TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
Sumário

Uma condenada que, notificada pessoalmente para colaborar com o tribunal, nada faz, não está em condições legais de usufruir da substituição da pena de multa fixada por dias de trabalho em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou ainda de instituições particulares de solidariedade social, uma vez que, em concreto, essa forma de cumprimento não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - Relatório.

No Juízo Local Criminal de Faro (J3) do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, corre termos o processo sumário n.º 146/16.3PTFAR, no qual, por sentença transitada em julgado em 08.06.2017, foi ARPC condenada, pela prática, em 29.08.2016, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 292.°, 1 e 69.°, 1, a), ambos do Código Penal, na pena de 50 dias de multa, à razão diária de € 5,00 e, bem assim, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses e 15 dias.

Nesses autos foi, no dia 29.11.2020, proferido despacho judicial, onde se decidiu: “Por todo o exposto, ao abrigo do que se dispõe no art. 48.°, 1, a contrario, do Código Penal, decido indeferir a requerida substituição da multa por trabalho a favor da comunidade.”

Inconformada, a arguida interpôs recurso de tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“I - Até hoje, desde que transitou em julgado a sentença condenatória, não houve nenhum acto que o Tribunal não tenha conseguido notificar validamente a Recorrente. Logo, se o Tribunal conseguiu, por maioria de razão teria conseguido também a DGRSP ... se tivesse vontade.

II - Por outro lado, a DGRSP nunca se preocupou em notificar a Condenada de coisa nenhuma, por qualquer forma legalmente admissível... nem o defensor! Por conseguinte.

III - É por demais manifesto que a morada do TIR nada tem que ver com a possibilidade de prestação de trabalho a favor da comunidade, nem se vislumbra dos autos qualquer impedimento legalmente admissível à substituição da pena de multa.

IV - Seguramente só por manifesto e infeliz lapso na análise da documentação comprovativa das tentativas de notificação da Condenada, é que a Mm.ª Juiz a quo decidiu não substituir a pena de multa por, imagine-se, "falta de colaboração" da Condenada ... que nunca foi validamente notificada para coisa nenhuma.

V - Não está previsto em lado nenhum no nosso ordenamento jurídico, nem podia estar à luz do artigo 13.º da CRP, que estivesse vedado a não residente em território nacional a possibilidade de substituição da pena de multa por PTFC. Até esta grosseira violação do princípio da igualdade vem violado pelo Tribunal a quo.”

Termina pedindo:

“Assim, nos termos das razões e fundamentos supra apontados, nos demais termos da lei (...), deverá ser revogado o douto despacho (...), substituindo-se por outro que determine que a DGRSP proceda à notificação da Condenada e do seu defensor, por forma prevista no CPP - e não na forma que apeteça à DGRSP - no sentido da condenada poder ser ouvida quanto ao modo como poderá prestar trabalho a favor da comunidade. Ou seja, que se revogue a decisão que considerou de impossível o cumprimento de PTFC.”

O recurso foi admitido.

O MP na 1.ª instância respondeu ao recurso, concluindo do seguinte modo (transcrição):

“1. Resulta das informações juntas aos autos pelos serviços de reinserção social que a arguida/recorrente foi notificada via postal para comparecer com vista à elaboração do plano de prestação de trabalho (requerido em substituição da pena de multa), e foi tentado o seu contacto pessoal tendo sido deixada convocatória, não tendo comparecido nem justificado a sua falta;

2. A arguida foi pessoalmente notificada (bem como a sua Ilustre defensora) para justificar os motivos da falta de comparência nos serviços de reinserção social, no entanto, nada disse nos autos, nem contactou ou compareceu nos referidos serviços, demonstrando total falta de colaboração e desinteresse;

3. Pelo que, a decisão de indeferimento da requerida substituição da pena de multa por trabalho não só se justifica como era a que se impunha, em face do disposto no art. 48º, do C.P;

4. Os fundamentos do recurso mostram-se de manifesta improcedência, devendo ser rejeitado, nos termos do disposto no art. 420º, nº1, al. a), e nºs 2 e 3, do C.P.P., devendo a decisão ser mantida, na íntegra.”

O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação deu parecer no sentido de que o recurso interposto deve ser julgado improcedente.

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“Por requerimento datado de 18 de janeiro de 2019, veio a condenada, através da sua Ilustre Mandatária, requerer a substituição da multa por trabalho a favor da comunidade.

O Ministério Público manifestou a sua não oposição ao deferimento do requerido, tendo sido determinado, por despacho que faz fls, 192 a 193, datado de 23 de janeiro de 2019, que se oficiasse à Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais solicitando a prestação das informações a que alude o n.º 2 do art. 490.° do Código de Processo Penal.

Em 30 de abril e 23 de maio de 2019 veio a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais informar nos autos que havia remetido convocatórias à condenada, com vista à realização do plano inerente à substituição da multa por trabalho a favor da comunidade, nunca tendo a mesma comparecido nos seus Serviços – fls. 211 e 216.

Tendo-se constatado que a condenada nunca comunicara a estes autos a alteração da morada que fornecera para efeito de notificações [na Suíça e da qual, conforme acima se disse, há muito se mudou], foi determinada a sua notificação por contacto pessoal com o Órgão de Polícia Criminal para que, em dez dias, esclarecesse o seu não comparecimento na Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais. Mais foi ordenado que a condenada fosse informada de que tem o dever de informar nos autos a alteração de morada operada, sendo que a sua omissão traduz a violação das obrigações decorrentes do Termo de Identidade e Residência. Foi, por fim, determinado que, se a mesma declarasse pretender indicar nova morada para efeito de notificações (que não a que indicou em sede de audiência de julgamento), deveria ser-lhe tomado novo Termo de Identidade e Residência - cfr. despacho de fls. 224 a 225.

A notificação em referência foi efetuada no dia 06 de maio de 2020 (fls. 229 a 229-verso).

Decorrido o prazo aí concedido à condenada e nada tendo a mesma consignado nos autos - não tendo, igualmente, cooperado com o Tribunal, fazendo indicação, mormente através da prestação de novo Termo de Identidade e Residência e conforme era seu dever, de nova morada para efeito de notificações - foi a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais oficiada para que indicasse se ARPC comparecera nos seus Serviços ou estabelecera contacto com os mesmos após o dia 06 de maio de 2020.

Pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais foi informado, em 23 de outubro último, que a condenada não contatara nem comparecera nos seus Serviços, mormente após 06 de maio de 2020 – fls. 238.

Foi, concomitantemente, ARPC notificada, na pessoa da sua Ilustre Mandatária para, em 5 dias e cumprindo as obrigações do Termo de Identidade e Residência a que se encontra sujeita, indicar nos autos, em requerimento assinado pelo seu punho [da condenada], morada em Portugal (e em local onde tenha recetáculo postal onde possa ser regularmente depositada a correspondência), sob pena de, não o fazendo, ser indeferida a sua pretensão de substituição da multa por trabalho a favor da comunidade.

A condenada, até ao presente, nada fez.

Importa decidir.

Sob a epígrafe "Substituição da multa por trabalho", estabelece o n.º 1 do art. 48.° do Código Penal que "a requerimento do condenado, pode o tribunal ordenar que a pena de multa fixada seja total ou parcialmente substituída por dias de trabalho em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas coletivas de direito público, ou ainda de instituições particulares de solidariedade social, quando concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição".

Conclui-se, pois, da formulação legal que, para haver deferimento da substituição da multa por trabalho, é necessário que possa concluir-se, em cada caso, que essa forma substitutiva de cumprimento da pena realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição - a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do arguido na sociedade (art. 40.° do Código Penal).

Ora, conforme flui do acima exposto, verifica-se que ARPC foi condenada em pena de multa, nos presentes autos, por sentença que transitou em julgado em 08 de junho de 2017; apenas em 18 de janeiro de 2019 veio, através da sua Ilustre Mandatária, requerer a substituição da multa por trabalho a favor da comunidade, mostrando-se, pois, manifestamente ultrapassado o prazo legal previsto no art. 489.°, 1 e 2, ex vi do art. 490.°, 1, ambos do Código de Processo Penal; não obstante, pela Mm.º Juiz que então tramitava os autos, foi decidido - dando a oportunidade à condenada de poder, ainda, cumprir a pena em horas de trabalho, conforme a mesma disse pretender fazer - solicitar à Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais as informações a que alude o art. 490.°, 2, do referido código; todavia, quase dois anos volvidos sobre a data em que formulou o aludido requerimento, a condenada não só não contactou a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (com vista, desde logo, a lograr pro activamente o agendamento da necessária entrevista, já que persiste em manter, para efeito de notificações, uma morada na Suíça, onde não reside desde, pelo menos, outubro de 2017 - cfr. fls. 113) como, pessoalmente notificada para, em 10 dias, esclarecer nos autos o motivo do seu alheamento, nada consignou, nem sequer havendo colaborado no sentido de fornecer, nos autos, morada onde pudesse ser notificada através de correio simples com prova de depósito (nem quando foi notificada através de Órgão de Polícia Criminal para o efeito, nem quando o foi na pessoa da sua Ilustre Mandatária, não obstante ter sido advertida do que já sabia: que estava a incumprir os deveres decorrentes do Termo de Identidade e Residência a que se encontra adstrita até à extinção da pena).

A postura da condenada e a personalidade que a mesma evidencia não são, pois, de todo em todo, compatíveis com a formulação de qualquer juizo de prognose favorável à aplicação da pena substitutiva de prestação de trabalho a favor da comunidade, sendo manifesto que ARPC não tem qualquer verdadeira intenção de cumprir a pena que lhe foi imposta, sendo o requerimento que apresentou em 18 de janeiro de 2019 tão-somente um meio de protelar a execução da sanção penal que lhe foi aplicada.

A condenada permanece, aliás, alheada da necessidade de cumprir a pena, alheada da imperatividade de comunicar ao Tribunal uma nova morada para efeitos de notificações, sabendo que há mais de 3 anos não reside na que indicou, na Suíça, alheada da necessidade de responder às notificações do Tribunal (ainda quando interpelada mediante contacto pessoal com Órgão de Polícia Criminal) e alheada de, após tais notificações, pro activamente, estabelecer contacto com a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais com vista a agendar a entrevista que permitiria a elaboração das informações necessárias à decisão do requerimento que a mesma formulou.

Ora, tal total alheamento não é compatível com a requerida substituição da multa por trabalho a favor da comunidade, concluindo-se que a mesma não realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Com efeito, a substituição da pena de multa por prestação de trabalho (que a condenada, aliás, inviabilizou, nos termos acima referidos) não terá, in casu, desde logo, a virtualidade de consciencializar ARPC da necessidade de alterar a sua postura - adequando a sua conduta ao cumprimento das normas vigentes na comunidade onde se insere.

Por todo o exposto, ao abrigo do que se dispõe no art. 48.°, 1, a contrario, do Código Penal, decido indeferir a requerida substituição da multa por trabalho a favor da comunidade.”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (artigo 412.º do CPP), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

A questão (única) a decidir no presente recurso é a seguinte: Estão ou não preenchidos os requisitos legais que permitem substituir a pena de multa aplicada por trabalho a favor da comunidade?

B. Decidindo.

Questão - Estão ou não preenchidos os requisitos legais que permitem substituir a pena de multa aplicada por trabalho a favor da comunidade?

Segundo o art.º 48.º (epigrafado substituição da multa por trabalho), n.º 1 do CP, a requerimento do condenado, pode o tribunal ordenar que a pena de multa fixada seja total ou parcialmente substituída por dias de trabalho em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou ainda de instituições particulares de solidariedade social, quando concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Do exposto flui, como se afirma na decisão recorrida, que para haver deferimento da substituição da multa por trabalho, é necessário que possa concluir-se, em cada caso, que essa forma substitutiva de cumprimento da pena realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição - a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do arguido na sociedade (art. 40.° do Código Penal).

Desde logo, cumpre salientar que as referências que a ora recorrente faz à atuação da DGRSP (conclusões I e II) se nos afiguram espúrias e totalmente destituídas de interesse, pois o fundamento da decisão nada tem a ver com a atuação desta entidade, mas sim com a postura da própria recorrente.

Diz-se, por outro lado, que a condenada “nunca foi validamente notificada de coisa nenhuma” (conclusão IV). Tal, porém, não corresponde à verdade, como consta dos autos e se menciona na decisão recorrida: Tendo-se constatado que a condenada nunca comunicara a estes autos a alteração da morada que fornecera para efeito de notificações [na Suíça e da qual, conforme acima se disse, há muito se mudou], foi determinada a sua notificação por contacto pessoal com o Órgão de Polícia Criminal para que, em dez dias, esclarecesse o seu não comparecimento na Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais. Mais foi ordenado que a condenada fosse informada de que tem o dever de informar nos autos a alteração de morada operada, sendo que a sua omissão traduz a violação das obrigações decorrentes do Termo de Identidade e Residência. Foi, por fim, determinado que, se a mesma declarasse pretender indicar nova morada para efeito de notificações (que não a que indicou em sede de audiência de julgamento), deveria ser-lhe tomado novo Termo de Identidade e Residência - cfr. despacho de fls. 224 a 225.

A notificação em referência foi efetuada no dia 06 de maio de 2020 (fls. 229 a 229-verso (1)).

Em face desta notificação, a ora recorrente nada fez ou disse.

E foi precisamente esta “postura” de alheamento das suas responsabilidades processuais que motivou, em bem, o indeferimento da pretensão da ora recorrente. Aliás, tal postura mantém-se neste sede recursória, fazendo afirmações que não correspondem à verdade, como se viu.

A questão suscitada na conclusão V, ou seja uma eventual violação do princípio da igualdade por, alegadamente, estar vedado “a não residente em território nacional a possibilidade de substituição da pena de multa por PTFC”, pura e simplesmente, não tem aplicação no caso dos autos, uma vez que não foi objeto, direta ou indiretamente, da decisão recorrida, que quanto à mesma é, assim, totalmente omissa. Com efeito, desde há muito se mostra incontroverso que os recursos são remédios jurídicos (2), destinando-se a corrigir erros in procedendo ou in judicando da decisão recorrida. Decorre de tal entendimento, que, “como é próprio da natureza dos recursos, estes não se destinam a apreciar questões novas, que não tenham sido submetidas pelo recorrente ao tribunal de que se recorre, mas apenas a reapreciar uma questão decidida ou que deveria ter sido decidida pelo tribunal a quo.” (Acórdão do STJ de 07.06.2006 proferido no processo 06P650 - Relator Henriques Gaspar)

O recurso é, pois, improcedente.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC’s. (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)

(Processado em computador e revisto pelo relator)

Évora, 8 de Junho de 2021

Edgar Gouveia Valente

Laura Maria Peixoto Goulart Maurício

Sumário

Uma condenada que, notificada pessoalmente para colaborar com o tribunal, nada faz, não está em condições legais de usufruir da substituição da pena de multa fixada por dias de trabalho em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou ainda de instituições particulares de solidariedade social, uma vez que, em concreto, essa forma de cumprimento não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

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1. Fls. 77 dos presentes autos, com assinatura da própria.

2. Entre muitos outros, neste sentido, vide José Narciso da Cunha Rodrigues, Recursos in Jornadas de Direito Processual Penal, Centro de Estudos Judiciários, Almedina, Coimbra 1988, página 386 e Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques in Recursos Penais, 9.ª edição, Rei dos Livros, Lisboa, 2020, página 26.