se apurou em sede de audiência de julgamento (…)» não encontra esteio na lei enquanto fundamento para rever a situação coativa, muito menos para a aplicação da prisão preventiva e consequente antecipação do cumprimento da pena.

A presunção de inocência (artigo 32.º, § 2.º da Constituição) não permite que à condenação não transitada em julgado seja reconhecido qualquer atributo, que só por si, arrede aquele direito fundamental. Valerá apenas como forte indiciação da prática do facto ilícito. Nada mais.

No recurso interposto o arguido/recorrente o que questiona é a existência dos perigos que se invocam na decisão recorrida, bem assim como o juízo sobre a necessidade, a adequação e a proporcionalidade da prisão preventiva neste caso concreto.

Vejamos, então, quais foram os fundamentos em que se estribou o despacho recorrido para se concluir pelo preenchimento dos requisitos legais de aplicação da prisão preventiva.

Teve-se em consideração o concreto crime cuja prática fortemente se indicia, cuja moldura abstrata é de 2 a 5 anos de prisão, sendo o mesmo considerado pela lei como crime «violento» (artigo 202.º, § 2.º, al. b) e artigo 1.º, al. j) ambos do CPP), admitindo-se nesses casos, sendo inadequadas ou insuficientes as demais medidas de coação previstas na lei, que possa ser aplicada a prisão preventiva.

Entendeu-se haver perigo concreto de continuação da atividade criminosa, porquanto, como se diz no despacho recorrido, o arguido vive maritalmente com a ofendida, na mesma casa, e o facto de se saber condenado numa pena de prisão, conjugado com a sua personalidade violenta, poderá levá-lo a intensificar e agravar a sua conduta em relação à ofendida.

Surpreende-se, porém, que este alegado «perigo» assenta sobre uma suposta realidade que não existe efetivamente, porquanto, conforme consta do próprio despacho recorrido, o arguido já tratou de estabelecer residência noutra casa. Mais mostram os autos (a sentença) que se encetaram diligências para lograr o acolhimento institucional da ofendida, que dele é bem precisada, em razão das suas concretas circunstâncias e imperiosa necessidade social, que extravasam a relação more uxorio com o arguido.

Refere a sentença (com menção da numeração dos factos julgados provados):

«a vítima sofre de debilidade mental moderada (17); não sabe ler nem escrever (33); não aufere qualquer rendimento, dependendo economicamente do arguido (22); não sabe cozinhar (23); não sabe ver as horas, não sabe que idade tem, nem em que dia nasceu (25); é incapaz de [por si só] realizar de forma organizada e programada as tarefas do quotidiano (26); é incapaz de raciocínio lógico abstrato (37); carece de orientação social (32); aparenta humor com tonalidade depressiva (35); tem dificuldade em expressar ideias (…) e incapacidade de abstração (36); é vulnerável ao stress, com características de pouca capacidade autoafirmativa, com incapacidade em confrontar e resolver problemas (39); manifesta dependência funcional, carência de apoio social, condições de vida adversas, carência de afeto e rejeição (38); apresenta sintomatologia depressiva moderada (40); a patologia de que sofre não é passível de terapêutica médica (31).»

Ora, os perigos a que se reporta o artigo 204.º do CPP têm de ter uma dimensão concreta e razoável, sob pena de poderem ser invocados em todos os casos, não sendo isso compaginável com a conceção de um Estado de Direito Democrático, baseado no respeito e na garantia dos direitos, liberdades e garantias fundamentais (artigo 2.º da Constituição), consagrados em preceitos que são de aplicabilidade direta (artigo 18.º, § 1.º da Constituição).

No caso do perigo de continuação da atividade criminosa tem-se em vista a continuação da prática de crimes da mesma espécie e natureza dos que se indiciam no processo em que se faz essa avaliação, para o que se deverá valorizar a natureza e circunstâncias relativas ao crime em causa e sua conexão com a atividade futura do arguido.

No contexto referido este alegado perigo pura e simplesmente não existe, desde logo em decorrência da separação física e de convivência dos envolvidos (arguido e vítima). O mais que se disse sobre este alegado perigo são meras conjeturas, de cariz estritamente subjetivo, que não resistem a um escrutínio minimamente rigoroso, por não encontrar nenhuma aderência à realidade.

Nas concretas circunstâncias deste caso, designadamente porque cessou a coabitação entre o arguido e a ofendida (decorrente das circunstâncias referidas supra), deverão as instituições da comunidade (do Estado ou do setor social) assegurar elas próprias a proteção da vítima – tendo-se já encetado as diligências necessárias para a sua mobilização -, não especialmente (ou apenas) por causa do crime, mas porque as fragilidades naturais da ofendida assim o exigem.

Do mesmo modo, pretender que o arguido mudou de residência, sem ter informado o tribunal (obrigação decorrente do Termo de Identidade e Residência), e que isso, com o conhecimento de se saber condenado numa pena de prisão efetiva, evidenciaria uma pretensão de se «eximir ao cumprimento da pena», e logo, perigo de fuga, é descolar completamente da realidade.

Desde logo a simples condenação sem trânsito em julgado não constitui, só por si, perigo de fuga. Como o não constituiu a dedução da acusação, peça em que já haviam sido descritos os factos ilícitos e se imputava a prática do crime, donde resulta a possibilidade de condenação numa pena concreta dentro da moldura legal respetiva.

O mesmo se diga relativamente à falta do arguido à sessão da audiência marcada para a leitura da sentença, explicável pelas circunstâncias pessoais deste, bem retratadas na sentença: «é portador de debilidade mental ligeira e de dependência de álcool (43); não frequentou a escola, não sabendo ler, nem escrever (61); não desenvolve qualquer atividade estruturada, passando os dias com a companheira a frequentar cafés da zona (47); pontualmente arranja biscates em trabalhos indiferenciados na área da agricultura ou da construção civil, auferindo nessas alturas 5€ à hora; beneficia de uma pensão de invalidez que ronda os 270€ mensais (60); carece de orientação para tratamento médico especializado (46).» Não sendo razoável nem legítimo retirar dessa falta qualquer intenção de fuga, pois maiores são as dúvidas sobre se ele teria plena consciência do dever de presença. Ter-lhe-ão sido lidos e explicados os deveres constantes do Termo de Identidade e Residência? É que levar para casa um papel em que se desenhou a assinatura quando se não sabe ler, de nada serve!

Seguro é que ordenada a sua detenção para ser presente à audiência o arguido foi prontamente encontrado e conduzido a juízo.

A lei não presume o perigo de fuga nem se basta com uma mera probabilidade de fuga deduzida de abstratas e genéricas presunções (v.g., da «gravidade do crime»). Pelo contrário, exige que tal perigo se estribe «em elementos de facto que o indiciem concretamente, nomeadamente a personalidade do arguido, a sua situação financeira, a sua situação familiar, profissional e social, eventuais ligações a países estrangeiros, indicando factos concretos que revelem a intenção ou facilidade do arguido se pôr em fuga e eximir-se à ação da justiça por essa via.» (8)

Claro que para existência do perigo de fuga não tem de estar em vista uma fuga já planeada ou iminente, aferindo-se essa possibilidade com base nas circunstâncias concretas do caso, tal como constam dos autos, relativas ao arguido e à sua vida (à sua idade, situação profissional, económica, familiar, social, etc.), avaliando esse conjunto circunstancial, sem pré-juízos, com os ditames da experiência comum.

Neste caso a demonstração da insustentabilidade de tal perigo evidencia-se no próprio processo (em decorrência das condições pessoais do arguido e da sua precária capacidade de ação), evidenciando-se também no próprio dia da prolação do despacho recorrido, quando o arguido foi facilmente encontrado nos espaços cuja frequência lhe é conhecida (ver factos provados da sentença). Não havendo, por conseguinte, nenhum sinal de fuga nem estribo minimamente suspeito do alegado perigo de fuga.

O outro dos fundamentos alinhados é o da existência de perigo para a ordem e tranquilidade públicas, expresso do modo seguinte: «será gravemente perturbador da ordem e tranquilidade públicas que alguém, como o arguido, condenado numa pena de prisão efetiva por crime de violência doméstica praticado ao longo de um período considerável tal como resulta dos factos provados e que, não obstante ser acusado e julgado, não aguardasse, em prisão preventiva o trânsito em julgado da condenação.»

Contrariamente ao que assim se sustenta, o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas tem de fundar-se em factos dos quais se infira que a liberdade do arguido é potencialmente geradora de tal perturbação. Reporta-se, necessariamente, a previsível comportamento do arguido no futuro imediato, resultante da sua postura ou atividade, e não ao crime por ele indiciariamente cometido nem à reação que possa gerar-se na comunidade (9).

Tudo, pois, ao contrário do que se considerou na decisão recorrida.

O despacho recorrido não aponta um único lampejo com escora na realidade concreta relativamente a este alegado perigo, cingindo-se a abstrações e preconceitos. A serem as coisas como ali se preconiza a prisão preventiva passaria de exceção a regra em todos os casos em que um agressor por crime de violência doméstica fosse condenado em pena de prisão efetiva!

Claro está que o quadro constitucional não só não o permite como o não tolera, pois que a liberdade é que está erigida como direito fundamental; sendo a possibilidade da prisão preventiva excecional e subsidiária (artigos 27.º e 28.º da Constituição) (10).

Daí que a prisão preventiva nunca logre justificação quando se afasta das finalidades processuais (garantia do bom andamento do processo; efeito útil da decisão final), à semelhança do que sucede com as demais medidas de coação (11).

De igual modo também se mostra intolerável que a prisão preventiva possa ser utilizada para fins de prevenção geral ou de prevenção especial, como se fora (ou pudesse ser) uma espécie de antecipação de pena, conforme a doutrina bastamente vem assinalando (12).

Decorre do artigo 212.º CPP, de acordo com o princípio do processo equitativo (artigo 20.º, § 4.º da Constituição), o entendimento que está desde há muito sedimentado na jurisprudência dos tribunais superiores, de que em matéria de alteração das medidas de coação vigora a condição rebus sic stantibus, que preconiza uma tendencial estabilidade das mesmas, as quais só devem merecer alteração «quando se tenha verificado uma alteração relevante das circunstâncias, em sentido lato, que tenham dado origem à sua decretação» (13).

Como é bom de ver, apesar do muito esforço em sustentar-se o contrário, por ocasião do despacho impugnado não havia razão - como não há hoje - para alterar a medida de coação que vinha vigorando.

Com efeito a única alteração ocorrida no dia da leitura da sentença foi o conhecimento da condenação. Mas esta, só por si, não constitui fundamento bastante para agravar a situação coativa do arguido.

Como nada de concreto surgiu que tenha alterado significativamente as necessidades cautelares diagnosticadas anteriormente, deverá voltar-se ao status quo ante, sem prejuízo de perante qualquer alteração (real) das circunstâncias poder vir a aplicar-se medida de coação que se mostre necessária, adequada e proporcionada para assegurar as finalidades do processo, designadamente o cumprimento da pena. Ou, dadas as especiais fragilidades vítima, sobrevindo perigo de continuação da atividade criminosa, garantir a sua segurança e tranquilidade.

As razões de direito que se deixaram expostas, respeitantes à ilegalidade da medida de coação impugnada, prejudicam naturalmente a alternativa proposta pelo arguido no seu recurso.

Se bem que, ainda se dirá, nunca este tribunal de recurso poderia valorar factos e fundamentos que não foram apresentados ao tribunal de 1.ª instância (alteração das circunstâncias da vítima e condições supervenientes para cumprimento de obrigação de permanência na habitação de terceiro). Nem ainda, por força do princípio da tipicidade das medidas de coação, poderia aplicar penas acessórias como medidas de coação, conforme vem proposto pelo recorrente!

Em suma, nos termos que se deixaram expostos, consideramos que a decisão recorrida não respeitou os critérios definidos na Constituição e na lei, a que se referem nomeadamente os artigos 18.º, § 2.º, 27.º, 28.º, § 2.º e 32.º, § 2.º da Constituição, 191.º, § 1.º, 193.º, § 1.º e 2.º e 204.º, als. a) e c) do CPP, pelo que não poderá manter-se.

III - DECISÃO

Destarte e por todo o exposto, no provimento do recurso, decide-se:

a) revogar a medida de coação de prisão preventiva que foi aplicada nestes autos ao arguido VMSA;

b) ordenar, em consequência, a sua imediata libertação (exceto se a prisão deva manter-se por outro processo), para o que deve ser emitido o competente mandado de libertação imediata com aquela menção;

c) manter o arguido sujeito às obrigações decorrentes do Termo de Identidade e Residência, as quais lhe deverão ser explicadas verbalmente, em razão das insuficiências de compreensão - que são patentes.

d) Sem custas (artigo 513.º, § 1.º CPP (a contrario).

Comunique de imediato ao tribunal recorrido, independentemente do trânsito em julgado da presente decisão.

Évora, 8 de junho de 2021

J. F. Moreira das Neves (relator)

José Proença da Costa